quinta-feira, 13 de novembro de 2014

O Tempo existencial




1. Desde Ser e Tempo (1927) até Tempo e Ser (1962) que Heidegger se bateu para compreender o tempo do Da-sein existencial, do ser no mundo em seus cuidados que responde ao apelo do Ser, antecipando a morte para melhor se entender como finitude e aos seus afins em 27, em 62 indagando do nascimento que o Ereignis dá como ser e tempo, fazê-lo vir à presença para deixá-lo ser o seu tempo. Batia-se assim contra a concepção linear de tempo, sucessão de instantes – os já passados e os por passar –, deixando ao ‘presente’ o que etimologicamente é ‘sem estância’ entre o que passou e o que ainda não. É esta a concepção dos relógios e parece ser a de toda a gente: assim um ‘instantâneo’ é dito na gíria cinematográfica um paralítico, sem tempo já que sem movimento.
2. ‘Se este instante agora já passou entre passado e presente’, onde está o presente? Vários instantes são necessários para dizer esta frase no presente dum locutor, o sentido dela, de qualquer das suas palavras, só se atinge entre o seu começo e o seu final, sem coincidir nem com o primeiro nem com o último instante nem com nenhum outro intermédio: o seu tempo é o do breve ‘acontecimento’ que é o da sua enunciação, não apenas a linearidade espacial do seu dizer sucessivo dos fonemas (ou letras) mas a complexidade das retenções dos fonemas e palavras já ditas e dos adiamentos dos ainda por dizer, como sugere a lição de Derrida; só sei o sentido da primeira palavra depois de ouvir a última, já que só o jogo integral das diferenças entre elas  – diferenças fonológicas como sintácticas e semânticas, descoberta prodigiosa de Saussure –, só esse jogo diz o sentido da frase, o de cada palavra não se dissociando do da frase, este não estando em nenhuma das suas palavras mas em todas. Se o presente não é o instante, é o quê?
3. Se pegarmos na palavra ‘passado’, ela diz o caminhado dos passos, um passo implica um pé retido atrás enquanto outro avança, o qual é retido por sua vez quando por ele passa o outro, há assim uma oscilação entre retido e diferido que diz respeito a ambos os pés, cada um em vez do outro. Ora, ‘vez’ significa ‘acontecimento’, ambos os termos são temporais, podendo aliás substituírem-se (‘uma vez, aconteceu-me que...’) ou, no caso dos passos, a sucessão de vezes retidas – diferidas de ambos os pés fazer um acontecimento, mas que não é linear, embora pareça.
4. Outras palavras que usamos para dizer os tempos existenciais, ‘agora’ como presente do que fala (Benveniste), ‘momento’ como relato desse ‘agora’ num tempo posterior, também têm esta elasticidade de dizerem partes dum tempo maior, os vários ‘momentos’ duma festa ou duma conversa, dum amor ou dum acidente, do que se recordará como um bom ou mau momento, os seus ‘agoras’ adentro do ‘agora’ maior que se prolonga enquanto se está num presente que se sabe como unidade temporal (‘devias ter falado nisso ainda agora, enquanto estávamos todos presentes’). Será a esta maneira de juntar sucessos temporais numa unidade temporal adequada que corresponde o motivo de ‘acontecimento’, que se conta justamente como ‘um’, cortado melhor ou pior do que o antecedeu e lhe sucedeu.
5. Os gestos que aprendemos, variados e apropriados a tal ou tal uso da nossa tribo, que se repetem e interrompem numa refeição ... colherada de sopa de pedra, garfada de peixe assado, beber um golo de vinho, prato posto para o lado .. mais a conversa que flui ao mesmo tempo – retém-se o já dito para lhe responder e pedir assim outra resposta que faça avançar as coisas, banais ou vivas – entre retenções e avanços, tudo sendo repetições (aprendidas) e suas variações que fazem o sentido do que, em torno da mesa, entre vários acontece, unidade antropológica que se prolonga na digestão de cada um de forma autónoma, a esta ou àquele podendo suceder uma maleita que aos outros não. Repetir e alternar, reter e avançar sem voltar atrás, será assim o tempo do acontecimento que nos relaciona uns com os outros, próximos e rivais.
6. Não sou exegeta de Heidegger, até porque nunca consegui entender o que no texto de 1962, Tempo e Ser, ele analisou em relação à porreção do tempo dado pelo Ereignis. Antes, ele propusera que o Ser (nada, não ente) dá o ente à presença, retendo a doação. Agora, este termo alemão, significando habitualmente ‘acontecimento’, substitui o Ser e é ele que dá ser e tempo ao ente, o que implica que o que ele dá retendo a doação é justamente acontecimentos ônticos! O acontecimento é a maneira do tempo existencial. E então é o único tempo que existe: só há acontecimentos. Repetir é fazer outra vez: oscilação entre o grau zero do acontecimento que é a rotina pura e o acontecimento mais ou menos complexo. Com efeito, acontecimento implica mais do que um, ainda que seja uma inspiração que se tem mentalmente, nas associações de ideias nenhum de nós é só: tudo quanto é dado – nascer, comer, aprender, amar – vem sempre de outrem e é sempre com outrem que somos, mesmo se eremitas de feitio.
7. E o instante não-estante? Um segundo, um minuto, e por aí fora? Não se trata de paradoxos, mas de confusão de coisas diferentes. O tempo existencial, que não é apenas dos humanos, também o dos cães que conseguem escapar ao canil e dos gatos que são operados a um fémur atropelado, é o tempo do movimento, é a este que chamamos acontecimento para o fazer ressaltar de outros que não merecem  que se fale deles na altura (falar é sempre escolher o que dizer e deixar o resto de fora, o ‘tudo’ é indizível, somos sempre elípticos). Os segundos e minutos são o tempo da medida dos tempos. Mas medir um tempo – oito horas, é tempo de jantar – é também um acontecimento, um entre dois tempos, um em que se está e outro em que já não ou ainda não, ‘já’ e ‘ainda’ também são temporais. Mas não se pode medir directamente, não se pode sair do tempo, um relógio é muito útil para essas medições, tal como o nascer e o pôr do sol: a alternância dia e noite é o mais antigo relógio dos terrestres.
8. Mas porquê ser e tempo e não movimento ? Para Aristóteles parece claro que as duas grandes facetas do pensamento, a da Physica e a da Metaphysica, são o movimento como primeira abordagem (onde trata do tempo) e o ser como abordagem seguinte, meta-. Então Heidegger ter-se-á enganado com Ser e Tempo até Tempo e Ser? Ou era o caminho necessário, antes de chegar à grande questão da viragem do pensamento, aquele que resultou da história de sociedades em que a energia dominante é da ordem da biologia, da phusis, para aquele em que está a ser da ordem da technê? Ora, o motivo do movimento (da Physica), ao contrário do do tempo, contém os da energia e da força (da Física). Foi aonde Heidegger chegou, ao contraste entre as sociedades em que a phusis era Gestellung e as do Ge-stell, entre as sociedades da fecundidade e as da produtividade.

1 comentário:

Zé Maria disse...

prefiro conversas Surdo-Mudo... as coisas em que tu pensas... o meu tempo presente foi menos 'espacial... ouch! bjs zm