domingo, 16 de agosto de 2015

O Marxismo pré-leninista: avaliação duma herança



 (uma leitura do MANIFESTO DO PARTIDO
COMUNISTA nos seus 150 anos)192


1. “Apesar das circunstâncias terem mudado muito no de­curso dos últimos 25 anos, os princípios gerais expostos neste Manifesto conservam ainda hoje a sua exac­tidão nas suas grandes linhas. Haveria que rever, aqui e ali, alguns detalhes. O pró­prio Manifesto explica que a aplicação dos princípios dependerá em todo o lado e sempre das circunstâncias históricas dadas, e que, por consequência, não há que atribuir im­portância demasia­da às medidas revolucionárias enumeradas no final do capítulo 2. Esta passagem seria hoje, em bastantes aspectos, redigida de forma diferente”, es­cre­vem Marx e Engels no prefácio que redigiram para a re­edição de 1872 do que conside­ram um “documento his­tórico que não nos atribuímos já o direito de alterar”193. Chama­ria a esta advertên­cia, que me parece digna de quem elaborou com tanta pujança a pri­meira grande ciência europeia da história, re­gra da historici­dade: a regra não-dogmática da articulação entre os “princípios teóricos” dessa ciência e as “circunstâncias” do mo­vimento históri­co que é o próprio domínio dessa ciência. Ora, a leitura dessas 10 me­didas (expropriação da propriedade fundiá­ria, imposto al­ta­mente progressivo, abolição da herança, centrali­zação do crédito nas mãos do Estado, etc.) mostra que não se tra­tava apenas de ‘detalhes’ e a questão pôr-se-nos-á, 150 anos, e já não apenas 25, após a sua enunciação, de saber até que ponto a distinção entre os “princípios teóricos” e as “medidas de aplicação” não depende também das “circunstâncias” do próprio movi­mento histórico: a teoria marxista não é ela também radicalmente histó­rica, não estará sujeita às revisões que ditarem as alterações das circunstâncias da sua enunciação?
2. Bem sei que é uma imensa questão e que, mais do que o tempo aqui, me falta a competência para poder tentar uma res­pos­ta cabal. De forma que me darei limi­tes drásticos: os da leitura apenas do texto do próprio Manifesto cuja publicação co­memora­mos e dos seus quatro prefácios, os de 72 e de 82 de Marx e de Engels, e os de 83 e de 90 de Engels apenas. Quanto aos limites de competência (lerei o Manifesto e os seus prefácios com alguma ingenuidade, sem conhecer a história das suas releitu­ras), modali­zarei estas re­flexões pelo condicional, pelo seu carácter de hipóte­ses de inter­pretação. E se se achar que, mesmo assim, há abuso, só me resta a justificação duma ne­cessidade intelectual que re­leva do meu próprio percurso.
3. Se estou aqui convosco a comemorar o Manifesto, é por me considerar seu herdeiro. Fui marxista entre os finais dos anos 60 e os dos anos 70, deixei de o ser na década de 80 quase sem dar por isso, porque o marxismo se me foi gastando, inade­quado às questões filosóficas que então me ocupavam (de filosofia da linguagem e de epistemologia da linguística), que não eram pri­mariamente questões de sociedade e de justiça social. E quando estas voltaram a tornar-se manifestas, evidentes, imensas e in­so­lúveis a curto e médio prazo – desde o desemprego estrutural e da flexibilidade do trabalho à impotência dos países africanos e outros –, aquando da implosão do comu­nismo soviético há uma dezena de anos, senti, como muitos outros, o incómodo do vazio de pensamento que o esgotamento do marxismo deixara. Se não sou já marxista (mas nunca fui leninista, nunca o consegui ler, devo a Althusser o encontro com o marxismo pré-leninista), não sou no entanto ex-marxista como muitos por aí – para quem ex-marxis­mo significa anti-marxismo –, e a avalia­ção crítica que aqui vou arris­car é justamente a tentativa de guardar dessa tão forte he­rança o que seja essencial para pensar o movimento histórico contemporâneo. Mas se comecei por invo­car o que chamei regra não-dogmática da historicidade, é porque procurarei ser um her­deiro crí­tico e impiedoso: a ‘beatice’ (ou dogmatis­mo) seria a de tudo querer guardar, com a consequência de para nada tal ser­vir. Os tempos que correm pedem, a quem trabalha nos domínios do pensamento filosófico e histórico, que se refaça o gesto essencial da modernidade, o de repensar e avaliar (seleccionar: reter, rejei­tar, reformular) todas as gran­des heran­ças do pensamento euro­peu: grega, hebraica e cristã, romana, iluminista, marxista, que sei eu. E desde já adianto que deste re­te­rei so­bre­maneira duas gran­des lições filosóficas, uma relativa ao pensa­mento histórico, outra às sociedades moder­nas. E seja qual for o interesse que esta mi­nha comunicação possa susci­tar junto de vós, quereria que sou­bessem que escrevê-la foi para mim um acto de saúde intelectual. Por isso quero agradecer, de antemão e do fundo do coração, o convite que me foi feito para estar aqui.

As grandes alterações históricas
4. Começarei por esboçar o quadro das grandes alterações históricas após o período de referência de 1848-1890. a) Marx e En­gels escreveram e pensaram no apogeu da primeira fase da re­vo­lução industrial, a que ocorreu desde o último quarto do sé­culo XVIII (em Inglaterra) até aos finais do século XIX, fase essa ca­racterizada pela máquina a vapor, o carvão, o ferro e a primeira química, primeira fase que multiplicou as fábricas, atravessou as paisagens das jo­vens na­ções modernas com os caminhos de ferro e os oceanos com os navios a vapor, criou um proletariado indus­trial como classe tra­balhadora (com algum paralelo com a escra­vatura, base da agri­cultura dos nobres guerreiros de outrora), instaurou o en­sino pri­mário obrigatório e desenvolveu o liceal e universitário para as elites burguesas. b) A segunda fase, desde o fi­nal do século XIX até aos três quartos do século XX, foi a da electricidade, dos motores eléctri­cos e de explosão, do aço, do betão, do petróleo e da química do plástico, do automóvel e do avião, fase que criou as grandes cida­des e seus prédios altamente concentrados do que se chama clas­ses médias, as quais saíram dos liceus generalizados a quase toda a popula­ção, classes dos empregados de escritório e de serviços, dos técni­cos de inú­meras especializações, fase essa que, depois de ter ali­geirado fortemente a dureza do trabalho operário nas fá­bricas, fez dimi­nuir o proletariado nos países mais indus­trializados, como na fase an­terior sucedera com os trabalhadores da agricultura, aligeirou também o trabalho fe­minino com os electrodomésticos, libertando as mulheres para os empregos ou­trora masculinos. c) A etapa actual está no seu início, caracteriza­da pela electrónica e pela in­ternet, pelo tratamento e circulação de ‘linguagens’, pelos robots e computadores que aliviam traba­lha­dores de todas as categorias dos trabalhos mais monótonos, mus­cula­res ou de es­crita e contas, mas também os expulsam para um desemprego crescente e fle­xibilizam e tornam inseguro o em­prego dos outros, destruindo uma boa parte das condições de tra­balho mais huma­nas conse­guidas pelos movimentos sociais histó­ricos dos trabalhadores durante a segunda fase da revolução in­dustrial.
5. Marx e Engels não conheceram pois nem a electricidade, nem o automóvel, nem o betão armado. A segunda fase da revo­lução industrial, por um lado, alterou muito fortemente as condi­ções e relações sociais nos países capitalistas, por outro, suscitou em países que estavam ainda sujeitos a relações feudais ou co­loniais o desejo dum desenvolvimento industrial acelerado. Esta duplicidade de situações, típica da 2ª fase da industrialização capitalista, parece-me permitir compreender a bifurcação es­sen­cial que co­nheceu o movimento histórico que se reclamava do marxismo: o leni­nismo foi a forma que, sem excepção, se implan­tou nos países atrasados, enquanto que, nos países mais adianta­dos, desde o iní­cio do século XX (à excepção dos países latinos de tradição predominantemente católica que são a França e a Itá­lia), foi o refor­mismo social-democrata (sindicatos e partidos) quem protagoni­zou a condução das lutas do movimento operário de que resulta­ram as seguranças sociais, as férias pagas, a me­lhoria substancial – inequívoca nesses países – do poder de com­pra e das condições dos trabalhadores assalariados. Do meu ponto de vista de herdei­ro, não devo perfilhar a priori nenhuma dessas duas correntes: a re­gra da historicidade diz-me que se tratará justamente de duas maneiras diferentes de articu­lar os “princípios teóricos” recebidos de Marx e Engels e as tão obvia­mente diferenciadas “circunstân­cias” do mo­vimento históri­co. A dificul­dade é que os próprios princípios teóricos fo­ram questio­nados pelo movimento social-democrata, a própria teoria consi­derada histórica e feita objecto de ‘revisão', donde o apelati­vo pejorativo de ‘revisionismo’ vindo dos leninistas, com o risco ine­rente de, ao menos em relação às diferenças de circunstâncias históricas, se­rem por sua vez acusa­dos de dogmatismo, de ceguei­ra à própria história. Quanto à 3ª e tão recente fase, a da electró­nica e da glo­balização acele­rada, ela liquidou o leninismo de forma inapelável e está ameaçando os ganhos históri­cos do mo­vimento reformista.

A descoberta deslumbrada da inteligência da história
6. O prefácio de 1883, o primeiro que Engels redigiu sozi­nho, contém apenas a declaração expressa de que “a ideia funda­mental e directora do Manifesto [...] pertence única e exclusiva­mente a Marx(id. p. 11). Essa “ideia-mestra” é assim resumida: “a produ­ção económica e a estrutura social que dela resulta ne­cessaria­mente formam, em cada época histórica, a base da histó­ria políti­ca e intelectual dessa época; por conse­quência (desde a dissolução da propriedade comum do solo dos tempos primitivos), toda a história foi uma história de lutas de classes, de lutas entre classes exploradas e classes exploradoras, entre classes domina­das e clas­ses dominantes, nas diferentes etapas do seu desenvol­vimento social; mas esta luta atingiu actualmente uma etapa onde a classe explorada e oprimida (o proletariado) já não se pode li­bertar da classe que a explora e oprime (a burguesia), sem liber­tar ao mesmo tempo e para sempre a sociedade inteira da explo­ração, da opressão e das lutas de classes” (ibid., sublinho o dog­matismo). Em nota posterior, Engels evoca como Marx lhe expôs claramente esta ideia quando se co­nheceram, em 1845.
7. Esta fidelidade à memória do amigo defunto ajuda-nos a re­constituir imagi­nariamente o deslumbramento do jovem filóso­fo hegeliano de vinte e poucos anos que rompe com a primeira grande filosofia europeia da história pelo deslocamento que opera do seu sistema, do campo centrado em torno do par su­jei­­­­­to / ob­jecto, para uma filosofia da história, das suas estru­turas e classes sociais. Este deslumbra­men­to é o de quem descobre a própria ló­gi­ca da história: é essa lógica desco­berta, até aí dissimulada, que ‘manifesta’ o primeiro capítulo do Mani­festo, onde não apare­cem as duas outras palavras do títu­lo do texto (nem ‘partido’ nem ‘comunista'), que abundam nos dois outros capí­tulos. Ora, o título desse primeiro capítulo, “Burgueses e Pro­letá­rios”, aos nossos olhos que o lêem 150 anos depois, inscreve-se ir­resistivelmente no contexto da primeira fase da revolução in­dus­trial, durante todo o século XIX, e sem dúvida que a própria pai­sagem urbana, extre­mando fortemente os bairros habitados pelas classes domi­nantes e pelas outras classes burguesas dos su­búr­bios miseráveis onde se alojava em péssimas condições o prole­tariado das novas fábri­cas que espalhavam nuvens de fumo ne­gro e odores quími­cos quase irrespiráveis, essa paisa­gem ajudava ‘visivelmen­te’ à ‘evi­dência’ intelectual do filósofo. O que o 1º capí­tulo do Manifes­to terá feito, em seguida, foi ter dado acesso a muitos operários e outros não-intelectuais, que vi­viam / viam esse urba­nismo exa­cer­bado de exclusão total de classes, ter-lhes dado acesso ao vis­lum­bre dessa lógica ‘científica’ da história. Quem não conheceu exce­lentes militantes operários convencidos da cientifi­cidade e inevi­tabili­dade do comunis­mo?
8. Mas seria estultícia que nos apressássemos a concluir, à maneira ex-marxista, sobre a ultrapassagem do marxismo pela própria lógica da 2ª fase da revolu­ção industrial e capitalista, que contrariou, nos factos históricos, as previsões do Ma­nifesto. Por um lado, porque a corrente social-democrata saída do marxismo não foi alheia a essa ultrapassagem, mas sobretudo porque a des­coberta de Marx vai além das alterações futuras e das suas previ­sões. E vai além da descoberta de Marx, indivíduo, o próprio Manifesto o assinala no início do seu 2º capítulo: “as concepções teóri­cas dos comunistas não repousam de forma nenhuma sobre ideias, princípios inventados ou descobertos por tal ou tal refor­mador do mundo” (idem, p. 38). Como se pode ver algum efeito de denegação, em sentido psicanalítico, nesta citação textual que ‘denega’ os seus próprios autores e, por outro lado, como 150 anos são passa­dos, recorrerei a uma outra citação recente, insuspeita porque dum filósofo, Jean-Luc Nancy, que nunca foi marxista e que es­creve em 1991, justamente em plena época da implosão soviética.
9. Eis. “Há [...] uma mudança geral, na época de ‘Marx', do regime do próprio pensamento, um deslocamento em profundi­dade da manei­ra como ‘pensamento’ e ‘realidade históri­ca’ se in­dexavam um na outra e na maneira como isso mesmo se dá a pensar. [...] O que faz com que ‘Marx’ seja talvez menos e mais do que um pen­sador: um acontecimento em que o pensamento se vê pers­pecti­vado de ou­tro lado. A praxis e o comum como o próprio as­sunto [de que se ocupa] o pensamento, e onde o pensa­mento se torna para si mesmo desconhecível.” E mais adiante: “O que se produz na época de Marx [...] é isto: que o ‘real’ se torne, expres­samente, o sujeito do pensa­mento, e não o seu objecto. Ou ainda: que o ‘real’ se ex­plicite enquanto ‘sujeito’ do pensamento. Quer dizer que o pen­samento toca num ponto em que tem que se re­tor­nar, ou se tor­cer sobre si mesmo, para exibir o que o faz pen­samento (e não apenas o que o ‘faz pensar') e que ‘ainda’ não é o ‘pensa­mento'. Do que ele exibe assim, tam­bém exibe, no mesmo gesto, a exte­rioridade e o ca­rác­ter de excesso sobre tudo o que ‘pensa­mento’ pode designar ou representar. Isto arrasta, a prazo, um certo nú­mero de transfor­mações do próprio pensamento do ‘su­jei­to': Niet­zsche, depois Freud, depois Heidegger, não estão longe de Marx. É talvez mesmo esta ‘proximidade’ (singular, segu­ra­mente) que te­mos ainda que aprender a captar”. E ainda: “O que aconte­ce, de Hegel à época de Marx, é que a efectividade dum ‘fora co­mum’ da filosofia (o ‘traba­lho’, a ‘indústria’, as ‘classes’, a ‘miséria’, os ‘povos’, o ‘mercado’, o ‘dinheiro’, as ‘forças, os ‘cor­pos’) faz-se valer como o lugar, como o sujeito e como a pra­xis do que Hegel chama ‘a ideia’ “(Nancy)194.
10. Não podendo detalhar o pensamento de Nancy, limitar-me-ei a sublinhar como ele diz o deslocamento filosófico de Hegel a Marx: do sujeito humano para o ‘real’ da história dos humanos. É este real histórico, acontecimento decisivo da histó­ria da filoso­fia europeia, que se pensa – sob forma de divulgação, como se diz – no texto do Manifesto. Esta, a primeira das duas li­ções marxistas que retenho hoje aqui. A segunda dará mais tra­ba­lho a dizer, uma vez que terá que ter em conta a regra da his­to­rici­dade aplicada ao conteúdo mesmo da ‘descoberta da lógica da história’ por Marx, terá que ter em conta o que, na continuação da história, desmentiu (ou não) essa lógi­ca. E se se achar que esta primeira li­ção é filosoficamente demasiado abstracta, ao me­nos dela algo se entenderá quanto ao meu propósito aqui: o que nos importa não é di­zer bem ou mal de Marx, contabilizar mais ou menos o que guardar dele, mas ter cri­térios para reter o que, deste desloca­mento ‘filosófico’ formidável, que outros pensa­dores levaram em outras direcções também, vale hoje ainda como pen­sa­mento. É uma imensa questão, pela qual vogam estes meus ensaios, como sei e posso.

Quatro críticas ao 1º capítulo do Manifesto
11. O 1º capítulo, o da manifestação da história – “a história de qualquer socie­dade até aos nossos dias não foi senão a história de lutas de classes” –, reparte-se grosso modo em duas metades, uma dedicada ao processo revolucionário da Burgue­sia triunfante, a outra à descrição do processo revolucionário do Proletariado por vir195. Pegarei em quatro pontos.
12. O argumento central (id. pp. 28-29), que faz a transição entre os dois qua­dros, baseia-se na analogia entre a violência da revolução burguesa, que quebrou as cadeias feudais que trava­vam o desen­volvimento das forças produtivas, e a história da in­dústria e do comércio que havia dezenas de anos que era a re­volta das forças produtivas modernas contra as relações de pro­dução ou regime burguês da propriedade. Exemplo: as crises co­merciais como epi­demia de sobreprodução, como desordem da sociedade burguesa que ameaça a existência da propriedade pri­vada. “Como é que a burguesia ultrapassa estas crises? Por um lado, des­truindo pela violência uma massa de forças produtivas; do outro conquistan­do novos mercados e explorando mais a fundo os anti­gos. Aonde é que isto chega? À preparação de crises mais gerais e mais formi­dáveis e a diminuir os meios de as prevenir”. 150 anos passados, é difícil de resistir à pres­ciência desta citação: as guer­ras terríveis deste século e o negócio das armas como destrui­ção, a conquista de novos mercados (hoje nada do íntimo das nossas casas pa­rece escapar ao mercado da chamada comuni­cação social) e as novas e permanentes crises. Mas a se­quência do argumento – a incapacidade de resistência do regime de pro­prie­dade burguês ao progresso das forças produtivas e a inevi­tabili­dade da vitória do prole­tariado (última frase do capítulo) – foi desmentida pela história.
13. O meu 2º ponto procura encontrar no próprio texto ra­zões para esse des­mentido, no contraste entre a evocação dos dois actores míti­cos da cena: “a sociedade divide-se em duas grandes classes dia­metralmente opostas” (id. p. 23). A Burguesia é descri­ta, desde a sua for­mação nos burgos medievais, como vencedora, tendo “jo­gado na história um papel eminentemente revolucioná­rio” (id. p. 24): “submeteu o campo à cidade, os países bárbaros aos civili­za­dos, subordinou os povos de campone­ses aos povos de burgue­ses, o Oriente ao Oci­dente”, “na sua domi­nação de classe ainda não se­cular, criou for­ças produtivas mais numerosas e co­lossais do que tinham feito todas as gerações pas­sadas em con­jun­to” (id. p. 27). Enquanto que, pelo contrário, o Prole­tariado é com­posto de ope­rários despojados de tudo, “obrigados a vende­rem-se dia a dia, são uma mercadoria”, “simples acessório da má­quina, a quem não se exige senão a operação mais simples, monó­tona, fácil de apren­der” (“o trabalho dos homens é su­plantado pelo das mu­lhe­res e das crianças”), “escravos da classe burguesa, do Estado bur­guês, [...] da máquina, do capataz, e sobretudo do burguês fa­bri­cante” (id. pp. 29-30). A sua força consistirá, não tanto nos triun­fos efé­me­ros em defesa dos seus salá­rios (exemplo com a lei das 10 ho­ras diá­rias na In­glaterra de 1847), mas na sua união polí­tica, numa luta nacional e interna­cional de classes que os mo­der­nos cami­nhos de ferro permitem. Os “elementos de edu­cação” vêm-lhe da burgue­sia: quando esta se alia com ele nas suas lutas con­tra ou­tros interesses, quando precipita no proleta­riado frac­ções inteiras da classe dominan­te, e enfim, “da mesma maneira que, outrora, uma parte da no­breza passou para a bur­guesia, também nos nossos dias uma parte da bur­guesia passa para o proletariado e, nomea­damente, essa parte dos ideólogos burgue­ses que se iça­ram até à inteligên­cia teórica do conjunto do movi­mento históri­co” (id. p 33), ou seja, os pró­prios Marx e En­gels. Sem educação, sem propriedade, sem família em sentido burguês, sem carácter nacional, sem leis, moral, reli­gião, “sem nada que sal­var que lhes pertença” (id. p 34), estão aptos para a revolução guiados pela “inteligência teórica do con­junto do movi­mento his­tórico”; o que esta não previu, es­sencialmente se tendo passado no século XX, foi que justamente um dos meios da bur­guesia para re­solver as suas crises de sobreprodução tenha sido ‘dar’ ao pro­letariado educação, ga­rantias de salários e de saúde, alguma pro­priedade, família e mo­ral, como condição da sua inte­gração nos novos mer­cados neces­sários para ultra­passar as crises, e que essa ‘doação’ tenha sido conse­guida pelas lutas operárias clas­sificadas de efémeras, conduzidas pelos seus sindi­ca­tos e par­tidos sociais-democratas, que essa maneira da inte­grar o proleta­riado e este modo de conseguir aquilo de que o Manifes­to consta­tava a carên­cia gritan­te viesse de uma outra “inteligência teórica do conjunto do movi­mento histórico”, a de Keynes. O fresco da tão nítida oposição Bur­gueses / Proletários foi perdendo nitidez.
14. O 3º ponto da minha indagação diz respeito ao lugar cu­rioso que o Mani­festo dá à máquina na sua composição teórica. Por um lado, tem um lugar revolucio­nário inequívoco: “os merca­dos alargavam-se sem cessar: a procura crescia sempre. A manu­factura, por sua vez, torna-se insuficiente. Então o vapor e a má­quina revolucio­naram a produção industrial” (id. p 23). Mas por outro lado, creio que em nenhuma vez ela se liga expressamente ao conceito decisivo de “forças produtivas”, da mesma maneira que não é nunca expressamente colocada como ‘invenção’ da bur­gue­sia revo­lucionária, e ainda que é ignorado o papel crucial do en­genheiro e da ciência (e isso vai porventura além do Manifesto, julgo ser lacuna da teoria marxista, quiçá porque pouco vi­sível no século XIX, apesar de que já em 1776 o engenheiro Watt se aliara ao capi­talista Boulton para fabricar as máquinas a vapor da sua in­venção). Se a máquina, elemento revolucionário, não per­tence à burguesia revolucionária, poder-se-ia pensar que seria no sentido de lhe reservar a possibilidade de estar do lado do prole­tariado, adentro juntamente das “forças produtivas”. Mas não é isso que parece se passar no Manifesto: já indiquei acima como o operário é um acessório e um escravo da máqui­na; na 1ª fase da sua luta contra a burguesia, o proletariado destruiu máquinas, estas apa­garam “toda a diferença no trabalho e reduziram em quase todo o lado o salário a um nível igualmente baixo” (id. pp. 31, 32). No 3º capítulo chegar-se-á a falar na “demonstração irrefutável dos efeitos mortíferos do maquinismo” (“e da divisão do trabalho”)196. Ora, hoje, passados 150 anos, parecem-me claras três coisas. a) Que a 2ª fase da revolução industrial e capitalista contrariou um ar­gumento decisivo do Manifes­to, segundo o qual “o operário mo­derno, em vez de se ele­var com o progresso da indústria, desce sempre mais baixo, abaixo mesmo das condições de vida da sua classe [...] é portanto manifesto que a burguesia é incapaz de pre­encher mais tempo o seu papel de classe dirigente e de impor à sociedade, como lei su­prema, as condições de existência da sua classe; ela já não pode reinar, porque é incapaz de assegurar a existência do seu escravo no quadro da sua escravatura, porque ela é obrigada a deixá-lo decair ao ponto de ter de o alimentar em vez de se fazer alimen­tar por ele” (id. p. 35); pelo contrário, uma franja considerável do mundo operário ‘emburguesou-se', esse início de desproletarização tendo prosseguido na 3ª fase pela tecnicização dos que trabalham com máquinas electrónicas. b) Que esta 3ª fase, sob a forma de flagelo que é o desemprego é certo, está pondo à luz o enorme benefício da máquina, uma das gran­des promessas do século XVIII: substi­tuir o esforço muscular e cerebral repeti­tivo dos humanos, liber­tar o tempo destes para actividades cultu­rais e lúdicas. c) Que o desen­volvimento in­for­mático e robótico e das actividades de ca­rácter comunicacional está dando ao enge­nheiro e, em geral, ao capaz de ‘performances’ rentáveis, um lu­gar pri­mordial, que se pode mesmo sobrepôr ao do capitalista, como su­gere a figura de um Bill Gates.
15. E chego ao meu quarto ponto sobre o 1º cap. do Mani­fes­to, a ver com a composição do seu conceito de revolução, bur­guesa ou proletária. Julgo – não pude dispor do tempo de trabalho semiótico necessário para maior certeza – que ele tem duas com­ponentes: a força e a razão, aquela afirmada nitidamente, já que necessária para tomar o poder e quebrar os laços que se lhe opõem, afirmada, por exemplo, como violência e brutalidade. Quanto à razão, tão exaltada nas filosofias de Kant e de Hegel, to­dos aqui estaremos de acordo em que o que fez a força histórica de Marx foi justa­mente a sua proposta da revolução – a transfor­mação duma situação social gritante de desigualdade, o luxo duns poucos à custa da miséria duma multidão – ser feita, não em ter­mos de moral ou de utopia, mas nos de uma reflexão racional so­bre o que possibili­tou essa mesma situação social e o que impedia essa transformação revolucionária. A razão faz parte assim, com a violência, do conceito marxista de revolução, mas no Manifesto, ela afirma-se discretamente, sem que a própria palavra apareça (não dei por ela na tra­dução clássica de Laura Marx): diz-se por exemplo no cálculo egoísta e no pa­gamento a pronto, por um lado, e, por outro, no negativo da frieza, da impiedade, da anti-senti­mentalidade, do carácter aberto e di­recto (ou seja, manifesto) da maneira da burguesia ter calcado aos pés as relações feudais (id. p. 25). Também na ne­cessidade já referida de “elementos de edu­cação” que vêem ao proletariado da burguesia197, a “inteligência teórica” dos ideólogos bur­gueses que passaram ao proletariado sendo a única menção ex­plícita no 1º capítulo, retomada aliás no início do 2º (id. pp. 37-38), o qual con­tém ainda uma breve dis­cussão dos “pontos de vista reli­giosos, filosóficos e ideológicos” do comunismo (onde a célebre proposi­ção “as ideias dominantes duma época nunca foram senão as ideias da classe dominante”), onde se fala “de ideias que revo­lu­cionam uma sociedade” (id. p. 44). Já que a máquina a vapor revolucionara a produção indus­trial, esta discreção em torno da razão – a ciên­cia nunca é men­cionada, o sábio enfileirando com o médico, o ju­rista, o padre e o poeta na lista das “actividades que passavam por veneráveis e consideradas com um santo respeito” (id. p. 25) – não é a desligar do que se disse em relação à máquina. Esta é com efeito simulta­neamente força (vapor, energia) e razão (invenção no contexto largo da física e da química), e pode-se pôr a hipótese de haver um jogo semântico em que o silenciamento da razão e do enge­nheiro (mais claramente burgueses) permita que a expressão “forças produti­vas” – a que a máquina pertence – possa, junta­mente com a união do proletariado, dar ‘força’ à violência revolu­cionária do proletariado. Quanto à razão, não creio ser injus­to, sa­bendo-se da história posterior, se disser que o Manifesto – que manifesta a ‘ver­dade’ histórica do partido comunista – consi­dera que esse partido já tem a ‘razão’ que basta para a revolução. O iní­cio do 2º cap. como que denega o que no termo ‘partido’ há de ‘dis­tinto’, ‘oposto a’, ‘parte’, ‘separado’, ‘particular’, para não reter senão o que há de ‘comum’ no termo ‘comunista’, ‘conjunto’ e ‘totalidade’ do movimento operário: o partido-comunista, com um traço de união que dá origem a como que uma só palavra em que a ‘parte’ se dissolve no ‘comum’, tem a razão das lutas proletárias. O que a história leninista posterior manifestou: “prati­camente, os comu­nistas são portanto a fracção mais resoluta dos partidos operários de todos os países, a fracção que arrasta todas as outras; teorica­mente, eles têm sobre o resto do proleta­riado a vantagem duma inteligência clara das condi­ções, da cami­nhada e dos fins gerais do movimento prole­tário” (id. p. 37). É o que con­suma, me parece, a unidade do título: tornar manifesta esta “reso­lução arrastadora” e esta “inteligência” clara do partido-co­mu­nista, a sua violência e a sua razão revolucionárias.

A abolição da propriedade privada
16. Vamos agora ao 2º capítulo, que tem uma composição muito diferente do primeiro: este manifestava uma lição de his­tória, de uma forma por as­sim dizer distan­te, da distância da ra­zão, dos argumentos, do pensamento filosófico e do seu vasto al­cance. Agora trata-se de polémica, da “posição dos comunistas” e da res­posta às ob­jecções que se lhes põem, a certa altura o texto adopta um “nós/vós” durante cerca de três páginas. O essencial desta “posição dos comunistas”, ponto fulcral do futuro mo­vimen­to marxista, é colocado de forma lapidar. “Os comunistas podem re­sumir a sua teoria nesta fórmula única: abolição da propriedade privada” (id. p. 38). Sem dúvida que se trata duma consequência do 1º capítulo, da tese da ultrapassagem das relações modernas de pro­dução ou regime de propriedade burguesa pelas forças produti­vas modernas; não obsta que só aqui é que ela é colocada e sus­tentada, e assumidamente como “posição dos comunistas”. Esta disjunção entre ‘teoria’ e ‘estratégia', entre a leitura do pas­sado e as questões do futuro, dá-lhe obviamente um estatuto de mais dis­cutível do que a lição de história do 1º capítulo, mais sus­ceptí­vel portanto, tal como as 10 medidas do final do mesmo capítulo, de submis­são à regra da historicidade. Assim o entende­ram os so­ciais-de­mocratas do Norte europeu, ao contrário da corrente le­ninista, porque as diferentes condições históricas assim o impu­se­ram a ambos, ainda que em guerra mútua.
17. Ora, podemos ver como Marx e Engels oscilaram nas suas previsões em torno desta futura bifurcação dos marxistas. a) O fi­nal do Manifesto põe as suas espe­ranças revolucionárias na Ale­ma­nha e no seu partido comunista, “porque a Alemanha se en­con­tra na véspera duma revolução burguesa, porque a cum­prirá em condições mais avançadas da civilização europeia e com um pro­le­tariado infinitamente mais de­senvolvido do que a Ingla­terra e a França nos séculos XVII e XVIII, e que por conse­quên­cia, a revo­lução burguesa alemã não poderia ser senão o prelúdio ime­diato duma revolução proletária” (id. p. 60, eu sublinho). b) No curto prefácio de 1872, é si­len­ciada a revolução (burguesa?) conduzida por Bismarck, man­tendo o Kaiser como im­perador e sem ter havido revolução prole­tária nenhuma, e é a recente Co­muna de Paris que é a nova referência de experiência histórica para o movi­mento prole­tário. c) Eles próprios observam no pre­fácio à edição russa de 1882, que o Manifesto é silencioso em re­lação à Rússia, quando “hoje, [o czar] é [...] o prisioneiro de guerra da revolu­ção, e a Rús­sia está na vanguarda do movimento revo­lucionário da Eu­ropa” (id. pp. 13-14), mas podemos verificar que este surpreendente desloca­mento das “condições mais avan­çadas da civilização europeia” para um país em que “a proprie­dade fundiária burguesa” está ainda “em via de formação”, ao confir­mar-se historicamente em 1917, é feito repetindo o esquema pro­posto pelo Mani­festo para a Alemanha, o duma revolução bur­guesa seguida de imediato pela revolução proletária. Neste sen­tido, e na confirma­ção da tese central da abolição da propriedade privada, é óbvio que Lenine é fiel ao Mani­festo. d) Em 1890, no Primeiro de Maio, no mesmo prefácio em que Engels cita o ante­rior de 1882, ele termina com a evocação da jornada desse dia: “no momento em que escrevo estas linhas, o proletariado da Eu­ropa e da Amé­rica passa a revista das suas forças, pela primeira vez mobilizadas num só exército, sob uma mesma bandeira e para um mesmo fim imediato: a fixação legal da jornada normal de 8 horas, procla­ma­da desde 1866 pelo Congresso da Internacional em Genebra [e portanto no tempo ainda de Marx], e de novo pelo congresso ope­rário de Paris de 1889”. E termina: “Pudesse Marx estar ao meu lado, para ver isto com os seus próprios olhos” (id., p. 18). É a corrente so­cial-democrata europeia que, apesar da “efemeridade” destas conquistas segundo o Manifesto (acima, § 13), se encontra caucio­nada, antes, é certo, da “revisão” da tese da abolição da proprie­dade privada. Embora se possa também en­tender que seja o carácter internacional do movimento que é aqui caucionado, algo que o Manifesto propõe firmemente desde o iní­cio, resposta do proleta­riado à internacionali­zação da burguesia e do mercado.
18. Ora, a questão da propriedade privada, avaliada se­gundo a regra da histo­ricidade, que tem em conta as circunstân­cias do movimento histórico, foi tendo solu­ções diferentes con­soante es­tas. Abolida pelo Estado nas revoluções leninistas, isto é, em paí­ses suficientemente atrasados do ponto de vista industrial e capi­talista para que essa medida se justificasse por causa da acelera­ção do próprio processo de industriali­zação, em que o Es­tado e o partido tive­ram um papel de liderança necessário (embora não suficiente, veja-se África)198. Houve também abolição da propriedade privada em certas cir­cunstâncias políticas – como a nacionalização das fábri­cas do fran­cês L. Renault, colaboracionista com os nazis, após a última guerra –, da mesma maneira que se­riam a ter em conta, para uma dis­cussão ca­bal da questão, as di­versas formu­la­ções jurídicas dessa propriedade (sociedades anó­nimas por ac­ções, por exemplo), a imposição de convenções colec­tivas de contratos de trabalho, o desenvolvimento recente das téc­ni­cas de gestão, etc., tudo modalizações mais ou menos ‘sociais’ da propriedade. Ora, ao nível mais geral das rela­ções entre as empresas privadas e o Estado, foi por a Inglaterra ter sido a pri­meira nação a industrializar-se – em condi­ções históricas particu­lares das suas aristocracia e burgue­sia, condi­ções essas que têm a ver também com o seu ca­rácter in­sular – que ela se tornou uma cam­peã da livre iniciativa, o Estado não tendo tido papel signifi­cativo até à grande depressão dos anos 1930 (igualmente nos Es­ta­dos Uni­dos); pelo contrário, o atraso dos países continentais, França, Bélgi­ca, Holanda, países escandinavos, todos de tradição oci­dental, obrigou os Estados desses países a tomarem iniciativas de liderança va­riadas, em relação por exem­plo à cons­trução de ca­minhos de ferro ou à criação de instituições de crédito esta­tais. Isto é, o papel maior ou menor do Estado teve a ver com os coefi­cientes de atraso no desenvolvimento. Ou ainda, a comparação do desenvolvimento industrial de dois grandes paí­ses atrasados com tradições comunitárias, o Japão e a União So­viética, po­deria mos­trar talvez como foi possível ao primeiro, im­portador de tecnolo­gia ocidental, chegar ao nível que se sabe jo­gando o jogo do mer­cado ao contrário do segundo, que todavia se içou ao primeiro lu­gar na exploração espacial, sem dúvida por se tratar, mesmo nos Estados Unidos, dum domínio estatal. Seja como fôr, o panorama con­tempo­râneo, e nomeadamente a implo­são dos países comunis­tas e a grande dificuldade em se de­senvol­verem aí dinâmicas empre­sariais, e ainda o relativo atraso elec­trónico dos seus enge­nheiros, parece não permitir hoje gran­des dúvidas sobre a neces­sidade, nesta como noutras questões, da re­gra não-dogmática da histori­cidade de que parti­mos. Porque jus­tamente há aqui um problema de fundo que a questão da pro­priedade privada masca­ra, e que tem a ver com a segunda lição do marxismo que me pa­rece de reter. Será o meu último ponto, peço desculpa por não ter conse­guido ser mais breve.

Economia e sociedade (sobre a proposição mais célebre do Manifesto: “a história de qualquer sociedade até aos nossos dias não foi senão a história de lutas de classes”)
20. Que dizer sobre esta afirmação fundamental? A maior reticência, 150 anos após, seria sobre o uso da noção de ‘classes sociais’ e sobre a sua universalidade histórica: é um conceito onde – fora do seu alcance na definição do conceito económico de modo de produção, e nesta proposição obviamente que vai muito além – se amalgamam coi­sas importantes que as posteriores ciências das socie­dades têm procurado com­preender: basta dar o exemplo das estruturas de parentesco, cuja teorização por Lévi-Strauss há 50 anos me pa­rece ser, após a teoriza­ção de Marx, o nú­cleo mais sólido das ciências das sociedades europeias. Ora, é esse amálgama que ex­plica, creio, a dificulda­de que já no Manifesto se percebe e que o marxismo poste­rior sempre teve, em entender o fenómeno das nacionalidades, que continua crucial ainda hoje. Mas julgo que se pode dizer, em abono do Manifesto, que a escrava­tura, quer anti­ga quer moderna, e o proletariado do sé­culo XIX são provavel­mente as classes domina­das mais clara­mente demarcadas em toda a história. A grande diferença é que a primeira é fruto claro da força da guerra, das sociedades monár­quicas ou de conquista, enquanto que a segun­da, o Manifesto o diz, é fruto da própria re­volução industrial, da força mas sobre­tudo da razão, como a his­tória poste­rior mostrou.
21. Esta ressalva fundamental não anula no entanto a ver­dade da proposição, que poderá ser estendida até às sociedades primitivas sem classes sociais199 e que eu reformu­laria assim: “a história de qualquer sociedade até aos nossos dias foi sobretudo história de guerras”, em que matizei o ‘não... senão’ em ‘sobretu­do’ para ter em conta o enorme leque dos estudos actuais dos historiadores. E julgo que se poderá es­tender ainda mais o seu al­cance, já que os humanos não inventa­ram a guerra, encontraram-na já como um fenómeno da vida. Se se tem em conta que o nú­mero de molécu­las de car­bono, essencial a todas as moléculas de que os vivos são compostos, é constante na biosfera e na atmosfe­ra, percebe-se que há um ciclo assim da transformação sucessiva do carbono: o carbono do CO2 da atmosfera é transformado pela fotos­síntese na glico­se das plantas, os herbívoros alimentam-se destas para te­rem carbono nas suas células e por sua vez servem de alimento à células dos carnívoros, donde resulta uma lei ina­creditável da vida, por assim dizer o seu b-a-ba: os animais têm que se comer uns aos outros como condição mesma de serem vivos e de continua­rem vivos. A grande lei da vida é a lei da selva. Ora, ela é eviden­temente inconciliável com a lei de re­produção de cada vivo, do ponto de vista deste, as espécies ani­mais tendo mil astúcias para lhe es­caparem enquanto vítimas e mil e uma para lhe obedece­rem enquanto predadoras. Isto é, a lei da selva co­manda inclusi­vamente as anatomias de predação e fuga de cada es­pécie, mas por outro lado, cada um dos animais, o nome o diz, é o que dá animação à selva, é a fonte energética dela, se se pode dizer, já que sem animais não há selva.
22. Seria um jogo análogo entre duas leis impossíveis (sigo aqui na esteira do filósofo francês J. Derrida) que eu quereria – ou­sarei dizer ‘substituir'? – contrapor à proposição da luta de classes do Manifesto. Entre a repartição das mais-valias da pro­dução en­tre capital e trabalho, entre lucros e salários, há inevita­velmente conflito: não há com efeito nenhum critério intrínseco rigo­roso, aritmético, económico ou outro, que decida dessa repartição, a qual é es­truturalmente aleatória e só pode ser decidida por uma luta, luta de classes aqui sem dúvida, cada qual querendo ob­ter o má­ximo possível, achando sempre que a outra parte tem de mais, todo o capitalista quer maximizar os lu­cros, todo o assalariado tem sempre mais desejos de comprar, de viajar, etc., o pró­prio sistema o incita a isso permanentemente. As modernas conven­ções colectivas, consegui­das em se­quência das lutas sindi­cais du­rante a 2ª etapa da revo­lução in­dustrial e capi­talista, são uma maneira política e demo­crática de regular essa re­partição. En­quanto que a abolição da pro­priedade privada le­ninis­ta decidiu duma vez, dogmatica­mente: crendo fazê-lo em nome da socie­da­de, fê-lo em nome do Estado. Isto é, a deci­são não respon­deu, nem podia, ao argumento do Manifesto contra o capi­tal – este é “um pro­duto colectivo, [que releva] da activida­de em comum de mui­tos indiví­duos e mesmo, em última análise de toda a socieda­de” (p. 39) –, não decidiu entre capitalistas e proletários, mas entre capitalismo privado e capi­ta­lismo de Estado. Porque a nacio­nali­zação não faz desaparecer o capital, o Esta­do terá que o acumular, ter lucros e in­vestir, etc. No entanto, na Europa ociden­tal, a cor­rente do marxismo reformista (e pouco importa aqui que se re­clamassem ainda ou já não de Marx) não se contentou apenas com a questão dos salários: preocupou-se também com a da assistên­cia na doença, com as fé­rias e re­forma, com as condições de tra­ba­lho, de higiene e de se­gu­rança, com as condições de habitação, etc. Ou seja, preocupou-se em obstar à maneira como o desen­volvi­mento do capitalismo ameaçava dissolver a sociedade que lhe dava, como diz o Manifesto, todas as condições para ele se de­sen­volver, mas sem pôr em questão a própria dinâmica desse capita­lismo, sem anular a lei de autonomia de qual­quer empresa pro­dutiva, aquilo que é justamente o que dá ânimo, dinamismo à so­cie­dade e que implica sempre um duplo risco: técnico, relativo ao engenhei­ro (às “forças produ­tivas”), e do capital, relativo ao eco­nomista (às “relações de produ­ção”). Esta lei de autonomia dinamizadora não permite dissociar nem opôr estas duas relações, não há máquina sem capi­tal nem capital sem máquina. É neces­sário que a qualidade dada pelo en­genheiro e o preço cal­cu­lado pelo economista assegurem que o aleatório es­sencial do mer­cado corresponderá ao investi­mento do capital, in­cluindo os salá­rios. A dinâmica estrutural da empresa de­pende desse risco. Por outro lado, a so­ciedade é o te­cido de to­das as em­presas (e de ou­tras institui­ções) e famílias, cuja dinâmi­ca de re­produção é feita do conjunto de to­das as di­versas dinâmi­cas de cada uma dessas uni­dades so­ciais, com as suas concor­rên­cias e complemen­tarida­des também. As respecti­vas autonomias são um factor de­ci­sivo da re­pro­dução conseguida do conjunto, mas esta só se faz se as energias de cada empresa estiverem di­namizadas. Esta correlação estrutural entre as duas leis, será legí­vel na palavra ‘privada’ na expressão ‘propriedade privada’: esta só é ‘própria’ de al­guém porque foi ‘privada’ do ‘comum social’, porque este sofreu uma ‘privação’. É o que ignora a concepção romana de propriedade que herdámos, que se excede do uso ao abuso.
23. Há pois um conflito ir­redutível entre duas leis. Por um lado, a lei de auto­nomia de cada empresa, que a pode tornar ‘ce­ga’ e agressiva da sociedade de que é parte privada: quer ao ní­vel do en­genheiro (poluição no am­bien­te em seu redor, menor quali­dade dos produtos, horários e ritmos de trabalho acelerados de ma­is, etc.), quer ao ní­vel do economista (salários baixos e lucros eleva­dos, fuga aos impos­tos e à segurança social, desemprego sem partilha do tempo de traba­lho, etc.); quer ainda a um nível acima dos dois – questão que presumo particular­mente grave e sem so­lução à vista: os discursos públicos (e não só publicitários) dos meios de comunicação social que de­pendem da clientela das au­diências, cuja persuasão aliciante pode ser social­mente per­versa, na medida em que incitam indefinidamente a criação de desejos numa população jovem sem meios para os sa­tisfazer e é assim empurrada, quer para o crime, quer para a droga. Por outro lado, a lei da repro­dução da sociedade enquanto conjunto, que forne­ce a qualquer empresa máqui­nas, energia, matérias primas, en­ge­nhei­ros, técnicos e outros trabalhadores, o respecti­vo saber esco­lar ganho pela ra­zão histórica humana e até o pró­prio capi­tal acumu­lado antes, tudo aquilo que se tornou ‘próprio’ do capitalista por ‘privação’ do comum social. Uma empresa capitalista só funciona apro­priando-se do que a so­ciedade ‘reproduz’ e devolvendo-lhe em seguida os seus produ­tos para que ela lhos compre. Concorrência e conflito são essenciais (mesmo nas so­ciedades planificadas), não apenas entre as empre­sas, mas entre cada uma delas e o conjunto da so­ciedade. Mas nos dois sentidos, porque se as empresas não são dinâmi­cas, e para isso têm que ser autóno­mas, a sociedade tam­bém não é dinâmica, envelhe­ce, como terá porventura suce­dido às sociedades leninistas.
24. Este conflito re­flecte-se num conflito entre disciplinas: a econo­mia, des­medida­mente desenvolvida, não deve ser senão uma disciplina social autónoma (como a linguística ou as ciências jurí­dico-políticas) adentro da sociologia como ciência das socieda­des, mas esta pare­ce incapaz da avaliação crítica do discurso eco­nó­mico (para o que aliás terá contribuído a tese marxista da de­terminação em última instância das es­truturas so­ciais pelas eco­nómicas).

Uma nova Internacional (Derrida)
25. Eis hoje o nosso dilema: o sistema financeiro actual das grandes empresas económicas, pros­seguindo os seus lucros de forma especulativa (ao espelho dos capitais e lucros, não vendo nada para fora disso), ameaçam as sociedades de muito varia­das formas, e estas apresentam-se com os seus Estados na­cionais extremamente fragilizados. O movimento operário refor­mista eu­ropeu aprendeu, durante a segunda fase da revolução industrial e capitalista, a regular os conflitos e a defender a sociedade sem destruir a sua dinâmica, para isso dispôs de pensadores também. Nesta 3ª fase, em que as comunicações electrónicas aceleram ter­rivelmente os ritmos, está a desenvolver-se – em nome do cha­mado “pensa­mento único”, o que, tal como o “partido único” de antanho (uma ‘parte’ não pode ser única), é um conceito contradi­tório, não é pensa­mento, já que este não existiu nunca, na longa histó­ria das civili­zações, senão quando foi plural e polémico – está a de­senvolver-se um neo-liberalismo que pro­cura abater todas as defesas das sociedades contra a lógica estrita do mercado, defesas essas que são o que o regulam e o tornam socialmente viá­vel; sem elas, ele torna-se insocial, capaz de destruir a sociedade que o supor­ta (a crise devastadora que esta especulação abriu 10 anos depois). A cha­mada globalização do mercado, que o Manifesto pensou já como internacio­nal, implica a instauração de mecanismos mun­diais de regulação articulando-se aos estatais e nacionais, implica como tarefa prioritária a instauração do que Derrida cha­mou uma nova Internacional: “uma transfor­mação profunda, projectada sobre uma longa duração, do direito inter­nacional, dos seus con­ceitos e do seu campo de inter­venção; da mesma maneira que o conceito dos direitos humanos se deter­minou lenta­mente no curso dos séculos através de muitos sismos sócio-políticos (trate-se do direi­to ao trabalho ou de direitos eco­nómicos, dos direitos da mulher ou da criança, etc.), também o di­reito internacional deve­rá espalhar e diversificar o seu campo até incluir nele, pelo menos se ele deve ser consequente com a ideia de democracia e dos direitos humanos que proclama, o campo económico e social mundial, para além da soberania dos Estados [...]. Uma “nova internacional” procura-se através destas crises do direito internacional, ela denuncia já os limites dum discurso sobre os direitos humanos que permanecesse inadequado, por vezes hipócrita, em qualquer caso formal e inconsequente consigo mesmo enquanto a lei do mercado, a “dívida exterior”, a desigualdade do desenvolvimento tecno-científico, militar e económico mantiverem uma desigualdade efectiva tão monstruosa como a que prevalece hoje, mais do que nunca, na história da humanidade. Porque tem que se gritar, no momento em que alguns ousam neo-evangelizar em nome do ideal duma democracia liberal que teria enfim chegado a si mesma como o ideal da história humana: nunca a violência, a desigualdade, a exclusão, a fome e portanto a opressão económica afectaram tantos seres humanos, na história da terra e da humanidade200.
26. Por­que preci­sa­mos de reaprender a pensar, a partir de Marx e contra Leni­ne, mas tendo em conta muitos outros pensa­dores também, estamos aqui a avaliar a herança desses nossos Antepas­sados. A história ensina-nos que as tarefas que relevam da justiça social nunca ficaram garantidas para sempre, como o Manifesto presumiu indevidamente: quero crer que há tare­fas a recomeçar para cada nova geração.


192 Comunicação ao Colóquio realizado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa a 12-13 de Novembro de 1998, 150 Anos do Manifesto do Partido Comunista. O Manifes­to e o seu Tempo, Colibri, 2000, pp. 89-106.
193 K. Marx et F. Engels, Manifeste du Parti Communiste, trad. de Laura Lafargue, Éditions Sociales, 1962, Paris, p. 9-10
194 J.-L. Nancy (e J.-C. Bailly), La comparution (politique à venir), Christian Bourgois, 1991, pp.70-75.
195 Manifesto, ed. cit., respectivamente pp. 21-28 e 29-35.
196 A saber: “a concentração dos capitais e da propriedade fundiária, a so­breprodução, as crises, a fatal decadência dos pequenos burgueses e dos camponeses, a miséria do proletariado, a gritante desproporção na distri­buição das riquezas, a guerra de exterminação industrial das nações entre elas, a dissolução dos antigos costumes, das antigas relações familiares, das antigas nacionalidades” (idem, p. 50).
197 Aliás, apenas a última das dez me­didas apli­cáveis com a revolução se refere à “educação pública e gra­tuita de todas as crianças” e à “combinação da educação com a produ­ção material” (id. p. 46).
198 A minha ideia é que terá sido o fim dessa necessidade de re­cuperação, juntamente com as novas indústrias electrónicas de comunicação social, que provocou, talvez com atraso, a implosão im­pressionante do mundo leninista. Na China, parece que a manutenção da estrutura burocrática e centralizada do Partido não relevará do ‘comunismo’, mas da tradição chinesa de mais de 2 milénios de império burocrático e centralizado.
199 Segundo o antropólogo P. Clastres, “Arqueologia da violência: a guerra nas sociedades primitivas”, in Clastres, Gauchet, Adler, Lizot, Guerra, religião, poder, Ed. 70, 1980.
200 J. Derrida, Spectres de Marx, Galilée, 1993, p.140-1 (eu sublinho).

Prova e provação de Deus



Deus, não se o pode provar, mas obsta ao pensar fenomenológico[1]
Inumeráveis são todavia os que foram provados por Deus na história

             1. Que o Deus do Ocidente, meio grego, meio hebreu, tenha ‘morrido’, como Nietzsche anunciou, isto é, que o Ocidente se tenha secularizado, não quer dizer que a fé cristã tenha desaparecido, que só alguns atrasados se reclamem dela. A história levaria a pensar que, pelo contrário, as épocas de relativismo como a nossa são propícias à eclosão de afirmações espirituais. Quem não conhece crentes bastante cultos? As igrejas modernizaram-se em assembleias, minoritárias sem dúvida, de pessoas de fé pessoal e convicta, abundam grupos carismáticos, e parece que a maior parte dos Ocidentais secularizados, sem frequentarem as igrejas senão esporadicamente, guardam no entanto uma espécie de crença vaga em Alguém que governa este mundo: sendo parte de nossa herança cultural, não será fácil de desaparecer, ainda que tenha perdido a sua relação antiga, enquanto religião holística, aos usos sociais. Tratar-se-á aqui de tentar colocar os aspectos intelectuais e espirituais da questão de Deus, para além do fim do monoteísmo como religião do Ocidente. A modernidade mudou, revolucionou o contexto tradicional desta questão, o das sociedades dominantemente agrícolas (em que parentesco e economia faziam uma unidade social, a casa), e é esse o problema capital: como qualquer outra questão, esta não é abordável senão num contexto que dê sentido à argumentação. O que torna em regra diálogo de surdos os debates entre crentes e ateus, é justamente a diferença dos contextos que suportam os argumentos, a diferença dos paradigmas, o que se pode chamar o princípio moderno da relatividade. Já que os contextos são históricos, uns e outros têm antepassados comuns, pode-se esperar que, por difícil que seja de diagnosticar, haja algo do contexto da modernidade que trabalha os discursos contemporâneos que permita abordar a questão.

Deus, não se o pode provar, mas obsta ao pensar fenomenológico

2. Pode-se provar Deus, a sua existência? Pode-se pensá-lo? Duas vias do pensamento ocidental alternaram na resposta a esta questão, segundo a maneira do pensar que se desdobrou a partir da definição como determinação em relação à phusis[2], a Terra de Heidegger. Por um lado, a tentativa de responder ao espanto diante da própria força da experiência de pensar[3] levaria a privilegiar a eternidade, a colocar o acento na fonte do próprio pensar, as Formas ideais de Platão: os entes vivos e as coisas são determinados, delimitados por elas, permanecendo separados delas da distância que há entre o céu e a terra. Pelo outro lado, responder ao espanto diante das regularidades que se repetem na terra em seres tão diferentes em sua contingência de nascer, crescer se alimentando e morrer, privilegiaria o conhecimento da reprodução incessante em seus ciclos, acentuando a possibilidade de pensar a autonomia relativa da phusis nos seus motivos (a causalidade de Aristóteles em seus quatro sentidos), segundo o outro sentido filosófico da palavra determinação: não já separação, retorno às próprias coisas. A questão posta por esta segunda via será a da ligação desta causalidade, desta motivação do movimento dos vivos com o Primeiro Motor imóvel postulado. Foi aonde Tomás de Aquino foi buscar as suas célebres cinco maneiras de demonstrar a existência do Deus cristão. Digamos, de forma breve, que se tem aqui uma maneira ‘afirmativa’ de pensar Deus, dita por ‘analogia’, a dificuldade maior sendo a de poder garantir a validade da causalidade do campo do sensível quando ela se desloca para o mundo inteligível, da ‘criação’ metafísica. E ter-se-ia na primeira via o que se chama a ‘teologia negativa’, que negaria de cada predicado terrestre quando atribuído ao Deus celeste a ‘determinação’ que o opõe ao seu contrário: se Deus é o princípio das Formas ideais eternas que permitem atribuir predicados aos entes terrestres, ele não poderia ser passível dessa determinação entendida, quer como definição – ele é infinito –, quer como causalidade – ele é ab-soluto, sem laços, não é senão por ele, ‘causa sui’, não causado por outrem. Autarcia total, incognoscível da terra: Outro sem medida com os humanos que o pensam, donde recebem o pensamento.
3. Na terminologia da tradição, idealismo e realismo nomeariam estas duas vias: dos dois pensadores que mais terão contribuído para a construção do edifício da teologia medieval e européia, Agostinho relevaria do primeiro através de Plotino, Tomás d’Aquino sobretudo do segundo mas deixando aberto um lugar no seu sistema ‘afirmativo’ para a via negativa, já que a ideia cristã de criação e a manutenção da imortalidade da alma (contra Aristóteles) impedem de separar nitidamente as duas vias[4]. Com efeito, a dimensão inteligível da alma coloca-a do lado de Deus, em relação ao corpo de que é a forma, e a relação alma / Deus do (neo) platonismo é fortemente reforçada pela trilogia das virtudes teologais, fé, esperança e amor, na sua relação à revelação divina. Por outro lado, o Deus hebraico-cristão só pode ‘intervir’ na história dos humanos, ao invés da autarcia do Primeiro Motor e do Um plotiniano, porque já lá está, cada ente sendo criado e conservado na existência por ele (com a ajuda da providência estóica). Será esta dimensão ‘criadora e conservadora’ do Deus europeu que as filosofias clássicas (Descartes, Malebranche, Berkeley, Leibniz) valorizarão muito fortemente, exarcebando a oposição alma / corpo como interior / exterior, para quebrar a sintaxe dos quatro sentidos da causalidade aristotélica.
4. A grande questão da filosofia, tanto entre Gregos como entre Europeus  clássicos, é a da contingência de cada ente terrestre ou sublunar, nenhum tendo em si a sua razão de ser, pois começa e terá fim, é finito. O seu conhecimento, filosófico ou científico, implicará sempre saber o que o causou (causa sive ratio, causa igual a razão, dirá Descartes). Deus foi assim concebido como Causa (aition) das coisas pelo platonismo como pelo aristotelismo: através das Formas ideais eternas no primeiro, criador directo pelos augustinianos, como Occam, Lutero e os clássicos nomeados acima, Causa primeira e final em Aristóteles e no tomismo, sublinhando a autonomia relativa das ‘causas segundas’ da phusis. Ora os quatro sentidos da causalidade são, na Physica de Aristóteles, indissociáveis dos quatro sentidos de ousia (donde lhes vem aliás a quadruplicidade) e, quaisquer que tenham sido as infidelidades do Aquino em relação ao Estagirita, são esses quatro sentidos que são afastados pela nova Física européia, a de Galileu, Newton[5] e Kant. Duma forma muito grosseira, poder-se-á dizer que a redução cartesiana desta quadruplicidade unicamente à causa eficiente vai permitir que esta, em Física, seja equivalente à noção de ‘força’, oposta ao que resta de ‘substância’, como sugere aliás a maneira como Newton terá guardado Deus na sua astrofísica, a ‘força’, digamos, que colocou na respectiva órbita os planetas do sistema solar, já que as suas equações e medições apenas explicavam o funcionamento do sistema, não a sua constituição. Ora, estas medições e equações laboratoriais operam uma redução da ‘substância empírica’ dos elementos que são medidos: não o espaço mas diferenças (distâncias entre lugares), não o tempo nem a massa mas diferenças de tempo (entre momentos) e de massa, e por aí fora. É esta des-substancialização da Física, integrada por Kant como matriz da sua Metafísica (J. Vuillemin[6]), que implicará o seu agnosticismo (da razão pura) em relação a Deus, à Alma e ao Mundo das coisas-em-si (as ‘substâncias’ aristotélicas), isto é, em relação ao que releva apenas da razão prática, o que diz respeito ao que está fora do laboratório). Este agnosticismo filosófico, antepassado da secularização duma civilização moderna em que a Física será a rainha das ciências, resulta da substituição da Physica aristotélica por este seu rebento rebelde, que despediu por razões ‘mecânicas’ o par causa / substância (ousia) da antiga phusis. Tratou-se da mais célebre revolução epistémica, de mudança de paradigmas, e em conseqüência do contexto dos problemas filosóficos: duma ontobiologia de seres autónomos à ontofísica de seres inertes, excluindo os vivos e os humanos[7]. Estes ocupam o lugar exterior do ‘sujeito’ (oposto ao ‘objecto’, incluindo o seu corpo), que é um sucedâneo da alma, posto em questão por Darwin, Marx e Freud. Esta revolução do paradigma científico e filosófico faz parte da revolução global da modernidade, isto é da transformação das sociedades de casas em sociedades em que as unidades sociais se estruturam segundo duas redes, a das instituições (onde os empregos, a economia) e a das famílias (onde o parentesco). A contingência, perdida a semelhança divina das almas e reconhecida a historicidade de todas as coisas, do céu e da terra, tornar-se-á relatividade e finitude, como Heidegger mostrará em Ser e tempo. Exit assim o Absoluto, aquele que ocupava sozinho – mono – o lugar causal da antiga barak ou moïra (bênção, sorte, destino) e polarizara o Bem (Platão e Bíblia), excluindo o mal.
5. Permita-se-me uma digressão recapituladora. A dunamis (potência) de Aristóteles efectua-se (por via acidental) como energeia (acto, en-ergon, em obra) pelo poder (arché) escondido da phusis (Heidegger)[8], efectua-se portanto por si mesma (kath’auto), ainda que pedindo actuação de outrem como causa eficiente: trata-se do sempre surpreendente fenômeno do crescimento. Tomás de Aquino, segundo E. Gilson[9], compreende a ‘criação’ da ‘existência’ dos entes como energeia, acto divino, de que a respectiva essência (dunamis) não dispõe, abrindo assim neste dispositivo aristotélico (que despojou do ‘movimento’, reduzido a acidente) o lugar para o Deus cristão criador: o poder de ‘dentro’ da natureza é ‘activado’ pela criação, sem anular todavia o jogo acidental das mudanças, respeitando assim a unidade hilemórfica alma / corpo. É assim que a matéria (a hylê) é enobrecida e oferecida à Europa, tanto em teologia como em filosofia, sem o quê o laboratório seria impossível (forte razão para os Gregos não o terem inventado). Mas esta novidade contém um obstáculo que Galileu e Newton diagnosticaram: a inércia é a negação desse poder kath’auto, dessa ‘substância’. Na épochê de Husserl, em sequência de Kant, é esta existência empírica substancial dos objectos do Mundo que é suspensa, guardadas as idealidades de que se ocupam as ciências. Heidegger radicaliza este movimento mas noutra direcção[10]: tomando o tempo no sentido do kairos, do acontecimento propício do novo Testamento, ele ‘destroi’ a substância, anulando a sua oposição ao tempo-acidente: o Ereignis[11] dá ser e tempo aos entes. Este Nada de acontecimento que dá os acontecimentos permitirá compreender filosoficamente o que chamarei adiante ben(mal)dição: aí não há já lugar para Deus, a sua figura tendo sido desconstruida após ter permitido a modernidade.
6. Na linhagem teológica augustiniana, Anselmo de Cantorbery (1033-1109) parece ter querido prevenir esta possibilidade moderna, forjando um argumento que não joga directamente sobre a causalidade, que seja válido a partir apenas da ideia do Ser mais perfeito que se possa conceber, cuja existência portanto terá que ser uma componente necessária dessa perfeição última. O aristotelismo de Tomás de Aquino opõe a este argumento a diferença irredutível entre um possível concebido pela inteligência humana (uma ideia) e a sua existência real[12], enquanto que Kant, que está de acordo com esta contestação, uma vez que o contexto histórico mudou, relacionará os dois argumentos um com o outro, aquele a que chama argumento ontológico, o de Anselmo, e os do tomismo, ditos cosmológicos e físico–teológicos: segundo a sua crítica, estes supõem aquele. Isto porque os raciocínios de analogia, para conseguirem o ‘salto’ do sensível ao inteligível perfeito, têm que pressupor a existência deste. Com efeito, parece que é isso que se passa na argumentação da Summa Theologica (I, II, 3), em que os cinco argumentos dizem o ‘salto’ que conseguiram por estas fórmulas: “e isto todos entendem, nomeiam, dizem Deus” e “e isto nós dizemos Deus”, em que ‘todos’ e ‘nós’ designam (os habitantes d)o contexto monoteísta enquanto assentimento ou consenso como necessário ao próprio alcance dos argumentos[13]. Ora, esse contexto tornou-se obsoleto na nossa civilização moderna enquanto tal, podendo dizer-se que o agnosticismo de Kant a antecipa: qualquer argumento ‘afirmativo’ da razão, dependendo sempre da analogia da causalidade sublunar, é inadequado para provar o que a transcende radicalmente[14]. O que implica aliás que não se possa provar tão pouco a não existência de Deus.
7. É por essa razão que um pensamento moderno (que não pode deixar de ter uma qualquer aliança com as ciências europeias, já que elas penetram as nossas instituições e os nossos discursos constituídos no liceu) não pode fazer intervir Deus na sua argumentação sem correr o risco de se perderem essas redescobertas preciosas que são a relatividade e a finitude, o belo fruto do retorno europeu à contingência grega num contexto bem diferente, pós-copérnico, que tenta desconstruir a separação mais velha de todas, a do inteligível e do sensível, da alma e do corpo, do céu e da terra, do sujeito e do objecto. Nietzsche compreendeu-o, depois de Kant, Heidegger é o principal filósofo desta questão no século XX, o seu retorno aos Gregos desenhou a matriz filosófica do acabamento da nossa modernidade: já não um Ente supremo criador no lugar do Ser enquanto doações sem fim (a ontoteologia), nem substância nem eternidade, não mais absoluto, nem causalidade determinista, apenas o jogo universal sem origem nem fim, sem essências nem substâncias, apenas, digamos, as oscilações infindas entre repetições quase estruturais e os acontecimentos (imotivados) entre elas. Deus não foi, como se costumava dizer, o ‘tapa buracos’ das causas necessárias que as ciências vinham substituir: explicação bem coxa que substitui um determinismo por outro[15]. Haverá antes que buscar a resposta do lado duma anomalia teológica que ‘motivou o imotivado’, que fez do dom, da ‘graça’ bíblica, uma ‘causa’ filosófica, esta anomalia tendo parido essa verdadeira monstruosidade que é a predestinação augustiniana. Ou seja, se houvesse qualquer ‘buraco a tapar’, era do lado do imotivado, do aleatório, dos acontecimentos: Deus terá sido o que impede a contingência, o acaso, o sem porquê da rosa[16], sem causa, sem razão necessária, ele foi o primeiro (motor) e o último, aquele que impede o jogo, a multiplicidade dos dons, a ben(mal)dição da Terra em sua pujança de vida mortal. Fosse na alma dos pensadores e dos crentes, na destino pessoal de cada humano, ou na disseminação incessante do jogo (cruel) da natureza e da história, na existência substancial e efémera, contingente, finita, de cada ente, vivo ou não, Deus era sempre a arché, o fundamento, o primeiro princípio. Questão sintoma poderia ser a de saber se se pode colocar Deus sem o corolário intolerável da predestinação, sem esta ambigüidade entre ‘graça’ e ‘causa’ que fez de Deus um personagem omnipotentemente arbitrário: mono – causa – primeira de todos os dons, de toda a ben(mal)dição, do necessário mas sobretudo do aleatório, apagando esta oposição na homogeneidade do Um-Só, da Causa necessária que não joga aos dados. Deus ‘quereria’ de antemão, de sua vontade omnipotente e omnisciente, a morte de qualquer vítima de acidente ou doença prematura. Ora, o que Heidegger nos deu a pensar no seu motivo de retiro da doação do Ser (phusis, Terra), e em 1962, do Ereignis, que Derrida buscou de maneira diferente (o motivo de destinerrância, por exemplo), foi a desconstrução da oposição ontológica entre a necessidade e o acaso.
8. Com efeito, o que há que pensar é o motivo do jogo: “o conceito de jogo [...] anuncia, na véspera e além da filosofia, a unidade do acaso e da necessidade num cálculo sem fim”[17]. Seja um exemplo de ordem técnica familiar. Um automóvel é estudado em laboratório na minúcia rigorosa de todas as suas peças, segundo a necessidade das leis físicas e químicas, mas a concepção teórica que guia o conjunto é a da sua capacidade de responder em cada momento ao aleatório do trânsito: as regras de detalhe visam, a um nível global, o aleatório estrutural da circulação. O mesmo, em bem mais complexo, se passa com as leis bioquímicas de qualquer animal estudadas fragmentariamente em laboratório para compreender como é que o conjunto consegue reproduzir-se a si e à espécie numa cena ecológica em que há que buscar o alimento aleatoriamente e escapar igualmente de ser alimento dos outros (se a hormona da fome nos empurra ‘necessariamente’ para comer, ela não indica todavia qual o menu). Se a ideia de Deus é esta separação entre necessidade e aleatório, ela permanece, juntamente com a oposição interior / exterior[18] (alma / corpo, mundo, sujeito / objecto) o obstáculo por excelência ao pensamento fenomenológico.
9. Ora bem, sem esta unidade do acaso e da necessidade, das regras e do aleatório, não se poderia compreender o que se chama o problema do mal ou da violência, desde o início do pensamento grego colocado como objecção à omnipotência e à bondade divinas. O aleatório não é acidental nem conjuntural, é estrutural, a violência também. Duas grandes leis o ilustram. Qualquer biólogo saberá demonstrar com rigor científico como, sendo o carbono essencial a qualquer molécula das células dos vegetais e dos animais e, por outro lado, sendo o número de moléculas de carbono da atmosfera e da biosfera constante, a vida animal não é possível a não ser que numerosas espécies, ditas herbívoras, se alimentem de vegetais (que recebem o carbono do CO2 da atmosfera pela fotossíntese) para fazerem a sua própria substância e em seguida as outras, ditas carnívoras, os comem a eles, pela mesma preocupação de se reproduzirem enquanto indivíduos. Esta é a lei da selva, na sua letra biológica. É o desenvolvimento em ferocidade desta lei, após a invenção precoce da sexualidade, a razão da imensa variedade das espécies animais, que, mais do que diferenças dos sistemas nutritivos, parece ser a das astúcias dos predadores e das suas presas, astúcias inscritas pela evolução nos seus sistemas de adaptação ao aleatório das situações de caça. Às vezes a situação é-nos apresentada nos documentários, como as leoas caçam as gazelas: o ‘bem natural’ de umas é o ‘mal natural’ das outras, e se nos pretendemos defensores dos  animais – defendemos o quê, a fuga das gazelas e a fome das leoas ou a sobrevivência destas à custa duma daquelas? -, é pelo menos difícil de acreditar num Deus bom que tenha inventado esta selva infernal.
10. Esta lei da selva é responsável pelos músculos e os apetites agressivos da espécie humana, como dos outros mamíferos. E se a invenção da agricultura representou o controle da lei da selva pelos humanos, não foi sem que antes mesmo, desde os povos ‘selvagens’ segundo Pierre Clastres[19], até às duas guerras mundiais e às que se lhe sucederam, passando pelas sociedades monárquicas cujas classes nobres faziam da guerra ofício, se deva fazer a constatação pelo menos empírica da história dos humanos como dominada pela lei da guerra: com efeito, o progresso pode ser medido pela maneira como gradualmente a razão das leis se foi impondo a esta lei da guerra. Foi da guerra que resultou a primeira grande chaga da humanidade, a escravatura, que foi admitida tanto pela cultura e pela filosofia grega como pelo cristianismo europeu. A segunda grande praga foi a aplicação da lei da guerra à relação da oposição Bem / Mal (Deus / Diabo), o Bem entendido como a ‘verdade revelada’ oposta às outras crenças ou ideais: a relação entre verdade e tortura estabelecida pela Inquisição, a instituição do ‘santo ofício’ (como a guerra era o ofício dos nobres)! Esta monstruosa relação foi retomada pelas polícias dos regimes totalitários de qualquer cor ideológica que seja. Horror da exterminação sistemática, metódica, burocrática, técnica, querendo-se exaustiva, do povo judeu, cujos antepassados são também nossos pelo seu legado, a Bíblia, exterminação que requereu a participação e a cumplicidade de dezenas de milhar de gentes (“banalidade do mal”) formadas nas escolas da nação européia que durante o século XIX esteve na vanguarda da cultura humanista, da nossa filosofia, da nossa música: é a mais forte negação que se possa pensar do progresso. Se a guerra como batalha de armas parece deixar o seu lugar às violências dos urbanismos esquecidos e ao crime organizado, das drogas ao terrorismo, isso permite ver melhor outras guerras: todo o tipo de rivalidades e de desafios locais e regionais, os desportos sendo os mais vistosos na sua paixão, e sobretudo, último reduto ‘machista’ sem dúvida, a guerra económica em sua essencial ‘competitividade’ e o seu cume, a guerra financeira que a crise do final de 2008 exibiu, com o desencadear dum desemprego massivo que há muito se não via. Mas é desta guerra também que resultam as poluições que ameaçam o planeta, a miséria, em números milionários, de tantas populações que foram ‘invadidas’ para a pilhagem dos seus recursos que elas ignoravam, a ‘bêtise’ que os médias e suas publicidades e audiências propagam americanamente e que veio substituir o moralismo dos pecados mortais e do inferno que laborou séculos sem fim as populações europeias.
11. Estas duas leis, da selva e da guerra, pedem controle, sem dúvida, como tarefas humanas – agricultura, uma, busca de justiça e de paz sempre a prosseguir, a outra –, mas não são um estado de excepção: são a regra da chamada ‘criação’. À semelhança da lei da selva, que é condição bioquímica da alimentação e auto-reprodu­ção animal, também a da guerra resulta, além das forças e energias que da selva vieram aos humanos, duma condição  antropoquímica, digamos, cujas hormonas desencadeiam ‘envies’ (precisões, desejos, vontades) de aprender os usos sociais, repetindo os outros, sem as quais ninguém se tornaria membro adulto da sua tribo; ora estas ‘envies’ de ser como os outros, tão positivas, correm sempre o risco de se tornarem ‘envies’ de se ser ‘envié’ (invejado) pelos outros, o que está na raiz de toda a emulação e de toda a rivalidade, da lei da guerra pois. Assim como no caso das leoas e das gazelas, também aqui não é possível introduzir uma fronteira entre boa e má ‘envie’, como tenta a educação (a não ser quando já suficientemente amadurecidas) sem o risco de tolher o próprio dinamismo do crescimento de cada qual. As rebeldias adolescentes são sempre ambíguas em relação ao bem e ao mal social, como sabe qualquer educador avisado (necessidade da ‘morte do pai’ para que ele se torne modelo, explicou Freud).
12. À unidade do acaso e da necessidade junta-se assim a do bem e do mal, da vida enquanto mortal necessariamente (e segundo o aleatório): o que acima chamei ben(mal)dição será uma objecção essencial a um Criador ‘bom’, como a história mitológica parece sublinhar ao ter frequentemente, senão sempre, que lhe acrescentar uma divindade maléfica compensadora, ou um panteão de deuses rivais, bons e maus consoante, à imagem dos humanos. A bela conferência de Hans Jonas, Le Concept de Dieu après Aus­chwitz. Une voix juive[20],  sem se deter sobre esta segunda objecção, procura responder à primeira à luz da catástrofe da Shoah: entre bondade, compreensibilidade (o Deus revelador conhece tudo) e omnipotência, é este terceiro predicado tradicional das tradições judia e cristã que tem que ser negado, já que os três juntos são insuportáveis. A potência divina não se pode opor à pujança do universo criado, à autonomia do seu devir - segundo regras (da matéria, da energia, da vida) e aleatório, como vimos -, o Deus silencioso em Auschwitz teve que se retirar, deixar-ser o universo[21]; então não será imutável, mas sofredor, afectável, em devir, preocupado com o risco do não conseguir-se da sua obra, como dizem justamente os textos antigos da Bíblia hebraica (arrependeu-se de ter criado os humanos, Gn 6.6-7, sofre por Israel, Is 63.9, etc.)[22]. Jonas modifica a tradição, mesmo bíblica (responde diferentemente de Job ao silêncio de Deus), mas aproxima-se da tradição da Kabala. Deus permanece assim dependente do testemunho dos seus Justos, como o comovente extracto do diário d'Etty Hillesum, morta em Auschwitz: “...uma coisa se torna cada vez mais clara a meus olhos, a saber, que Vós não nos podeis ajudar, somos nós que devemos ajudar-Vos a nos ajudar. Ai de nós, não parece de maneira nenhuma que possais agir Vós mesmos sobre as circunstâncias que nos envolvem, sobre as nossas vidas. [...] Nós temos que Vos ajudar, temos que defender o Vosso lugar de habitação em nós até ao fim” (p. 44)[23]. Eis o que nos permitirá passar à segunda parte desta reflexão.
 

Inumeráveis são todavia os que foram provados por Deus na história

“Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”[24]

13. O motivo Deus é assim uma maneira de, na história ocidental, se ter respondido ao espanto intelectual que levanta a questão das origens das sociedades humanas e dos outros vivos, bem como do Universo: questão impossível, já que, segundo Derrida, por onde quer que se pegue sempre se encontram efeitos da différance, indecidivelmente repetição com excesso ou diferença (espécie e indivíduo, língua e fala, e por aí fora): é a repetição que é originária, diz ele, não há pois ‘origem simples’. Mas nos textos hebraicos e gregos que o lavraram para nós, o motivo Deus é simultaneamente intelectual e espiritual, tendo vindo – no Judaísmo de Esdras (séc. V a.C.) e no Cristianismo de após Constantino e Teodósio (séc. IV) – a tomar a forma de religião para toda a gente, o que obscurece o seguinte: quer nos textos dos Profetas hebreus e nos que se referem a Jesus como Messias, quer nos textos gregos que se referem a Sócrates, mormente a trilogia Apologia, Críton e Fédon, a questão ética da virtude, justiça ou santidade é a questão fulcral. Os santos e os justos da história ocidental reclamam-se, afora excepções recentes, de Deus como fonte do seu agir: como ignorar esta reclamação, apesar do que na primeira parte se disse? Ou seja, a santidade é possível sem referência a Deus e à tradição que dele se reclama? E nomeadamente ao motivo de alma imortal?
14. “Ninguém me pode ver, diz Yahvé, e permanecer vivo”, é a lição dum velho profeta (Êxodo 33.20)[25], a que faz eco, no outro extremo da Bíblia cristã, esta palavra de João: “nunca ninguém viu a Deus” (1ª epístola de João 4.12). Se se ousasse glosar estas duas palavras pelo jogo grego entre ‘ver’ (idein) e ‘ideia’, isso daria em termos de teologia negativa: ‘nenhum pensamento pode pensar Deus e permanecer pensante’, ‘nunca nenhum pensamento pensou Deus’. No contexto da mesma carta de João (4.8,16), diz-se também: “Deus é amor (agapê)”. Acontece que um ramo da literatura mística, pelo menos cristã ocidental, diz a experiência do encontro da alma com Deus na linguagem do amor, do noivado, do casamento, em discursos impregnados de erotismo[26]. J. da Cruz é um dos mais importantes autores da teologia negativa: o amante não pensa o amado, a experiência que dele faz escapa às palavras do pensamento. O Amado (“a amada no Amado transformada”) dá-se em cada rasto dos seus passos, das suas mãos, dos seus olhos, da sua voz, da sua palavra, pode continuar a ser amado na sua ausência, na “noite do espírito” (tão próxima do ateísmo), quando ele deixou de estar lá: mas esteve ele alguma vez lá? Não terá ele sempre já passado com o seu passo, não deixando senão as marcas dum passado que nunca foi presente, nem ausente (Derrida[27])? Estes rastos são-no também da experiência de sermos arrancados à nossa tribo (casa, família, instituição), dum rapto, arrebatamento, duma provação que nos transporta, nos move, nos promete a muito mais do que a tribo, a “qualquer coisa de misterioso e de glorioso” (Leonardo Cohen): alteração, metamorfose, conversão, abertura dum caminho inédito sem medida comum com o que se era antes da provação do amor, antes da paixão ‘inaugural’. Tempo relâmpago, claro-escuro, tempo fora do tempo, tempo acontecimento, kairos no grego do novo Testamento, tempo tal que não se volta mais atrás. O destino mudou, uma de-cisão se fez aí entre antes e depois. Fica-se assim cortado dos seus antepassados, do sagrado de outrora: é nisso que uma tal experiência é ‘moderna’, podem-se atribuir experiências assim aos Profetas que escreveram a escrita hebraica[28] e aos Filósofos gregos, mu­tatis mutandis[29]. E ainda aos santos de todos os tempos e espaços espirituais. Foi sem dúvida a fecundidade desta experiência de santidade que fez os nossos antepassados atribuí-la ao Totalmente Outro, ao Separado (isto é, Santo) pensado como Criador, fonte da fecundidade da natureza.
15. Da experiência de (amor por) Deus pode-se fazer um argumento em favor da existência deste? Retenhamos do Dasein – do pensador da doação (múltipla, não ‘mono’, não ontoteológica) da fecundidade, doação essa dissimulada, retirada – que o ek-sistir dos humanos é um -sistere sempre-já fora (ek-), exterioridade, ser-no-mundo[30]; a tão prezada por cada um de nós ‘interioridade’ vem-lhe da aprendizagem, dos rastos (memória) das experiências passadas, rastos esses que lhe permitem uma certa distância ou afastamento, um retiro, um Fort-sein[31], em relação ao Da- (proximidade, ser-o-aí), a esta ex-posição de exterioridade sempre-já. É este retiro que retém a identidade do humano, guarda-o enquanto ‘ele próprio’ nessas suas ‘saídas’, nessas experiências mais fortes que o alteram; ele provém dos usos recebidos dos antepassados, da repetição quotidiana, em que o seu ‘eu’ se vai afirmando, simultaneamente agindo fora e retirado, repetindo os outros mas segundo o seu talento, estilo, idiossincrasia, os rastos dos outros (heteronomia social) ficam esquecidos[32] como condição da sua autonomia, sem o quê seríamos loucos, sempre presos da exterioridade como alienação: o grande interesse deste motivo heideggeriano é justamente o de permitir pensar os humanos fora da oposição alma / corpo, sujeito / objecto, indivíduo / sociedade, como seres-no-mundo tribal, liberdades finitas reguladas para cenas aleatórias. Por outro lado, como se sabe, Ser e Tempo[33] é construído sobre uma experiência de antecipação da morte como mudança duma existência imprópria, inautêntica, em uma existência própria, autêntica. Tomada na sua etimologia latina, a palavra ex-per-iência diz um per-igo, a saída (ex-) de si, da sua identidade (tribal) assegurada até aí, o risco de per-ecer[34]; uma alteração pois da identidade construída a partir dos seus antepassados, mortos e vivos: a ex-per-iência é vida / morte / vida, uma morte na vida, uma sua alteração mais ou menos brutal. Ora bem, esta ex-per-iência, esta alteração de-cisiva, entre aqueles que sofrem a sua provação a um nível especificamente ético, há inumeráveis humanos que a atribuem a Deus, ao totalmente Outro. Mas se o si de cada um é já tecido indefinidamente de outrem, desde a noite dos tempos ancestrais, como separar este totalmente Outro de todos os outros e de si mesmo? A ex-per-iência tornar-se-á rasto também ela, memória, outrem-em-si, si-como-outro-mais-si-do-que-si (‘inti­mior intimo meo’, dizia Agostinho de Deus: mais íntimo a mim do que o meu próprio íntimo, também vale de outrem, como os nossos sonhos atestam[35]): como é que ela aguentará a duração, já que haverá outras experiências sempre possíveis? Não é o próprio que de-cide (a tradição teológica será unânime nesse ponto); pode-se regressar duma ex-per-iência em que o ‘si’ se perdeu, pereceu? Quem de-ciderá então? A de-cisão está lá, indecidida todavia, pode ser que ela seja o futuro do -per- da experiência: jogando de novo do que chamamos memória, refará a experiência de outra maneira, reabrindo o campo que ela tinha aberto, impedirá o si perdido de se perder, perdendo-o novamente. Como conseguir falar de tão fortes experiências, das seqüelas em toda uma vida do vendaval que a alterou, dos altos e baixos que inevitavelmente se sucedem?
16. Voltemos à questão: pode-se argumentar Deus a partir da sua provação, a outros que não a tiveram? O -per- da ex-per-iência não a torna incomparável a qualquer outra experiência? Diz-se que o amor é cego, que não vê aquilo que toda a gente à volta vê. Mas é a cegueira dum visionário, ele vê o que os outros não vêem. É por isso que ele está aquém e além dos argumentos de pensamento. A palavra ‘Deus’ é dela mesma paradoxal: como qualquer outra palavra, ela só tem sentido por ele ser recebido a partir do jogo das diferenças das outras palavras e regras da língua e do discurso, ela é pois estruturalmente relativa; se, porque diz o ‘ab-soluto’, devesse deter sozinha o seu sentido, sem depender das outras palavras, seria incomunicável a outrem. Todavia Michel de Certeau[36] escreveu: “sem dúvida é impossível nomear o que sobrevém e parece todavia subir de um insondável qualquer da existência, como dum mar que começou antes do humano. O próprio termo Deus (ou absoluto) recebe mais daí o seu sentido do que fornece indicações à experiência”. Reencontramos o que havia sido dito do pensamento e dos argumentos a respeito de Deus: a compreensão do sentido dessa palavra dependerá sempre de compreensões já dadas antes, do seu contexto de vida e de prática. E não é isso que sucede a qualquer palavra, seja mais ou menos usual?
17. São usos, hábitos, contextos quotidianos, que mudam nessas experiências-acontecimentos de-cisivos duma vida que nunca mais será a mesma. Nessas grandes provações dos místicos, dos santos, dum Jesus e dum Francisco de Assis, duma Teresa de Ávila e doutra de Calcuttá, dum Gandhi e dum Martin Luther King, de tantos e tantos outros, reconhecidos e anónimos, não são tanto os aspectos mais ou menos extraordinários da experiência que contam, mas mais o itinerário de fecundidade forte que ela abre, a ‘bênção’ reconhecível por terceiros, em que o dom se manifesta em ‘efeitos’ além, tantas vezes muito além dos pobres ‘meios’ utilizados[37], em regra a convicção inabalável e contagiosa. Mas acrescente-se já: muta­tis mutandis, esta desproporção entre os meios e os efeitos é também estrutural às grandes obras de pensamento, de arte, ou mesmo de acção cívica e política, inclusive de não crentes[38], como é óbvio[39], melhor dito, de outras maneiras ‘espirituais’ terrestres de se ser crente. O leitor tem assim a possibilidade de concluir do que venho propondo que a não possibilidade de provar e de pensar Deus também joga aqui: esta ex-per-iência como provação atesta das possibilidades inauditas de certos humanos, de certos realistas que fazem o impossível, em linguagem de Maio 68, sem porventura ser necessário invocar Deus.
18. Em todo o caso, na ex-per-iência espiritual que se reclama de Deus para compreender a sua fecundidade além daquilo que se pode do seu próprio querer, trata-se sempre de testemunho, e este não prova nada[40]. A testemunha – Derrida dizia-o na sua passagem por Lisboa no final de Setembro de 1994 – não faz mais do que dizer ‘crê em mim’. Mas, acrescentava ele, respondendo pela negativa à questão que lhe puseram da possibilidade de desconstrução radical do discurso religioso, é igualmente o caso de qualquer tomada da palavra, de qualquer ‘falo-te’ que implica um ‘crê em mim’, abrindo ao crédito, à ‘crença’, à confiança do que escuta[41]. Como pois de-cidir decididamente nesta escuta? Com que argumentos recusar escutar os numerosos textos que nos vêm dessas experiências, que contam entre as mais fortes de que a história humana guarda as narrativas?[42] Como de-cidir, em nome de quê, que eles se enganaram sobre esse Deus que eles confessam? Que, ainda que sem o acolhimento dito ‘fé’, não se tem de escutar o que – com numerosos outros textos e obras artísticas e de pensamento, com o que se chama cultura em sentido forte – nos permite seguir os nossos difíceis itinerários humanos, nos dá algo como uma esperança em época tão mal tratada como a nossa?
19. Assumindo claramente agora o papel de leitor testemunha, é neste ponto de colocação de leituras em paralelo, a discerni-las e avaliá-las, é aonde o meu passado de crente me impede de decidir definitivamente entre fé e ateísmo: nem uma nem o outro. Tanto me é difícil de acreditar num Ser sobre-humano que teria ‘em suas mãos’ a infinidade do universo (das suas galáxias a todos os seus átomos e moléculas, as células de todos os indivíduos de todas espécies vivas) e o conhecimento da intimidade de cada coração de todos os humanos de todos os tempos, quanto me é difícil de admitir intelectualmente que os santos, esses crentes por excelência, essas narrativas de grandes feitos espirituais, os mais ‘impossíveis’ dentre as narrativas humanas donde colhemos incitação a viver e a navegar mais além, não teriam sido senão gente ‘enganada’. Como avaliar a afirmação dessas narrativas sem se crer na existência de Deus?
20. Será necessária, esta alternativa entre crença e engano? Tentar ultrapassá-la é uma das maneiras de dizer o que está em jogo no pensamento de Levinas, colocando o que chama ‘ética’ antes e além do que chama ‘ontologia’, o que não vale senão entendendo ‘ética’ como a valoração da relação ao Outro como primeira, o que significaria que ele vai paradoxalmente ao encontro da doação retirada de Heidegger[43] e da respectiva destruição do ‘substancialismo’ metafísico ou ontoteologia (a ‘morte de Deus’), como se pode verificar na maneira como rejeita, enquanto ‘ontológicas’, as noções de existência e de essência de Deus. É possível interpretar o seu recurso à fórmula epekeina tês ousias[44] da República de Platão (509b) como significando o passo da ex-per-iência acima evocada, passo além das casas e das suas ‘envies’ (§ 10) para as que relevam da busca incessante dos espirituais, se dermos à bela palavra ‘espírito’ o sentido etimológico de purificação da ‘respiração’, do ‘sopro’. Esta filosofia do profetismo e da santidade está do lado da provação traumática do Infinito, defende que Deus não entra na ‘ideia de infinito’, que não é um ‘conceito’, não cabe na cabeça que a pensa, pensamento que pensa mais do que ele pensa: Deus, mas também o meu vizinho pobre, o Outro. Pode-se dizer, por uma citação de Fernanda Ber­nardo, qual é o desígnio de Levinas em relação ao santo: “pensar como é que a inquietação, o cuidado obsessivo do sujeito pela sorte do outro, seu próximo, se faz sentir nele mesmo, independentemente da sua vontade”[45]. Este impulso à santidade, a efectuar a justiça, corresponde ao seu motivo de ‘rasto diacrónico’, dum ‘passado’ que nunca foi ‘presente’, que reenviaria, acrescento eu, a uma tradição de santos e justos aonde, sem se saber como, se colhe e acolhe esse rasto histórico, nem presente nem ausente. É aonde buscar o que me parece ser o que merece o nome de Deus: não eterno – não Ente que seria susceptível de prova –, antes do lado da história ética dos humanos, sem ser histórico (históricos são os justos), susceptível todavia de provação. E a não dever ser invocado em vão.
21. Mas quem sou eu, para falar destas coisas que me ultrapassam?




[1] Com alguns ajustes, trata-se da contribuição para o Seminário A Questão de Deus. Ensaios Filosóficos, coord. por M. Leonor Xavier, ed. Zéfiro, 2010, pp. 299-313.
[2] Terei que supor aqui alguns motivos da tentativa de reformulação da Fenomenologia nos meus textos Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida, 2 vol., 2007, e o recente La Philosophie avec Sciences au XXème siècle, 2009, ambos editados em Paris pela L’Harmattan.
[3] Quando esta claramente ultrapassa o que se aprendeu de Mestres e Antepassados.
[4] A Física aristotélica é em certo sentido platonizada no tomismo  (Belo, 2007, 13.18).
[5] Galilée, Dialogues, Lettres choisies, trad., choix et préface de P.-H. Michel, introduction aux Lettres de G. Santillana, Paris, Hermann, 1966 e Discours et démonstrations mathémati­ques con­cernant deux sciences nouvelles, introd., trad. et notes de M. Clave­lin,Paris, A. Colin, 1970; Newton, Principes mathématiques de Philosophie naturelle, trad. de Mme du Châ­telet, Paris, édition fac-simile de A. Blanchard (1966).
[6] J. Vuillemin, Physique et métaphysique kantiennes, Paris, P.U.F., 1955.
[7] A Physica é uma filosofia dos entes enquanto capazes de movimento: geração e corrupção, crescimento e mudança de qualidade, deslocamento (de lugar), é uma ‘biologia geral’, se dizer se pode, responde ao espanto dos vivos e da respectiva autonomia. A Física só guarda do movimento os deslocamentos, as respectivas medidas (distâncias e tempos). Passou-se assim duma ontobiologia compreendendo os humanos (contingentes, nascendo e mortais) e o seu saber, portanto duma epistemologia compreendida na ontologia, a uma epistemologia ontofísica das massas materiais inertes, de que o humano está excluído, situado no lugar exterior do ‘sujeito’ (oposto ao ‘objecto’ que se mede no laboratório): a epistemologia torna-se uma disciplina separada da ontologia e ganhará uma grande proeminência filosófica. Coisas que Ser e tempo questionará.
[8] M. Heidegger, "Ce qui est et comment se détermine la Phusis", Questions II, trad. fr. de F. Fédier, Paris, Gallimard [1940], 1958.
[9] E. Gilson, Le Thomisme, Paris, J.Vrin, 19475.
[10] Paisana, João, Fenomenologia e Hermenêutica, A Relação entre as Filosofias de Husserl e Heidegger, Presença, 1992.
[11] M. Heidegger, "Temps et être" [1962], Questions IV, trad. F. Fédier, Paris, Gallimard, 1969. Veja-se o meu Heidegger, pensador da Terra, Centro de Filosofia da U. Lisboa, 2012.
[12] “Da ideia de ser que existe necessariamente não se concebe senão a existência necessária em ideia” (Jeanne Delhomme, “Dieu. La négation de Dieu”, Encyclopédie Universalis).
[13] A lógica comum dos três primeiros argumentos – segundo a qual o movimento (a mudança), a causalidade eficiente e a contingência pedem sempre um (outro) precedente sem possibilidade de retroceder indefinidamente e exige pois um primeiro motor que nada mova, que mova os outros, necessário por si mesmo – parece ser com efeito a resposta ‘criacionista’ ao problema da origem e da reprodução das espécies, o problema da galinha e do ovo. Essa lógica parece desmentida pela lógica científica da evolução, aliás bem mais fiel ao kath’auto aristotélico, já que se trata duma lógica de crescimento das espécies vivas (os defensores do desígnio inteligente situam-se na lógica do quinto argumento, segundo a causalidade final, ver § 7n). A biologia molecular, que nos desvelou os mecanismos extraordinários desta reprodução, não sabe (ainda) responder, na medida em que se trate de algo que escapa à experimentação (pelos menos nas espécies mais complexas), duma imotivação, quase acontecimento, quer nas primeiras células, quer entre uma espécie e outra. Por outro lado, a postulação dum primeiro Motor cai sob a desqualificação da busca das origens pela ‘différance’ de Derrida: é a repetição que é originária, diz ele, maneira de dizer que não houve nunca origem simples. Sobra no entanto, do lado da Física, uma ‘origem’ sem compreensão possível, quero crer, até hoje: aquilo a que chamam big Bang, uma espécie de mito astrofísico que, apesar do ateísmo da maior parte dos físicos, está mesmo a reclamar um deus. Creio na minha modesta ignorância que haveria que repensar o percurso até se chegar à formação das estrelas, depois das quais já uma lógica ‘evolutiva’ parece justificável.
[14] A Física moderna aplicou a sua razão laboratorial dos dados terrestres aos astros do céu: a astrofísica como região da física da gravitação implica a anulação da irredutibilidade da oposição céu / terra que sustentava a crença holística no monoteísmo.
[15] Há uma bela panorâmica da história ocidental da problemática do determinismo, desde os Estóicos e Agostinho de Hipona a Laplace e outros físicos clássicos e contemporâneos e ainda às ciências estatísticas das sociedades na introdução de K. Pomian ao volume que ele coordenou, La Querelle du Déterminisme, Paris, Gallimard, 1990, pp. 11-58. É aliás o que predomina na querela contemporânea sobre a evolução entre neodarwinistas e defensores do desígnio inteligente. O paradoxo desta questão consiste em que, constatada de forma indiscutível, a noção de evolução contraria a definição de reprodução celular, quer nos tecidos dum organismo, quer adentro da mesma espécie: a célula é estruturalmente conservadora, cada uma dá origem a duas células iguais a ela. A invenção precoce da sexualidade explicará as diferenças individuais adentro da mesma espécie, sobretudo nas mais complexas: mas como se passou de espécie para espécie? O determinismo genético invoca o acaso das suas mutações, a cuja ilógica  pretende responder a causalidade final dos criacionistas, obviamente incompatível com a falta de finalidade dos fenômenos evolutivos (mesmo este termo é suspeito de finalismo, um fenómeno biológico como os vírus é ‘anti-evolutivo’, veio depois das células, mais complexas do que eles, e creio que mesmo depois dos organismos). Ora, a proposta do jogo como a unidade entre necessidade e acaso (§ 8), regras e aleatório das cenas ecológicas, permite em princípio entender correlações complexas entre metabolismo celular e sangue, entre sangue e sistema neuronal e entre este e as variações geológicas e climáticas da cena ecológica, que serão necessárias e suficientes para explicar a evolução, a chamada “selecção natural” com base nos mecanismos da lei da selva: ainda que se admita um Criador, ele respeitaria integralmente esses mecanismos. Quanto à formação das primeiras células vivas, o biólogo italiano Marcello Barbieri (Teoria semântica da evolução, Fragmentos, 1987) tem uma proposta muito aliciante para ela (Belo, 2007, 11.6-10, Belo, 2009, 92-3).
[16] M. Heidegger, Le principe de raison, [1957], trad. A. Préau, Paris, Galli­mard, 1962.
[17] J. Derrida, Mar­ges, Paris, Minuit, 1972, p. 7.
[18] É certo que esta oposição nos aparece como uma evidência (quase) absoluta, condição do nosso falar, fazer, pensar, amar, agir, criticar e rebelar-se. Mas essa evidência não é universalizável por definição, já que se opõe às evidências equivalentes de todos os outros, é uma clausura insular, a alma ou o sujeito como ‘ilha inteligível’.
[19] “Os povos primitivos são sempre apresentados [por viajantes e missionários europeus] como dados apaixonadamente à guerra” (P. Clastres, "Arqueologia da violência : a guerra nas sociedades primiti­vas", in Guerra, religião, poder, [Libre, 77-1] trad. J. A. Santos, Lisboa, ed. 70, 1980, p. 12).
[20] Paris, Payot & Rivages, 1994 (há tradução portuguesa).
[21] Numa análise do motivo de força ou potência (dunamis) em Aristóteles, Heidegger escreve de forma bem mais radical: “A finitude íntima e essencial de cada dunamis reside na decisão de ir para um lado ou para o outro, decisão que é exigida por si mesma e inerente ao seu próprio cumprir-se. Onde há força e potência (Kraft und Macht), há finitude. É por isso que Deus não é potente, e ‘omnipotência’ é um conceito que, compreendido correctamente, desvanece-se em fumo como todos os seus semelhantes. Não é um conceito que se possa pensar. Ou então, se Deus é potente, é finito e em todo o caso bem diferente do que pensa a representação comum de Deus, dum Deus que pode tudo e é assim reduzido a um ente gazua” (M. Heidegger, Aristote, Métaphysique Q 1-3, De l’essence et de la réalité de la force, [1931], trad. B. Stevens et P. Vandevelde, Paris, Galli­mard, 1991, pp. 159-160). Para quem quiser argumentação filosófica especulativa actual: Secondo Bongiovanni, La philosophie italienne contemporaine à l’épreuve de Dieu. Pareyson, Vattimo, Cacciari, Vitiello, Severino, Paris, L’Harmattan, 2008.
[22] Deixando o plano da filosofia grega e regressando à concepção hebraica, o que Jonas faz é propor um Deus ‘finito’, como diz Heidegger.
[23]  A que ecoa esta citação de Emmanuel Levinas: “É o humano que tem que salvar o humano; a maneira divina de reparar a miséria consiste em não fazer intervir Deus nela. A verdadeira correlação entre o humano e Deus depende duma relação de humano a humano, de que o humano assume a responsabilidade completa, como se não houvesse Deus com quem contar. Estado de espírito condicionando o laicismo, mesmo moderno” (E. Levinas, “La laïcité et la pensée d’Israël”, [1960], Les Imprévus de l’Histoire, Paris, Fata Morgana,, 1994, p. 183, eu sublinho). ‘Como se não houvesse Deus com quem contar’: isto põe em questão a noção tradicional de Providência universal, que aliás a história desmente tanta vez de forma atroz. Que não se possa provar nem que Deus existe nem que não existe, isso significará porventura que o universo e o nosso mundo terrestre seriam o mesmo em qualquer dos casos. No caso afirmativo seria um Deus que respeitaria de tal maneira a autonomia das coisas, dos vivos e da respectiva evolução, dos humanos e da respectiva história, que não interferiria nelas como se não existisse.
[24] Última palavra de Jesus, antes de dar um grande grito e de expirar, segundo Marcos e Mateus, que lhe vincam a autenticidade dando a sua versão original em aramaico. Com efeito, é uma palavra inverosímil face à divinização posterior de Jesus, Lucas apagou-a.
[25] Ver também Deuteronómio 5.23.
[26] Estes textos, como qualquer outro, relevam da finitude humana, dão-se à leitura de quem quer que seja. Um leitor psicanalista lerá neles, sem dúvida, algo que releva da sublimação das energias sexuais, certas descrições de experiências de êxtase tendo traços muito semelhantes aos de um orgasmo. Em vez duma explicação por reducionismo determinista (a sexualidade explica o êxtase), haverá que tentar compreender, na medida do possível, como é que uma experiência fora do contexto habitual que conduz os humanos ao orgasmo pode conduzir a um quase orgasmo, quais os deslocamentos dessa sublimação.
[27] J. Derrida, De la Grammatologie, Paris, Minuit, 1967.
[28] Alguns contam as suas “experiências de vocação”: Isaías 6, Jeremias 1, Ezequiel 1-3, Samuel 3, Jonas. A de Jesus é contada em Marcos 1.9-13 e paralelos, a de Paulo nos Actos 9, 22.5-16 e 26.10-18.
[29] Rousseau contou a sua experiência de mudança pessoal em suas Confissões: “peguei um dia no Mercure de France e, andando e percorrendo-o, encontrei esta pergunta proposta pela Academia de Dijon para o prémio do ano seguinte: ‘se o progresso das ciências e das artes contribuiu para corromper ou purificar os costumes’. No instante dessa leitura, eu vivi um outro universo e tornei-me num outro homem”. Do ponto de vista cristão, são célebres as conversões do físico e filósofo Blaise Pascal e de Paul Claudel.
[30] Que fenomenologicamente se traduz na maneira como a aprendizagem dos usos da sua tribo fazem dele um humano.
[31] J. Derrida (La carte postale de Socrate à Freud et au-delà, Flammarion, 1980, p. 342) aproxima o Dasein de Heidegger do Fortsein de Freud (o jogo infantil do Fort/Da em Para além do princípio do prazer), o que daria uma espécie de Dafortsein que aqui me inspira.
[32] O motivo derridiano do rasto implica o retiro e o esquecimento ou apagamento heideggerianos.
[33] M Heidegger, Être et Temps, [1927], trad. E. Martineau, ed. hors-commerce, 1985
[34] Como aliás no alemão (Erfahrung, experiência, Fahrt, viagem), creio que se trata do mesmo –per- na semântica latina, a da viagem fora da segurança do seu território, per-igo de per-ecer entre estranhas gentes, em suas línguas e usos outros. W. Bromeier, tradutor francês de Heidegger, "He­gel et son concept de l'expérience" (Chemins qui ne mènent nulle part, 1962, Paris, Gallimard) diz numa nota (p. 308) que este ‘-per-‘ “significa o movimento de atravessar, de ‘percer’ [em francês]”. Ver ‘perig-‘ e ‘peregr-‘ no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2003, Lisboa, Círculo de Leitores, que, além de ‘experiência’ e ‘perito’, acolhe também ‘peregrino’, mas não ‘perecer’.
[35] Quando, deixados os outros, recolhido só na noite, olhos e ouvidos fechados, na maior intimidade, se perde a consciência de si no sono, nesse mais íntimo do que o seu íntimo, encontramo-nos fazendo parte dum povo de gentes estranhas e familiares, que fazem o que lhes apetecem, por vezes nos fazem mal, nos levam para onde não sabemos nem sempre queremos.
[36] No belíssimo artigo "Mystique" da Encycl. Universalis.
[37] Como diz a parábola hiperbólica dos terrenos semeados pela ‘boa prática’ evangélica: os que são semeados “em boa terra, escutam a palavra, acolhem-na e dão fruto, trinta, sessenta ou cem por um” (Marcos 4.20; F. Belo, Lecture matérialiste de l’évangile de Marc. récit, pratique, idéologie, Cerf, 1974, p. 168). Tinha proposto nessa leitura o conceito de ‘prática messiânica’ ou eclesial segundo Marcos (prática dos olhos ou fé, dos pés ou esperança, das mãos ou amor), sem recurso à noção de alma (que a Bíblia ignora, na sua oposição ao corpo) ou de interioridade. Provavelmente esta é mais acessível...
[38] Por exemplo, Henri Curiel, evocado por um seu companheiro de luta política, Robert Davezies, Un temps pour la guerre, Lausanne, Age d’Homme, 2002.
[39] É o que dá peso ao argumento de Sócrates sobre a imortalidade da alma no Fédon (63b-67a), a força da sua experiência de pensamento e de acção cívica não pode ficar confinada à duração efémera duma vida humana. O Eterno Retorno de Nietzsche também releva desta força da ‘vontade de pujança’ (M. G. Llansol), que o que se faz seja tal que se possa querer que volte eternamente.
[40] Este testemunho tem uma longa história, judaica primeiro, judaico-cristã depois, greco-cristã, romano-cristã, medieval, européia, mundial, também susceptível duma indagação de tipo fenomenológico, no sentido aqui usado.
[41] Sem implicar necessariamente ‘ingenuidade’. Com a linguagem recebida dos nossos antepassados, também se recebe a crença na realidade que ela diz (o que se pode chamar a lei da verdade, inerente a todas as linguagens sociais, a reter estruturalmente com as leis da selva e da guerra), mas também a incitação à dissimulação (e portanto à crítica). Assim os usos sociais de que a linguagem é parte, trazem consigo, na sua aprendizagem, a razão que nos ensina a avaliar as crenças que necessariamente essa aprendizagem traz como ‘pre-conceito’.
[42] Por exemplo, O futuro duma ilusão de Freud é um texto cuja surdez faz pena pelo seu ‘obscurantismo moderno’, sem fazer análises (como as fez, bem interessantes, em Moisés e o Monoteísmo), ignorando os factos espirituais fortes (respondeu a Roman Rolland: “estou tão fechado para a mística como para a música”, citado por M. De Certeau, "Mystique" da Encycl. Universalis), sem pensamento que valha, indigno do autor desse texto admirável que é A Interpretação dos sonhos.
[43] Como ele parece dizê-lo na introdução que escreveu para o livro de Marlene Zarader, Heidegger et les paroles d’origine (há trad. port.), Paris, Vrin, 1986.
[44] Antes de Aristóteles, ‘para além da realidade’, ousia na linguagem corrente significando o patrimônio duma casa, que se mantém o mesmo ao longo das gerações. Em Aristóteles, substância e essência, sentido que Levinas entenderia, ou ainda ‘ser’.
[45] F. Bernardo, Transcendência e subjectividade, A ‘subject-illeidade’ ou a responsabilidade ética como incondição do sujeito em Emmanuel Lévinas, tese de doutoramento, policopiado, Universidade de Coimbra, 2000, 1º vol., p. 168.