“HÁ QUE ADMIRAR O HOMEM POR SER UM
PUJANTE GÉNIO DA ARQUITECTURA
QUE
CONSEGUIU ERIGIR SOBRE ÁGUA CORRENTE
UM
EDIFÍCIO CONCEPTUAL
INDEFINIDAMENTE
COMPLICADO” (NIETZSCHE)[1]
Os dois gestos sobre a linguagem, o de Occam e o de
Nietzsche
A novidade deste texto de Nietzsche: a génese da linguagem
Retorno parcial à mesmidade de Parménides em três etapas
Paradoxo da verdade filosófica
Onde é que há conceitos filosóficos?
1. Esta citação de
espanto pertence à Introdução em termos de teoria do conhecimento sobre a
verdade e a mentira em sentido extra-moral, de 1873[2].
É o espanto diante da relatividade de todo o saber, científico e filosófico, do
Ocidente – um edifíco sem fundamentos, sobre a água corrente – mas talvez que
sem relativismos, já que o edifício não se desmorona. Passados quase 130 anos
sobre a escrita deste texto póstumo – inacabado em seus dois capítulos, o
primeiro argumentativo para que o segundo se dê como afirmação jubilosa –,
este espanto perdura, em mim pelo menos: é o que procurarei esclarecer aqui.
Todavia não é ele que interessa Nietzsche, não é o que ele procura neste texto,
já que surge quase como uma objecção, dir-se-á logo a seguir: “há muito que
admirar aqui, mas não por uma pulsão de verdade, nem pelo puro conhecimento das
coisas”. É algo que tem que conceder no caminho para a afirmação do capítulo
2, a do “heroi muito alegre”, do “artista intuitivo” e da sua “pulsão para
formar metáforas”, porque este só é possível se for antes demonstrada a
relatividade do saber, se as essências das coisas não forem conhecidas. E é no
caminho de desobstrução do que impede tal relatividade que Nietzsche apercebe
o “edifício conceptual indefinidamente complicado” que se aguenta sem fundações,
sobre a água corrente, e se espanta em como tal é possível – procurará mesmo
explicar este prodígio de arquitectura com argumentos kantianos ! –, para
prosseguir depois enfim o seu caminho, que é o da sua libertação pessoal do
fascínio pelos conceitos: deixar de ser escravo deles, deixar de ser
professor, para se tornar livre senhor artista, aquele que joga com intuições
súbitas. Observe-se que minar os fundamentos do edifício conceptual poderia
levar ao seu desmoronamento e à gargalhada do artista que ri sobre os descombros.
Fácil de mais: os fundamentos desaparecem e o edifício não cai. É nele e nos
argumentos que lhe liquefazem os alicerces que vou atentar. Passados tantos
anos, talvez se encontre assim alguma liberdade também, algum jogo com
conceitos.
Os dois gestos sobre a linguagem, o de Occam e o de
Nietzsche
2. Na minha
comunicação ao colóquio de 2000, comemorando nesta mesma Faculdade de Letras
o centenário do início da fenomenologia de Husserl, delineei dois gestos sobre
a linguagem na instituição filosófica dos dois epistemas europeus descritos
por Foucault, o clássico e o moderno[3].
O primeiro gesto foi o de Occam e do seu nominalismo, negando a existência das
essências aristotélicas nas próprias ‘coisas’ (nas ‘coisas-em-si’ dirá Kant,
seu descendente), para as alojar nos “nomes mentais” com que essas coisas são
pensadas; quanto aos nomes das línguas com que elas são designadas, eles serão subordinados aos mentais universais. A génese
da representação mental teve aí uma etapa decisiva (com origem porventura na
filosofia árabe comentando Aristóteles), abrindo precocemente o epistema
clássico: representação elaborada mormente por Descartes como ideia, que
depois retomarão de formas várias racionalistas e empiristas, como se diz.
Segundo os nominalistas, as coisas são todas substâncias singulares, inclusive
as almas que as conhecem, Descartes di-las-á ‘res’, umas extensas, outras cogitantes:
Occam enterrava assim a mesmidade parmenidiana entre ser (einai), pensar (noein) e dizer (legein) que subsistia ainda na
não-separação entre a substância-essência dos seres vivos e o discurso das
categorias que os pensava no aristotelismo medieval[4].
De facto, a representação mental só ganha sentido como ‘ponte’ entre os separados:
das ‘coisas’ às ‘almas-sujeitos’ que as conhecem, e tão afastadas ficam as
duas margens do rio do conhecimento que Descartes, Malebranche, Leibniz,
Berkeley, precisarão de Deus para garantir o conhecimento verdadeiro. Neste
epistema, a linguagem não tem senão uma existência secundária, a dum
instrumento, a duma expressão das excelentes representações que são as
ideias.
3. Foi o que veio
corrigir o segundo gesto, o de Nietzsche. Foucault: “a linguagem só entrou
directamente e por ela mesma no campo do pensamento no final do sec. XIX.
Poder-se-ia dizer até que no séc. XX, se Nietzsche o filólogo – como ele era
sábio, sabia tanto, escrevia tão bons livros – não tivesse sido o primeiro a
aproximar a tarefa filosófica duma reflexão radical sobre a linguagem” (ed. fr., Gallimard, 1966, p.
316). Quero crer que o que, em termos filosóficos, há de totalmente novo
neste texto póstumo de 1873 é justamente o ter abordado a questão do
conhecimento afrontando a representação mental através da tentativa de
elucidação da génese
da linguagem: uma vez que tal como a representação caracteriza o epistema
clássico, segundo Foucault, também assim o tempo das géneses caracteriza o moderno.
4. No Nascimento da
Tragédia,
publicado um ano antes deste texto ser escrito, Nietzsche privilegiava Kant e
Schopenhauer por terem “uma sabedoria dionisíaca formulada em conceitos” (ed.
fr., Gonthier, 1964, p. 130). Poder-se-ia pensar que, nesse primeiro texto
publicado por Nietzsche, o Schopenhauer da filosofia da vontade (paralela da
música) e da representação teria introduzido a música no fosso kantiano entre o
mundo dos fenómenos e o mundo das coisas-em-si, pensar depois que, tendo
Nietzsche descoberto, à luz da leitura de dois livros entretanto publicados[5],
a natureza metafórica originária da linguagem, é agora a música que é
substituida pelo turbilhão móvel das metáforas. Sai pois Schopenhauer de cena,
enquanto Kant passa para o lado do adversário, já não dionisíaco mas racional:
é ele quem lhe oferece – além duma solução (“idealista”, diz) tranquilizante
para o espanto que nos move aqui – a metáfora do edifício conceptual, central
no prefácio da Crítica da Razão Pura, onde é justamente um edifício de
representações. Ora, já aí se mostrara que tal edifício não atinge as coisas em
si, a ‘essência das coisas’: não é esta tese, repetida à saciedade, que é nova
aqui, mas a argumentação que a apoia e a nova luz que esta traz sobre a
relação entre a verdade e (o esquecimento d)a génese da linguagem.
A novidade deste texto de Nietzsche: a génese da
linguagem
5. A dupla do apolíneo
e do dionisíaco do Nascimento da Tragédia dá aqui lugar à do homem racional e do
homem intuitivo, à da teoria e da arte, já não em dialéctica mas em oposição
exclusiva, segundo um contraste que o cap. 2 desdobra magnificamente. Do
ataque aos fundamentos do que aquele tem de mais caro, a pulsão para a verdade
do conhecimento das coisas, resultará o elogio da liberdade e da ligeireza
deste. Tentarei sugerir o que a argumentação tem de surpreendente. A
relatividade radical do conhecimento humano ressalta inicialmente na maneira
inédita como a cosmologia e a biologia darwinista suas contemporâneas são evocadas.
A terra onde o conhecimento apareceu não é senão um canto de numerosos e ‘eternos’
sistemas solares: a invenção do conhecimento por animais inteligentes não é
mais do que um minuto nessa história cósmica, pese embora ao orgulho do
filósofo que se julga centro do universo. Esses animais inteligentes são mais
fracos do que muitos outros, e o seu intelecto não é senão uma arma astuciosa
de animais fracos e efémeros, uma ilusão, uma maneira de dissimularem aos
outros essa fraqueza e de a si mesmo se iludirem. É aonde se dá, quase
imperceptivelmente, a inflexão que inundará esplendidamente o cap. 2, uma
viragem nesta negatividade inicial sobre o intelecto humano: é que ilusão e
dissimulação só são negativas para os defensores dogmáticos da verdade científica
e filosófica assente nas essências das coisas, pois que elas são a própria
liberdade do artista intuitivo e não racional, fraco e sem armas. O eco dum
nosso poeta dará a entender: “o poeta é um fingidor”, é a ficção e não a
verdade que ele busca, trabalhando com as metáforas mais inauditas. Há pois que
indagar da origem destas: é simples mas inédito em filosofia, as metáforas são
a própria origem da linguagem.
6. Porquê inédito?
Dir-se-á mais adiante, as metáforas são o lugar do risco e de toda a
insegurança, do não aprender com a experiência e voltar a cair nas mesmas armadilhas.
E foi contra isto que os humanos, para evitar a anarquia hobbesiana da “guerra
de todos contra todos”, fixaram “uma designação das coisas uniformemente
válida e obrigatória”, ou seja as primeiras leis da verdade. E é da linguagem
como designação uniforme e obrigatória que o texto vai contar a génese.
Procurarei mostrar a pertinência mas também a fragilidade dos argumentos, esta
sendo presumível ‘a priori’, já que nenhuma frase do texto de Nietzsche seria
legível por qualquer pessoa, ele incluido, não fora tal uniforme e obrigatória
designação.
7. Tratar-se-á
essencialmente de dizer que não há lógica na formação das línguas, que estas
são arbitrárias, como aliás se sabe desde o Crátilo de Platão e do Da interpretação de Aristóteles, e era a razão
pela qual a filosofia europeia subordinara a linguagem ao pensamento; mas em
seguida acrescenta-se o que subverte toda esta tradição: “não é em todo o caso
logicamente que procede o nascimento da linguagem e todo o material no interior do qual e com o qual
o homem da verdade, o sábio, o filósofo, trabalha e constroi em seguida, se não
provém do ‘havia um cucozinho...’, também não provém em todo o caso da essência
das coisas”. Sublinho a palavra ‘material’, como mais adiante se falará do “Stoff
der Begriffe”,
do estofo-matéria dos conceitos: é nesta concepção ‘material’ das palavras (e
dos conceitos) – que permitirá os edifícios conceptuais erigidos sobre a água
corrente – que creio residir em última análise a novidade filosófica deste
texto, que continuará na restante obra de Nietzsche. Interessa por isso ver
porque é que, não apenas este texto ficou inacabado como a sua problemática
não reaparecerá posteriormente: haverá genealogias, sim, mas de interpretação
activa, como aqui ainda não.
8. Ora, interpretação
e avaliação serão de textos e das suas questões e não de ‘palavras’ soltas,
descontextualizadas, como a génese que aqui se tenta. Primeiro uma “excitação
nervosa”, da ‘folha’ duma árvore por exemplo, depois a sua transposição em uma
“imagem”, por sua vez transformada no “som” ‘folha’. Dois saltos arbitrários,
duas metáforas ou transportes entre esferas diferentes. Em seguida, esse som
será aplicado a uma outra folha, e outra e outra e muitas folhas, e perde-se,
esquece-se a experiência única e original, “todo o conceito nasce da
identificação do não-idêntico”, com abandono das diferenças individuais: nasce
assim a representação, a ‘folha’ original de que as folhas existentes são
cópias infieis. Da mesma maneira, o adjectivo ‘honesto’ aplicado a acções
numerosas e individualizadas, todas diferentes, sem que haja a ‘honestidade’
que fosse causa de tais acções. Conclusão: nenhuma pulsão nos leva à verdade,
esta não consiste senão na “obrigação de mentir segundo uma convenção firme,
de mentir gregariamente num estilo constrangedor para todos”, o que só é
possível por causa do longo esquecimento por numerosas gerações da origem das
palavras, que não são mais do que antropomorfismos, relações humanas, que não
têm nada a ver com a essência das coisas, ainda mesmo quando se trate de
definições (da de mamífero, com reconhecimento tautológico depois de que o
camelo é um mamífero). Voltaremos a esta questão da definição, mas duas coisas
são óbvias a qualquer pessoa: 1) ainda bem que só há uma palavra ‘folha’ para
dizer as milhões de folhas diferentes que há nas árvores terrestres, que se eu
quero falar duma folha singular basta-me dizer algo como ‘repara nesta folha’,
isto é, é por discursos, não por palavras soltas, que o singular se diz, as
línguas têm uma série de morfemas (artigos, demonstrativos, adjectivos) que
permitem essa singularização; 2) é por as palavras serem imotivadas que não
permitem conhecer a essência das coisas designadas, e também por isso são
polissémicas e se prestam à metaforização, e foi justamente por isso que foi
necessário aos filósofos inventarem as definições das coisas para tentarem chegar
a conhecê-las; de resto, a biologia molecular permite hoje contradizer o que
fica em questão no caso do mamífero e do camelo (lá iremos).
Retorno parcial à mesmidade de Parménides em três etapas
9. Voltando ao
contraste entre os gestos de Occam e o de Nietzsche aqui, vê-se que este
retornou à ‘mesmidade’ entre dizer e pensar de Parménides, mas deixando cavada
a separação entre o sujeito que diz-pensa e a realidade dita-pensada, ou seja
só fez metade do caminho de retorno. Ora, eu creio que será necessário
completar tal retorno para que este texto póstumo possa ter hoje o seu
acabamento, para que o espanto sobre a relatividade do conhecimento
científico e filosófico que a citação do meu título convoca tenha o
esclarecimento possível. Usaria aqui uma metáfora para dizer a operação de
leitura a que o vou submeter, uma intervenção cirúgica de transplantação, um
enxerto, uma metáfora operatória em suma, violenta, sem as neutralidades
académicas das hermenêuticas: substituir a caduca ‘fisiologia’ dos nervos, das
imagens e dos sons que Nietzsche tinha à sua disposição no início do último
quarto do século XIX pela concepção dos grafos neuronais devida ao neurólogo
contemporâneo Jean-Pierre Changeux, a qual aliás elaborarei um tudo nada além
dele[6]
mas a partir dele. Os nossos cérebros são grafados, vias duradouras são
inscritas nas sinapses dos neurónios[7]
pela experiência antropológica lentamente adquirida, aonde não podem deixar
de predominar os usos mais correntes da nossa tribo em que nos tornamos espontaneamente
hábeis. Eu proporia que haja dois eixos de comportamentos singularmente
importantes: aquele que vai da área occipital nº 17 da cartografia de Brodmann,
aonde chegam os nervos ópticos, até (com passagem pelo paleo-cortex e pelo
cerebrelo) à base da área motora nº4, onde se comanda os músculos das mão e
dos dedos, seria o eixo visão / mãos que joga em todos os ‘trabalhos’ em que
tenhamos que manipular coisas com alguma atenção e habilidade (incluindo a
escrita deste texto). O outro eixo vai das áreas 41 e 42 onde chegam os nervos
acústicos até (também com passagem pelo paleo-cortex e pelo cerebrelo) ao mesmo
terminal da área 4, onde também se comanda os músculos da voz, seria o eixo
audição / fonação da linguagem oral. Ora, este segundo eixo cruza-se sem
dúvida com o primeiro nas áreas comuns dos cérebros de primatas onde a
linguagem se veio enxertar, nomeadamente a 44, dita de Broca e a 22, dita de
Wernicke, sem que se saiba grande coisa do ‘como’ desse cruzamento (aí não há
nem ‘imagens’ nem ‘sons’, apenas química e electricidade). Pressuponho que não
se trate propriamente de nenhuma mistura do que vem dos olhos e dos ouvidos, já
que me parece que a noção de eixos comportamentais implica a respectiva
autonomia (são esferas diferentes, na terminologia de Nietzsche), mas dum
qualquer ‘contacto’ parmenidiano que permita, por exemplo, que se ensinem por
um dos eixos ‘receitas’ do que pelo outro se fará: uma receita culinária, ou
como se programa uma máquina de lavar roupa ou a gravação de um filme com um
vídeo, se substitui um vidro numa janela, se diz como se vai da rua Alexandre
Herculano ao Terreiro do Paço, sei lá. São exemplos em que não é necessário
conhecer as essências das coisas que se utilizam, mas em que há uma certa
‘mesmidade’ entre o que a receita diz-pensa e o que se faz naquilo a que os
filósofos costumam chamar ‘realidade’. Ora, para tornar as coisas ainda mais
curiosas, tal mesmidade existe em qualquer língua em que a receita seja
dita-pensada, desde que seja a dos grafos do eixo cerebral de fonação.
10. Primeira etapa do
retorno a Parménides. O que ela implica é substituir os ‘exemplos’ tradicionais
sobre o conhecimento, que deixem de ser tinteiros ou bocados de cêra, coisas
que apenas se vêem, para se tornarem usos de ver, ouvir e mexer as coisas, usos
tais que sem eles o ‘sujeito’ não é sujeito de nada, porque nada sabe ou pode
ver, entender ou fazer. E que deixem de ser também exemplos de palavras soltas,
nem sequer de frases ou proposições ou enunciados, mas de discursos ou textos,
dos quais as receitas são um exemplo primário. Com a consequência assim de que
são tais usos (que vão até à poesia e aos mitos, não se trata aqui de nenhum
utilitarismo) são instituintes do sujeito, grafam nele as coisas da habitação
no mundo que lhe permitem ser-no-mundo, como dizia Ser e Tempo. Quando pego num garfo e numa
faca à mesa, ou num sabonete na banheira, ou ligo a chave do motor de arranque
do meu carro, e faço estes gestos quase mecanicamente, não sou um ‘sujeito’ separado desses ‘objectos’, só sou
sujeito desses gestos porque os aprendi: foi essa aprendizagem que me tornou
‘sujeito que diz pensa usa os objectos da realidade’. Poder-se-á objectar que
este retorno a Parménides é curto, que estes usos de que falo cabem muito bem
no que Nietzsche chama “antromorfismos, uma soma de relações humanas [...]
que, após um longo uso, parecem a um povo firmes, canónicas e constrangedoras.
[...] O homem esquece seguramente que é assim no que lhe diz respeito; mente
inconscientemente da maneira designada e segundo costumes centenários, e
precisamente graças a essa inconsciência e a esse esquecimento, vem ao
sentimento da verdade”. Aceito a objecção, não sem sublinhar que esse esquecimento
é, tal como a dissimulação enquanto ficção, uma descoberta filosófica deste
texto: eu não posso falar, em meu nome digamos, tendo consciência do que digo e
de que sou eu que o digo, senão por ter esquecido absolutamente as primeiras
experiências de fala e de designação, fossem de ‘folhas’, fossem outras
quaisquer, e assim identificar o não-idêntico nos usos de cada dia. Após o recurso
a Changeux, não se trata já duma ‘objecção’ mas dum argumento positivo que
descobre aquilo em que ninguém atentara antes de Nietzsche (imagino eu).
11. Vamos então ao
exemplo do camelo e do mamífero. “Se alguém esconde uma coisa atrás dum
arbusto, e procura nesse lugar preciso e a encontra, não há nada a louvar
nessa investigação e nessa descoberta: todavia é o que se passa com a
investigação e a descoberta da ‘verdade’ no domínio da razão. Quando eu dou a
definição do mamífero e declaro, depois de ter examinado um camelo, ‘eis um mamífero’,
é certo que uma verdade veio à luz do dia, mas ela é de valor limitado, quero
dizer que ela é inteiramente antropomórfica e não contém um só ponto que seja
‘verdadeiro em si’, real e válido universalmente, abstraindo do homem”.
Trata-se dum argumento típico da querela nominalista contra os ‘realistas’
medievais, aonde se davam definições e se observavam as coisas para ver se
correspondiam ou não a essas definições. É possível que este argumento tenha
valido entre 1350 (morte de Occam) e digamos 1950 a 70, época de ouro da
biologia molecular. A descoberta laboratorial do ADN e da sua mesmidade em todas
as células dum dado organismo e a quase mesmidade em todos os indivíduos da
espécie dos camelos, e um pouco menos quase em todos os mamíferos, etc., esta
descoberta deita por terra este argumento, permitindo falar de verdade
científica. Quer dizer que o programa genético é a essência duma espécie? Não
creio que se possa dizer assim, já que creio que a biologia moderna funciona
fora da oposição essência / acidentes do aristotelismo (e não digo de
Aristóteles, porque me palpita que uma operação de transplante da biologia
contemporânea nos textos da Physica de Aristóteles poderia produzir algumas
surpresas na nossa compreensão dos conceitos dela). Mas as técnicas de
engenharia genética mostram bem como o discurso destas ciências chegou a uma
‘verdade’ dos seres vivos, a algo de “‘verdadeiro em si’, real e válido
universalmente, abstraindo do homem”. Segunda etapa do retorno a Parménides.
Não terá o texto já respondido a ela com os argumentos kantianos sobre espaço,
tempo e números do final do seu primeiro capítulo? Conceda-se, apenas para que
se possa aceitar o desafio mais difícil de todos, o da verdade filosófica do
tal edifício de conceitos erigido sobre a água corrente.
Paradoxo da verdade filosófica
12. Observe-se que
nesta destruição do argumento nominalista pelo ADN há algo de paradoxal em
termos de verdade filosófica, já que a biologia dá razão aos ‘realistas’ mais
ou menos vencidos há seis séculos e tal, mas só lha pode dar por eles terem
sido derrotados: isto é, foi necessária a verdade nominalista e a posterior
representação mental para que a ciência moderna e portanto também a biologia
molecular fossem possíveis. O que significa que a questão duma ‘verdade
filosófica’ não é a ser colocada apenas em termos de tal ou tal discurso,
paradigma ou argumento filosófico, serem verdadeiros, mas dos próprios ‘erros
históricos’ da filosofia greco-europeia, como a contradição entre ‘realismo’ e
‘nominalismo’, fazerem parte dessa ‘verdade’.
13. Seja uma mão-cheia
de conceitos filosóficos tirados do próprio texto de Nietzsche: teoria do
conhecimento, sistema, natureza, excepção, intelecto, filósofo, pensamento,
existência, ilusão, valor, meio de conservação, forma, sensação, excitação,
sentido moral, consciência, pulsão de verdade, designação, leis da verdade,
palavras, correcto, convenção, substituições, inversões, sociedade,
conhecimento puro, expressão adequada, substância, coisa em si, essência. Não
são nomes de coisas que se usem, fazem parte dos usos escolares de textos que,
durante muitos dos séculos da longa história do Ocidente, ficaram às margens
das sociedades e ainda hoje, se se der este texto de Nietzsche a ler a muitos
licenciados de faculdades científicas e técnicas, a maior parte provavelmente
não o conseguirá ler até ao fim. Qualquer estudante de filosofia tem
experiência de ver os seus amigos de outras áreas se admirarem com termos que
se lhes tornaram mais ou menos familiares, e até por vezes de se rirem da
inutilidade óbvia de andar a perder tempo com tais abstracções que quase
ninguém compreende. Para não falar dos docentes de filosofia, especializados
uns em fenomenologia ou heideggerianismo, outros em idealismo alemão e outros
ainda em filosofia analítica, sem perceberem grande coisa do que tanto
interessa aos seus vizinhos.
14. O espanto de
Nietzsche sobre o edifício dos conceitos erigido sobre água corrente diz
respeito, não a cada um destes conceitos, mas ao tecido deles em argumentação,
como ele próprio está escrevendo, que compara aos “fios de aranha, assaz fina
para ser transportada com a onda, assaz sólida para não ser dispersa ao sopro
de qualquer vento”. E no contexto desta admiração várias vezes se lhes atribui
a frieza das matemáticas, a rigidez, a conotação da morte (conceito em osso,
columbarium romano[8]): o extremo
oposto das metáforas artísticas que o texto preza, que já Aristóteles elogiara
por não se aprenderem com ninguém, serem devidas à boa natureza dos poetas. Não
será justamente a longa transmissão destes conceitos ao longo dos tempos, de
mestres para discípulos, além da morte se mantendo tão severas e rigorosas
(“rigor mortis”, diz-se em medicina legal da primeira rigidez cadavérica), que
justifica tais qualificações tradicionais (que irritam sobremaneira os
matemáticos)? Ou seja: que ‘material’ é este, com que os homens da verdade,
sábios e filósofos, edificam estavelmente sem alicerces? Ou: como é que é possível lermos
hoje um texto como este, passados 130 anos da sua escrita, inacabado, lê-lo nas
suas fulgurâncias e fragilidades?
Onde é que há conceitos filosóficos?
15. A resposta passa
por outra questão: aonde, fora dos especialistas de filosofia, estão estes
conceitos? Em que outros usos, que nem os do dia a dia acima evocados nem os
dos poucos especialistas que somos nós? A resposta é um tanto sociológica: ide
ver os manuais das ciências e das técnicas, ide ver os códigos dos juristas,
ide ler os textos das administrações dos grandes bancos e empresas,
universidades, conselhos de ministros, as crónicas dos jornais e revistas.
Encontrar-se-á nesses textos, além da lista de oposições de que partimos (1.2),
grande quantidade de conceitos que só lá estão por terem sido coisa da discussão
filosófica, grega, medieval, europeia: se se os tirarem, prevejo que os textos
de tão esburacados se tornem ilegíveis. Em termos de Kuhn: os paradigmas de
todas as grandes instituições do Ocidente, desde as ciências até às religiosas
e porventura às desportivas, são exemplos desses edifícios conceptuais
erigidos sobre água corrente. Não são ‘argamassa’: é porque os usos
profissionais dos que em tais instituições trabalham, como nós também fazemos
aqui nesta escola, foram previamente instituidos por esses conceitos nos
liceus e universidades onde, como se diz, ‘se formaram’. Terceira etapa do
retorno a Parménides: tais edifícios conceptuais só funcionam porque dizem o
‘ser’ das instituições da civilização moderna, estas só são edifícios por via
desses textos que pensam dizem os seus usos especializados, em que juristas,
técnicos, cientistas, administradores e ‘tutti quanti’ fazem filosofia como
Mr. Jourdain fazia prosa.
16. E que ‘verdade’
terá um tal edifício, que, se justamente supõe uma longa história de definições
e argumentos, funciona hoje para quem ignora umas e outros (todos nós para a
maioria dos casos) ? Uma ‘verdade pragmática’, digamos, já que necessária
à reprodução dessas instituições sociais. Não ‘absoluta’, é claro, já que
estranha a priori
a Chineses e outras gentes de civilizações não ocidentais. Relativa, pois, isto
é, relativa à nossa história académica, à verdade inaugurada por Parménides,
como se tentou dizer.
17. A tal indagação sociológica aos
textos dessa instituição, a esburacá-los de todos os termos que tenham sido
objecto de definição e discussão filosófica no passado é coisa que pode ser
feita, haverá porventura metodologias que eu não conheço que o permitam, e os
computadores facilitariam. Ao Nietzsche deste Sobre a verdade e a mentira no
sentido extra-moral,
que espanto não provocaria uma tal verificação da verdade da sua espantosa e espantada
afirmação: “há que admirar o homem por ser um pujante génio da arquitectura
que conseguiu erigir sobre a água corrente um edifício conceptual indefinidamente
complicado”. Tratava-se dum elogio da filosofia. O elogio de quem tenta e
falha o primeiro passo para encetar a sua desconstrução.
[1] Comunicação
ao Colóquio realizado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 10 e
11 de Maio de 2001 Nietzsche para o século XXI, retomando vinte anos
depois a leitura que fizera deste texto de Nietzsche em Leituras de
Aristóteles e de Nietzsche. A Poética. Sobre a Verdade e a Mentira, Gulbenkian,
1994.
[4] “As
categorias de Aristóteles são ao mesmo tempo de língua e de pensamento: de
língua enquanto elas são determinadas como resposta à questão de saber como o
ser se diz
(legetai);
mas também como se diz o ser, como é dito o que é, enquanto é tal como ele
é: questão de pensamento, o pensamento, a palavra ‘pensamento’ que Benveniste
utiliza como se a sua significação e a sua história fossem óbvias, não tendo em
todo o caso nunca querido dizer nada fora da sua relação ao ser, à verdade do
ser tal como ele é e enquanto é (dito). O ‘pensamento’ – o que vive sob esse
nome no Ocidente – nunca poude surgir ou anunciar-se senão a partir duma certa
configuração de noein, legein, einai e dessa estranha
mesmidade de noein e de einai de que fala o poema de
Parménides” (J. Derrida, “Le supplément de copule, La philosophie devant la
linguistique”, Marges, de la Philosophie, Minuit, 1972, p. 218
(há trad. port. na Rés), debate célebre com o grande linguista E. Benveniste,
que, em “Catégories de pensée et catégories de langue” (Problèmes de
Linguistique générale), se propôs ler a lista das dez categorias de
Aristóteles como um bom “documento” para demonstrar que essas célebres
categorias de pensamento não são senão categorias da língua grega.
[5] Gerber,
A linguagem como arte, e Volkmann, Exposição sistemática da
retórica dos Gregos e dos Romanos (citados por Lacoue-Labarthe, “Le détour
(Nietzsche et la Rhétorique)”, Poétique, nº 5, Rhétorique et Philosophie, 1971, pp.
53-76).
[6] Porque uma
camada do seu texto padece, aliás confessadamente, da representação clássica.
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