1. Tenho porfiadamente insistido em
que as ciências europeias (pela sua origem histórica, não geográfica) têm no
seu paradigma teórico um obstáculo epistemológico que elas ignoram, a oposição sujeito / objecto, mas que condiciona a
respectiva leitura das cenas da realidade aquando se voltam para estas após a
experimentação laboratorial. Acho pois que vale a pena avançar dois argumentos
dessa crítica, um de Heidegger e o outro de Derrida, ambos assinalando a ruptura
deles com Husserl, no modo da infiel fidelidade de lhe prolongarem o pensamento
além do que ele visou. À minha maneira, direi os argumentos pelos exemplos e
não da forma académica que é a que lhes compete.
2. A intencionalidade da consciência
em Husserl foi a maneira de dessubstancializar a consciência, largar a res cartesiana da res cogitans, ligar o sentido do objecto à intenção da consciência,
esta constituindo aquele. O que Heidegger criticou foi que, ao privilegiar a
percepção, a intuição sensível, como primeiro passo para a intuição categorial,
em que o ‘é’ do juízo é dado sem vir da sensibilidade (e, acrescente-se, a
linguagem em que o juízo é expresso), Husserl pressupunha o objecto delimitado,
fora do seu contexto no mundo, já definido filosoficamente. Propondo que o ‘é’ reenvia ao Ser que dá os
objectos, colocou este como prévio à percepção e o ser humano, o Dasein, como sempre já ser no mundo, a intuição categorial prévia à sensível, se
dizer se pode. Derrida radicalizará: não há percepção (digamos que o cinema é
anterior à fotografia). O ser no mundo cuida do mundo, usa os objectos dele, aprende a usá-los no mundo, sem
nunca se separar dele, como um ‘sujeito’, uma ‘consciência’. Para exemplificar
este argumento, levei uma vez um fervedor de leite para a aula e mostrei-o como
o ‘objecto’ da fenomenologia de Husserl, fora do seu contexto da cozinha: numa
sala de aula, toda a gente o via e sorria. Mas quando se entra na cozinha e ele
está arrumado com panelas e caçarolas, não se repara nele a não ser quando se
quer aquecer o leite, tal como se aprendeu. Um fidalgo doutras eras nunca ia à
cozinha, se visse um fervedor de leite perguntava ‘o que é isto? para que
serve?’. O ser no mundo de
1927 (Ser e Tempo) é uma
viragem decisiva do pensamento filosófico ocidental, não apenas em relação a
Descartes e Kant, mas inclusivamente a Platão e à sua alma de que o ‘sujeito’ é
o descendente, na sua oposição ao corpo e ao mundo. O ser no mundo pensas o humano antes da filosofia.
3. Heidegger em todo o caso não foi
até ao fim do seu gesto, podemos sabê-lo lendo o De la grammatologie de Derrida que, em certo sentido, pressupõe os
Gregos clássicos, Platão e Aristóteles, que não opunham pensamento e linguagem,
o logos sendo o mesmo (tauton), um e outra e o ser, noein, legein e einai, ambos discípulos de Parménides neste ponto. Mas
também Derrida pressupõe o ser no mundo, ao regressar a Husserl e ao levar a sério a sua redução da empiricidade
do ‘objecto’ mas agora para compreender a lição saussuriana, a diferença entre os
significantes da língua e os sons da fala, sendo que aqueles não são senão
diferenças destes. O que só se entende se a redução retiver o ‘ser ouvido’ dos
sons ao reduzi-los, retiver as suas diferenças que todavia não são sem eles. A trace ou différance ou archiécriture passa por aqui. O que significa que a linguagem é
parte essencial da constituição da consciência que constitui objectos, a
linguagem com os usos do mundo
(ela é um deles e torna os outros possíveis de serem aprendidos) é prévia ao
sujeito, como o são todos os usos
do mundo que o humano aprende
ao longo da sua vida para ser tal humano concreto. Derrida completa o ser no
mundo, torna possível o que a
filosofia parece ter sempre ignorado, pensar a aprendizagem (que a oposição
sujeito / objecto ignora).
4. Lendo os últimos seminários de Heidegger nos
anos 60 (Questions IV), percebe-se
que ele nunca foi ao ponto de fazer do Dasein um ente a que o Ereignis dá “tempo e ser” como a qualquer ente (conferência
de 1962), como se o privilégio do pensamento o tivesse impedido (nascer, comer, crescer,
aprender) e Darwin e Freud fossem aquilo a que ele resistia, o seu Dasein não se tendo desligado por completo do ‘sujeito’,
por exemplo, sempre oposto aos
animais em geral, como se a diferença entre um humano e um chimpanzé fosse
maior do que a diferença entre um chimpanzé e um peixe ou uma formiga (como supõe
os motivos de ‘alma imortal’ e de ‘racionalidade’). Estes dois passos além de
Husserl tornaram possível a leitura da história ocidental, do lugar primacial
da filosofia na passagem dos Gregos e Romanos aos Europeus, lendo a
historicidade das palavras (Heidegger) e dos textos (Derrida) em vez de
‘mentalidades’ ou outras ‘representações’, coisas de que as ciências sociais e
humanas estão pejadas. Tentei em No paradigma de Biologia
falta o Ser no Mundo (debate com Teresa Avelar e António Damásio), neste blogue, mostrar como a biologia e a neurobiologia
carecem de ultrapassar desta oposição, como também a física em “Force et énergie,
c’est quoi?” (www.Philoavecsciences2.blogspot.com)
Sem comentários:
Enviar um comentário