1. O filme francês “Bando de raparigas” não é
sobre racismo. Fora a cena em que o ‘bando’ goza uma miúda branca assustada,
vendedora numa loja de roupas que as suspeita de quererem roubar, o único
personagem branco é manifestamente secundário e solidário da adolescente
protagonista. O filme é sobre o meio familiar e de bairro dos negros dos
subúrbios de Paris. O pai da adolescente não é sequer nomeado, a mãe tem duas
ou três aparições pouco significativas, é o irmão mais velho que ocupa o lugar
do pai e, pior um pouco, a rapariga que ele domina revela-se por sua vez
dominadora da irmã uns anos mais nova. É pois uma ‘estrutura’ familiar
autoritária que subjuga as adolescentes. É provável que o mundo da imigração
muçulmana (aqui não se fala de religião) seja igualmente dominador das suas
mulheres. Há pois mais do que o racismo nestas sociedades ocidentais
democráticas em relação aos seus imigrantes, há também o patriarcado (dos pais
e dos irmãos mais velhos) que veio com as bagagens da imigração. O que leva o
jornalista francês Le Bris de Kerne (Ípsilon de 28 de Agosto) a ironizar com os
decadentistas franceses de direita anti maio 68 que lamentam a perca dos
‘valores familiares’ da tradição, que estes continuam vigorosos entre os
muçulmanos que eles acusam de corresponsabilidade nesse declínio.
2. A antropologia é complicada, e nem sequer penso
nos duplos laços da filmagem, enquadramentos e montagem, que implicaria ter a
possibilidade de andar de um lado para o outro num vídeo e que, de qualquer
forma, eu seria incompetente para analisar. Seja pois a antropologia do
‘enredo’. O filme começa pelo impasse da situação escolar de moça, dos seus
duplos laços à família e à escola, podendo induzir-se que o da escola compensava
as dificuldades do da família nesta entrada na adolescência (ela tem 16 anos),
mas, fraca aluna, é obrigada a seguir a via escolar profissional mal cotada, o
que ela recusa e lhe quebra o laço escolar. Daí que aceite o convite para um
duplo laço efémero no bando de outras três mais velhas, também que tente uma
relação com um rapaz que não a pode aceitar por ser amigo do irmão dela,
perceber-se-á depois essa razão. Mas quando perto do final, ele lhe propõe
casamento, é o duplo laço duma ‘miúda decente’, duma mulher casada que trata
dos filhos em casa, que ela recusa, não só porque ela já o conhece como
opressor mas também porventura por já ter experimentado o desengano dum mais
velho que lhe oferece emprego e depois quer mandar nela, que a beije em
público. Não aparecem hipóteses de ligações ao mundo lá de fora, como se,
povoado de brancos, fosse a priori insusceptível de integrar uma moça negra sem
outros laços. Daí que ela fique sem sonhos para sonhar...
3. Mas há algo de muito bizarro no filme, e
provavelmente na realidade dos subúrbios de imigrados franceses, algo que é
anunciado logo na primeira sequência (que não voltará) com raparigas a jogarem
futebol americano com capacetes, em que vale tudo e não tem nada do que
chamamos futebol, pior do que o rugby, algo que culmina em duas cenas de luta
entre raparigas: na primeira é a líder do bando que é vencida por outra dum
bando vizinho, na segunda é a protagonista que vinga a sua colega de bando
vencendo a primeira vencedora. O que é notável, é que é esta vitória à porrada
que muda as relações internas do bando e sagra a protagonista que se passa a
chamar ‘Vic’ (de Victoire), nova líder, aliás reconhecida pelo irmão mais velho
na única cena em que este ri, não é autoritário: ela é vencedora no
paradigma dos bandos de rapazes,
o que parece significar justamente o impasse deste efémero duplo laço que dá o
nome ao filme, o “Bando de raparigas”. Ela mostra-se capaz de sair do laço
familiar mas é uma saída sem saída, o filme fica aberto, dir-se-á, os subúrbios
das raparigas negras é que não.
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