1. Há aquela frase de Nietzsche, uma
das suas fulgurâncias como não quer a coisa, ele está a criticar o motivo
europeu de ‘sujeito’: “um pensamento vem quando ‘ele’ quer e não quando ‘eu’
quero” (Para além do Bem e do Mal, § 17). Eu tenho há muito o pressentimento de que é esta experiência, com
pensamentos de alta qualidade, que está na base do que se chama ‘idealismo’ em
filosofia, em Platão e Descartes por excelência, já que a ambos se deve a
atitude moderna extrema, a de recusar tudo o que se aprendeu, “sei que não sei
nada” recebido de Sócrates, a dúvida metódica: a modernidade é o gesto de
escolher na tradição, avaliá-la, guardar umas coisas e procurar prescindir de
outras. Nesses dois iniciadores, um da escola grega, outro da europeia, não se
quer guardar nada, mas inventar de novo tudo o que for para ensinar na
academia. Dito assim, é algo que parece tremendo – tudo treme – e quase néscio,
como disse alguém: quem não quiser repetir nada do que os outros disseram dirá
coisas que ninguém repetirá. Elementar. A não ser que tenha havido uma
experiência de pensamento de tal forma envolvente que o que se sabia,
aprendera, apareceu (de repente ?) mesquinho, ridículo. Algo veio e, gente de
qualidade tal que esse vir se pôde manifestar, perceberam logo que não veio do
‘querer’ deles, que se tratava de algo que os ultrapassava: a divindade era a
hipótese da origem de tão forte vinda.
2. A nós hoje não nos é permitida já
essa derivação para o divino, porque sabemos bem que só de muito ler bons
pensadores acedemos a um modesto pensar e que a vaidade do próprio pensamento é
sintoma de que ele é mesquinho, insignificante, se não se lhe pode dar alguma
genealogia, alguma ‘influência’ deste ou daquele, como se dizia dantes, que muita
energia se consumia à procura das influências em tal ou tal escritor. Mas isso
não significa que não possamos ter experiências como a que Nietzsche refere,
quem as não tem ainda estará verde nestas coisas de pensar, seja em que arte
for. A questão: é possível compreender essa experiência da vinda dum
pensamento tal que eu sei, indubitavelmente, que ele não veio de mim ? Em teoria, na minha maneira fenomenológica de
compreender, julgo que ela faz parte do enigma irredutível de cada humano, nem o próprio nem um
‘especialista’ do autor poderão ‘explicar’ este fenómeno. Mas poder-se-á
colocar a questão de forma geral, desde que o enigma faça parte dessa
colocação. Eis o que quereria tentar, se algum pensamento quiser vir.
3. Ao ponto de partida, linha
nevrálgica da argumentação, tenho aludido por vezes: é a passividade própria da aprendizagem – começar por não saber –
que se tornará actividade
depois de aprendido, não sabia, agora sei. Quem nos ensinou, retirou-se, porventura
morreu, o saber que ensinou continuará, se o merecer, é certo, pode-se esquecer
por irrelevância, como acontece a tanta coisa aprendida no liceu por exemplo e
que dura pouco mais depois do exame. A hipótese da morte daqueles com quem se
aprendeu a falar e a pensar (e usos vários) ajuda a perceber o estatuto do ‘mestre’
no ‘aluno’, que não está ‘presente’ nem ‘ausente’, já que deu o que estrutura a actividade e que, retirado
embora, continua nos efeitos do que ensinou, que perdura em boa parte a vida
toda. É este o estatuto do antepassado: nem presente nem ausente. O que é que provoca esse ‘retiro’ do mestre de
quem se aprendeu? Ele e outros ensinarem coisas novas que se acrescentam ao
saber anteriormente recebido. Seja o exemplo extremo duma criança que viva com
uma só pessoa que a única coisa que lhe diz é uma dada oração, essa criança não
saberia dizer mais nada do que repetir essa oração, tal o papagaio da vizinha
que repetia as lengalengas do terço que ela dizia em voz alta: quando a senhora
morreu, os vizinhos que herdaram o papagaio e não eram crentes, não percebiam
nada do que ele papaguiava. Para aprender a falar por si, tem que ouvir coisas
muito variadas, de preferência de várias outras pessoas, que não apenas de uma.
É este leque de variabilidade, em que as falas ouvidas se substituem umas às
outras em sucessão temporal, que permite que as regras da língua se cruzem de
frases em frases, conversas em conversas, sejam aprendidas, isto é, façam a
criança dizer coisas dela mesma, não ouvidas tais quais. Espantemo-nos um momento
de estas regras não serem ensinadas gramaticalmente ou como num dicionário mas
duma maneira inacreditável, isto é, que não me parece possível de qualquer
explicação teórica, já que essas regras nunca se manifestam por elas mesmas (as
morfologias dos verbos, os acordos de singular e plural, feminino e masculino,
preposições e conjunções, etc. etc.): aos 5 ou 6 anos já lá estão, activas, a dar o que dizer e a deixar dizer, aprendidas heideggerianamente. E são as
mesmas regras das dos outros falantes da tribo, heteronomia (a lei dos outros todos) que foi dada por esses outros falantes cujo retirar deixa a autonomia do falante. Ora bem, quando o retiro? Logo que a conversa acaba, ou quando
outra começa. Falar e pensar vão juntos nisto, voz e discurso. E a variedade
dos que dão as palavras e as
regras e o seu retirarem-se permitem que o que é assim doado se cruze na fala
da criança à sua maneira (mistérios da sua química cerebral) tendendo para
estabelecer um estilo de
falar e de pensar que a pouco e
pouco – o aprender a falar e a pensar nunca pára numa vida – se estabilizará
tanto quanto for possível com as oscilações das novas aprendizagens, das
descobertas de saber. Mas é condição de todo este processo de aquisição de
saber que o mundo da tribo – trata-se de seres no mundo – seja o mesmo para todos e aquele que
‘aprende’ aprende a tornar-se ser nesse mundo que ele aprende, com todas as dificuldades que os usos e os
conflitos e as alianças colocam e que intervêm nas várias falas tribais.
4. Saltemos da tribo à aprendizagem
filosófica. Grosso modo, o
processo é equivalente, em mais complexo, equivalente ao de qualquer adulto que
é envolvido por vários paradigmas de ‘saber’, de ‘pensar’, um é doméstico
consoante a sua tribo social (classe, região), outro é profissional mais ou
menos especializado, outro faz ponte entre ambos, se se pode dizer, de ordem
cultural ou outra: eis o que se presta à singularização maior do estilo em
relação aos familiares como aos colegas de profissão, presta-se à variedade de
ocupações de lazer favoritas, empenhos sociais, políticos, espirituais, e por
aí fora. Mas tais paradigmas, distintos, não são ilhas, conectam-se na
singularidade do dizer / fazer de cada um, onde a experiência da citação de
Nietzsche pode ocorrer: quantas vezes não se descobre a pólvora nessa procura
de compreender-se a si e ao mundo em que se é, e que bem isso não é, ainda que
possa fazer rir à volta quem anda noutra: mas é um bom sintoma em quem assim se
dirige para aprender a pensar segundo a tradição filosófica ocidental. Há
várias escolas de pensamento nessa longa tradição, há vários domínios de questões
filosóficas; aliás, além da filosofia há literaturas e outras artes, e há
problemáticas sociais e politicas, há questões de civilização, umas maiores do
que outras, algumas despontando, outras desaparecendo. Há pois muita escolha
(em grego, ‘heresia’), e em consequência será grande a variedade dos caminhos
seguidos pelos professores que se vão encontrando, como a da literatura
filosófica que se lê. Como quem navega entre escolhos, o processo de
aprendizagem tem uma dose grande de aleatório, consoante os encontros que se
fazem, de professores, de livros, de colegas. Claro que quando se escolhe
estudar filosofia, já se tem algumas questões, mas essas em geral são tragadas
mais ou menos rapidamente com a aprendizagem que se vai acentuando, substituídas
por questões mais elaboradas a que se vai tendo acesso; não impede que o estilo
que se foi ganhando desde criança será dominante, será ele que ganhará uma
vertente filosófica. Pode até inverter-se, por certo, como aconteceu a muitos
esquerdistas do Maio 68 e do 25 de Abril que viraram à direita, por vezes onde
era negro passou a branco e o que era branco a negro, mas o estilo manteve-se.
5. Encontram-se com frequência
leitores dum só livro, fans- de fanáticos, da Bíblia, de Marx ou de Friedman,
são como a criança fictícia que só aprendeu uma oração, como o papagaio da
vizinha. ‘Pensamento único’ é contraditório – como ‘partido único’, uma parte
implica sempre outras – com as variedades que houve e há, não é pensamento. Sem
dúvida que o estilo que se foi ganhando implica que haja escolas ou correntes
que sejam deixadas de lado sem grande cultivo, já que é ele que serve de guia
ao leitor que se é e que, do que lê, aprende ou critica. Mas tal como a criança
que ouve gentes diferentes de diferentes saberes e daí se vai estruturando
melhor ou pior, é de crer que a variedade relativa das leituras seja,
juntamente com uma certa teimosia do estilo, a condição da possibilidade dum
pensamento inesperado, que agora não seja já descoberta da pólvora como as da
adolescência. Os autores que se lêem e os professores que se escutam ‘agarram’
a passividade do aprendiz que, mais do que só memorizar, vai ligando o que vem
daqui e o que vem dali, mais ou menos explicitamente mas também porventura
justapondo sem se dar conta da ligação, e muito menos da ligação a coisas que
vieram muito antes e que nem sempre vêem à consciência do leitor, a não ser
quando escreve. Ora, é na escrita que o milagre do pensamento ocorre melhor,
escrevo num sentido, uma frase e outra frase e delas resulta uma terceira
inesperada, sem ser por querer, sem que eu saiba como. Outras vezes, a escrita
emperrou e é na pausa, quando nos deitamos ou de manhã nas primeiras higienes,
ou quando se vai a guiar, vagueando o pensamento, é quando se não espera que
vem uma solução para o que estava emperrado, surgem uma ou duas frases que continuam
as que tinham parado. Esta creio ser a situação mais frequente, onde os
peripatéticos, que discutiam passeando, tinham razão: mudar a posição do corpo
que escreve ou fala, que busca e emperra, é muitas vezes boa receita em casos
desses.
6. Mas a mais interessante e rara, a
que Nietzsche sem dúvida mencionava como quem não quer a coisa, é o pensamento
que vem a alguém que não anda em busca dele, ou se anda, não sabia que andava.
É algo que está perto das narrativas de conversão espiritual que mudam vidas,
instauram um antes e um depois. É aonde é mais óbvio, a quem recebe tal
pensamento e o reconhece (talvez apenas algum tempo depois), que não sabe
explicar como é que isto lhe veio à cabeça, como se tivesse sido apanhado por
um laço que, de tanto que a-prendeu, o prendeu e não o deixa mais. A Paul
Valéry que lhe perguntava se andava sempre com um caderno para notar os
pensamentos que lhe vinham à cabeça, Einstein terá respondido com algum
desprezo que nunca tivera senão duas ou três ideias na vida e que essas nunca
mais o largaram. A questão é: se aquele a quem assim veio um pensamento muito
mais forte do que ele – como provavelmente terá sucedido aos que veneramos como
grandes pensadores, filósofos ou escritores e artistas outros – sabe que tal
pensamento não veio dele nem do que aprendeu dos autores seus antepassados de
leituras, como compreender o fenómeno? Não penso que haja que recorrer ao
motivo psicanalista de ‘inconsciente’, mas o que de leituras diversas, que para
ele se mantinham desligadas, nele se ligou e manifestou-se como pensamento
inédito sem ele saber como:
essa ligação fulgurante deu-se a um nível de memória esquecida, onde estratos
diversos se mantinham diversos, sem que possa talvez dar um nome certo a uma
influência predominante, ou talvez sim. Maravilha-se da sua sorte, como
Heidegger aproximou Denk (pensamento)
e Dank (agradecimento): o
pensamento é gratuito.
A questão da verdade
7. Que o pensamento assim nos rapte,
por muito arrebatador que seja, como se diz, que seja ele a ‘querer’ e não eu,
que venha como dom, como graça, não significa porém que ele tenha um selo de
verdade. Nem sequer que se revele fecundo como paradigma, sobretudo de
multidões, já que pode se tratar de fãs entusiastas. A questão da verdade é bem
difícil, já que um pensamento verdadeiro pode vir só a um, por onde sempre
começa aliás, sem se comunicar significativamente na sua época, como sucedeu a
Copérnico, por exenplo, que nem ele nem Kepler nem Galileu demonstraram o
heliocentrismo, apenas Newton um século e meio após a morte de Copérnico: é uma
bela demonstração, que ilustro noutro texto deste blogue, mas que nos custou os
olhos da cara, já que se impõe contra a verdade deles, destes olhos que a terra
há-de comer, a fonte de todas as nossas verdades mais elementares, entre as
quais ver o sol a andar de nascente para poente. Assim começou a relatividade, embora então só a Igreja tenha estado perto de
dar por esse preço imenso. Há em todo o caso, há um terreno em que a verdade se
comprova de forma geral, a das equações físicas corroboradas pelos resultados
experimentais que preenchem as respectivas variáveis, e a partir daí a técnica prova
a física europeia – a aventura do espaço, no caso do movimento da terra –, como
possivelmente não há outra verdade tão comprovável.
8. Todavia, fora do campo da física e
da técnica, a verdade relativizou-se dado que no século XIX muitas ciências, da
terra (paleontologia), da vida (evolução), das línguas (comparação das línguas
indo-europeias), dos textos clássicos (edições criticas), da economia
(industrialização e luta de classes), descobriram a historicidade dos seus campos
de estudo e portanto a variabilidade da consideração deles segunda as épocas. O
pensamento de Hegel, no alvor desse século, buscou integrar a história das
civilizações no seu sistema de pensamento e, como na tradição vinda dos Gregos,
a história era o lugar do singular e do acidental, só soube defrontá-la nessa
sua relatividade recorrendo ao ‘absoluto’ da teologia cristã (que Kant tinha
deixado fora da filosofia). Foi o que Nietzsche diagnosticou, anunciando o
relativismo que viria (e que veio) como niilismo. Hoje qualquer filósofo que se
preze desconfia da noção de verdade, é o mínimo que se pode dizer. Porém, a lei
geral que regula as relações humanas por via da linguagem é, não pode deixar de
ser, a lei da verdade, sem a
qual nenhuma confiança é possível naquilo que outro diz, mesmo o erro só se
descortina em contraste com a verdade de que é o erro, ou seja, a noção de erro
implica necessariamente a de verdade, assim como a mentira só vinga se tiver as
aparências de verdade que não levante desconfianças nos outros, a ficção
precisa de verosimilhança (Aristóteles) do seu contexto para ser legível (fora
dum ‘contrato’ com o leitor de leitura fantástica).
9. ‘Qualquer filósofo que se preze’,
disse, mas houve uma excepção, a do que exerceu a maior reviravolta no
pensamento europeu do século XX, Heidegger que propôs uma leitura diferente da
‘verdade’ como a-lêtheia,
des-velamento do que velava a coisa que se des-cobre e manifesta a sua verdade
ao humano que cuida dela com desvelo. Ora, duma forma que me encheu de espanto
e de alegria, este motivo deslocado para as principais descobertas científicas
do século XX, permitiu uma luz nova para essas descobertas, religando-as ao
respectivo contexto donde os laboratórios haviam arrancado os fenómenos analisados.
E então esse contexto revelou-se cena de produção e circulação dos fenómenos dessas ciências (graves, vivos,
discursos, unidades sociais, psiquismos), cena de heteronomia (as regras de todos os fenómenos da ciência) que dá
os fenómenos como autónomos, retirando a força dessa sua doação para deixar que haja autonomia. Ora, estes fenómenos jogam numa cena aleatória, o que significa que as
regras deles que as ciências descobriram são para lhes permitir circular em
condições aleatórias, a que têm que se adequar. Então necessidade das regras
e aleatório de cada singular
tornam possível uma verdade relativa qque mantém a exigência moderna de relatividade de todas as coisas. O
longo capítulo 13 do meu Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida chama-se “demonstração da tese da verdade”.
10. O pensamento que esteve na origem
das 1000 páginas destes dois volumes veio-me inesperadamente, arrumava o carro ao chegar a casa num fim de tarde da primavera de
1985. As 5 ciências, que até aí considerava de forma dispersa, vinham já no quadro
que guardaram depois, em composição devida ao motivo derridiano de duplo
laço, e com elas também a técnica
no seu espécimen decisivo da civilização industrial, a máquina (exemplificada
pelo automóvel). O guião inicial apurou-se em complexidade, mas não se
desmentiu na dezena de anos que demorou a escrever-se.
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