domingo, 7 de setembro de 2014

Autonomia e heteronomia


1. Uma é a nossa preferida, a ‘nossa’ autonomia, a outra considerada o mal de que temos que nos livrar, o poder dos outros sobre nós. A fenomenologia que aqui se propõe sob a inspiração de Husserl, Heidegger e Derrida implica que o percurso de dissidência do segundo em relação ao primeiro foi um passo da afirmação da autonomia como primeira – a percepção do sujeito como fundamento do conhecimento dos objectos, primado tradicional da interioridade do pensamento sobre a exterioridade das coisas e dos outros, do dentro sobre o fora – para a da doação do ‘ente’, do que vem à presença, nascendo ou sendo feito, pelo Ser (Terra e Mundo, a certa altura), mas em que esta doação se retira, dissimula. Estou em crer que esse passo não chegou ao ente humano (Dasein), porque o privilégio do ‘pensamento’ terá resistido, sendo necessário um outro passo, o da inscrição como “origem da linguagem” e portanto do pensamento, passo esse dado por Derrida.
2. Ora, o que está aqui em jogo é uma como que reversão da preferência dita acima pela autonomia, que é uma atitude espontânea e necessária como saúde humana mas só possível como consequência das experiências de pensamento, mormente por adultos. Sócrates e Platão são exemplo maior, que partem do “sei que nada sei” do primeiro e da novidade do pensar do segundo que se liberta do seu corpo e cidade para conhecer a terra da geometria e os céus da astronomia, como diz algures no Teeteto. O que estes dois exemplos implicam é o menosprezo pela aprendizagem, que não é propriamente negada, nunca o foi na história do pensamento ocidental, mas desvalorizada, pois que tanto se aprendem coisas certas como erradas, desvalorizada porque a força da novidade da experiência do pensamento se impõe sobre o que se outros se aprendeu.
3. Ora, o que Heidegger e Derrida mais radicalmente fizeram foi permitir perceber que se pensa e se age, tanto nos usos de cada dia como nos usos elevados dos pensadores, cientistas, artistas, gente de decisão, segundo regras (-nomia) aprendidas dos outros (hetero-), que essas regras vêm de fora e estruturam o nosso dentro como regras (-nomia) próprias de nós (auto-) que são as mesmas do que as dos outros (a língua por exemplo claro). A heteronomia é prévia à autonomia, é a sua condição social, sem o que a anarquia seria total, impensável qualquer comunicação entre uns e outros. Mas os dois pensadores não eram contra a autonomia, obviamente, eles ensinaram que a doação da interioridade implica que ela seja retirada, dissimulada, na sua força (de adultos que ensinam crianças, por exemplo), de maneira a que o próprio, ao agir e ao pensar, não saiba, tenha esquecido totalmente as bases da aprendizagem (o que suponho ser a raiz do inconsciente freudiano). Alguém se lembra de ter aprendido as palavras triviais que utiliza, casa ou mesa, os verbos ser ou fazer? E pode-se pensar sem essas palavras?
4. Que a autonomia seja dada pela heteronomia social só torna esta preponderante durante a menoridade, ou melhor, em todas as fases em que se aprende com outros (e aprende-se a vida toda, o que chamamos ‘experiência da vida’), vendo, ouvindo e lendo, até que a autonomia prevaleça como espontaneidade e habilidade nossa. O que se deve contestar da heteronomia é aquela que não se dissimula mas permanece como poder hierárquico que obriga os subalternos, negando-lhes a autonomia. Contestar, até porque é cegueira de quem tem o poder, que muito melhora o que dos tais subalternos precisa como cooperação na medida em que lhes respeitar a autonomia: o chefe inteligente apaga-se diante dos bons resultados da colaboração em vez da subordinação.
5. Mas não se trata apenas de aprendizagem, também de comer. Desde a primeira célula que fomos no seio da nossa mãe que o nosso crescimento como organismo se fez com moléculas de outros vivos, plantas e animais, toda a nossa vida essa alimentação vinda de fora permitindo reproduzir a nossa anatomia, as células que se dividem, a vida que adia a morte (por exemplo, de 6 em 6 meses, segundo os biólogos, as células dos nossos ossos são novas, vindas das outras, é o que permite recuperar das fracturas). Também o processo de digestão e circulação do sangue se opera de modo a que não saibamos que somos feitos de restos de batatas e de borrego.
6. A minha crítica do paradigma da biologia (Teresa Avelar) e da neurologia (António Damásio) num texto deste blogue (Dezembro de 2012) deriva justamente desse paradigma – como em todas as outras ciências, creio – ser vítima desse privilégio do dentro sobre o fora. Lembro-me do espanto enorme que tive ao ler o biólogo Francisco Varela, Autonomie et connaissance. Essai sur le vi­vant, e descobrir que a sua teoria da “autopoiése”, da construção do organismo por ele próprio, implicar que a reprodução e a evolução eram fenómenos secundários!  Ele defende o primado do indivíduo sobre a espécie: “a reprodução e a evolução, assim como todos os fenómenos que delas decorrem, aparecem como fenómenos segundos, subordinados à existência e ao funcionamento autopoéticos desses sistemas” (p. 71 da ed. francesa, Seuil, 1989, sublinhados meus).
7. Consequência deste epistema que privilegia o dentro sobre o fora, o indivíduo sobre a espécie, o indivíduo sobre a sociedade, o pensamento sobre a linguagem, aquilo a que Heidegger chamou ontoteologia, é que se pensa a chamada ‘realidade’ como o exterior caótico fora de nós, mera justaposição de coisas, animais, plantas, casas, pessoas, acções, acontecimentos, sei lá!, mas não se pensa o mundo como articulação segundo os tipos de regras ou leis científicas

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