1.
Propus num texto anterior deste blogue – há vários sobre o tempo – contra a
noção corrente, desde Agostinho de Hipona, pelo menos, de que não se sabe dizer
o que é o tempo, não há uma definição dele, propus que a de Aristóteles na Physica – “o tempo é o número [a medida] do movimento
segundo o anterior e o posterior” (IV, 219 b 1) – desmente esse cepticismo, é mais do que a melhor definição possível, é
uma definição excelente: ela implica que o tempo é derivado do movimento (como
também o espaço, a distância). Só há tempo porque há movimento, mudança, o que
significa que ele/a é o sujeito oculto das frases que têm a ver com o tempo, e
não este, embora substantivado. Então, como disse noutro texto do blogue, são
as coisas que são temporais, cada uma tendo o seu tempo, mais ou menos
complexo, o tempo da sua vida ou duração, como parece comprovar este termo,
‘duração’, um dos raros que pode substituir tempo, com o verbo ‘durar’ e a preposição
‘durante’.
2.
Propriamente falando, não há um verbo derivado de tempo, para dizer a sua
acção, não existe ‘tempar’ nem ‘intempar’, ‘destempar’, ‘retempar’, e por aí
fora. ‘Temporizar’ ou ‘temporalizar’ são verbos com sentido mais restrito do
que seriam esses verbos gerais que não há, e é possível que se passe algo de
semelhante com ‘espaço’. As formas mais próximas de ‘tempar’ (ou ‘espaçar’,
criar espaço) serão talvez ‘dar tempo’ (e ‘dar espaço’), já que ‘durar’ não se
diz com tempo como sujeito: ‘o tempo dura’, ‘durou’, ‘durará’, mas ‘o tempo que
isso dura’, ‘isso’ reenviando a um movimento, a algo de temporal, um ser vivo,
uma reunião, um presidente, uma paisagem...
3.
Numa conferência do físico francês Étienne Klein (“Le temps existe-t-il?”,
12/06/2006), ele sugere o que pode ser uma boa maneira de abordar a questão, a
análise do que os linguistas chamam a polissemia da palavra ‘tempo’ (ele diz
“polifonia”), os usos diversos numa dada língua que lhe conferem sentidos
diferentes que não são substituíveis (comutáveis, em calão linguístico) pelas
mesmas palavras. Uma tal análise, mais do que uma competência por aí além, pede
muito tempo, razão pela qual me limito a um exemplo de Klein que ele não
desenvolve: o tempo passa.
4.
Com efeito, depressa ou devagar, o tempo passa. E ao tempo que fica para trás, chamamos passado, o tempo que passou: a passagem do tempo é uma
expressão recorrente. O verbo ‘passar’ estará mais perto, ou tão perto, de
‘durar’, ambos são verbos que dizem o tempo como duração, como passagem.
Enquanto que ‘durar’, com raiz em ‘duro’, consistente, parece dizer o que
permanece na existência além do tempo, apesar do tempo quiçá, sem conotação ao
espaço, o ‘passar’, tão temporal que é, é igualmente espacial, passar dum lado para outro. Isto é, o passar do tempo
parece ser uma metáfora do movimento humano de andar, como constituído por uma sucessão (temporal,
portanto) de passos que se repetem,
ora o pé direito ora o pé esquerdo tomando a dianteira sobre o outro, um
passeio.
5.
Poder-se-ia dizer que o passo é uma forma elementar do movimento humano que
cobre distâncias, como confirma a
maneira inglesa de usar o ‘pé’ como unidade de comprimento: o passo será uma
metáfora de distância espacial, comparável com a clássica ‘linha’ geométrica
utilizada para dizer e medir o tempo duma sucessão de instantes, de ‘pontos’.
Mas o passo vai mais longe do que a linha, já que serve também para caracterizar
a diferença num passeio entre, por um lado, o que se já andou, já ‘passou’, o anterior
da definição aristotélica, o
‘passado’ sendo os passos que se deram até chegar ao tempo de agora, de hoje,
e, por outro, o tempo presente; os passos não andam para trás, se se volta
atrás são outros passos mudaram de frente, mas sempre para o posterior, o futuro. E presente, passado e futuro é a
maneira da morfologia dos verbos, das ‘acções’, classificar e repartir as suas
diversas e tão ricas formas, em línguas como o grego, o latim e o alemão, face
à indigência morfológica dos verbos ingleses.
6.
Ao ganharem importância devido ao verbo ‘passar’ ter passado a dizer o tempo
substantivado como passagem – para o que provavelmente a física europeia, o
progressismo iluminista, o lugar do tempo nas ciências do século 19, o uso dos
relógios na regulação da vida diária, foram decisivos enquanto reforço –,
‘passado’, ‘passar’ e ‘passagem do tempo’ esqueceram (como diria Heidegger) a
sua relação etimológica com os ‘passos’: ‘passar tempo’ deixou de ser ‘dar
passos’, ninguém quando fala no ‘tempo que passa’, em passado ou em passatempos
pensa em passear, enquanto que a linha geométrica mantém-se claramente metáfora
do tempo linear. O passo e o passeio é todavia provavelmente a melhor maneira
de des-substancializar o tempo e de o restituir às coisas, à imensa variedade
das suas temporalidades, à complexidade dos seus passos.
7.
A conferência de E. Klein é inteligente, um físico que se abalança a filosofar
sobre o tempo. Nomeadamente sublinha que o princípio da causalidade, essencial
em física, implica que a causa seja anterior ao efeito; que o passado (que não
a sua leitura por nós, acrescente-se) não pode ser modificado; que a física de
relatividade deu cabo da noção de simultaneidade (para velocidades próximas da
luz apenas, creio). E é sua questão fundamental a do laço entre o tempo e os
fenómenos temporais, os acontecimentos. Há sem dúvidas outras observações
interessantes, mas o filósofo não consegue deixar de reparar em como a
filosofia de Klein, a que recebeu no liceu, como todos os físicos e cientistas,
“a filosofia espontânea dos sábios” de que falava Althusser, é inadequada ao
tema. Distingue entre pensamento e linguagem e acha que esta sobredetermina
aquele, como se ele pensasse fora da gramática e da semântica francesas ou
inglesas. Como bom físico, opõe pensamento (e linguagem implicitamente) às
coisas da realidade: a função do tempo, diz, não é passar mas fazer passar a
realidade, donde a conclusão que tudo passa excepto o tempo; a certa altura
mostra como a sua concepção de tempo é a da linha como sucessão de instantes,
em que o instante presente se renova, sem que tenha sentido falar em velocidade
do tempo. Acabei por não perceber se ele acha ou não que existe o tempo.
8.
Ora, ele recusou logo ao princípio “como facilidade” recorrer a Aristóteles,
não consegui perceber porquê, não parecia o preconceito contra este filósofo
que os cientistas clássicos tiveram durante alguns séculos, já que também não
quer recorrer a Kant, filósofo de que, por regra, os cientistas gostam. Mas se
tivesse olhado com atenção para a definição da Physica, poderia perceber que ela faz a ligação entre o
tempo e os fenómenos temporais que ele queria, isto é, entre o tempo e o
movimento, mas dando prioridade a este, ao contrário do que Klein faz ao longo de todo o seu discurso: chega a
dizer que há muitas temporalidades diferentes no mesmo tempo, o que dá a entender que este é o tempo dos
físicos (dos relógios), aliado do espaço na teoria da relatividade (espaço-tempo),
prioritário por isso mesmo que é uma dimensão privilegiada da sua ciência, juntamente
com o espaço. Ora, não só Aristóteles trata o tempo como segundo em relação ao
movimento, questão doutro texto deste blogue, como também precisa como: é o seu
número, isto é, a sua medida! Ora, nem uma só vez a noção de medida (que o tempo é dado em números) foi evocada por Klein como
essencial ao tempo, este como período (dia e ano, os mais óbvios, números dos
dois movimentos da terra), como diferença numérica entre tempos. Além disso, a
definição acrescenta algo que a linearidade do tempo, a linha geométrica
ignora, a noção de anterior e posterior, que é a posição no tempo do que o avalia e mede,
como a metáfora dos passos ajuda a perceber. O velho Aristóteles deu uma bela
definição de tempo, o problema é compreendê-la. Falta acrescentar que à 'distância' como medida do espaço, a 'duração' é a medida do tempo.
9.
E do espaço, que acrescentar? Se os passos vão dum lugar para o outro, o
movimento espacial é o percurso entre dois lugares que se mede como distância,
como diz a etimologia de geo-metria. Porquê este privilégio do lugar sobre o
espaço? A física do século XX ajuda a perceber: o núcleo de cada átomo, protões
e neutrões ligados por força nuclear, é o que resiste a toda a penetrabilidade,
a todo o movimento de outro átomo que queira ocupar o seu lugar. É esta
impenetrabilidade, que até os átomos das moléculas dos gases, da atmosfera,
têm, que obriga a que qualquer movimento seja a passagem do átomo dum lugar
para outro, o percurso duma distância espacial, seja uma transformação química,
seja uma queda devida à gravidade.
10. Resumindo e concluindo. O tempo e
o espaço são (as duas) maneiras de medir (com números) os movimentos e as diferenças entre eles. O
tempo é a duração medida entre dois momentos (acontecimentos). O espaço é a distancia
medida entre dois lugares. Nem acontecimento nem lugar têm números enquanto tais.
Datas e longitudes / latitudes / cotas de altitude são diferenças entre
acontecimentos e entre lugares, respectivamente.
P.-S. um ano depois, a 7 de maio de 2016, a ler um livro de Paulo Varela Gomes, entretanto falecido ainda novo mas valente, O verão de 2012, encontro esta passagem.
"A questão do tempo cronológico era outra das suas obsessões: o calendário, disse, não é uma trajectória em si, mas apenas um instrumento que permite medir regularmente a trajectória dos dias e das estações do ano. O calendário, bem como o relógio, são instrumentos de uniformização da medida de todas as trajectórias e de todo o movimento, e a tal uniformização chamamos tempo, a dimensão não física mas hermenêutica na qual o movimento acontece" (p. 19). Muito bom!
P.-S. um ano depois, a 7 de maio de 2016, a ler um livro de Paulo Varela Gomes, entretanto falecido ainda novo mas valente, O verão de 2012, encontro esta passagem.
"A questão do tempo cronológico era outra das suas obsessões: o calendário, disse, não é uma trajectória em si, mas apenas um instrumento que permite medir regularmente a trajectória dos dias e das estações do ano. O calendário, bem como o relógio, são instrumentos de uniformização da medida de todas as trajectórias e de todo o movimento, e a tal uniformização chamamos tempo, a dimensão não física mas hermenêutica na qual o movimento acontece" (p. 19). Muito bom!
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