1. A rotina tem má fama, como
repetição monótona para quem a faz, a suporta, ou até quem a paga, em contraste
com a inovação, a mãe de todos os progressos, das surpresas boas, das boas
razões de viver. E no entanto... andar é uma rotina das pernas, ora uma ora a
outra a tomar a dianteira e a deixar a outra para trás, o avanço dependendo de
ambas sem que nenhuma tenha primazia, a rotina da cozinha em que se faz uma
sopa é necessária para não se demorar uma hora à espera que se acerte com o
resultado de que esfomeados estão à espera, guiar um carro implica uma rotina
de gestos de que muitas vezes nem se dá conta de que se os fez, o cirurgião que
tem um caso complicado não salta rotinas nem o grande cozinheiro que prepara um
menu de banquete real. A mais engraçada das rotinas nós nem damos por ela ainda
que o quiséssemos, é como ao escrever isto, ou ao falar, as regras das frases
se encadeiam umas nas outras para que elas saiam com o sentido que move a
escrita ou a conversa, ainda que se trate de descobertas inéditas. Estes poucos
exemplos que se podem multiplicar indefinidamente implicam todos, se se reparar
bem, que as rotinas correspondem ao resultado conseguido satisfatoriamente
de aprendizagens, algumas longas de experiências repetidas, de
longas rotinas de especialistas pois, outras vindas desde os alvores da
infância a toda a minha gente.
2. Tenho insistido muito, nestes meus
textos, sobre o motivo da aprendizagem, sobre esta maneira espantosa de os usos
da tribo se fazerem os usos de cada um dos seus indígenas, da passividade que
recebe e se torna actividade que age, sem dois tempos nem oposição entre
contrários. Ora bem, o que é que se aprende? Rotinas, exclusivamente! Porque se
parte do não saber fazer, do não ser capaz, para se chegar ao jeito espontâneo
e hábil de fazer em circunstâncias diversas: ‘dá cá, que eu sei como é que se
faz’, diz quem sabe a rotina. E se se pensa em alguém que quer montar um
negócio, fábrica, atelier, escola ou loja, ou o que seja, além das questões de
financiamento e de local que enfrenta, só se pode dizer que ‘já está!’, quando
uma rotina se instalou entre os vários membros da equipa. Ou julga-se que algum
patrão paga salários para cada pessoa fazer o que lhe dá na real gana? Tu fazes
isto, e tu encarregas-te daquilo, etc., o organigrama é o mapa das rotinas.
3. Quanto a acontecimentos, tanto
podem ser bons como maus, coisas que correm bem quando as rotinas vão
funcionando ou correm mal; o acontecimento resulta sempre de rotinas de outros
que jogam com estas e dão um resultado que à partida é imprevisível, uma aposta
que se ganha ou se perde. O que define acontecimento é que acontece a mais do
que um, é a sua imprevisibilidade por efeitos múltiplos, responda ou não a
planos que se fazem, pode ser um êxito inesperado ou uma catástrofe qualquer,
de clima ou revolução social, doença de alguém decisivo, é sempre surpresa, boa
ou má; em ‘surpresa’ há ‘presa’, quem a recebe fica atado momentaneamente na
sua reacção ao que lhe vem (‘sur’ como ‘sobre’), ‘preso’ no que a-prendeu, se
posso assim brincar com estas palavras. Diante do acontecimento, o que se
aprendeu não nos serve imediatamente, há que improvisar.
4. Improvisar é difícil, como todos
sabemos. Dar um salto diante dum buraco quando vamos a andar na rua pensando em
qualquer assunto complicado, o leite a ferver que transborda para o fogão,
reagir a uma má notícia sobre um familiar próximo ou a um insulto
despropositado, querer dar a volta numa assembleia que foge em sentido contrário
ao que se quer, sei lá. Não se aprende a improvisar, por definição quer de
aprendizagem de rotinas, quer de acontecimento. Porque as rotinas que se aprenderam foram, não
propriamente improvisadas, mas inventadas, o que é o mais difícil em tudo isto: as invenções são lentas, as mais
quotidianas, que nem sabemos quem as inventou ou quando, foram se fazendo ao
longo de muitas gerações, as receitas de cozinhas e as regras das falas, como
Newton, esse tão grande inventor, dizia citando um medieval que “era um anão
aos ombros de gigantes”. Mas as dele também pediram muito tempo de estudo e
experimentação, com algumas fulgurações por vezes, como a célebre maçã que viu
cair e lhe fez pensar que alguma força a tinha feito cair, a que veio a chamar
força da gravidade e disse não saber imaginá-la, e ainda há 50 e tal anos
Feynman dizia que os físicos não sabiam o que é uma força de atracção a
distância. Inventar é moroso e raros o conseguem, releva do acontecimento e
mete também muita sorte, aprender o que eles inventaram torna-se depois mais
fácil para muitos, consoante aquilo de que se trata, uma rotina em qualquer
caso, mas que pode ser muito complexa, como a do cirurgião.
5. A rotina é feita de pequenas
repetições que quase não pedem atenção, que muitas vezes permitem que se vá conversando
de outra coisa entretanto, a fazer a sopa ou a guiar um carro. Mas podem sempre
oscilar para acontecimentos que a surpreendem e desarmam e pedem improviso;
‘oscilação’ aqui significa que não há oposição entre ambos, uma rotina é uma
espécie de acontecimento de grau zero que pode sempre complicar-se e chocar com
outras, gerando acontecimentos de graus fracos que podem também oscilar em certas
circunstâncias para graus mais fortes. Uma espécie de escala de acontecimentos
partirá das coisas que nos sucederam e contamos em casa ao jantar, depois as
que contamos também aos amigos a quem telefonamos, enfim as que anos mais tarde
ainda contamos; depois há as que vieram como breve notícia num jornal local, as
que deram notícias em vários médias, depois em todos, e assim sucessivamente
até às que entram na história, em notas de rodapé, depois um capítulo dum
livro, até aos acontecimentos históricos que desafiam as escalas.
6. Este motivo de oscilação entre
pequenas repetições e acontecimentos mais ou menos inesperados encontra-se
também nas disciplinas científicas ditas ‘naturais’. Desde uma pedra que caia a
um vulcão que entre em actividade e um sismo, sem contar com todos os movimentos
dos vivos na terra, os acontecimentos da cena da gravidade são muito variáveis,
assim como as transformações químicas que eles tornam possíveis. Na Biologia, o
jogo das células dos variados órgãos dum animal implica as pequenas repetições
que os biólogos estudam aos vários níveis da sua anatomia, das quais as mais
acessíveis ao leigo são duas automáticas, a da circulação do sangue e a da
respiração, esta aliás visando aquela, cujas oscilações homeostáticas entre
níveis mínimos e máximos dependem de acontecimentos digestivos entre fome e
saciedade; as dificuldades animais em encontrar presas ou o susto de fugir de
ser presa de outro mais forte são acontecimentos que oscilam com essas rotinas
celulares e anatómicas, enquanto que em nós um banquete de festa joga como
acontecimento forte, indigestões ou bebedeiras podendo estragar-lhe o prazer
gastronómico. A rotina respiratória mantém-se no sono e no coma, sabemos que
alguém adormeceu pela regularidade que lhe ganha o respirar até à oscilação do
bocejar matinal, enquanto que os acontecimentos tanto são a tosse e um ambiente
irrespirável como um bom charuto ou perfume, o coração que bate no amor ou na
entrada em cena, num exame, uma corrida, fuga ou combate... Mas a respiração
intensa, que é em geral acontecimento, pode treinar-se – treinar é ganhar
rotinas – num atleta, numa cantora de ópera, num trompetista, visando outros
acontecimentos, vitórias, recordes, concertos. Mas treinar não ensina a
acontecer numa cena entre vários, o acontecimento surpreende, corta o fôlego,
faz bater o coração, acelera o sangue, suscita reacções rápidas e intensas
sobre as pequenas repetições da rotina que ele revolve, sem que se saiba como.
7. Os usos quotidianos, em família –
a higiene, a culinária, a lavagem da louça e da roupa, as refeições – como nos
empregos as burocracias e as cadeias de montagem, trata-se de gestos
repetitivos em que ‘não se passa nada’, de tarefas sempre a recomeçar, com
pequenos acontecimentos da variabilidade dos dias e dos comparsas, cujos acontecimentos
mais óbvios e esperados são as férias, de que os fins de semana são um anúncio
em ponto pequeno; mas os acontecimentos sociais que dão mais azo à surpresa,
são uma greve, uma revolução, um tremor de terra, uma epidemia, uma guerra e os
seus desalojados que buscam refúgio. Usos são rotinas aprendidas que, por essa
definição, resistem à mudança, às reformas, tanto mais quanto mais velho se
for: porque são esses hábitos que outros querem fazer mudar que asseguram a
nossa habilidade e o nosso talento.
8. Igualmente a linguagem é feita de
repetições, como indica o teclado dos computadores onde estão as letras e
outros sinais que se repetem constantemente, uns mais do que outros, é claro,
nas palavras que dizemos e escrevemos, assim como estas se repetem, também umas
mais do que outras, nas frases que delas são feitas, com regras fortes e outras
mais subtis, mas que são condição de entendimento entre os que falam, ouvem,
lêem, e ainda se repetem nos
paradigmas de todo o tipo de corpus de textos, científicos, administrativos,
jornalísticos, e por aí fora. A não consciência por quem
fala e por quem ouve, escreve e lê, das múltiplas regras da língua – só se
atenta nalgumas palavras e expressões que se repetirá se se quiser resumir o
dito – é condição energética da fala e da escrita, essas regras agenceiam-se
como que automaticamente na espontaneidade do falar e escrever. Qualquer
discurso ou texto, sendo singular, releva do acontecimento, mas na banalidade
dos dias jogam como repetições sem grande incidência acima do grau zero, ao
contrário do que acontece quando o meu interlocutor me surpreende e o coração
se me acelera, engasgo-me sem encontrar logo o que responder: são as pequenas
repetições rotineiras que resistem se a rapidez duma resposta à altura não me é
dada, não me acontece. Mas os acontecimentos aqui são sobretudo os textos
literários, poesia e pensamento, os textos que se veneram e transmitem de
geração em geração, o poema sendo uma solução do desafio essencial entre o seu
pensamento e a sua música, o seu canto oral, indiscernível a diferença entre o
que se busca e o que acontece.
9. Quanto às oscilações no domínio
atómico e molecular da Física e Química, a questão é complicada, tratei dela
nos §§ 34-41 do cap. 8 do meu Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida (l’Harmattan, 2007), em torno dos electrões
quânticos, disponíveis a movimentos vários, transformações químicas, hidro e
termodinâmica, electricidade e magnetismo, óptica, as suas oscilações permitindo
relacionar entre elas estas várias regiões de fenómenos (mas hei-de confessar
que quinze anos mais tarde, fora do contexto de leituras que me permitiram essa
escrita, tenho dificuldade em acompanhar os raciocínios). De qualquer forma, a
oscilação nela mesma, em qualquer um dos domínios científicos que se considere,
vida, sociedade, linguagem, é um fenómeno estritamente de ordem física: as
pequenas repetições da rotina e do hábito são estádios de despesa energética
mínima, de poupança de fadiga, evitando os acontecimentos que, ao contrário, cansam,
desgastam, pedem recuperação da energia dispendida em demasia.
10. Os §§ 20-28 do cap. 7 e os citados acima do
cap. 8 propõem uma (entre quatro) tese de ontologia desta fenomenologia de
filosofia com ciências: todos
os entes, materiais, vivos,
humanos, linguísticos e outras estruturas sociais, são susceptíveis de
oscilações entre rotina e acontecimento, tese que depende do motivo da produção de entropia de Ilya Prigogine, o químico belga de origem
russa que foi Nobel em 1977 graças à sua descoberta das estruturas
dissipativas, das estabilidades instáveis da bioquímica do metabolismo celular.
Essa entropia positiva, que explica a entropia clássica de Clausius como sua
degradação, é um fenómeno universal, donde a possibilidade duma tese ontológica
que tenha em conta os fenómenos de energia (não esquecer que este termo releva
da definição aristotélica de movimento entre dunamis e energeia, vem das origens da filosofia ocidental). Esses entes, que se movem / são
movidos em seus estados entrópicos oscilantes, foram tratados nesse texto
através da categoria derridiana de duplo laço, um deles formando estritamente um motor
fortemente repetitivo, o outro formando um aparelho que assegura a regulação do
movimento na cena de circulação, tendo sido esta que lhe deu as regras na sua
própria anatomia de aparelho. É este aparelho regulador que é o lugar das
oscilações entre rotinas de pouca energia dispendida e acontecimentos que
sobrevêm mais ou menos inesperadamente doutros movimentos na circulação, como
crise, que tanto pode ser de
circunscrição limitada ao pequeno caso local como generalização que afecta uma
zona maior da cena.
[no blogue filosofia com ciências, os 30 textos do dia 19/02/2008 expõem um resumo das principais propostas
da obra citada]
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