domingo, 21 de setembro de 2014

O dinheiro a favor e contra a liberdade




1. Porque é que  a esquerda está encurralada, como Hollande acaba de mostrar ao largar o seu discurso de há dois anos? Porque enquanto que a política é local, a chamada globalização é a dos capitais e das suas guerras, como dizem: ‘competitividade’. Electrónica, ela também é das palavras, dos números e das músicas, com a diferença de que estas são de borla para quem as usa e repete, enquanto que moedas e notas têm uma cunhagem ou uma assinatura política que atribui a cada uma um dado ‘poder de compra’, adequado à língua dos preços das coisas (oscilante segundo as conjunturas), poder do seu possuidor que se transmite anonimamente de mão em mão, ao invés da palavra, número ou nota musical, gratuitas e sociais indissociavelmente. É esse poder apropriado que permite a troca de notas ou moedas por tal ou tal mercadoria. Quanto aos cheques e cartões electromagnéticos de multibanco ou de crédito, a assinatura individual e o segredo dos códigos não substituem a marca política, já que eles exigem a instituição bancária que os edita e que estabelece a sua equivalência às notas. Assim como as notas obviam ao esgotamento das moedas, também assim os cheques ao das notas, às malas cheias destas: um ponto da importância estrutural dos bancos.
2. A propriedade privada do dinheiro, no bolso e nas contas no banco, asseguram, em sociedades de produção especializadíssima, a liberdade de escolha do que se compra como estando na essência do mercado, em vez de listas de rações distribuídas pelas autoridades (Cuba). Ora, faz parte da lógica do sistema que a prossecução dos interesses próprios dos bancos (segundo a sua liberdade) possa jogar contra os dos seus clientes se faltar a devida regulação, foi o que nos ensinou a crise destes anos de troika, a destruição da economia, falências e desemprego. A regulação tem falhado, parece, porque teria que estar ‘dentro’ de cada banco, tal como os escritórios da Troika em Lisboa.
3. Há uma diferença de escala. O sistema financeiro electrónico é facilmente ‘global’ e rápido, apesar dos câmbios e da concorrência (das suas redes fazem parte também os off shore), enquanto que a política, a democracia, as regulações, são essencialmente locais e lentas, seguem as regras dos Estados-nações, têm apenas um alcance ‘local’. Ora, esta diferença de escala reflecte-se nos ‘paradigmas’ das políticas locais democráticas consoante os partidos são de direita e de esquerda: a direita pensa do lado do capital global (Friedman), a esquerda do lado do social local (Keynes), o que tem como consequência que a direita pensa e age segundo um paradigma que segue a onda do capital, a esquerda o da contestação dessa onda. Quando o discurso político de esquerda consegue ganhar democraticamente e o melhor que pode prometer é salvar a socialdemocracia, isto é, o Estado social, arrisca-se – Hollande como Obama – a não conseguir levar as suas promessas avante por pressões que vêm do capital global e que se impõem à direita como evidências (capitalistas), o chamado “pensamento único”. Em termos nacionais, é sempre possível equilibrar as contas que sustentam o Estado social, como Vieira da Silva terá provado, até que, a culminar uma fase demencial de incitações a empréstimos, a crise da banca americana veio pôr tudo do avesso. Já o marxismo falhou na Europa por não ter conseguido ser ‘internacional’ como Marx compreendeu que era a solução: mas o que sobrou dele foi justamente a social democracia local (dita ‘revisionismo’). Alguém será capaz de pensar uma ‘esquerda global’?
4. Como panaceia do desemprego, predomina em todos os discursos uma ânsia do crescimento económico que o mede em termos exclusivamente monetários (PIB), que se opõe claramente (fora das tais evidências) à ameaça ecologista, quer climática (e será o terror para toda a gente, os ricos também), quer das reciclagens impossíveis que um tal crescimento implicaria, já que parece óbvio que os mais de 2 biliões de chineses e indianos têm o mesmo horizonte de produção e consumo que americanos e europeus e que isso será insustentável para o planeta. Ou seja, haverá algo um dia parecido com uma ‘solução’ após crises ambientais muito fortes que obrigarão a pensar em termos de economias frugais e solidárias.
5. Se for certa a tese de Piketty, de que a crescente desigualdade depois dos 30 anos à Keynes do pós-guerra é uma crescente ameaça à democracia, o capital a dar cabo da liberdade que o dinheiro oferece, espera o leigo que se trate dum passo decisivo para uma ciência económica que seja uma verdadeira ciência social, isto é, que tenha como objectivo salvar as sociedades locais, as empresas e os empregos, que forneça argumentos para a esquerda guiar a sua acção.


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