1. Boa coisa é que as diferentes
medicinas sejam chamadas a confrontarem-se. Não vem à cabeça de ninguém com bom
senso pôr em questão a cientificidade da medicina bioquímica que se desenvolveu
na segunda metade do século passado, a partir da biologia molecular. Mas é
inegável a existência dum certo mal estar difuso em relação a ela, que se
manifesta na queixa frequente de haver especialização a mais, médicos que só
sabem deste ou daquele órgão, de não haver mais os clínicos de diagnóstico
apurado que dantes eram capazes de atentar em sintomas mais generalizados e de
os tratar; fossem raros talvez, que se os reclame é sintoma de carência duma
medicina que multiplicou os métodos de diagnóstico mas nem sempre parece saber
usá-los adequadamente. Igual manifestação deste mal estar é a proliferação das
medicinas ditas alternativas, minoritárias é certo, mas disputando clientela à
medicina oficial. É entre estas várias opções que há no terreno da clínica um
confronto crescente, sem que haja contudo, em questões de saúde, um critério de
discernimento entre as várias terapias que não seja o que passa de boca em
ouvido, o da eficácia conseguida em tal ou tal situação com tal ou tal
terapeuta.
2. Que antes destas medicinas vindas
de outros horizontes do que o da medicina que se conhece como a da ‘ciência’
ocidental, tenha evocado os clínicos ocidentais de antanho, significa que
também a medicina anterior à da especialização molecular pode fazer parte do
confronto a evocar aqui, no sentido de ela depender de um outro paradigma que
pode ajudar à compreensão. Creio que não é necessário ser historiador da
medicina para se pensar que esse paradigma se estruturava em torno da
consideração mais ou menos minuciosa da anatomia humana e que não se focava em
tal ou tal órgão de maneira a isolá-lo do conjunto, ou pelo menos dos órgãos
afins, mais conectados com o que pudesse parecer a fonte principal do sintoma.
3. Se é certo que não sou leitor de livros de
medicina, acontece todavia que utilizei uma bibliografia de alguns volumes de
biologia e neurologia moleculares com outros textos doutras ciências
(antropologia, linguística, psicanálise, física e química), na tentativa de
cumular as lacunas científicas e filosóficas da tradição fenomenológica, as
carências do sujeito e da consciência em termos de corpo biológico, sociedade,
linguagem, sexualidade e sua restrição pela lei tribal. Ora, para meu grande
espanto, os vários livros de biologia e neurologia que li e em que tanto
aprendi ignoravam, todos, qualquer referência à anatomia, incorrendo no que
diagnostiquei como um preconceito filosófico – também encontrado nas outras
ciências, excepto na linguística estrutural (que foi a minha ciência base de
abordagem, aliás) – que consiste no privilégio da ‘substancialidade’ interna
sobre a cena exterior donde todavia procede a ‘substância’[1].
Ou seja, o raciocínio predominante nesses textos de biologia passava da
determinação dos genes para o conjunto do organismo sem a mediação da anatomia,
feita em todos os animais para comerem, caçarem sem serem caçados. Ora, julgo
ter compreendido nesses livros que o alcance dos genes, retirados no núcleo da
célula, se limita, com as que vêm do sangue, à síntese das moléculas
estruturais da célula, mais complexas, havendo aí razões para doenças
específicas por mutações.
4. Remetendo-me à minha ignorância de
leigo, a questão que ponho aos médicos é a de saber se não poderá haver
factores determinantes de muitas doenças que não sejam apenas do foro das
moléculas celulares, mas relevem também de correlações anatómicas variadas. Com
efeito, é o que sugere a medicina chinesa que há muitos séculos determinou os
meridianos que as agulhas da acupunctura seguem, assinalando correspondências
energéticas que os nossos laboratórios não parecem saber confirmar, assim como
não sabem verificar as razões das curas que assim se realizam. A terapia de
Bowen, seguindo aparentemente as indicações desses meridianos, prescinde das
agulhas para conseguir curas com gestos das mãos em vários lugares da anatomia.
Quanto à homeopatia, que desafia a bioquímica ao usar diluições ínfimas de
substâncias, com o sucesso que Paulo Varela Gomes testemunhou no Público (08/11) – que bom ele estar vivo! não termos
ficado mais pobres –, pode-se perguntar se o seu segredo, que os laboratórios
parecem impotentes para compreender (controvérsia de J. Benveniste nos anos
80), não relevará do princípio mesmo das vacinas de Pasteur, descoberto antes
deste, já que pretendem os seus cultores que "o tratamento se dá a partir da diluição e dinamização da
mesma substância que produz o sintoma num indivíduo saudável" (web). Igualmente a
questão do placebo incita no sentido de indagar das correlações entre o sistema
neuronal que controla uma parte do jogo hormonal que equilibra o sangue e a
anatomia dos vários órgãos que este alimenta, desde que se tenha em conta o
motivo de mente
tal como A. Damásio o expõe em O livro da consciência, a saber a face por assim dizer
interna dos neurónios a que só o próprio tem acesso: pensar que passe por aí a
razão do que se chamam doenças psico-somáticas, o jogo electroquímico dos
neurónios sendo ‘saber mental’ que, do ponto de vista dos médicos, seria ignorância,
placebo, sugestão.
5. Antes de
qualquer discussão sobre virtudes curativas, o confronto é entre uma medicina
de tendência localizada (com riscos por vezes de efeitos secundários noutros
locais não testados em laboratório) e medicinas globalizadas anatomicamente.
Publicado pelo Público em 16 de Novembro 2014
Em eco ao texto dum físico sobre “a ciência diluída” que
seria a homeopatia (6 / 11), com resposta digníssima de Paulo Varela Gomes a 8,
contrapondo a um diagnóstico de cancro com 4 meses de vida os 2 anos e meio
fecundos que desde então viveu com tratamento homeopático
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