domingo, 16 de novembro de 2014

Medicinas em confronto


 1. Boa coisa é que as diferentes medicinas sejam chamadas a confrontarem-se. Não vem à cabeça de ninguém com bom senso pôr em questão a cientificidade da medicina bioquímica que se desenvolveu na segunda metade do século passado, a partir da biologia molecular. Mas é inegável a existência dum certo mal estar difuso em relação a ela, que se manifesta na queixa frequente de haver especialização a mais, médicos que só sabem deste ou daquele órgão, de não haver mais os clínicos de diagnóstico apurado que dantes eram capazes de atentar em sintomas mais generalizados e de os tratar; fossem raros talvez, que se os reclame é sintoma de carência duma medicina que multiplicou os métodos de diagnóstico mas nem sempre parece saber usá-los adequadamente. Igual manifestação deste mal estar é a proliferação das medicinas ditas alternativas, minoritárias é certo, mas disputando clientela à medicina oficial. É entre estas várias opções que há no terreno da clínica um confronto crescente, sem que haja contudo, em questões de saúde, um critério de discernimento entre as várias terapias que não seja o que passa de boca em ouvido, o da eficácia conseguida em tal ou tal situação com tal ou tal terapeuta.
2. Que antes destas medicinas vindas de outros horizontes do que o da medicina que se conhece como a da ‘ciência’ ocidental, tenha evocado os clínicos ocidentais de antanho, significa que também a medicina anterior à da especialização molecular pode fazer parte do confronto a evocar aqui, no sentido de ela depender de um outro paradigma que pode ajudar à compreensão. Creio que não é necessário ser historiador da medicina para se pensar que esse paradigma se estruturava em torno da consideração mais ou menos minuciosa da anatomia humana e que não se focava em tal ou tal órgão de maneira a isolá-lo do conjunto, ou pelo menos dos órgãos afins, mais conectados com o que pudesse parecer a fonte principal do sintoma.
3. Se é certo que não sou leitor de livros de medicina, acontece todavia que utilizei uma bibliografia de alguns volumes de biologia e neurologia moleculares com outros textos doutras ciências (antropologia, linguística, psicanálise, física e química), na tentativa de cumular as lacunas científicas e filosóficas da tradição fenomenológica, as carências do sujeito e da consciência em termos de corpo biológico, sociedade, linguagem, sexualidade e sua restrição pela lei tribal. Ora, para meu grande espanto, os vários livros de biologia e neurologia que li e em que tanto aprendi ignoravam, todos, qualquer referência à anatomia, incorrendo no que diagnostiquei como um preconceito filosófico – também encontrado nas outras ciências, excepto na linguística estrutural (que foi a minha ciência base de abordagem, aliás) – que consiste no privilégio da ‘substancialidade’ interna sobre a cena exterior donde todavia procede a ‘substância’[1]. Ou seja, o raciocínio predominante nesses textos de biologia passava da determinação dos genes para o conjunto do organismo sem a mediação da anatomia, feita em todos os animais para comerem, caçarem sem serem caçados. Ora, julgo ter compreendido nesses livros que o alcance dos genes, retirados no núcleo da célula, se limita, com as que vêm do sangue, à síntese das moléculas estruturais da célula, mais complexas, havendo aí razões para doenças específicas por mutações.
4. Remetendo-me à minha ignorância de leigo, a questão que ponho aos médicos é a de saber se não poderá haver factores determinantes de muitas doenças que não sejam apenas do foro das moléculas celulares, mas relevem também de correlações anatómicas variadas. Com efeito, é o que sugere a medicina chinesa que há muitos séculos determinou os meridianos que as agulhas da acupunctura seguem, assinalando correspondências energéticas que os nossos laboratórios não parecem saber confirmar, assim como não sabem verificar as razões das curas que assim se realizam. A terapia de Bowen, seguindo aparentemente as indicações desses meridianos, prescinde das agulhas para conseguir curas com gestos das mãos em vários lugares da anatomia. Quanto à homeopatia, que desafia a bioquímica ao usar diluições ínfimas de substâncias, com o sucesso que Paulo Varela Gomes testemunhou no Público (08/11) – que bom ele estar vivo! não termos ficado mais pobres –, pode-se perguntar se o seu segredo, que os laboratórios parecem impotentes para compreender (controvérsia de J. Benveniste nos anos 80), não relevará do princípio mesmo das vacinas de Pasteur, descoberto antes deste, já que pretendem os seus cultores que "o tratamento se dá a partir da diluição e dinamização da mesma substância que produz o sintoma num indivíduo saudável" (web). Igualmente a questão do placebo incita no sentido de indagar das correlações entre o sistema neuronal que controla uma parte do jogo hormonal que equilibra o sangue e a anatomia dos vários órgãos que este alimenta, desde que se tenha em conta o motivo de mente tal como A. Damásio o expõe em O livro da consciência, a saber a face por assim dizer interna dos neurónios a que só o próprio tem acesso: pensar que passe por aí a razão do que se chamam doenças psico-somáticas, o jogo electroquímico dos neurónios sendo ‘saber mental’ que, do ponto de vista dos médicos, seria ignorância, placebo, sugestão.
5. Antes de qualquer discussão sobre virtudes curativas, o confronto é entre uma medicina de tendência localizada (com riscos por vezes de efeitos secundários noutros locais não testados em laboratório) e medicinas globalizadas anatomicamente.

Publicado pelo Público em 16 de Novembro 2014
Em eco ao texto dum físico sobre “a ciência diluída” que seria a homeopatia (6 / 11), com resposta digníssima de Paulo Varela Gomes a 8, contrapondo a um diagnóstico de cancro com 4 meses de vida os 2 anos e meio fecundos que desde então viveu com tratamento homeopático



[1] http://filosofiamaisciencias2.blogspot.pt/2012/12/no-paradigma-da-biologia-falta-o-ser-no.htm

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