1. Uma é a nossa preferida, a ‘nossa’
autonomia, a outra considerada o mal de que temos que nos livrar, o poder dos
outros sobre nós. A fenomenologia que aqui se propõe sob a inspiração de
Husserl, Heidegger e Derrida implica que o percurso de dissidência do segundo
em relação ao primeiro foi um passo da afirmação da autonomia como primeira – a
percepção do sujeito como
fundamento do conhecimento dos objectos, primado tradicional da interioridade do pensamento sobre a exterioridade
das coisas e dos outros, do dentro sobre o fora – para a da doação do ‘ente’, do que vem à
presença, nascendo ou sendo feito, pelo Ser (Terra e Mundo, a certa altura),
mas em que esta doação se retira, dissimula. Estou em crer que esse passo não
chegou ao ente humano (Dasein),
porque o privilégio do ‘pensamento’ terá resistido, sendo necessário um outro
passo, o da inscrição como “origem da linguagem” e portanto do pensamento,
passo esse dado por Derrida.
2. Ora, o que está aqui em jogo é uma
como que reversão da preferência dita acima pela autonomia, que é uma atitude
espontânea e necessária como saúde humana mas só possível como consequência das
experiências de pensamento, mormente por adultos. Sócrates e Platão são exemplo
maior, que partem do “sei que nada sei” do primeiro e da novidade do pensar do
segundo que se liberta do seu corpo e cidade para conhecer a terra da geometria
e os céus da astronomia, como diz algures no Teeteto. O que estes dois exemplos implicam é o
menosprezo pela aprendizagem, que não é propriamente negada, nunca o foi na
história do pensamento ocidental, mas desvalorizada, pois que tanto se aprendem
coisas certas como erradas, desvalorizada porque a força da novidade da experiência
do pensamento se impõe sobre o que se outros se aprendeu.
3. Ora, o que Heidegger e Derrida
mais radicalmente fizeram foi permitir perceber que se pensa e se age, tanto
nos usos de cada dia como nos usos elevados dos pensadores, cientistas,
artistas, gente de decisão, segundo regras (-nomia) aprendidas dos outros (hetero-), que essas regras vêm de fora e estruturam o
nosso dentro como regras (-nomia) próprias de nós (auto-)
que são as mesmas do que as dos outros (a língua por exemplo claro). A
heteronomia é prévia à autonomia, é a sua condição social, sem o que a anarquia
seria total, impensável qualquer comunicação entre uns e outros. Mas os dois
pensadores não eram contra a autonomia, obviamente, eles ensinaram que a doação
da interioridade implica que ela seja retirada, dissimulada, na sua força (de adultos que
ensinam crianças, por exemplo), de maneira a que o próprio, ao agir e ao
pensar, não saiba, tenha esquecido totalmente as bases da aprendizagem (o que
suponho ser a raiz do inconsciente freudiano). Alguém se lembra de ter
aprendido as palavras triviais que utiliza, casa ou mesa, os verbos ser ou
fazer? E pode-se pensar sem essas palavras?
4. Que a autonomia seja dada pela heteronomia social só torna esta
preponderante durante a menoridade, ou melhor, em todas as fases em que se
aprende com outros (e aprende-se a vida toda, o que chamamos ‘experiência da
vida’), vendo, ouvindo e lendo, até que a autonomia prevaleça como
espontaneidade e habilidade nossa. O que se deve contestar da heteronomia é
aquela que não se dissimula mas permanece como poder hierárquico que obriga os subalternos,
negando-lhes a autonomia. Contestar, até porque é cegueira de quem tem o poder,
que muito melhora o que dos tais subalternos precisa como cooperação na medida
em que lhes respeitar a autonomia: o chefe inteligente apaga-se diante dos bons
resultados da colaboração em vez da subordinação.
5. Mas não se trata apenas de
aprendizagem, também de comer. Desde a primeira célula que fomos no seio da
nossa mãe que o nosso crescimento como organismo se fez com moléculas de outros
vivos, plantas e animais, toda a nossa vida essa alimentação vinda de fora
permitindo reproduzir a nossa anatomia, as células que se dividem, a vida que
adia a morte (por exemplo, de 6 em 6 meses, segundo os biólogos, as células dos
nossos ossos são novas, vindas das outras, é o que permite recuperar das
fracturas). Também o processo de digestão e circulação do sangue se opera de
modo a que não saibamos que somos feitos de restos de batatas e de borrego.
6. A minha crítica do paradigma da
biologia (Teresa Avelar) e da neurologia (António Damásio) num texto deste
blogue (Dezembro de 2012) deriva justamente desse paradigma – como em todas as
outras ciências, creio – ser vítima desse privilégio do dentro sobre o fora.
Lembro-me do espanto enorme que tive ao ler o biólogo Francisco Varela, Autonomie
et connaissance. Essai sur le vivant, e descobrir que a sua teoria da “autopoiése”, da
construção do organismo por ele próprio, implicar que a reprodução e a evolução
eram fenómenos secundários! Ele
defende o primado do indivíduo sobre a espécie: “a reprodução e a evolução, assim como todos os fenómenos que
delas decorrem, aparecem como fenómenos segundos, subordinados à existência e ao funcionamento
autopoéticos desses sistemas” (p. 71 da ed. francesa, Seuil, 1989, sublinhados
meus).
7. Consequência deste epistema que
privilegia o dentro sobre o fora, o indivíduo sobre a espécie, o indivíduo
sobre a sociedade, o pensamento sobre a linguagem, aquilo a que Heidegger chamou ontoteologia, é que se
pensa a chamada ‘realidade’ como o exterior caótico fora de nós, mera justaposição
de coisas, animais, plantas, casas, pessoas, acções, acontecimentos, sei lá!,
mas não se pensa o mundo como articulação segundo os tipos de regras ou leis científicas.
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