1. Foi uma crónica recente de Pedro
Mexia no Expresso,
“Provocação”, que me provocou, ao expor como António José Saraiva concebia a
cultura como “o costume, a norma, a integração da subjectividade, e portanto a
direita; ao passo que a esquerda representa as ‘ideias’, ou seja, a contestação
à cultura”. A noção provocatória de esquerda / direita interessa-me menos do
que a noção de ‘cultura’ (oposta às ‘ideias’), “a estabilidade de convicções e
símbolos colectivos”, esclarece Mexia, que me parece corresponder ao motivo de
‘tradição’, a que ‘progresso’ se opõe.
2. Aconteceu-me propor o motivo de
‘cultura’ duma forma que pode parecer próxima desta e foi á diferença que fui
provocado, é ela que me importa aqui marcar. Essa estabilidade de costumes foi
tradicionalmente garantida pelas religiões, em sociedades em que a economia e a
riqueza eram essencialmente de tipo agrícola, sujeitas à fecundidade das
plantações e dos rebanhos (como hoje à produtividade): a religião era uma instância holística, integrava todos, vinha dos Antepassados, de quem se receberam os usos e
costumes e que, estando ausentes, sepultados, têm efeitos no presente, o que as
entidade sobrenaturais e imortais atestam em mitos e rituais: há que fazer como
os nossos pais sempre fizeram, explicavam aos antropólogos e aos missionários.
Tendo a ver com a fecundidade incerta, dom dos deuses, o sagrado intervinha de
múltiplas formas na vida de todos os dias.
3. O que chamamos cultura afirmou-se nas sociedades cosmopolitas que misturaram
as populações e portanto os antepassados e as religiões, e afirmou-se
justamente rompendo com este sagrado religioso: o seu gesto decisivo é o da
modernidade por excelência, a critica parcial da herança das tradições,
incluindo a religião. Atestam-no
os fundadores dos dois pilares da cultura europeia. Sócrates: “só sei que nada
sei” significa que tudo o que me ensinaram de ancestral não vale como saber; o
que explica que tenha sido condenado à morte por impiedade em relação aos deuses.
Jesus: “aprendeste que foi dito aos antepassados [...] ora bem, eu vos digo
que”, esta fórmula de contestação de Moisés aparece 6 vezes no cap. 5 do
evangelho de Mateus; também ele foi condenado à morte pelo poder religioso.
Nenhum deles escreveu uma linha mas os escritos dos seus discípulos
contribuíram poderosamente para abrir espaços cosmopolitas, o do helenismo
pelas escolas filosóficas, nomeadamente as se reclamando de Platão; ambos foram
decisivos na fundação das universidades medievais sem as quais não teria havido
Europa; e ainda a reforma protestante e o lugar da leitura do livro evangélico
nela foi decisiva na diferença entre o espaço norte da Europa onde o
capitalismo e a industrialização medraram e o sul que ficou fechado às sete
chaves da religião.
4. O que significa que o motivo
cosmopolita moderno de cultura com o lugar essencial da escrita nela, implica o motivo de escolha critica na tradição (‘escolha’, em grego, dizia-se ‘heresia’): pouco
importa com quem ela começa, é a sua propagação que a torna ‘cultura’, mas
apenas cultura de uns tantos, muitos talvez, mas não todos; já a Antiguidade
grega e romana foi ‘moderna’. Como a religião, a cultura também reenvia para
Antepassados, só que agora eles têm nomes e datas das suas obras, invenções, textos,
quadros, músicas, homens e mulheres de acção, e por aí fora. Foi a escola que se tornou a instituição holística (que veio substituir as igrejas, tornadas
minoritárias), a escola obrigatória para todos, que estabelece as bases das
tradições culturais. Mas basta ver como ela, à medida que aprofunda os graus de
conhecimento, os vai especializando e eliminando os que não aguentam a
pedalada, para se perceber que não há nenhuma cultura geral, para toda a gente,
afora as bases escolares, o ler, escrever e contar e pouco mais. Mesmo a
língua, que permanece com a gastronomia, a melhor candidata ao holismo cultural,
só o é ao nível dos primeiros graus escolares, que permite a todos os cidadãos
entenderem-se; acima começa uma iliteracia que se tornará regra, até entre
especialistas de especialidades diversas: somos todos mais ignorantes do que
sabedores do saber que hoje se sabe.
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