sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Os ‘deuses’ de Heidegger


1. Foi uma quinta-feira de dilúvio e alegria, a da apresentação do livro Arte e Técnica em Heidegger, da especialista e tradutora reconhecida Irene Borges-Duarte (ed. Documenta), na livraria Assírio e Alvim, no Chiado de Siza. A leitura desse livro forneceu-me uma visão de conjunto do pensamento heideggeriano na sua elucidação da maneira do pensador as abordar às duas na sua comum technê (que em grego diz arte e técnica), para tentar entender algo que nele permanece equívoco. É certo que não posso saber as possíveis objecções que a leitura que ela faz de Heidegger levantará entre os seus pares especialistas, mas faço-lhe confiança, aquela de que necessito para aquilatar do que eu acrescento ao pensamento do pensador alemão, ao que o forço além dele por via de leituras de outros autores, nomeadamente Derrida e as ciências que tenho abordado, na esperança aliás de que se abram possibilidades novas em tempos urgentes. A certa altura, a autora cita de passagem uma minha afirmação sobre o ateísmo radical de Heidegger (lembro-me de, jovem estudante ignorante, ouvir dizer que então existiam dois existencialistas ateus, Sartre e Heidegger, e dois cristãos, Jaspers e Gabriel Marcel); mas por outro lado ela não deixa de referir com alguma frequência a maneira como Heidegger invoca os ‘deuses’, nomeadamente na entrevista ao Spiegel de 1966 em que disse o célebre “já só um deus nos pode ainda salvar”, mas também na figura do Geviert – o céu e os divinos, a terra e os mortais – que Loparic traduz lindamente por quadrindade, que em textos dos anos 50 vêm dizer a sua maneira de pensar o ciclo do ‘mundo’, anel e ronda, mundo esse que, vinte anos antes, se ligava à ‘terra’ (a phusis) e a combatia. Como se pode conjugar este recurso ao ‘sagrado’ com a afirmação de ateísmo? Esta questão tem vários aspectos que convém distinguir.
2. O que significa o seu ateísmo? Ele resulta inapelável do motivo de ontoteologia que, tanto quanto entendo e porventura forçando um tanto, estabelecia, tal como o motivo de ser no mundo de 1927, uma ruptura profunda com o pensamento europeu e o seu par sujeito / objecto. A ontoteologia foi inaugurada por Platão e liga-se fortemente ao motivo da definição que, tenho-o lembrado várias vezes aqui, deu o motivo das Ideias formais (eidê) celestes e eternas, que as coisas terrestres que relevam dessa definição reproduzem melhor ou pior: esta relação entre o Ser do definido e os entes gerados e mortais é a primeira forma de ontoteologia, a eternidade celeste sendo parte da relação ontológica entre Ser e entes. Quando o platónico Origenes, no iníco do século III, inventou a teologia cristã que vingou até aos seminários eclesiásticos do século XX, o Deus bíblico, que é dito velar pelos lírios do campo e pelas aves do céu, foi introduzido nessa relação ontoteológica como ‘criação’: relação entre o Criador, o seu pensamento, e cada criatura criada (coisa impensável para Platão, Aristóteles ou Plotino, que o Deus deles, imutável, conhecesse o mundo, o que mudava!). Esse mesmo Deus virá caucionar o Cogito cartesiano até ser afastado por Kant, mas a relação ontoteológica transformou-se, agora entre o ‘sujeito’ que conhece e o ‘objecto’ que provoca objecções a esse conhecimento, e que ainda vigora por aí constantemente como o núcleo dos filosofares.
3. O que é que desaparece na filosofia que se estabelece ontoteologicamente? Aquilo que a definição negligenceia, esquece, o que o ente definido mas fica fora dos limites definidos, o que releva do que hoje chamamos contexto, diferente para cada singular e que dele é despojado para que caiba na mesma definição que os da mesma essência, mesmidade essa que a definição assim cria. É assim conhecido nele mesmo como ousia, substância cuja essência pensada pela filosofia se presta à argumentação com outras essências de maneira a esclarecerem-se mutuamente, mas sempre esquecido o contexto de doação. Ora, quando Heidegger rompe com o seu mestre Husserl, foi a tese excelente de João Paisana quem mo ensinou, ele objecta-lhe justamente o ‘objecto’: a fundamentação do conhecimento partir da percepção, sendo feita a partir da intuição sensível do ente já definido como objecto, isto é, fora de contexto, coisa sem mundo (limite do ‘retorno às coisas’). É essa objecção que lhe permite tomar o ‘ser’ que em Husserl aparece na intuição categorial (o ‘é’ que levará à definição da intuição eidética) sem provir da sensibilidade, permite a Heidegger preocupar-se doravante com esse ser anterior que dá o ente e que, acrescente-se, a definição eliminara, limitando-o ao ‘ser do ente’, a ousia, esquecendo a doação. Por isso virá a privilegiar os ditos ‘pré-socráticos’, designação que ele detestava; digamos, os que pensaram antes da definição. Nietzsche e Colli estão com ele nessa denúncia do platonismo, mas o pensamento heideggeriano baseia-se claramente nesta reversão da definição: o que é retido por esta releva do ‘ente’, o que ela excluiu com o contexto indicia o ‘ser’ que faz doação do ente e se dissimula, retiro do ser que deixa ser o ente em sua autonomia relativa (pela qual ele se presta a ser definido). Numa bela leitura do primeiro capítulo do segundo livro da Physica de Aristóteles, este ser doador será dito ser a própria phusis, acrescentando-se de Heraclito que ela “gosta de se esconder” (fragmento 123). Na Origem da obra de arte, Heidegger propõe traduzir phusis por ‘terra’ e foi o que me inspirou a ousar dizer que ele é um pensador da Terra e das suas doações, pensador da ecologia 20 ou 30 anos antes de esta entrar no campo da acção e do pensamento público.
4. O Ser foi pois esquecido pela filosofia desde Platão, insistiu ele, deixando os ouvintes ou leitores perplexos com esta nova categoria da operação de pensar. Foi a Terra, o lugar dos gerados e perecíveis de Platão, foi a grande doadora a grande esquecida em favor da alma (donde o ‘sujeito’ europeu) e do ente (donde o ‘objecto’ do laboratório científico). E foi à Terra que Heidegger retornou, nomeadamente com o motivo do ser no mundo que rompe com sujeitos que vêem e conhecem objectos num isolador (como os laboratórios, não é pejorativo). Ora, o Deus cristão é o que na teologia e filosofia ocidentais é criador, doador de cada criatura, cada ente, sem atenção ao contexto, apenas à essência substância. Ele não tem pois lugar nenhum no pensamento heideggeriano. O que fazem então os ‘deuses’ nesse mesmo pensamento?
5. Que “já só um deus nos pode ainda salvar”, trata-se claramente dum lamento de impotência, como se ele – que em 54 em A pergunta sobre a técnica, como traduz Irene Borges-Duarte, citava Hölderlin de “onde há o perigo, cresce o que salva” – não tivesse encontrado uma interpretação plausível para o seu tão caro poeta, chegasse a “um beco sem saída”, sugere algures IBD, beco que seria também o da ecologia. Presumo que o lamento foi ecoar na ontoteologia que denunciara e em que ele, como todos nós, fora instituído, que já o verbo ‘salvar’ lhe andava perto. Salvar do Gestell, que não será sair dele para diante e muito menos para trás, sair do sistema técnico financeiro, definamo-lo assim: capitalismo industrial em sua fase electrónica de globalidade intensa, que domina sobre tudo o que é produção e trabalho assalariado e invade os desejos ligados ao dinheiro. Esse ‘salvar’ é pensar como “preparar uma relação livre com a essência da técnica” (IBD, p. 21 e 164), “descobrir novas possibilidades de ser” (p. 202). Com deuses? Donde provieram estes, as religiões antes da definição e com que esta rompeu, para vir depois apoiar o monoteísmo? No texto sobre a phusis em Aristóteles onde descobri o motivo decisivo do retiro do ser, a saber a phusis, esta por duas vezes é dita Gestellung, assinala-o o tradutor, F. Fédier, o que ecoa ao futuro Gestell como se ele dissesse o que era o ‘sistema’ do mundo das sociedades anteriores à industrialização: era a própria ‘natureza’ que as sustentava, lhes fornecia a fonte energética que era de ordem biológica, a das plantas, animais e músculos humanos, não global mas local, algo perto do que Aristóteles pensou entre kinoun (causa motriz) e dunamis / energeia (capacidade potencial / efectivada), como as causas do que tanto o fascinou, o ‘movimento’ dos que por si mesmos se movem como auto-móveis vivos. O Gestell inventou automóveis com energia produzida, a do vapor primeiro, do petróleo e da electricidade depois. Mas Heidegger não pensou o ‘movimento’ que é o coração da Physica aristotélica – o qual, ao contrário do ‘tempo’, contém a energia e a força (da Física de Newton) –, preferiu-lhe o ‘tempo’ que para o pensador grego é apenas o número do movimento com o antes e o depois, e é porventura o que, pertencendo à sua descrição do Gestell, não é o seu coração; nem podia, dado donde ele vinha e a tarefa de resgatar o espaço e o tempo dos físicos para o pensamento fenomenológico do século XX: sendo ficção do metro e do relógio dos laboratórios, e pensados como realidades (apesar de Kant, mas que também não foi ao ‘movimento’, que estava entregue à nova Física de Newton), teve que devolver o tempo ao ente como doação do Ser (o que supõe o movimento, tal como o espaço, mas ficou como pressuposto) para pensar quer o tempo dos humanos em Ser e Tempo, quer o de qualquer ente em Tempo e Ser, quer a história do Ser. Não podia ser de outra maneira, muito provavelmente, mas ajuda a compreender um limite importante do pensamento heideggeriano.
6. O que eram então os deuses nas sociedades sustentadas pela phusis? Os que davam os humanos e aquilo de que eles viviam, davam de forma localizada as colheitas e os rebanhos, a fecundidade das plantas, dos animais e dos humanos, a energia social que os humanos não dominavam. Tal como Heidegger inclui no Gestell o não ser dominado pelos humanos, como as suas crises manifestam. Que Heidegger não tenha encontrado o que pode salvar-nos do perigo, segundo a palavra de Hölderlin, significa que ficou com um pé nas sociedades de phusis, as da casas agrícolas que produziam quase tudo de que necessitavam, cuja tendência autárcita, isto é, a sua autonomia social diante dos outros, Aristóteles tanto apreciava e foi até Kant, mas sempre de forma ontoteológica. O privilégio do heimat como exemplo de morada humana mostra como o seu pensamento se situa no contexto das sociedades de phusis, como aliás quase todos os grandes filósofos europeus (Marx é a grande excepção): isso assinala a sua dificuldade em enfrentar o Gestell, mas também a acuidade com que o pensou muito antes de este se ter tornado evidente para nós como factor não controlável das nossas crises. Com efeito, o Gestell é o reverso da autarcia de antanho, é heterarcia radical em sua tendência global, o que põe cada um à mercê dos outros, do sistema, falências geram desemprego e outras falências, e joga-se entre capitais em guerra de números uns do maiores do que os dos outros, a comprar barato e embaratecer mais para vender mais caro, e assim sucessivamente, aquém e além fronteiras, sem nunca se poder prever donde vem o perigo, que crise, de que alcance. E portanto não há quem domine, que o poder que deveria ser democrático, se tornou plutocrático, mas os seus ‘detentores’ (se os houvesse!) estando tanto ou mais sujeitos às falências das crises do que os outros, em sua impotência democrática.
7. Eis a questão que Heidegger poderia ter posto: e onde pára a phusis? Desapareceu? Só há Gestell e as suas ameaças globais sobre o localizado? Voltemos à sua definição sumária proposta acima (§ 5): capitalismo industrial em sua fase electrónica de globalidade intensa, que domina sobre tudo o que é produção e trabalho assalariado e invade os desejos ligados ao dinheiro. O que é que aqui releva da phusis? As fontes de energia em suas explosões, bela exibição da falta de dominação dos humanos: sobre o que explode, as matérias primas... e os vivos humanos em seus músculos de trabalho, os quais justamente estão hoje a ser progressivamente espoliados pela invasão das máquinas e da cibernética. Ou seja, a phusis dos vivos tem sido progressivamente expulsa do Gestell, assim como tendencialmente das cidades que hoje procuram recuperar espaços verdes, como se diz, cães e gatos de estimação, à míngua de filhos. Ou seja, o essencial do Gestell corresponde à esfera do trabalho, aos seus tempos e templos, o que sobra de phusis viva foi remetida para os ‘tempos livres’ e seus outros templos de consumo e divertimento. Sem se saber adiantar um único número, que a fenomenologia ignora-os, percebe-se claramente onde ‘cresce o que salva’: nas máquinas cibernéticas que se guiam quase sozinhas e fazem diminuir os tempos de trabalho, de Gestell, reenviam os humanos para tempos livres, mais ou menos comunitários nas solidariedades locais que tornem esses tempos fecundos para uns e outros, consoante as capacidades respectivas, “descobrindo novas possibilidades de ser” que retomem a perspectiva da polis do nosso amigo Aristóteles, que Heidegger tanto prezou, nos ensinou a ler.

https://www.youtube.com/user/Luis88571  
(vídeo do lançamento do livro da Irene)

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