As ciências da matéria e da energia
As ciências dos vivos
As ciências antropológicas
As ciências do saber
A poluição: fora do laboratório
Os inertes e as células
Ecologia e economia
Apocalipse e regionalização
Eu sou devedor à Terra
A Terra me está devendo
A Terra paga-me em vida
Eu pago à Terra morrendo
(cante alentejano)
1. Pressuposto deste texto, as ciências modernas
deram-nos a conhecer quatro grandes histórias cujas problemáticas incidem na
crise ecológica: a cosmológica dos astros, incluindo a Terra onde essas
ciências se situam, e três terrestres, a da evolução dos vivos, a das sociedades
humanas e a do saber greco-latino-europeu, cada uma sendo envolvida pela
precedente donde desabrochou. A Filosofia com Ciências (uma nova fenomenologia) é um nível de filosofia entre a filosofia teórica
e as ciências, de modo equivalente ao que foi a Physica de Aristóteles entre a
Metaphysica e as várias ciências aristotélicas.
2. O motivo heideggeriano de diferença ontológica articula o que o pensador designa como Ser e os
entes, aquele doando estes e retirando-se; ora, em 1962, na conferência Tempo
e Ser, esse Ser foi substituído
pelo motivo do Ereignis,
Acontecimento de nível ontológico – o que havia de ‘unidade’ em Ser cede a uma
‘multiplicidade’ doadora – donde os entes serem, em seu ‘ser’ e ‘tempo’, doação
retirada desse Acontecimento ontológico. Ora é destes entes, segundo critérios
específicos, que se ocupam as diversas ciências[1].
Entre estes dois níveis, o do Acontecimento ontológico e o das ciências dos
entes, esta Fenomenologia descreve, a partir das descobertas das diversas
ciências, os mecanismos fenomenológicos que o motivo da doação que se retira do Acontecimento ontológico permite descortinar
nesses domínios científicos: é isso que a expressão o que a Terra dá explicita de forma geral. Esta expressão pertence
à linguagem corrente das actividades agrícolas, aonde aponta para a fecundidade
das plantas, mas, na Origem da obra de arte, Heidegger ao reflectir sobre a phusis, a natureza, chama-lhe Terra, o que permite alargar – ao nível da descrição
fenomenológica dos mecanismos dos diversos entes – o dom da Terra à doação
retirada do Acontecimento ontológico. O que se vai tentar dizer é como em cada
um dos domínios científicos tidos em conta (Física Química, Biologia, Ciências
das sociedades, Linguística, Psicanálise) se efectua essa doação retirada da Terra,
ou seja, indagar como são dados os minerais e os animais, as sociedades dos
humanos e as suas invenções em ordem a habitarem a Terra que os dá: sendo mecanismos
de autonomia com heteronomia apagada, a autonomia é dada (doação da Terra) pela heteronomia que se apaga
(retiro da doação) para que a autonomia seja possível, tendo as mesmas regras
do que as outras (heteroi)
autonomias equivalentes.
3. Permita-se-me uma pequena digressão sobre a
questão de saber se estes mecanismos fenomenológicos são ônticos ou porventura
ôntico-ontológicos. Trata-se dum nível que não é o das ‘regras’ que as ciências
descobrem, mas que tem (deve ter) incidência no paradigma que descreve a cena
de produção e circulação dos entes ou fenómenos (cena da gravitação e da
química, ecológica dos vivos, habitação tribal em sentido genérico, cena
escolar e laboratorial). O paralelo com a Physica aristotélica diria que esses
mecanismos (com a metáfora ‘motor / aparelho’) correspondem ao motivo da ousia
e da sua panóplia de motivos, que
a Metaphysica trata em termos não fenoménicos, dos entes já não enquanto se
movem mas enquanto entes. Seria este o nível do pensamento heideggeriano da
doação e retiro do Ser e depois do Ereignis, enquanto que o Dasein, o “ser no mundo” de Ser e Tempo com a sua estrutura da “afeição, compreensão e
interpretação discursiva” e do “cuidado”, relevariam do nível da Physica.
Enquanto que a différance
derridiana, a meu ver, com o seu enigma da indissociabilidade da economia do
Mesmo e do excesso do Outro e a sua maneira de ler desconstruindo os textos na
sua singularidade, não permite discernir níveis de fenomenologia e de
metafenomenologia. Mas é ‘a meu ver’.
As ciências da matéria e da energia
4. A ciência da matéria e da energia
é, de todas as ciências que os humanos inventaram, a única que extravasa da
Terra e se estende a todos os astros, o que tem uma consequência óbvia: esta
Terra, que dá tudo o que é terrestre, é ela própria dada por outros astros,
quer as estrelas que criaram os átomos, as moléculas, os graves de que a Terra
é feita, quer o Sol e os outros planetas do sistema a que ela pertence. Pouco
sei desta matéria, mas presumo que há na geologia uma riqueza de diversidade de
minerais, em rochas, oceanos e atmosferas, embora em quantidades muito
diferentes, desde a tão abundante sílica e do hidrogénio e oxigénio aos
minérios mais raros, riqueza comparada com o que se vai sabendo dos áridos
planetas que nos rodeiam.
5. Doada pois ela mesma, antes de se
tornar doadora, poder-se-á dizer que a Terra é também doadora de toda essa
mineralidade, sólida, líquida e gasosa, vulcânica, sedimentada e metamórfica,
que a constitui, com um centro sem acesso ao conhecimento directo? Os vulcões e
os sismos que nos aterrorizam por vezes (o ‘terror’ da Terra) assinalam os movimentos
que ela sempre conheceu ao ser constituída; também os jogos da energia solar
(luz e calor), das marés e inundações, dos ventos e tempestades, sempre
produziram fenómenos de erosão e transformação química, de que Lavoisier deu a
regra geral: “na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”.
Esta fórmula diria como a Terra não foge à doação que outros astros dela
fizeram e que continuam, mais ou menos perto da Gaia de Lovelock: como astro
autónomo doado pela heteronomia astral, continua a ser feita e a fazer-se, e também a fazer doando-se do que lhe
foi e é doado, passiva do que recebeu e recebe, activa do que faz doação por
sua vez. É que entre matéria e energia a Terra nunca deixou de se transformar,
na sua temporalidade de quatro biliões e meio de anos.
As ciências dos vivos
6. Como é que a ciência dos vivos
releva da doação da Terra? O que se cria e o que se perde traduz-se nos vivos
em nascimento e morte, em reciprocidade relativa: cada vivo nasce de outros
vivos e a esmagadora maioria dos cadáveres destina-se a servir de alimento a
outros vivos, segundo esta feroz lei da selva[2] que resulta da doação justamente e coloca na
mesma lógica geral plantas e animais, a lógica da alimentação. Enquanto que a reprodução sexuada se processa
pela geração, entre progenitores e rebentos, a reprodução de cada vivo como
crescimento e maturidade faz-se pela alimentação que, nas plantas (que nunca
estudei) implica a Terra e o Sol: sabe-se que elas recebem moléculas de carbono
em glicose que resulta da fotossíntese com o CO2 atmosférico, da
iluminação solar assim, enquanto que os outros átomos de que ela necessita lhe
vêm da água e doutros minerais que as raízes colhem do solo da Terra. Este
processo de alimentação dá assim às células das plantas as hiper-complexas
moléculas de carbono e outros átomos que são próprias dos vivos.
7. Ora, os animais, desde os invertebrados com um
mínimo de órgãos digestivos e neuronais, não têm outra fonte dessas moléculas
complexas de que as suas células são feitas que não sejam essas plantas que,
herbívoros, eles encontram no seu espaço ecológico, enquanto que os carnívoros
os caçam a eles, herbívoros, para o mesmo efeito. Pode-se pensar esta
alimentação animal através de aparelhos digestivo e circulatório[3]
como um fenómeno de redução
progressiva dos ‘bocados’[4]
comidos até se tornarem nos aminoácidos que chegam às células para aí serem
sintetizados nas proteínas de que elas necessitam. A Terra que faz doação é o
conjunto de espaços ecológicos com plantas ou animais.
8. Neste sentido fenomenológico, a Terra,
incluindo a atmosfera que lhe pertence e a luz recebida do Sol, corresponde à phusis de Aristóteles, o seu archê, o seu ‘poder’ (do verbo que pode, não do
substantivo) residindo nesta fabulosa doação de mecanismos que, por alimentação
de outros, crescem como entes
autónomos que receberam numa célula inicial (ovo: o metabolismo do protoplasma
com um núcleo de ADN); é esse mecanismo que lhes permite circular na sua cena
ecológica, buscando que comer e capazes de fugirem a serem comidos: recebidos
da doação dos progenitores, continuam quotidianamente a receber a doação alimentar
na selva ecológica. Os animais são pois capazes de movimento por si mesmos
(Aristóteles), auto-móveis, mecanismos autónomos com heteronomia apagada, doação pela Terra que os deixa ser autónomos ‘retirando-se’. E é claro que essa
doação também é feita às sociedades de mamíferos bípedes, cuja etologia se tornou
de tal modo complexa que deu lugar a ciências autónomas da Biologia, a
Antropologia, a História e a Sociologia, além de numerosas ciências sociais
relativas a estruturas específicas (nomeadamente a Linguística, ciência das línguas,
e a Economia, ciência dos mercados). Mas esta bipartição entre Biologia e
Ciências do social, teve e tem um grave inconveniente de ordem fenomenológica
(e ecológica, lá iremos mais adiante), o de manter mais ou menos dissimuladamente
a oposição platónica e cristã entre corpo e alma, as ciências separando-se assim entre elas. Ao contrário da abordagem de
Aristóteles, cujo tratado Da alma é um texto ‘biológico’ que vai até à ‘alma intelectiva’, depois de tratar
da ‘vegetativa’ (referente à nutrição) e da ‘sensitiva’ (referente aos órgão
dos sentidos e à mobilidade).
As ciências antropológicas
9. A Biologia molecular tornou-se em boa parte uma
bioquímica, guardando assim relação com a ciência da matéria e da energia, mas,
como disse, as ciências das sociedades humanas padecem de terem cortado com as
ciências biológicas e etológicas, apesar de as suas unidades de habitação terem
um problema principal que lhes vem da reprodução biológica: garantirem a
alimentação quotidiana dos seus vários membros humanos e velar pela geração e
aprendizagem dos que virão tomar o lugar da geração actual. E é a Terra – e não
o ‘território’! – que dá procriação e alimento, tal como já aos outros animais
e plantas, acrescentando-se uma nova exigência, a de garantir pela aprendizagem
que os vários usos de prover à recolha dessa doação que os antepassados foram
inventando continuem a ser sabidos: esse saber do seu mundo envolvente, achado
pela curiosidade, tanto engenho como necessidade, acumulou-se, ensinou-se,
cresceu.
10. A invenção da agricultura trouxe um domínio
relativo das sociedades humanas sobre a lei da selva (deixaram de ser ‘selvagens’). Além disso, o
excedente de alimentação permitiu a formação de especializações artesanais
variadas em vilas rodeadas de campos agrícolas e de gado, mas também a formação
duma casta de guerreiros que desenvolveu a lei da guerra que já havia entre tribos (aliada então à lei da
selva) com o fabrico de armas metalúrgicas e domesticação de cavalos. Pode-se
dizer que o núcleo geográfico destas sociedades consistiu em regiões duma vila com casas de artesanato rodeada de
casas agrícolas que a alimentavam: provavelmente essa estrutura é o esqueleto
da evolução social cuja base de riqueza consiste na (agri) cultura do que a
Terra dá. A escravatura terá aí a sua lógica, a de aumentar os benefícios da
Terra em latifúndios a favor dos guerreiros que conquistaram / compraram esses
escravos.
11. As invenções dos humanos relevaram do fazer (técnicas e rituais) e do seu dizer (receitas e mitos). Com as cidades, os fazeres
ganharam instrumentos e os dizeres técnicas de escrita, o que estará no cerne
da lógica que levou a grandes reinos e impérios, tendo a difusão de textos
copiados dado origem a unidades sociais inéditas, as escolas destinadas à educação dos filhos dos patrícios
ricos; na Grécia dos séculos V e IV a. C. e em Roma depois gerou-se uma
civilização cosmopolita que desaguou, se dizer se pode de guerras de conquista,
no império romano que dominou a geografia mediterrânica durante alguns séculos.
Após um bom milénio de regressão das cidades, a dita Cristandade, com o
desenvolvimento de artesanatos e comércio em vilas bem como de universidades
recuperando saberes antigos, gerou-se lentamente uma nova civilização cosmopolita
que veio a desaguar na modernidade europeia, ainda durante alguns séculos com
base no trabalho de escravos, vindos de África. A escravatura também era uma
doação da Terra, à mercê das armas de fogo que entretanto se inventaram, em má
hora para os conquistados, reduzidos a uma espécie de ‘animais domésticos’, lei
da guerra que continuou a sobrepor-se à lei da selva. Que a lei da guerra seja predominante na história das sociedades humanas,
lei das vontades de poder
(substantivo: poder sobre as outras vontades que assim podem menos)[5],
não implica pessimismo de concepção da história, já que o que esta conta de
optimista é justamente o incessante trabalho de ‘educação’ (em sentido etimológico,
o que busca trazer -duc- para fora e- ) como domínio relativo sobre a lei da
guerra pelo que em geral merece o termo de cultura, em certo paralelo com o termo agricultura no que à lei da selva se refere. Espiritualidades
e religiões, literaturas e filosofia, leis por justiça e direito, artes
variadas e desportos, tantas formas de visar conter as rivalidades aonde elas
largam o estímulo da concorrência entre quem ‘pode’ – como se diz ‘concurso’ –
para o ‘poder’ sobre os outros, para que eles ‘não possam’. O lindo verbo
‘poder’ e o seu nefasto substantivo. Também aqui a Terra dá retirando-se, isto
é, nunca as coisas estão acabadas, a cultura implica sempre busca de saber e
recomeço com o ensino das novas gerações.
As ciências do saber
12. Houve três momentos decisivos na história
greco-latina-europeia do saber, além do que diz respeito ao direito romano e
que eu desconheço: o momento grego foi o da invenção da definição (Sócrates,
Platão, Aristóteles), o momento cristão foi o da assunção do discurso cristão
pelo platonismo (Orígenes, Agostinho, reviravolta aristotélica de Tomás de
Aquino), o momento europeu foi o da invenção do laboratório científico
(Galileu, Newton entre outros); este último articulou duma forma singular em
todas as histórias de humanos que se conheçam, as duas achegas medievais, a do
saber universitário filosófico aristotélico e a do labor artesanal das comunas.
13. O laboratório é pois o ‘labor’ ao serviço do
‘saber’. Mas também o seu preço ecológico, que se manifesta na diferença entre
o sentido antigo da palavra ‘physica’ e o da nova ‘física’, aquele visando os
vivos como os que de si se movem e este medindo as diferenças de movimentos em inertes, isto é, em substâncias que não se mexem delas mesmas,
só forças de fora as fazendo mover. Ora bem, esta diferença corresponde à que
na geografia evocada há entre os campos – humanos, animais, plantações, tudo se
afirmando pela fecundidade que a Terra lhes dá, ela se encolhendo como paisagem
– e as cidades, que se organizam com outras lógicas de habitação, de construção
e artesãos, de comércio e de negócios, de discussões e de decisões dos que
‘podem’, ou do chefe que ganhou o ‘poder’. Claro que as cidades são de gente
viva, a lógica da vida manifesta-se quotidianamente nas refeições – quando há
festa, há banquete – e nos dejectos (primeiras poluições em cidades grandes),
mas as preocupações citadinas são no fabricar e no trocar, no discutir e
estudar, ler, compreender, escrever, ou seja o que nela se afirma merecerá o
nome de razão, que vem de ‘ração’ como resultado de partilha: nas grandes
cidades modernas os vivos como que estão a mais, árvores, cães e gatos, gente
sem abrigo ou sem papeis. Pelo contrário, as casas da agricultura tendem à
auto-subsistência, do que colhem da Terra com usos que implicam saberes antigos
cuidadosamente guardados como condição da fecundidade, dos campos como das
casas. É que também as ‘tradições’ são alvo de critica nas cidades que
privilegiam o novo e que, quando não é possível, inventam modas para fingir que
é novo. Ora, inventa é sempre modifica o antigo recebido, reduzindo, deixando cair, a parte desse recebido que é
recusada pelo novo. Quem inventa não esquece completamente esse reduzido contra
o qual se bate, mas a geração que aprende com ele a invenção não saberá já desse reduzido que foi substituído. Há pois
esquecimento social dos saberes tradicionais que vão sendo substituídos pelos
inventos, a história ‘moderna’ é feita desse esquecimento / inovação, as
sociedades antigas pelo contrário recusando as alterações modernas, as querelas
Antigos / Modernos renascem constantemente. O que é reduzido e esquecido não se
perde todavia necessariamente, é sempre susceptível de ser recuperado
posteriormente segundo a outra perspectiva que a inovação trouxe, aonde esta
fizer doer: a ecologia joga-se estruturalmente assim, procurando recuperar mais do que conservar, em
ordem a compensar prejuízos resultantes das inovações. Pode-se aliás dizer que
a psicanálise oferece, ao seu nível de terapia individual, um modelo de saber
em que justamente se recuperam memorias esquecidas que fazemfalta, cujo
esquecimento provoca sofrimentos.
A poluição: fora do laboratório
14. Só em cidades é que o laboratório podia ter
sido inventado. Ele é filho da também já citadina definição, como esta delimita
o que nela entra para ser medido, reduzindo o contexto em que as coisas são dadas (pela Terra, pois), reduzindo portanto as forças e efeitos todos que essas
doações implicam de maneiras complicadas de compreender: o laboratório só sabe, e quanto bem isso não é, do que mede dentro dos
seus muros; para extrapolar esse saber para fora dele ‘especula teoricamente’
que as coisas, sob as tais ‘forças e efeitos todos’, obedecem às leis que o
laboratório descobriu. E se se diz que a ciência ‘especula teoricamente’, é
para assinalar que muita coisa fica por saber do que se passa fora dos muros.
Ora bem, quando a nova Física desaguar na invenção da máquina um ou dois
séculos depois, haverá juntamente com as novidades de grande espanto das
inauditas indústrias também efeitos perniciosos igualmente inauditos, o que se
chama poluição não sendo mais do que efeitos fora dos laboratórios daquilo que
só pôde ser inventado dentro deles: os ditos efeitos secundários, os que não se previram e que nem sempre se sabe
explicar. O que chamamos automóvel é ao mesmo tempo tanto a admirável invenção dum mecanismo que se
move por si mesmo, que até aí só os animais e os humanos (veio substituir a
carruagem e a carroça!), como a poluição das atmosferas das cidades, em que a
lógica predominante não é a das regras dos vivos, mas a da construção, da
produção, do comércio. É onde está a raiz do problema ecológico.
15. A poluição com origem nos vivos, própria das
grandes cidades sobretudo, resolve-se com esgotos e reciclagem de detritos
orgânicos, não é onde haja problemas difíceis, como a que consiste nos efeitos
de produção sobre a atmosfera (explosões de motores e centrais energéticas),
substâncias radioactivas, efluentes químicos (insecticidas, pesticidas,
venenos), plásticos e por aí fora, que se expandem nos rios e águas freáticas,
fontes de águas potáveis, oceanos, e intervêm pois na chamada cadeia alimentar,
além dos efeitos nas saúdes. Que lógica fenomenológica se esconde neste tão
grave problema?
Os inertes e as células
16. Há duas formas elementares de matéria terrestre, ambas se encadeando a
dimensões microscópicas, a dos átomos e suas moléculas minerais, e a das
células feitas de moléculas orgânicas (com base de carbono), as quais chegam à
nossa vista desarmada respectivamente como inertes e como vivos. A fenomenologia dos átomos, dentro dos limites de temperatura e pressão
do planeta, pode ser descrita como resistindo à desintegração por efeito das forças nucleares e
oferecendo-se às forças da
gravidade, por um lado, e, por outro, à transformação química na proximidade
molecular, esta jogando melhor com gases e líquidos ou pastosos. A violência
geológica da terra em seus cataclismos
tem a ver com estas propriedades. É a fenomenologia dos vivos que mais interessa
a ecologia. O segredo deles é a fecundidade, o que já tanto espantou Aristóteles, que eles cresçam (em grego phuô, donde phusis) e se reproduzam, o preço é a sua vulnerabilidade,
de que a morte é a consumação. Esta fragilidade é-lhes intrínseca, resulta de
que a fecundidade, o moverem-se por si num ambiente ecológico que os dá, implica
que as moléculas orgânicas, as da bioquímica, sejam muitíssimo mais complexas
dos que as dos inertes, compostas de aminoácidos mais simples e aguentam-se
mal, degradam-se facilmente em suas partes, donde que, além da geração, cada
célula necessite constantemente de se alimentar de aminoácidos (que ela sabe
‘sintetizar’ no metabolismo através destes mecanismos extraordinários operados
pelos ARNs e pelos ADNs), necessite de os encontrar na cena ecológica. Em termos de entropia, a bioquímica representa uma produção entrópica, como mostrou Prigogine, mas a qual sendo uma estabilidade instável, precisa de ser mantida e acaba finalmente por ser vencida como entropia de Clausius. Mas que
a Terra dê a fecundidade como a coisa mais forte do mundo terrestre, não
significa pacifismo, já que há duas formas de violência da busca da fecundidade
enquanto busca de crescimento:
uma releva das plantas, é a que faz as selvas e os matos, com uma verdadeira
luta entre plantas, raízes e troncos, sei lá, para conquistarem lugares,
sementes excessivas para que outros rebentos rebentem, como a linguagem traduz tal violência; a outra
releva dos animais, como acima se referiu que estes se alimentam de outros
vivos nessa inacreditável lei da selva que não vejo os biólogos darem por ela, obnubilados pelo nível da bioquímica.
17. Ora, a evolução que se desenvolveu das
consequências desta lei violenta seleccionou, entre modos de muitas astúcias,
formas de dimensão maior e os respectivos músculos e bocas predatórias. Sendo a
lógica inerente aos vivos a busca de crescimento e nos animais ela precisando de complexidade
neuronal crescente, os humanos receberam da lei da selva os músculos e a
dissimulação engenhosa que os levou ao deslocamento da lei da selva para lei
da guerra enquanto lei da história, da evolução das sociedades humanas. Vivemos numa época cosmopolita e
ecuménica, pacifista e anti-racista, o que impede de se perceber que as
necessidades do próprio crescimento, do pequeno para o grande, implica que as
unidades sociais se estruturem segundo uma privacidade protegida que olha todos
os outros como ‘estranhos’, como se fossem a priori rivais, fenómeno que se repete nas aldeias, nos
bairros das cidades e seus clubes, nas regiões, enfim nos países de línguas e
usos diferentes, em que os estranhos são estrangeiros. São os paradigmas do que
gera o ‘próprio’ (que cresce dentro da propriedade) que, para conter as
rivalidades entre os seus indígenas, é levado a fomentar a unidade deles
através da rivalidade para os de fora. A lei da guerra manifesta-se aí de forma
clara e não há maneira de a impedir de se jogar, apenas tentar dominá-la por
alianças, leis, tratados, etc. Porque é que isto é assim? Porque a doação pela
Terra dos animais como mecanismos autónomos implica que estes a recebem passivamente mas em simultâneo (devido ao retiro da doação
aquando da sua inscrição) apropriação activa dela, dinamismo da autonomia (desejo, vontade),
destinado a circular na selva ou na tribo, devendo, para se alimentar, afirmar-se
violentamente face aos outros. Donde que a história se tenha traduzido quase
sempre em guerra pelo crescimento, os poderosos ocupando sempre mais e mais lugares, guerra de conquista: reinos e impérios, escravos e colónias. E por
aqui voltamos à ecologia, aos efeitos dos inertes industriais sobre os vivos.
Ecologia e economia
18. A ecologia (etimologicamente, o discurso da habitação)
nasceu da constatação da contradição entre as duas lógicas inerentes à economia (etimologicamente, a regra da habitação), a da
produção e a da vida, no que há de efeitos excessivos numa que se revelam
nefastos à outra. Heidegger, ainda não se falava de ecologia, disse que “o
humano habita como poeta na Terra”, a poesia sendo o cume do discurso, acima do
da ciência porque devendo nortear a civilização além do que ela produz, “nem só
de pão vive o humano”, dizia a tradição bíblica. A grande dificuldade é que
ecologia e economia, para já não falar de poesia nem de espiritualidade, não se
encontram, na raiz que lhes é comum, ‘eco’, não têm nada em comum. Eis a
distância entre elas: primeiro, a lógica ‘física’ da matéria / energia,
segundo, a lógica ‘técnica’ da máquina e da produção química, terceiro, a
lógica ‘empresarial’ da produção, entre financiamento, custos, salários e lucros,
quarto, a lógica ‘mercantil’ das lojas, quinto e último, a lógica dos ‘vivos’
que comem e respiram. É claro que do ‘primeiro’ ao ‘quarto’, todos comem e
respiram, mas só dão por isso depois, mais tarde, muito tarde, quando os
ecologistas clamam ‘poluição!’.
19. São todos, somos todos especialistas de um
segmento qualquer anterior ao comer e respirar, ninguém sabe do percurso todo, ainda que o discurso ecológico
se encha também de números, globais e apocalípticos. Não tenho experiência de
discussões entre especialistas diferentes, apenas de constatar que o que
proponho sobre ‘ciências’ não é entendido por cientistas com quem busque
conversar. Mas ainda que se chegasse a um entendimento relativamente consensual
(a politica é feita disso!), há o problema do que a Terra dá, está a dar sem
cessar (aquilo que Heidegger chamou Ge-stell), as instituições todas que laboram e trocam e
poluem: se tudo é dado pela
Terra e de tal maneira que ela retira a sua doação como condição do movimento mesmo das instituições que se
foram criando, não é possível, já não digo ‘parar o funcionamento’ das coisas
todas, mas alterar esse funcionamento de forma significativa em termos
ecológicos. A contradição actual pode resumir-se assim: o que a Terra dá
implica crescimento e ocupação de lugares e inevitavelmente rivalidades e
conflitos, mas o crescimento tem sempre limites, entre máximos e mínimos,
equilíbrios homeostáticos; ora, estamos a chegar a um limiar máximo de
produção, em que é o próprio crescimento que se torna prejudicial ao conjunto
dos vivos mas a grande ‘máquina’ continua quase cegamente. Ninguém sabe o que é
que haveria que fazer, não pode haver senão achegas para atender a tal ou tal
poluição, para ir diminuindo tal e tal produção nefasta. O que se pode deduzir
destas dezenas de anos de movimentação ecológica, é que há questões que se vão
conseguindo dominar, mas que há factores gerais, digamos, que fogem a todo o
controle, excepto quando acidentes muito graves obrigam a decisões radicais,
como acabar com as centrais nucleares no Japão por causa de Fukushima. O que
indicaria que serão as crises ecológicas que provavelmente obrigarão a
correcções drásticas que ainda possam vir a tempo.
20. Mas há questões a que sou mais sensível e que
fogem, creio, a este tipo de lógica de correcção progressiva. Uma delas é a que
desabou sobre nós, Europeus do Sul, vinda do sistema financeiro americano, que
devastou economias (que se basearam demais no crédito, à instigação do próprio
sistema financeiro). Os mecanismos relativos à moeda funcionam com um elemento
de irracionalidade, de desejo de ganhar que vira facilmente ganância, a
regulação do sistema financeiro que havia desde os tempos da crise de Roosevelt
tendo sido deitada aos ventos pelos neoliberais, Freadman, Reagan e Thatcher tanto
mais grave quando os meios de transferência electrónica geram velocidades
impressionantes, que só multiplicam a irracionalidade do sistema e os seus
efeitos devastadores. É a própria ciência económica que precisa de se tornar
ecológica na sua racionalidade científica, de ter em conta os efeitos políticos
sobre a habitação dos humanos.
Apocalipse e regionalização
21. Viemos do anidrido carbónico como condição da
origem da vida dos organismos animais e chegámos ao anidrido carbónico como
poluente predominante da vida animal: a atmosfera antes da invenção da vida não
tinha oxigénio, era o anidrido carbónico que nela predominava e onde a evolução
das plantas foi buscar, por via da fotossíntese, o carbono necessário às suas
células, despejando na atmosfera o oxigénio que tornou possível a evolução dos
animais. As combustões de carvão e petróleo estão a devolver a atmosfera aos
seus inícios, eis o paradoxo. Hans Jonas explicitou o apocalipse desta forma
serena. “Assim a festa cheia de sorte (happy-go-lucky) de alguns séculos
industriais será paga com milénios de alterações na natureza terrestre, por um
acerto de contas cósmico não injusto, uma vez que nesses séculos ter-se-ia
esbanjado a herança de milhões de anos de vida passada”[6].
Poucas centenas de anos a deitarem fora os 600 milhões de anos da história dos
organismos! Após as três histórias terrestres de que se partiu, a Terra volta
de novo a ser um astro no meio de outros, quase árido como eles, despojada tudo
o que ela deu! Lembra-me uma fabulosa fábula de Nietzsche, um século antes da
de Jonas. “Num canto qualquer do universo espalhado no flamejar de inumeráveis
sistemas solares, houve uma vez uma estrela na qual animais inteligentes
inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais arrogante e mais mentiroso da
‘história universal’: mas foi apenas um minuto. Mal se deram alguns suspiros da
natureza e a estrela congelou, os animais inteligentes tiveram que morrer”[7].
22. Mas poderá ser menos drástico, o apocalipse
deixar alguns restos. Teríamos uma lição da história a elucidar-nos como seria,
a maneira como ao longo dos séculos V e VI da nossa era, o império romano do
Ocidente tomado por populações ‘bárbaras’ viveu um apocalipse ‘imperial’: as
super-estruturas do império, administração e exército, implodiram e a
Cristandade medieval foi uma geografia de regiões, como se evocaram os alvores da agricultura, que
durou uma boa dezena de séculos até outra coisa se engendrar a prenunciar a
Europa. Tudo dependerá desses restos, dos saberes que restarem aos novos ‘bárbaros’,
que não tenham que reinventar a máquina e a electricidade. Ou então, em menos
drástico, para dar para as próximas gerações: tratar-se-á de, em vez de
continuar a querer crescer até à demência, aproveitar o flagelo do desemprego
para partilhar os empregos que há entre todos e diminuir o tempo de trabalho a
favor de tempos de autonomia e liberdade, de jogos e de cultura, de invenções
de formas de viver, sei lá! A electricidade, as energias renováveis, a
agricultura, a internet, são muito favoráveis a formas descentralizadas de
organizar a sociedade, anti-hierarquias e com menos burocracias. Seja como for,
aprendemos com esta crise que nada se fará sem algum apocalipse: este, para
nós, evoca catástrofe, mas em grego significa ‘revelação’. Da Terra e das suas
doações, a serem melhor aproveitadas.
[1] Obviamente
que cada Dasein humano também releva dessa doação retirada, sem que Heidegger todavia dê o
menor sinal, nos seminários de Questions IV, posteriores à conferência de
62, de ter atendido a essa consequência.
[3] Ao invés
das formas simples dos unicelulares e primeiras colónias deles, que recebem da
água envolvente as moléculas de que necessitam.
[6] Hans Jonas,
O princípio de responsabilidade, 1979, versão ingl. 1984, p. 190 (citado da tese de
Marília Carrilho, A fundamentação filosófica das noções de cuidado e de responsabilidade no pensamento de Maria de
Lourdes Pintasilgo, Univ. de Évora, 2015)
[7] Início de
“Sobre a verdade e a mentira em sentido extra-moral”, in O livro do Filósofo [póstumo de 1873]. É a mesma
fábula de H. Jonas, mas com um zoom de escala mais pequena.
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