terça-feira, 5 de maio de 2015

Os Passos que o Tempo dá



            1. Propus num texto anterior deste blogue – há vários sobre o tempo – contra a noção corrente, desde Agostinho de Hipona, pelo menos, de que não se sabe dizer o que é o tempo, não há uma definição dele, propus que a de Aristóteles na Physica “o tempo é o número [a medida] do movimento segundo o anterior e o posterior” (IV, 219 b 1) – desmente esse cepticismo, é mais do que a melhor definição possível, é uma definição excelente: ela implica que o tempo é derivado do movimento (como também o espaço, a distância). Só há tempo porque há movimento, mudança, o que significa que ele/a é o sujeito oculto das frases que têm a ver com o tempo, e não este, embora substantivado. Então, como disse noutro texto do blogue, são as coisas que são temporais, cada uma tendo o seu tempo, mais ou menos complexo, o tempo da sua vida ou duração, como parece comprovar este termo, ‘duração’, um dos raros que pode substituir tempo, com o verbo ‘durar’ e a preposição ‘durante’.
            2. Propriamente falando, não há um verbo derivado de tempo, para dizer a sua acção, não existe ‘tempar’ nem ‘intempar’, ‘destempar’, ‘retempar’, e por aí fora. ‘Temporizar’ ou ‘temporalizar’ são verbos com sentido mais restrito do que seriam esses verbos gerais que não há, e é possível que se passe algo de semelhante com ‘espaço’. As formas mais próximas de ‘tempar’ (ou ‘espaçar’, criar espaço) serão talvez ‘dar tempo’ (e ‘dar espaço’), já que ‘durar’ não se diz com tempo como sujeito: ‘o tempo dura’, ‘durou’, ‘durará’, mas ‘o tempo que isso dura’, ‘isso’ reenviando a um movimento, a algo de temporal, um ser vivo, uma reunião, um presidente, uma paisagem...
            3. Numa conferência do físico francês Étienne Klein (“Le temps existe-t-il?”, 12/06/2006), ele sugere o que pode ser uma boa maneira de abordar a questão, a análise do que os linguistas chamam a polissemia da palavra ‘tempo’ (ele diz “polifonia”), os usos diversos numa dada língua que lhe conferem sentidos diferentes que não são substituíveis (comutáveis, em calão linguístico) pelas mesmas palavras. Uma tal análise, mais do que uma competência por aí além, pede muito tempo, razão pela qual me limito a um exemplo de Klein que ele não desenvolve: o tempo passa.
            4. Com efeito, depressa ou devagar, o tempo passa. E ao tempo que fica para trás, chamamos passado, o tempo que passou: a passagem do tempo é uma expressão recorrente. O verbo ‘passar’ estará mais perto, ou tão perto, de ‘durar’, ambos são verbos que dizem o tempo como duração, como passagem. Enquanto que ‘durar’, com raiz em ‘duro’, consistente, parece dizer o que permanece na existência além do tempo, apesar do tempo quiçá, sem conotação ao espaço, o ‘passar’, tão temporal que é, é igualmente espacial, passar dum lado para outro. Isto é, o passar do tempo parece ser uma metáfora do movimento humano de andar, como constituído por uma sucessão (temporal, portanto) de passos que se repetem, ora o pé direito ora o pé esquerdo tomando a dianteira sobre o outro, um passeio.
            5. Poder-se-ia dizer que o passo é uma forma elementar do movimento humano que cobre distâncias, como confirma a maneira inglesa de usar o ‘pé’ como unidade de comprimento: o passo será uma metáfora de distância espacial, comparável com a clássica ‘linha’ geométrica utilizada para dizer e medir o tempo duma sucessão de instantes, de ‘pontos’. Mas o passo vai mais longe do que a linha, já que serve também para caracterizar a diferença num passeio entre, por um lado, o que se já andou, já ‘passou’, o anterior da definição aristotélica, o ‘passado’ sendo os passos que se deram até chegar ao tempo de agora, de hoje, e, por outro, o tempo presente; os passos não andam para trás, se se volta atrás são outros passos mudaram de frente, mas sempre para o posterior, o futuro. E presente, passado e futuro é a maneira da morfologia dos verbos, das ‘acções’, classificar e repartir as suas diversas e tão ricas formas, em línguas como o grego, o latim e o alemão, face à indigência morfológica dos verbos ingleses.
            6. Ao ganharem importância devido ao verbo ‘passar’ ter passado a dizer o tempo substantivado como passagem – para o que provavelmente a física europeia, o progressismo iluminista, o lugar do tempo nas ciências do século 19, o uso dos relógios na regulação da vida diária, foram decisivos enquanto reforço –, ‘passado’, ‘passar’ e ‘passagem do tempo’ esqueceram (como diria Heidegger) a sua relação etimológica com os ‘passos’: ‘passar tempo’ deixou de ser ‘dar passos’, ninguém quando fala no ‘tempo que passa’, em passado ou em passatempos pensa em passear, enquanto que a linha geométrica mantém-se claramente metáfora do tempo linear. O passo e o passeio é todavia provavelmente a melhor maneira de des-substancializar o tempo e de o restituir às coisas, à imensa variedade das suas temporalidades, à complexidade dos seus passos.
            7. A conferência de E. Klein é inteligente, um físico que se abalança a filosofar sobre o tempo. Nomeadamente sublinha que o princípio da causalidade, essencial em física, implica que a causa seja anterior ao efeito; que o passado (que não a sua leitura por nós, acrescente-se) não pode ser modificado; que a física de relatividade deu cabo da noção de simultaneidade (para velocidades próximas da luz apenas, creio). E é sua questão fundamental a do laço entre o tempo e os fenómenos temporais, os acontecimentos. Há sem dúvidas outras observações interessantes, mas o filósofo não consegue deixar de reparar em como a filosofia de Klein, a que recebeu no liceu, como todos os físicos e cientistas, “a filosofia espontânea dos sábios” de que falava Althusser, é inadequada ao tema. Distingue entre pensamento e linguagem e acha que esta sobredetermina aquele, como se ele pensasse fora da gramática e da semântica francesas ou inglesas. Como bom físico, opõe pensamento (e linguagem implicitamente) às coisas da realidade: a função do tempo, diz, não é passar mas fazer passar a realidade, donde a conclusão que tudo passa excepto o tempo; a certa altura mostra como a sua concepção de tempo é a da linha como sucessão de instantes, em que o instante presente se renova, sem que tenha sentido falar em velocidade do tempo. Acabei por não perceber se ele acha ou não que existe o tempo.
            8. Ora, ele recusou logo ao princípio “como facilidade” recorrer a Aristóteles, não consegui perceber porquê, não parecia o preconceito contra este filósofo que os cientistas clássicos tiveram durante alguns séculos, já que também não quer recorrer a Kant, filósofo de que, por regra, os cientistas gostam. Mas se tivesse olhado com atenção para a definição da Physica, poderia perceber que ela faz a ligação entre o tempo e os fenómenos temporais que ele queria, isto é, entre o tempo e o movimento, mas dando prioridade a este, ao contrário do que Klein faz ao longo de todo o seu discurso: chega a dizer que há muitas temporalidades diferentes no mesmo tempo, o que dá a entender que este é o tempo dos físicos (dos relógios), aliado do espaço na teoria da relatividade (espaço-tempo), prioritário por isso mesmo que é uma dimensão privilegiada da sua ciência, juntamente com o espaço. Ora, não só Aristóteles trata o tempo como segundo em relação ao movimento, questão doutro texto deste blogue, como também precisa como: é o seu número, isto é, a sua medida! Ora, nem uma só vez a noção de medida (que o tempo é dado em números) foi evocada por Klein como essencial ao tempo, este como período (dia e ano, os mais óbvios, números dos dois movimentos da terra), como diferença numérica entre tempos. Além disso, a definição acrescenta algo que a linearidade do tempo, a linha geométrica ignora, a noção de anterior e posterior, que é a posição no tempo do que o avalia e mede, como a metáfora dos passos ajuda a perceber. O velho Aristóteles deu uma bela definição de tempo, o problema é compreendê-la. Falta acrescentar que à 'distância' como medida do espaço, a 'duração' é a medida do tempo.
            9. E do espaço, que acrescentar? Se os passos vão dum lugar para o outro, o movimento espacial é o percurso entre dois lugares que se mede como distância, como diz a etimologia de geo-metria. Porquê este privilégio do lugar sobre o espaço? A física do século XX ajuda a perceber: o núcleo de cada átomo, protões e neutrões ligados por força nuclear, é o que resiste a toda a penetrabilidade, a todo o movimento de outro átomo que queira ocupar o seu lugar. É esta impenetrabilidade, que até os átomos das moléculas dos gases, da atmosfera, têm, que obriga a que qualquer movimento seja a passagem do átomo dum lugar para outro, o percurso duma distância espacial, seja uma transformação química, seja uma queda devida à gravidade.

            10. Resumindo e concluindo. O tempo e o espaço são (as duas) maneiras de medir  (com números) os movimentos e as diferenças entre eles. O tempo é a duração medida entre dois momentos (acontecimentos). O espaço é a distancia medida entre dois lugares. Nem acontecimento nem lugar têm números enquanto tais. Datas e longitudes / latitudes / cotas de altitude são diferenças entre acontecimentos e entre lugares, respectivamente.

P.-S.  um ano depois, a 7 de maio de 2016, a ler um livro de Paulo Varela Gomes, entretanto falecido ainda novo mas valente, O verão de 2012, encontro esta passagem.
"A questão do tempo cronológico era outra das suas obsessões: o calendário, disse, não é uma trajectória em si, mas apenas um instrumento que permite medir regularmente a trajectória dos dias e das estações do ano. O calendário, bem como o relógio, são instrumentos de uniformização da medida de todas as trajectórias e de todo o movimento, e a tal uniformização chamamos tempo, a dimensão não física mas hermenêutica na qual o movimento acontece" (p. 19). Muito bom!

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