1. A desconstrução é o pensamento
impossível segundo o qual é a diferença entre ‘substâncias’ – sonoras, por
exemplo, ou moleculares – que gera ‘substâncias’: impossível porque pretende
que na ‘origem’ está sempre a repetição (não há origem) e que a repetição é
fecunda; neste sentido, a desconstrução é uma revolução copérnica do saber
ocidental. Com efeito, o geómetra e astrónomo polaco é um momento de viragem
importante da desconstrução, que veio a excluir do saber a Physica de Aristóteles, o filósofo da ‘substância’ (ousia). É em torno desta questão que se vai divagar um
pouco.
2. Segundo uma das primeiras páginas
da De la grammatologie de
Derrida, a geometria – cujo papel na filosofia grega bem marcara a injunção de
que o ignorante dela não podia entrar na Academia (como um não melómano num
concerto de música clássica não ‘está’ no concerto) – a geometria era um
estorvo ao logocentrismo: não lhe bastava a voz, eram também necessárias as
mãos, a ‘escrita’ das suas figuras, dirá Newton[1].
Mas das mãos só os escravos ou servos se sabiam servir, não os pensadores, mas
sabiam também delas os geómetras e os astrónomos, que tinham mãos para medir
com os instrumentos que fabricavam ou faziam fabricar. A diferença entre eles não
dizia respeito à medida, mas ao que se media, uns a terra (geo), outros os astros dos céus. E essa diferença é
esbatida de Copérnico a Newton, a terra tornada um astro entre os outros do
sistema planetário em torno do sol, a nova física newtoniana sendo
simultaneamente astrofísica.
3. Ora, o que é uma medida? Uma
diferença convencionada como unidade da dimensão que se mede, metro ou pé,
tanto faz quanto aos resultados, como enuncia claramente Galileu ao medir o
tempo em peso de água que escorre durante o percurso duma bolinha que corre por
um plano inclinado: as “diferenças e proporções” são as mesmas, em segundos ou
em gramas de água[2]. E como isto
é válido de qualquer medida em qualquer dimensão ‘substancial’, o que a
geometria vai trazer ao laboratório da nova ciência é um conhecimento de
diferenças entre ‘substâncias’, que estas só serão conhecidas quando a tabela
periódica de Mendleiev nos der as diferenças entre átomos pelos números de protões
e neutrões, que sobem de 1 para o átomo de hidrogénio, 2 hélio, 6 carbono, 8 oxigénio, etc, até aos com mais de 100 protões e neutrões, o 112 sendo o
copernício, descoberto em 1996. Ou seja, os átomos de que são feitos todas as
substâncias do universo classificam-se como 1, 2, 3, 4, 5, [...] 100, [...]
118... É algo de extraordinário, nestes tempos relativistas, há uma base de
segurança científica deslumbrante quanto ao que chamamos matéria. A incerteza
vem quanto às quantidades, há átomos superabundantes, outros raros, os últimos
da tabela são instáveis, os compostos são extremamente variáveis, ainda mais
quando se chega à bioquímica ou química orgânica. Mas a tabela periódica
assenta na certeza dos chamados números naturais, os dos dez dedos das nossas
mãos, da dúzia de laranjas ou de quarenta vacas leiteiras, os números que se
somam ou subtraem sem erro, em qualquer lugar onde se precise de quantificar.
Ou de medir, e aí muitas vezes as contas não batem certas sem décimas ou mesmo
números irracionais. Mas o que importa é que os números e os sinais das suas
operações, somar ou diminuir ou igual a, é outra abordagem – exacta – das
coisas do mundo do que as palavras alfabéticas das nossas escritas.
4. Ora, a física e a química, incluindo a bio-, é
nesta abordagem numérica que se fazem, na quantidade das medidas laboratoriais
e não nas qualidades do ‘substancial’. O que implica que essas ciências não se
adequam a priori ao que
reconhecemos habitualmente dos fenómenos. Como mostra um tubo de vidro que
havia no Pavilhão do Conhecimento há alguns anos, onde se pode alternar o vácuo
com o ar e ver-se uma pena e um objecto metálico (não me lembro bem) caírem em
simultâneo no vazio, segundo as leis da física, e a pena ser muito mais
vagarosa no ar, segundo a nossa experiência quotidiana. A fenomenologia que
busca descrever os fenómenos encontra-se numa posição dúbia, a física não lhe
deixa confiar nos seus próprios olhos. E é justamente o grande escândalo do
heliocentrismo de Copérnico, de Kepler, de Galileu e de Newton: ele diz-nos que
a verdade da ciência é o contrário do que os nossos olhos vêem. Há escândalo em termos aceitado essa ‘tese’ na
escola e com ela a desconsideração do nosso olhar, que é com o tacto uma das
maneiras fundamentais de sabermos do nosso ser no mundo, da nossa avaliação do
que se passa fora de nós, de sabermos justamente do ‘substancial’ das coisas;
escândalo ainda de não ser algo que se discuta ao menos em termos filosóficos,
epistemológicos, que, acordado que ando há mais de 60 anos, nunca dei por um
tal debate sobre o que se pode dizer serem os custos humanos da desconstrução
da oposição entre o Céu e a Terra, sobre a qual se apoiaram as religiões durante milénios mas também as
‘razões’ que as desmitologizaram, quer a da filosofia grega, quer a dos
profetas bíblicos. Foram essas ‘razões’ que vieram a ser por sua vez
desmitologizadas pela nova ‘razão’.
5. Nem Copérnico nem Galileu demonstraram a
verdade do heliocentrismo, porque o geocentrismo a ser criticado faz parte da
verdade dessa demonstração, como argutamente escrevia Cornelius Castoriadis no
“Organum” da Encyclopédia Universalis: “a verdade da aparência
geocêntrica é um ingrediente da verdade heliocêntrica”. As medidas astronómicas
são feitas a partir da terra sobre o que aparece aos telescópios como o itinerário
do sol (“o sol anda e desanda”). A demonstração só foi feita por Newton recorrendo
às leis de Kepler, das relações entre as áreas dos percursos das elipses dos planetas
em torno do sol e os tempos desses percursos, e demonstrando-as para outros
planetas do que a terra, podendo em seguida mostrar como elas correspondem ao
heliocentrismo e negam o geocentrismo. Ou seja, a demonstração (kepleriana) é
de tipo geométrico e não tem em conta a tese (newtoniana) das forças da
gravidade entre todos, sol e planetas, isto é, não fez intervir a Mecânica, que
teria em conta as ‘substâncias’ dos astros. Estará aí uma razão escondida de, mais de três séculos depois, ainda não termos compreendido o que Newton não compreendeu ("não ficiono nenhuma hipótese"), como é que é a força da gravidade.
6. Há uma excepção ao 'não debate' a que aludi no § 4: Husserl entende-se mal com Galileu na
sua Origem da Geometria, o que
parece ter a ver com o heliocentrismo, um pequeno texto da mesma época
chamado A Terra não se move coloca a economia da percepção antes da demonstração astrofísica, como
a citação de Castoriadis permite entender; mas também pode depender da dificuldade
que a história da geometria que Husserl procura tem com o lugar dela na
invenção do laboratório, já que este justamente, sendo as medidas que contam nele, dispensa
fora dele as percepções ‘substanciais’. Paradoxo aqui: é a substancialidade
(empírica) da coisa vista que a epochê suspende, abrindo à suspeita heideggeriana da ontoteologia, parte activa
da desconstrução dita “destruição do substancialismo”.
7. A dificuldade em relacionar Copérnico com
Derrida vem das imensas leituras que haveria que fazer dos textos que vão
lentamente dando conta da expansão do heliocentrismo nas gerações subsequentes de
intelectuais, vem da nossa impossibilidade de saber o que cada geração não sabe
ainda e nós, não só sabemos, como não podemos avaliar o lugar desses saberes na
nossa geologia gnosiológica, nos estratos que se vão sobrepondo com a história
mas também penetrando uns nos outros em maneiras metamórficas. Por exemplo,
Descartes foi adepto de Copérnico? céptico, creio, em relação a Galileu e muito
mais critico do que este em relação a Aristóteles. E Galileu, por sua vez, que
herança tem da viragem nominalista que separa as coisas do mundo, singulares,
das cabeças que lhe atribuem essências, separação essa que as res cogitans e as res extensas exibem, mas não porventura tão fortemente no mente concipio galilaico ("concebo mentalmente ummóbil deixado a si mesmo"), que não terá forçosamente que ser ‘substancial’
como a res das ‘ideias’ cartesianas. O ponto é que, ainda que tal não seja
explicitado, as “diferenças e proporções” dos laboratórios de física e a sua
correlação com o heliocentrismo já vão desconstruindo, como a Inquisição logo
percebeu à sua maneira teológica, mas nós porventura, os que lemos Heidegger e
Derrida, ainda não demos por ela.
8. E Copérnico? sabendo que tinha escrito
uma bomba, deixou-a prudentemente para ser publicada só após a sua morte, para
dar a esta o tempo de ser ‘natural’, de doença. A bomba começou por alguns intelectuais
e entre eles foi prosseguindo após Galileu, os livros, a escola. Mas veio a estalar com fragor em
1969, quando muitos milhões de humanos viram alguns americanos, gente que não
havia no tempo de Copérnico, chegar à Lua, habituando-se a ver as
fotografias da Terra como um astro celeste, um planeta. Não é arriscado ver nessa época a secularização
a acelerar-se: o concílio Vaticano II tendo mandado que a liturgia católica se fizesse
nas línguas dos que assistiam, como faziam os protestantes, para uns e para os outros a leitura dos textos bíblicos e a oração “Pai
nosso que estais nos céus” tornaram-se um anacronismo inassimilável. Foi como se a desconstrução da tenaz oposição Céu / Terra se desse a ‘ver’ nos seus efeitos
técnico-espectáculos.
[1] “A
Geometria pertence em algo à Mecânica, já que é desta que depende a descrição
das linhas rectas e dos círculos sobre as quais ela é fundada. É
verdadeiramente necessário que aquele que se quer instruir em Geometria saiba
descrever [desenhar] essas linhas antes de aprender as primeiras lições dessa
ciência : depois é que se lhe ensina como é que os problemas se resolvem por
meio dessas operações. Vai-se buscar à Mecânica a solução deles : a Geometria
ensina o seu uso, e glorifica-se do magnífico edifício que ela eleva indo
buscar tão pouco fora dela. A Geometria é portanto fundada sobre uma prática
mecânica, e ela não é mais nada senão um ramo da Mecânica universal que trata e
demonstra a arte de medir”. A transformação da Physica (sobre os vivos) que ele está a
propor, a nossa Física (sobre os inertes), como “Filosofia natural”, é a aliança entre Geometria e
Mecânica, medições e forças respectivamente.
[2] “As
quantidades de água assim recolhidas eram pesadas de cada vez com uma balança
muito sensível, e as diferenças e proporções entre os pesos davam-nos as
diferenças e proporções entre os tempos”.
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