“Não é necessária fé em Deus, basta a fé nas
coisas criadas, que consente que nos movamos entre os objectos persuadidos de
que eles existem, convencidos da irrefutável realidade da cadeira, do
guarda-chuva, do cigarro, da amizade”.
1. Esta citação de Cláudio Magris do Danúbio[1] iluminou-me sobre o meu percurso de vida, como
raramente me sucede.
2. Tive sempre alunos para apreciarem o meu
ensino, mas constatei que quase sempre os melhores tinham vindo à filosofia por
razões de ordem existencial, o que os levava a preferir, em vez das minhas
preocupações filosóficas com ciências e civilização, alianças com literatura e
outras artes, de que eu era demasiado ignorante para que o meu ensino lhes
fosse útil. É que eu não viera à filosofia por razões existenciais, essas consumira-as
jovem, se dizer se pode, na minha adesão muito forte ao cristianismo, que deste
nem sequer as questões filosóficas de ética me sobraram.
3. É certo que o autor desce das coisas aos
objectos, as ‘coisas criadas’ são ilustradas bizarramente com uma cadeira, um
guarda-chuva e um cigarro, e com uma não-coisa, a amizade (que foi o tema do
primeiro texto que publiquei). Esses ‘objectos’ dificilmente podem ser
considerados ‘coisas criadas’, a não ser pelo marceneiro e outros fabricantes.
O que me iluminou fez pois um deslocamento dos exemplos, para o que excitou
sempre a admiração de Aristóteles, os vivos que nascem e se alimentam e crescem
e morrem, os humanos que além disso aprendem usos e os ensinam, entre os quais
as falas e os textos, as sociedades que assim fazem muito lentamente história.
O que me fascinou foi o movimento autónomo dessas coisas como sua ‘criação’,
indeterminadas e doadas por outras igualmente indeterminadas, desde a luxúria
das plantas – desmedidas em ramos, folhas, flores, frutos – sem saírem do seu
lugar de raiz até ao enigma dos humanos, de cada um em seu rosto e habilidade,
dos menos dotados aos que achamos geniais. Essa autonomia é doada por uma heteronomia
que se retira para que a autonomia não seja vã, mas doada por iguais em
espécie, não por um demiurgo.
4. E o que me revelou Cláudio Magris? Que a minha
‘fé’ actual, o que da antiga se fez paixão vital, assentava nessa compreensão
do movimento autónomo das coisas em suas alianças e rivalidades, que dessa
compreensão recebera uma serenidade – que chamaria ‘liberal’ – perante o que
sucede, em que tão importante é o que há que fazer como deixar que o suceder se
faça. Que encontrara aí, sem saber que o procurara, as minhas razões de ordem
existencial. Por isso o ‘criador’ da ontoteologia (o que determina as ‘coisas
criadas’) se despegou lentamente sem custo, deixando-lhe apenas o rasto no
rosto vulnerável, como Levinas nos ensinou. A fecundidade dos santos.
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