segunda-feira, 5 de outubro de 2015

A Verdade é relativa mas é a Lei da linguagem



Elíptica e relativa, a linguagem
A crença, base de todo o saber, pois se aprende de testemunhas
Ontoteologia da definição: saber além da crença, até ao universal, ao absoluto
Desconstruir a verdade ‘essencial’, desvelamento do texto singular; a psicanálise
Genealogia e conhecimento fenomenológico de possibilidades
A verdade como lei que fomenta a capacidade de dissimulação
O conhecimento dos movimentos, de Aristóteles à Fenomenologia gramatológica

Elíptica e relativa, a linguagem
1. Suponhamos uma pessoa numa sala que diz qualquer coisa: ‘pode ser o pão que está na mesa’. A quem ouvir a frase, destaca-se a presença do pão na mesa de tudo o resto do que há na sala, o pão veio na fala que o desvelou, diria Heidegger, trouxe-o à atenção daquele que ouviu e deixou-o ser nessa atenção. Mas simultaneamente todas as outras coisas da sala e da mesa, e até mesmo o tamanho do pão, se é de hoje ou já tem vários dias, ficam fora da atenção à presença, podendo uma nova fala trazer tal outra coisa. Qualquer fala tem esta característica de desvelar o que diz e deixar oculto, na penumbra, todo o não dito, na sala ou em outro lugar e momento; por finitude sua, ela escolhe da imensidade de coisas possíveis de dizer: a fala é elíptica, o que se chama ‘subjectividade’ radica-se na decisão do que fala em relação à amplitude do que pode dizer, qualquer que seja a consciência que se tem dessa decisão, que provavelmente só em ocasiões importantes se torna decisiva para quem fala e quem ouve. Há aqui uma relatividade elementar da linguagem, equivalente à das possibilidades dum carro em relação ao destino que o motorista lhe dá: é a relatividade de todos os que circulam numa cena de circulação.
2. Na suposição feita, o ouvinte pode verificar a asserção da frase, a sua ‘verdade’, olhando e até pegando no pão. Mas quando aquele que fala conta algo passado noutro lugar e momento, essa verificação não se pode fazer, trata-se dum testemunho, o ouvinte crê ou não no que ouve, já que o narrador pode ter visto o que diz ou apenas ouvido dizer, em qualquer dos casos pode enganar-se na memória que tem do que conta ou pode mentir deliberadamente, estas duas possibilidades relevando da sua posição ‘subjectiva’ de falante e multiplicam-se com as testemunhas da corrente do ‘ouvi dizer’.
3. Não se trata duma falha da linguagem em relação às suas possibilidades de dizer as coisas, o ser elíptica não é um defeito mas um limite que a torna possível (a escrita matemática, relativa embora a cada problema, não tem esse limite, ela que é exacta, mas tem outros, só serve para contas e medições, não para histórias e conversas). As falhas que haja são dos que falam, mas são uma positividade das línguas (ao contrário da matemática, onde são ‘erros’) já que permitem ficções, sonhos, invenções, conversas com controvérsias, amores e rivalidades. Tudo coisas relativas, é claro, mas, em termos políticos actuais, seguras – já que todos conhecem as regras das frases e as palavras comuns à tribo – e flexíveis, adequando-se às circunstâncias, como um carro à estrada e ao trânsito. Ou seja, a relatividade não empata com a maneira como a linguagem desvela as ‘coisas’, as traz nos seus nomes e verbos. Tanto quanto nos é possível saber, as línguas – segundo Saussure, imotivadas, diferentes segundo as tribos, sem determinação pela maneira ecológica de habitar – estão articuladas com os usos das unidades sociais a quem fornecem as receitas, o par receita / uso sendo essencial em toda a aprendizagem, o que implica que se aprende a falar com as coisas que as palavras dizem. A demonstração encontra-se nos quatro volumes das Mythologiques de Lévi-Strauss, cuja tese consistiu na descoberta de que a lógica dos mitos ameríndios, dos seus códigos narrativos (de histórias impossíveis) é a mesma dos seus usos, mormente culinários: o que chamou a “lógica das qualidades sensíveis”. A invenção das palavras é correlativa da invenção das técnicas e das regras sociais, dos usos e costumes, sem a separação ou oposição palavras / coisas própria à tradição filosófica ocidental. E é sem esta oposição que os garotos e as garotas aprendem a falar, como nós fizemos e continuamos a fazer, como atestam os dicionários que consultamos que dão como ‘significado’ das palavras uma descrição das coisas e gestos correspondentes, que é o que elas trazem às frases das falas e textos.

A crença, base de todo o saber, pois se aprende de testemunhas
4. Atenção: uso o termo ‘tribo’ no sentido da região social em que nascemos e aprendemos os primeiros usos e falas, hoje por regra a família e a escola infantil. Aprender a falar ouvindo outros que já sabem é assim entrar numa corrente de testemunhos dos falantes da tribo e adquirir, com a capacidade de falar por sua vez, a de verificar o que se diz e o que se ouve, a qual verificação vem depois do testemunho e da crença nele: é na base da crença no que ouvimos que falamos e esse processo continua a vida toda, já que estamos sempre a aprender e as possibilidades de verificação são a maior parte das vezes reduzidas, dado que a grande vantagem da linguagem é ela poder trazer-nos o que está fora do nosso alcance imediato, da nossa situação ‘aqui e agora’. Começa-se sempre por aprender por crença em testemunhos que reenviam a testemunhos ancestrais e não há maneira nenhuma de escapar a este assento do nosso saber, que, sendo relativo, é-o de todos os da mesma língua tribal. Enquanto língua dos usos e costumes, a sua relatividade adequa-se bem a eles, na sua reprodução quotidiana da tribo, torna possível a aprendizagem. O que põe questão não são as palavras das receitas que se fazem em gestos e rituais, mas a compreensão das coisas e dos humanos em suas qualidades, a abertura de possibilidades novas, lentas invenções que venham a gerar novos usos e costumes, a afinar os que há. Há palavras designando o que se não vê nem apalpa, mormente o que tem que se fazer e o que não se deve fazer, o que seja bem e o que se deve evitar por ser mal, deslocam-se palavras usuais para metáforas e outras figuras: todas as línguas têm já palavras dessas, polissemias literárias mais ou menos elaboradas, em mitos, contos, provérbios, canções, palavras que falam de coisas que vão além dos chamados cinco sentidos: o ‘sopro’ (pneuma) podendo dizer o ‘vento’ e a ‘respiração’, esta ligar-se à ‘vida’ dos vivos, dizer ‘aspirações’ dos humanos, mais tarde o ‘espírito’ como interioridade, próximo da ‘alma’.

Ontoteologia da definição: saber além da crença, até ao universal, ao absoluto
5. Estas palavras e outras regras das frases são suficientes aos saberes das tribos. Foi o aparecimento de textos escritos, das epopeias homéricas e outras poéticas gregas que veio colocar problemas de ‘verdades a ensinar’ aos Gregos do século V antes de Cristo, o século de Sócrates (morreu em 399). Esses textos, como também a teatralização das tragédias em Atenas, iam muito além das palavras designando coisas, pessoas, lugares e técnicas, já que faziam intervir crenças, motivações, questões éticas, que se tornaram debates em torno do que havia que ensinar aos jovens que começavam a poder ler esses textos e a questionar a partir deles. Foi aonde nasceu a filosofia, juntando-se à geometria e a outros saberes, dando origem a uma tradição do saber que consistiu na tentativa de ir além dos testemunhos e das crenças recebidas, cuja recusa ilustra o “só sei que nada sei” de Sócrates. A importância que este ganhou veio da sua invenção da operação de definição, destinada a ajudar os jovens com quem dialogava a definirem tal ou tal virtude de forma a serem capazes de a praticar interiorizando o ‘sentido definido’ a que chegassem, só que os textos em que Platão conta estas tentativas do mestre terminam sempre na dificuldade de o conseguirem, no impasse. Donde que ele seja levado a criar uma instituição de aprendizagem, uma escola, com o intuito de ajudar os jovens a conhecerem os eidê, as formas ideais definidas, do bem, do belo, do justo, das virtudes, eidê esses concebidos como eternos e imutáveis no céu divino, isto é, unívocos, univocamente verdadeiros, longe de todas as figuras poéticas e retóricas que essas palavras tinham nos textos. ‘Univocamente verdadeiras’ significa que a verdade das formas ideais era indiferente aos lugares e aos momentos, às circunstâncias (relativas) donde eram arrancadas e às opiniões de cada um, o que virá a ser dito ‘universal’ na tradição latina cristã, indiferente também às línguas e usos e costumes antropológicos, às tradições. A noção de Deus, misturando o Criador bíblico com o Demiurgo de Platão, o Primeiro Motor de Aristóteles, o Um de Plotino, adequou-se a este ‘universal’, caucionando a ‘verdade’ dos definidos filosóficos e depois também a dos dogmas teológicos.
6. Permita-se-me uma digressão sobre a noção de ‘universal’ (adjectivo), que não é grega, pela razão simples de que os gregos não se preocupavam com o que se passava com os povos bárbaros, o seu pensamento era ‘regional’ (Heidegger), kosmos sendo o mundo celeste, organizado e belo (donde ‘cosmético’). Costuma-se traduzir o kath’olon de Aristóteles por ‘universal’ quando de facto se trata nos seus textos de considerar o que quer que seja ‘segundo o todo’, o ‘geral’ duma tragédia, por exemplo, na Poética, cap. 17. O cristianismo é que propôs uma mensagem de salvação válida acima de todas as línguas e nações, universal assim, o que valeu que a Igreja fosse designada como ‘católica’, que então significou ‘universal’: foi a tradução desse ‘católico’ que deu nos autores cristãos do século V o termo universal como adjectivo (de que apenas haverá ocorrência em Quintilião, no sec. I). Escrevi sobre esta questão no e.book Da Natureza à Técnica, construção, desconstrução, reconstrução (capítulos 2 e 3).
7. Uma verdade universal, supra línguas e usos antropológicos, caucionada por um Deus, transcendente a esses usos antropológicos incluindo as línguas, atraindo para si as ‘almas’ inteligíveis, teve como consequência desligar o pensamento das línguas, por exemplo em Agostinho de Hipona – algo de inadmissível por Platão e por Aristóteles, em quem o pensamento é do logos, é discurso, como diz expressamente o Sofista. Assim se cristianizou a ontoteologia grega de forma radical: a noção de ‘verdade absoluta’ tem origem na teologia cristã donde passou à filosofia medieval e europeia. É típica a maneira como o Discurso do Método, após o Cogito, ergo sum, tem que passar pela existência e veracidade de Deus para poder chegar a ideias claras e distintas válidas para todos os outros (do que o ego do Cogito). Entre Kant, Hegel, Marx e Nietzsche se questionou este ‘absoluto’ e o seu Deus, assim como no último o seu ‘sujeito’: é flagrante a afirmação de que “o pensamento vem quando ele quer e não quando eu quero”, em que o ‘eu’ do sujeito é subordinado ao ‘pensamento’, como se se retomasse o dito do evangelho de João (cap. 4), “o vento sopra onde quer”, recusando que o ‘vento’ (pneuma) seja traduzido por ‘espírito’ e retornasse às línguas. Isto apesar das suas sintaxes, mal vistas pelo pensador alemão (logocentrismo!), apesar do seu ataque à razão socrática: “as redes da linguagem” em que ele crê o humano prisioneiro, as palavras que o filósofo tem que abandonar por outras suas (quem as entenderá? Wittgenstein demonstrou que não há língua privada, nem sequer para si, ver a tese do Manuel Lourenço). É que ele estava tentando a desconstrução da ‘verdade absoluta’, a proeminência da relação do som articulado à coisa sobre a diferença, em Sócrates intuía o prevaler da definição filosófica sobre a literatura e a sua polissemia textual.

Desconstruir a verdade ‘essencial’, desvelamento do texto singular; a psicanálise
8. A filosofia, assim como a teologia e as ciências, não podia exercer-se como pensamento fora de qualquer circunstância e sujeito sem as palavras ‘univocamente verdadeiras’ produzidas pela definição, arrancadas em grego ao contexto que as polissemizava, traduzidas em seguida em latim já como palavras do jargão escolar, sem curso fora dos textos gnosiológicos. Mas se Saussure tem razão no seu aforismo de que “na língua não há senão diferenças” entre sons e sua dupla articulação (diferenças de fonemas entre palavras vizinhas: certo e cento; diferenças de palavras na frase e nas outras frases do texto e do paradigma), há que concluir que as definições – sem cujo triunfo não haveria o Ocidente, para o melhor e o pior – não triunfaram de forma ‘absoluta’ como a definição preconizava, já que os contextos gnosiológicos se alteravam e as definições com eles, reabrindo-se o processo definitório, sem o quê não teria havido progresso do pensamento desde os Gregos até hoje, e logo de Platão para Aristóteles. Desconstruir significa – qualquer que seja a maneira como se procede, variável com os textos em leitura e as suas questões – indagar, em relação aos termos definidos, da fronteira deles com o contexto de escrita e depois de leitura em contextos historicamente diferentes, indagar da violência desse gesto de arrancar e de fixar um único sentido ‘verdadeiro’, restituir o contexto de escrita tanto quanto possível. É que justamente, quando se escreve ou fala, é no contexto que se desvela a verdade da coisa, donde vem, o que a sustenta como coisa que perdura, com quem/quê convive e por aí fora, tudo coisas ‘acidentais’ do ponto de vista da definição que busca a verdade de ‘essências’ de coisas da mesma espécie, tribo, língua... Esta verdade essencial, sem a busca da qual não teria havido o Ocidente que há, não se trata de ‘dizer mal da definição’, só se dá recobrindo a verdade singular das coisas antes de definidas. O desvelamento heideggeriano é o contraponto da definição socrática: por um lado, a espécie cavalar e por outro, tal cavalo desvelado no seu estilo peculiar.
falei da minha maneira de fazer leitura textual, semiótica dum só texto, de fazer desconstrução sem saber muito bem como é que Derrida a fazia (mas não creio que ninguém o imite, nem ele pretendia discípulos que o imitassem). As diferenças e as suas repetições, os códigos (Barthes, Lévi-Strauss), lidas para começar, como não pode deixar de ser, a partir da competência de falante do leitor, segundo as significações correntes das palavras, dicionários à mão, esses códigos permitem encontrar sentidos diferenciados para tais e tais palavras e expressões: é o jogo textual das diferenças em seus códigos que reproduz os ‘signifiés’ (Saussure) dessas palavras e expressões no texto, é o que a leitura busca restituir. Da significação corrente ao ‘signifié’ literário, o sentido nesse texto, nesse lugar do texto. E para quê se busca? Só se sabe quando se descobrir uma ilógica textual desses códigos, pondo em questão a ‘grelha’ que se foi construindo a partir dos dicionários, quando se chega a uma ‘contradição’ que abra para uma lógica escondida que se compreenderá ser o que dinamizou a escrita desse texto, a sua ‘verdade’, em suma. Foi assim que se me deram os textos do Evangelho de Marcos, da Poética de Aristóteles, do Sobre a Verdade e a Mentira de Nietzsche, encontrando coisas neles que ninguém lera antes (para não falar no 4º capítulo do Discurso do Método de Descartes, em Linguagem e Filosofia, anexo).
9. A psicanálise faz algo de parecido, uma semiótica do texto falado e sonhado dum paciente, cuja memória é um texto compósito de sedimentações temporais variadas segundo a incidência da lei social (lei da guerra e lei da verdade) que retém sofrimentos desse processo, impede que sejam falados por via de associações de ideias relaxadas em relação a essas leis. Buscam-se ilógicas que se repitam estruturalmente em momentos de ‘crise’ – engana-se, cala-se, denega o que disse, chora, ri, sei lá!, matéria dos sonhos que se tenta desvendar – onde o paciente dá a ler ao psicanalista o que ele próprio não sabe e que lhe atolhe as relações. Aliás, a psicanálise percebeu que a verdade pesa em todos os que somos seus ‘sujeitos’ e que é por isso que gostamos de rir, para alijar um pouco a carga. Foi o que Freud mostrou no livro de 1905, O dito espirituoso nas suas relações com o inconsciente, descobrindo que a verdade é a lei da linguagem.
10. Voltando à questão da verdade, ela em geral não se põe nos usos quotidianos, cuja verdade é a da respectiva receita. Quanto às narrativas de acontecimentos, os casos de mentira implicam ou omitir algum troço da narrrativa ou trocá-lo, por engano ou por mentira deliberada, e há nas diversas especializações hermenêuticas, jurídicas e policiais, regras de aproximação lógica a eventuais contradições, ainda aí sendo a verdade dos usos que orienta essas regras, creio (bastaria indagar junto de romances policiais), se for verdade (cá está!) que os acontecimentos, improváveis por definição, são feitos de aglomerados de usos que concorrem para a improbabilidade devido ao choque provocado pela diversidade de actores. Escrevi sobre estas questões em A conversa, linguagem do quotidiano (Presença, 1991).

Genealogia e conhecimento fenomenológico de possibilidades
11. O problema da verdade filosófica (além da questão do recuo da noção ontoteológica de ‘absoluto’, com a morte de Deus e o questionamento da oposição sujeito / objecto) é o da validade da operação de definição, quando se põe em questão a intemporalidade da ‘essência’ definida, como uma verdade estática indiferente à contingência dos textos em que ela é reproduzida. A história sendo o continente da contingência, da relatividade, e toda a definição sendo histórica, como tudo na vida, a operação de genealogia (Nietzsche, Foucault) corresponde justamente à averiguação dessa história e a avaliá-la, não necessariamente para a negar, mas para a relativizar nessa historicidade. Mesmo um motivo teológico como “isto é o meu corpo” pode ser avaliado nas transformações que sofreu historicamente, como tentei em texto anterior.
12. É em relação às ciências que a questão é susceptível de reflexão, já que a noção de verdade é nelas capital e a sua relativização provoca mossas filosóficas (e fundamentalismos também). É frequente hoje haver cientistas que se contentam com a noção de ‘verdades provisórias’ que seriam no fundo erros adiados de verdades futuras, igualmente provisórias. Ora, se ‘verdade relativa’ me parece inerente ao motivo de verdade enquanto histórico, creio que ‘verdade provisória’ atinge a própria noção de ‘verdade’, a qual é indispensável à própria busca científica: ninguém se pode contentar – receber um prémio Nobel – com uma verdade provisória, à maneira dos recordes em atletismo. Nestes, á o atleta que é magnificado, mas nas descobertas de Newton é a verdade física que conta, relativamente à história, da filosofia e da física ocidental, bem como ao contexto dos seus laboratórios, das suas técnicas de medição. Os resultados experimentais preenchem as variáveis que ‘verificam’ a equação física respectiva e essa ‘veri’ficação continua válida, ainda que o discurso teórico conheça alterações, como a física newtoniana continua verdadeira para muitas especialidades de engenharia. O busillis desta questão está no determinismo que se acrescentou ao triunfo destas novas e emocionantes verdades no século XVIII, na noção de previsão que a verdade científica augurava. Se esta pode suceder em astronomia, ela é por regra limitada aos muros do laboratório (onde as equações se verificam), não fora deles. Assim como os engenheiros de automóveis não ‘prevêem’ os percursos deles mas apenas as suas possibilidades na cena do tráfego, igualmente a espécie biológica dos cavalos é conhecimento verdadeiro, não de cada cavalo ou égua, mas das suas possibilidades nas cenas ecológicas aonde circulam. Essa ‘espécie’ conhecida existe em cada cavalo e égua, mas estes excedem-na enquanto indivíduos concretos, suas genealogias e tratamentos recebidos. A noção de possibilidade é central em Ser e Tempo, sem que Heidegger se desse conta, ela fornece uma solução fenomenológica à questão da verdade científica.

A verdade como lei que fomenta a capacidade de dissimulação
13. Não há pois verdades absolutas, mas ninguém falaria ou escreveria se não estivesse certo do que diz ou escreve, ou pelo menos da sua aproximação, que as línguas abundam em termos para dizer a incerteza, a verdade difícil entre o saber e a ignorância: afirmar, declarar, pensar, crer, duvidar, confiar, achar, imaginar e por aí fora, com os seus negativos. Elíptica, e portanto podendo dizer alguma coisa e nunca tudo, a grande potência da linguagem é dizer o que está longe e passado ou por vir, sujeita ao testemunho, como se disse, desde o início da sua aprendizagem: é ela que, submetida à lei da verdade, estrutura o sujeito enquanto falante consciente de si no mundo, consciente também de que há mais mundo além do que se vê e em que se mexe em cada situação. A lei exerce-se desde que a aprendizagem enraíza como fala da criança, através das correcções dos seus erros e atrapalhações, elogiada ou castigada consoante, o que implica a criação de distância entre si e o mundo, fugir ao risco de se ser tido por idiota (fechado no seu idion, em si ‘próprio’, sem mundo) ou por louco: é esta distância que a verdade fomenta – lei da linguagem – que virá a ser cultivada como foro de pensamento pessoal, intimidade mais ou menos secreta de si a si. Ora, esta ‘distância’ é a capacidade de dissimulação, de não dizer o que vem à cabeça, é o reverso do ganho de pertinência, competência, pensamento, liberdade, sabendo que não se pode confiar sempre nos outros, neste ou naquele, que há que fomentar cumplicidades e rivalidades. A fala dirige-se a outrem, arranca o falante ao seu contexto de situação (que é deixado como ‘esquecido’) para o colocar no contexto daquilo que está a dizer, algo de inédito que o torna senhor único do que diz, fala ‘só por si’, ab-solus, absoluto, só ele sabe o que está a dizer, porquê e para quê (tanto quanto, já que se aprende também a ganhar distância em relação ao que se diz, a qualidade de cada um é por aí, havendo segredos, ‘verdades sagradas’). É aonde se ganham convicções, certezas verdadeiras que abrem possibilidades, permitem, entre outras coisas, inventar novas ‘verdades’. Tal como a habilidade de fazer coisas com as nossas mãos, também esta habilidade de falar num estilo pessoal a língua da nossa tribo e alargá-la, faz parte do nosso enigma, enquanto humanos e enquanto tal humano singular.
14. Compreende-se assim que a linguagem, que nos dá contextos e nos arranca a eles, nos solidariza com outrem da mesma língua, seja o lugar da desconstrução: é o que significa a fórmula de Derrida que muito escandalizou ao dizer “não há fora de texto”.
(http://filosofiamaisciencias2.blogspot.pt/2014/07/o-que-e-que-ha-fora-do-texto-nada-tudo.html) O grande espanto, grande sintoma também da ‘verdade’ desta gramatologia, é o silêncio da tradição filosófica sobre a linguagem: os filósofos espantaram-se sobre a espontaneidade do pensamento dos (grandes) pensadores, sem insistirem no que ela pressupunha de aprendizagem, no que lhe vinha dos outros.

O conhecimento dos movimentos, de Aristóteles à Fenomenologia gramatológica
15. Resumindo e concluindo (para dizer que não sou derridiano, mas nada do que faço seria possível sem ele). No que diz respeito à questão do conhecimento filosófico e da contribuição das ciências para ele (e não às questões estéticas, éticas e outras), a Verdade ocidental fez-se como conhecimento do movimento, desde a Physica de Aristóteles, que deixou de fora os “acidentes” singulares de cada coisa, dadas aos ‘sentidos’ no quotidiano delas, até à Fenomenologia gramatológica (heideggerridiana) que delas conhece as possibilidades de movimentos, dos movimentos que lhes podem acontecer com outrem. O Nietzsche de Deleuze dizia que as forças que movem os vivos vão até ao fim que elas podem. Eu, que também não sou nietzschiano, acho que o que nos maravilha nas grandes biografias são aquelas e aqueles que vão além do que podem, que lhes vem justamente de encontros com outrem, assinalado esse ‘mais do que se pode’ quando se invocam as graças dos deuses, a sorte que os favoreceu.

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