quarta-feira, 16 de setembro de 2015

O que significa a expressão bíblica “isto é o meu corpo”?



1. É uma expressão fundamental da tradição teológica ocidental, interpretada pelo aristotélico Tomás de Aquino como “transubstanciação”, uma estranha operação que, deixando aos sentidos da vista e do paladar tudo na mesma, o que seria os “acidentes” de pão (uma bolacha de trigo, aliás), teria transformado a sua “substância” de pão (a ousia aristotélica) na “substância” de Jesus Cristo (homem ressuscitado, filho de Deus, etc.), “corpo, alma e divindade”, diziam os catecismos a tal “substância” a que a fé teria acesso sob os acidentes da bolacha-pão. A questão que queria pôr é a de saber como é que a ontoteologia desta interpretação da frase “isto é o meu corpo” atribuída a Jesus numa refeição com os seus discípulos nas vésperas da sua morte pode ser, não digo desconstruída (seria muito mais complicado, obrigaria a ler a Summa Theologiae), mas entendida de forma plausível, sem essa mirabolante transubstanciação. Em vez do discurso medieval, recorrerei a alguns passos do novo Testamento bíblico, segundo uma descrição fenomenológica, de forma necessariamente rápida em vários argumentos mais especializados, mas tendo o picante de poder encontrar-lhe uma reflexão económica radical.
2. A expressão “isto é o meu corpo” encontra-se quatro vezes no novo Testamento, poder-se-ia pensar que uma vez em cada um dos quatro evangelhos que contam a vida de Jesus, mas de facto o de João, que tem uma tradição sobre essa vida bastante diferente dos três outros – sinópticos (olhar comum), com uma estrutura paralela –, tendo embora cinco capítulos consagrados à refeição pascal que os outros três despacham em poucos versículos, João ignora o que é central nestes. A esta ignorância acresce que o episódio da bênção e partilha do pão e do vinho aparece pela primeira vez numa carta de Paulo, a primeira aos Coríntios, escrita mais de 15 anos antes do primeiro dos sinópticos, Marcos, de quem os dois outros dependem no que é comum aos três. Nessa carta Paulo relata o episódio dizendo: “por mim, com efeito, eu recebi do Senhor o que por minha vez vos transmiti: o Senhor Jesus, na noite em que foi entregue, tomou o pão e, depois de ter dito a bênção, partiu-o e disse: ‘isto é o meu corpo, que é dado por vós; fazei isto em memoria de mim’ (cap. 11, 23-24). Ora, ele próprio conta na carta aos Gálatas (cap. 2) que, após se ter tornado seguidor de Jesus como Messias, teve 14 anos de trabalho de fundação de comunidades cristãs entre pagãos sem ter confrontado o que ele ensinava com os discípulos principais de Jesus que ficaram em Jerusalém, o que permite perceber o ‘eu recebi do Senhor’ que sublinhei, não dos tais discípulos, testemunhas da dita refeição, mas como uma ‘revelação’ recebida directamente por via mística (várias vezes noutros lados se refere a esse tipo de iluminações espirituais, de que depende muito do que ensinou). Escrito pois muito antes do evangelho de Marcos (que foi aliás seu ajudante de missão e pode portanto ser o transmissor do episódio), é o único episódio dos evangelhos que Paulo refere: além dele, da vida de Jesus só conhece a morte na cruz e a ressurreição, mas mesmos estas não são contadas com nenhum detalhe como nos evangelhos. Teria sido ele o ‘inventor’ do conteúdo deste episódio da refeição pascal que João ignora.
3. Claramente em Paulo o episódio, com o cálice do sangue igualmente, refere-se à morte de Jesus, à separação do corpo e do sangue: “de cada vez que comerdes este pão e beberdes este cálice, anunciareis a morte do Senhor até que ele venha”, a ressurreição estando implícita no regresso escatológico, trata-se do essencial pauliniano; morreu, ressuscitou, voltará em Messias (Cristo). Mas ele não diz que se come o ‘corpo’ nem que se bebe o ‘sangue’ (apenas João usará uma linguagem assim, carniceira e sanguinária: “quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna e eu o ressuscitarei no último dia”, cap. 6. 54), é o pão que se come, com responsabilidade do ‘corpo’ do Senhor se se o comer indignamente. Mas o que é ‘comer pão’? nas nossas línguas latinas modernas, é criar uma ‘com-pan-hia’, os que comem pão entre eles formam uma unidade de vários, o que chamamos uma comunidade, cuja base sociológica é a refeição como resultante do trabalho das casas agrícolas. O cap. 12 da carta de Paulo diz que “o corpo é um, tendo embora vários membros e que todos os membros do corpo, apesar da sua pluralidade, não formam senão um só corpo; assim se passa com o Messias”, o que desenvolve longamente sobre a interdependência dos vários órgãos, o pé, o olho, a mão, o ouvido, o cheirar e a cabeça, ou seja, o ‘organismo’ como metáfora social, concluindo: “ora, vocês são o corpo do Messias e membros cada um pelo seu lado”.
4. Destes dois parágrafos, conclui-se que o “o meu corpo”, dito pelo Messias, tem uma dupla dimensão: é um alimento (pão) que faz comunidade (corpo), é na maneira como esta se alimenta que ela se refere ao destino do Messias, fazendo memória dele, entre a sua morte por traição (“entregue”) e o seu retorno. Ora, o contexto mais geral desta evocação é uma comunidade de Corinto que se reúne mas em que cada um come do que trouxe de casa, uns ficando com fome e outros embebedando-se (11.21). Há pois que partilhar a alimentação enquanto se espera o retorno do Ressuscitado.
5. Os evangelhos sinópticos desenvolvem esta noção de partilha, relacionando o “isto é o meu corpo” com um episódio central nos quatro evangelhos, a chamada multiplicação dos pães (a que João liga a sua concepção, não do ‘corpo’ mas da ‘carne’ de Jesus). Central, já que este episódio se torna nos quatro uma alteração decisiva da estratégia de Jesus, que decide claramente subir a Jerusalém, onde enfrentará o comércio do Templo e as suas autoridades, sendo aclamado pelas multidões contra a ocupação romana mas acabando traído, condenado e crucificado. Parece claro que é a audiência desse episódio no deserto, todos os quatro dão os mesmos números (5000 homens, 12 cestos de sobras), que justifica a mudança estratégica, como se fosse um número suficiente para acalentar a subida a Jerusalém e o confronto politico desencadeado. A dificuldade é que, os textos tendo sido escritos após a derrota da revolta judaica pelo exército de Tito em 70 e a primeira perseguição aos seguidores de Jesus em Roma uns anos antes sob Nero, eles tendem a ‘despolitizar’ parcialmente o contexto dos episódios (sobretudo Lucas e João); é-nos difícil de saber em que é que terá consistido o conteúdo histórico do episódio da multidão no deserto e da sua alimentação, que é contada como uma multiplicação milagrosa de pães e peixes. Mas justamente a maneira como ela é introduzida relacionada com a ceia pascal esclarece o que se viu com Paulo. Os discípulos aproximam-se de Jesus, num sítio deserto e já tarde, querendo que ele reenvie a multidão “para que vão nas quintas e aldeias aqui perto comprar com que comer”. Resposta: “dai-lhes vocês mesmo de comer”. “Devemos ir comprar pães por duzentos denários, afim de lhes dar de comer?” “Quantos pães tendes? Vão ver”. “Cinco, e dois peixes”. Dispostos em grupos de 100 e 50. “Ele tomou então os cinco pães e os dois peixes e, levantando os olhos para o céu, disse a bênção, partiu os pães, e dava-os aos discípulos para os distribuir. Partilhou também os dois peixes entre todos. Todos se saciaram” (Marcos, 6, 35-44). Ora, quando o mesmo Marcos conta o episódio que terá recebido de Paulo, diz assim: “Enquanto eles comiam, ele tomou o pão e, depois de ter dito a bênção, partiu-o e e deu-lhes dizendo: tomai, isto é o meu corpo”. Os verbos são os mesmos: dizer a bênção, partir os pães, dar-lhes; Marcos faz esta narrativa paulina inserir-se na narrativa da partilha do pão, o que significa que traz para o “isto é o meu corpo” a oposição entre ‘comprar’ no mercado de dinheiro e ‘dar do que se tem e se partilha’ uma regra económica escatológica, como já vimos Paulo proceder. Sendo muito provavelmente histórica esta refeição em vésperas do suplício contada pelos cinco autores, quando Jesus ainda pensava em escapar, escondendo-se e tendo sido traído, é difícil saber-se o que lá se passou, a diferença corpo / sangue como alusão à morte parecendo ser da lavra de Paulo, se for certo que Jesus não queria morrer, que morreu “abandonado” por Deus (Marcos e Mateus), que ninguém contava com uma ressurreição, como se depreende facilmente de todas as narrativas dos quatro evangelhos sobre a incredulidade diante do túmulo vazio.
6. O que Marcos e os dois outros sinópticos contam converge com Paulo aos Coríntios: comer / partilhar o pão (os peixes, a refeição) entre todos em memória de Jesus cria a comunidade dos discípulos, dos crentes. Assim o entendeu a comunidade de Jerusalém, segundo os Actos dos Apóstolos, que punham tudo em comum na expectativa do retorno próximo do Messias: “assíduos ao ensino dos apóstolos, fieis à comunhão fraterna, à fracção do pão e às orações. [...] todos os crentes punham tudo em comum; vendiam as suas propriedades e bens e partilhavam o preço entre todos segundo as necessidades de cada um” (cap. 2. 42, 44, também cap. 4. 32, 34-5); ‘comunismo primitivo’, como se lhe chamou, que falhou (Paulo terá que ter a iniciativa de uma contribuição das suas comunidades gregas em favor da de Jerusalém): porque razão? A citação acima sugere que, porventura por acreditarem no fim do mundo para muito breve, a venda das terras significou que ficaram sem produção agrícola e que o dinheiro das vendas se gastou depressa: a partilha com os necessitados implicará não esgotar os recursos de produção. A continuação eclesial veio a implicar um serviço de assistência aos carenciados como timbre de qualquer comunidade crente.
7. Mas o Messias não regressou, o que implicou que deixou rapidamente de haver conversões de judeus e que foi a partir das comunidades de Paulo no mundo helenístico que o cristianismo se desenvolveu (‘Cristo’ tornou-se cognome de Jesus), tendo o seu discurso sido apanhado pelo platonismo (Orígenes, início do século III) que impôs uma redução às narrativas bíblicas, os sentidos literais sendo suplantados por sentidos espirituais e metafísicos (por exemplo maior, a ressurreição dos mortos judaico-iraniana cedendo à imortalidade das almas que o novo Testamento ignora), desenvolvendo-se também um clero profissional que desembocou na religião do império a partir de Constantino e seus sucessores no século IV. Ora, fez parte deste processo de helenização e romanização que as comunidades que se reuniam em torno de mesas de partilha para formarem um só corpo do Messias tenham vindo a ser substituídas paulatinamente por assembleias que assistem a um altar em que se oficia o sacrifício duma vítima (hóstia em latim), o pão e o vinho tornados corpo e sangue oferecidos a Deus, segundo uma teologia grega que se desenvolveu em torno dos dogmas da Trindade, Incarnação e Redenção, que veio a gerar a noção de “presença real” de Jesus na ‘hóstia’, que algures de pão se disfarçou em bolacha de trigo, enquanto que o vinho, reservado ao sacerdote, virou puro ritual: foi a ontoteologia pura desta “presença real” que Tomás de Aquino tratou com a sua “transubstanciação” entre a bolacha-hóstia e Jesus homem-deus, consumando o apagamento completo do corpo comunitário do Messias, que quando foi ‘redescoberto’ no século XX como “corpo místico de Cristo”, não manifestava obviamente nenhuma conotação de partilha económica.
8. Entretanto, nas margens religiosas do cristianismo foram sempre aparecendo movimentos espirituais em que a partilha do pão e a busca duma pobreza fraterna ecoavam aos textos bíblicos, embora por regra as suas comunidades tenham vindo a ser apropriadas pelas instituições eclesiásticas em que se integraram, deixando lugar a que novas vocações espirituais viessem manifestar em novas formas comunitárias o sopro dos primeiros tempos messiânicos. Ora bem, o que é que pode hoje significar a expressão “isto é o meu corpo”, ouvida numa comunidade cristã de qualquer confissão, católica ou outra? Que aqueles que ali estão ao partilharem o seu pão com quem o não tem, são o corpo comunitário de Jesus, os que ouviram a palavra tremenda, que deverá fazer tremer a fé: “tive fome e deste-me de comer, sede e deste-me de beber, estrangeiro e acolheste-me, nu e vestiste-me, doente, preso e visitaste-me [...] na medida em que o fizeste a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim que o fizeste” (Mateus 25. 35-36, 40), palavra final que faz eco a estoutra: “não podeis servir Deus e o Dinheiro” (idem, 6. 24). “Quem tem ouvidos para ouvir que ouça”, diz-se também (idem, 13. 9).
9. O cristianismo não se dirige aos pobres mas aos que não o são, apelando-os a que se tornem efectivamente seus irmãos. Não crendo num Deus criador, nem por consequência nos dogmas gregos, penso que estará aqui a questão fulcral da tradição do cristianismo que pode interpelar a nossa contemporaneidade. O ponto seria este: a chamada questão social, tão avivada com as crises recentes que multiplicaram as pobrezas das Américas e Europa ao Médio Oriente, sendo uma questão de empenhamento a favor dos pobres (quer multidões quer este e aquele em seus rostos), é este empenhamento que dá qualidade humana a quem a si se empenha e nesse empenhamento – de amar o próximo como a si mesmo – assim se transforma, se liberta, pondo sempre os outros antes do dinheiro, do capital, este ao serviço da igualdade. Ou seja, que nunca a lógica do capital, o ganho de juros, se sobreponha à das ‘com-pan-hias’, à da partilha do pão com os que não o têm; não do que sobra, como assistencialismo, mas no que se institui como produção, salários, comércio justo. São imensas as oportunidades pontuais de decisão entre as duas lógicas, a do capital e a dos cidadãos, quer para políticos e patrões, quer para jornalistas, professores, e por aí fora. Se for certo que a divisa da modernidade ocidental, liberdade, igualdade e fraternidade, é o eco secularizado dos evangelhos, se não é provável que ela venha um dia a concretizar-se em sociedades perfeitamente justas e democráticas, todavia concretizar-se-á, como já o fez vezes sem conto, naqueles que empenharem assim as suas vidas (e contra mim falo).


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