segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Geometria, Copérnico, Desconstrução



1. A desconstrução é o pensamento impossível segundo o qual é a diferença entre ‘substâncias’ – sonoras, por exemplo, ou moleculares – que gera ‘substâncias’: impossível porque pretende que na ‘origem’ está sempre a repetição (não há origem) e que a repetição é fecunda; neste sentido, a desconstrução é uma revolução copérnica do saber ocidental. Com efeito, o geómetra e astrónomo polaco é um momento de viragem importante da desconstrução, que veio a excluir do saber a Physica de Aristóteles, o filósofo da ‘substância’ (ousia). É em torno desta questão que se vai divagar um pouco.
2. Segundo uma das primeiras páginas da De la grammatologie de Derrida, a geometria – cujo papel na filosofia grega bem marcara a injunção de que o ignorante dela não podia entrar na Academia (como um não melómano num concerto de música clássica não ‘está’ no concerto) – a geometria era um estorvo ao logocentrismo: não lhe bastava a voz, eram também necessárias as mãos, a ‘escrita’ das suas figuras, dirá Newton[1]. Mas das mãos só os escravos ou servos se sabiam servir, não os pensadores, mas sabiam também delas os geómetras e os astrónomos, que tinham mãos para medir com os instrumentos que fabricavam ou faziam fabricar. A diferença entre eles não dizia respeito à medida, mas ao que se media, uns a terra (geo), outros os astros dos céus. E essa diferença é esbatida de Copérnico a Newton, a terra tornada um astro entre os outros do sistema planetário em torno do sol, a nova física newtoniana sendo simultaneamente astrofísica.
3. Ora, o que é uma medida? Uma diferença convencionada como unidade da dimensão que se mede, metro ou pé, tanto faz quanto aos resultados, como enuncia claramente Galileu ao medir o tempo em peso de água que escorre durante o percurso duma bolinha que corre por um plano inclinado: as “diferenças e proporções” são as mesmas, em segundos ou em gramas de água[2]. E como isto é válido de qualquer medida em qualquer dimensão ‘substancial’, o que a geometria vai trazer ao laboratório da nova ciência é um conhecimento de diferenças entre ‘substâncias’, que estas só serão conhecidas quando a tabela periódica de Mendleiev nos der as diferenças entre átomos pelos números de protões e neutrões, que sobem de 1 para o átomo de hidrogénio, 2 hélio, 6 carbono, 8 oxigénio, etc, até aos com mais de 100 protões e neutrões, o 112 sendo o copernício, descoberto em 1996. Ou seja, os átomos de que são feitos todas as substâncias do universo classificam-se como 1, 2, 3, 4, 5, [...] 100, [...] 118... É algo de extraordinário, nestes tempos relativistas, há uma base de segurança científica deslumbrante quanto ao que chamamos matéria. A incerteza vem quanto às quantidades, há átomos superabundantes, outros raros, os últimos da tabela são instáveis, os compostos são extremamente variáveis, ainda mais quando se chega à bioquímica ou química orgânica. Mas a tabela periódica assenta na certeza dos chamados números naturais, os dos dez dedos das nossas mãos, da dúzia de laranjas ou de quarenta vacas leiteiras, os números que se somam ou subtraem sem erro, em qualquer lugar onde se precise de quantificar. Ou de medir, e aí muitas vezes as contas não batem certas sem décimas ou mesmo números irracionais. Mas o que importa é que os números e os sinais das suas operações, somar ou diminuir ou igual a, é outra abordagem – exacta – das coisas do mundo do que as palavras alfabéticas das nossas escritas.
4. Ora, a física e a química, incluindo a bio-, é nesta abordagem numérica que se fazem, na quantidade das medidas laboratoriais e não nas qualidades do ‘substancial’. O que implica que essas ciências não se adequam a priori ao que reconhecemos habitualmente dos fenómenos. Como mostra um tubo de vidro que havia no Pavilhão do Conhecimento há alguns anos, onde se pode alternar o vácuo com o ar e ver-se uma pena e um objecto metálico (não me lembro bem) caírem em simultâneo no vazio, segundo as leis da física, e a pena ser muito mais vagarosa no ar, segundo a nossa experiência quotidiana. A fenomenologia que busca descrever os fenómenos encontra-se numa posição dúbia, a física não lhe deixa confiar nos seus próprios olhos. E é justamente o grande escândalo do heliocentrismo de Copérnico, de Kepler, de Galileu e de Newton: ele diz-nos que a verdade da ciência é o contrário do que os nossos olhos vêem. Há escândalo em termos aceitado essa ‘tese’ na escola e com ela a desconsideração do nosso olhar, que é com o tacto uma das maneiras fundamentais de sabermos do nosso ser no mundo, da nossa avaliação do que se passa fora de nós, de sabermos justamente do ‘substancial’ das coisas; escândalo ainda de não ser algo que se discuta ao menos em termos filosóficos, epistemológicos, que, acordado que ando há mais de 60 anos, nunca dei por um tal debate sobre o que se pode dizer serem os custos humanos da desconstrução da oposição entre o Céu e a Terra, sobre a qual se apoiaram as religiões durante milénios mas também as ‘razões’ que as desmitologizaram, quer a da filosofia grega, quer a dos profetas bíblicos. Foram essas ‘razões’ que vieram a ser por sua vez desmitologizadas pela nova ‘razão’.
5. Nem Copérnico nem Galileu demonstraram a verdade do heliocentrismo, porque o geocentrismo a ser criticado faz parte da verdade dessa demonstração, como argutamente escrevia Cornelius Castoriadis no “Organum” da Encyclopédia Universalis: “a verdade da aparência geocêntrica é um ingrediente da verdade heliocêntrica”. As medidas astronómicas são feitas a partir da terra sobre o que aparece aos telescópios como o itinerário do sol (“o sol anda e desanda”). A demonstração só foi feita por Newton recorrendo às leis de Kepler, das relações entre as áreas dos percursos das elipses dos planetas em torno do sol e os tempos desses percursos, e demonstrando-as para outros planetas do que a terra, podendo em seguida mostrar como elas correspondem ao heliocentrismo e negam o geocentrismo. Ou seja, a demonstração (kepleriana) é de tipo geométrico e não tem em conta a tese (newtoniana) das forças da gravidade entre todos, sol e planetas, isto é, não fez intervir a Mecânica, que teria em conta as ‘substâncias’ dos astros. Estará aí uma razão escondida de, mais de três séculos depois, ainda não termos compreendido o que Newton não compreendeu ("não ficiono nenhuma hipótese"), como é que é a força da gravidade.
6. Há uma excepção ao 'não debate' a que aludi no § 4: Husserl entende-se mal com Galileu na sua Origem da Geometria, o que parece ter a ver com o heliocentrismo, um pequeno texto da mesma época chamado A Terra não se move coloca a economia da percepção antes da demonstração astrofísica, como a citação de Castoriadis permite entender; mas também pode depender da dificuldade que a história da geometria que Husserl procura tem com o lugar dela na invenção do laboratório, já que este justamente, sendo as medidas que contam nele, dispensa fora dele as percepções ‘substanciais’. Paradoxo aqui: é a substancialidade (empírica) da coisa vista que a epochê suspende, abrindo à suspeita heideggeriana da ontoteologia, parte activa da desconstrução dita “destruição do substancialismo”.
7. A dificuldade em relacionar Copérnico com Derrida vem das imensas leituras que haveria que fazer dos textos que vão lentamente dando conta da expansão do heliocentrismo nas gerações subsequentes de intelectuais, vem da nossa impossibilidade de saber o que cada geração não sabe ainda e nós, não só sabemos, como não podemos avaliar o lugar desses saberes na nossa geologia gnosiológica, nos estratos que se vão sobrepondo com a história mas também penetrando uns nos outros em maneiras metamórficas. Por exemplo, Descartes foi adepto de Copérnico? céptico, creio, em relação a Galileu e muito mais critico do que este em relação a Aristóteles. E Galileu, por sua vez, que herança tem da viragem nominalista que separa as coisas do mundo, singulares, das cabeças que lhe atribuem essências, separação essa que as res cogitans e as res extensas exibem, mas não porventura tão fortemente no mente concipio galilaico ("concebo mentalmente ummóbil deixado a si mesmo"), que não terá forçosamente que ser ‘substancial’ como a res das ‘ideias’ cartesianas. O ponto é que, ainda que tal não seja explicitado, as “diferenças e proporções” dos laboratórios de física e a sua correlação com o heliocentrismo já vão desconstruindo, como a Inquisição logo percebeu à sua maneira teológica, mas nós porventura, os que lemos Heidegger e Derrida, ainda não demos por ela.

8. E Copérnico? sabendo que tinha escrito uma bomba, deixou-a prudentemente para ser publicada só após a sua morte, para dar a esta o tempo de ser ‘natural’, de doença. A bomba começou por alguns intelectuais e entre eles foi prosseguindo após Galileu, os livros, a escola. Mas veio a estalar com fragor em 1969, quando muitos milhões de humanos viram alguns americanos, gente que não havia no tempo de Copérnico, chegar à Lua, habituando-se a ver as fotografias da Terra como um astro celeste, um planeta. Não é arriscado ver nessa época a secularização a acelerar-se: o concílio Vaticano II tendo mandado que a liturgia católica se fizesse nas línguas dos que assistiam, como faziam os protestantes, para uns e para os outros a leitura dos textos bíblicos e a oração “Pai nosso que estais nos céus” tornaram-se um anacronismo inassimilável. Foi como se a desconstrução da tenaz oposição Céu / Terra se desse a ‘ver’ nos seus efeitos técnico-espectáculos.



[1] “A Geometria pertence em algo à Mecânica, já que é desta que depende a descrição das linhas rectas e dos círculos sobre as quais ela é fundada. É verdadeiramente necessário que aquele que se quer instruir em Geometria saiba descrever [desenhar] essas linhas antes de aprender as primeiras lições dessa ciência : depois é que se lhe ensina como é que os problemas se resolvem por meio dessas operações. Vai-se buscar à Mecânica a solução deles : a Geometria ensina o seu uso, e glorifica-se do magnífico edifício que ela eleva indo buscar tão pouco fora dela. A Geometria é portanto fundada sobre uma prática mecânica, e ela não é mais nada senão um ramo da Mecânica universal que trata e demonstra a arte de medir”. A transformação da Physica (sobre os vivos) que ele está a propor, a nossa Física (sobre os inertes), como “Filosofia natural”, é a aliança entre Geometria e Mecânica, medições e forças respectivamente.
[2] “As quantidades de água assim recolhidas eram pesadas de cada vez com uma balança muito sensível, e as diferenças e proporções entre os pesos davam-nos as diferenças e proporções entre os tempos.

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