sexta-feira, 15 de junho de 2018

A voz e as palavras



1. Luís Miguel Cintra deu-lhe o mote, “a voz é o espelho da alma”, Gastão Cruz fez o poema[1].
“Não chamarei à tua voz um rio
de palavras ainda que ela o seja,
não o dizendo disse o que diria
se o quisesse dizer como devia descrevê-la.
Porém um rio procura a foz, e a voz
busca a nascente de todas as palavras.
Chamarei realidade à água antes da água
já que a voz como os olhos é espelho da alma.
À tua voz não chamarei um rio
de palavras porque
a água da voz é água
anterior à água das palavras”
E o poema chamou-me a glosá-lo, a buscar aprender do poeta que não sabe dissociar voz e palavras (dis)correntes e acrescenta o rio de água a Platão que também não os dissociava, ao falar do logos dizendo que “a corrente sonora que sai da boca recebeu o nome de discurso (Sofista 263 e).

2. Comecemos pela metáfora do espelho. Ao espelho, eu vejo a minha cara, que os meus olhos não ma mostram, não a vêem. Se os olhos são espelho, é um outro que vê a minha alma, como quem vê um retrato. Em ambos os casos vê-se o que não é visível habitualmente – e será o que justifica a metáfora, apesar da incongruência de fazer supor que a alma está por detrás do espelho, pois que este é um ecrã: nós não nos reconhecemos filmados num vídeo tal como os outros nos vêem (nem a nossa voz áudio), o outro não vê a minha alma, aquilo dentro de mim a que só eu tenho acesso, onde sou ‘animado’ ou nem por isso, que os olhos só revelam a alma quando o ‘como vemos’ nos toca, quando nos comovemos, dando a quem nos vê o fulgor de vermos (gentes, coisas de arte...). Esse fulgor é o que os olhos dão do que vem da alma, bela palavra – hoje despida de qualquer metafisica ou metapsíquica – que permite dizer do que de nós sabemos e nunca vemos. Ou ainda, a alma dos olhos é como o olho do cameraman ou do fotógrafo, órgão da arte deles e sua alma de artista que escolhe o que mostrar.
3. Se for certo, isto é relativamente fácil de entender no que diz respeito aos olhos, mais complexo será quando se trata da voz. O que o poema dá é a recepção pelo poeta da metáfora dos olhos espelho aplicada à voz e a sua busca da inteligência de LM Cintra, procurando entre a voz e as palavras como entre os olhos e o que eles vêem, corrigindo assim a metafora, deixando o espelho ser ecrã, já que a voz e as palavras estão do mesmo lado do espelho, onde agora se ouve o que antes era ver e sem se atentar nos ouvidos (por isso trouxe o enquadrar do cameraman e do fotografo à colação, o olho deles e o que eles vêem do mesmo lado do espelho). Conhecesse o poeta ou não a citação de Platão, porventura que a transformação da ‘corrente sonora’ em ‘rio de água’ tenha a ver com o lugar do espelho inadequado aos sons da voz. “Chamarei realidade à água antes da água”, à água do rio antes de ter água, realidade do vale por onde a água corre, mostra que ao poeta voz e palavras do poema são correntes que dizem, falam de outra coisa ainda que é linda, sem espelho que não seja voz de palavras poéticas. Mas o filósofo contrastava essa ‘corrente sonora’ com o pensamento da alma sem voz (phonê), para dizer que ele é o mesmo que o logos, mas sem a voz que interessa fundamentalmente LM Cintra. Claro que a este o texto também interessa muito, mas não aqui, onde a voz é a da justeza do actor, há pois um deslocamento entre o mote e o poema, deslocamento que resulta do recurso às palavras. Mas a favor da voz, se dizer se pode, com a admirável diferença entre o rio que procura a foz e a voz que busca a nascente das palavras. Onde nascem estas? Pois, com Platão, na alma, no pensamento (e não nas ideias, que não têm palavras), onde a voz (a “tua voz”, LM) as acolhe, as palavras que diz.
4. Mas a coisa é mais difícil, que o rio é de água e “a realidade é uma água antes da água”, o poema sabe dessa dificuldade que duas vezes como que denega – “não chamarei rio à tua voz” – mas precisando desse fluir entre foz e nascente, entre um depois e um antes, fluir que seja duplo como a dupla articulação da linguagem, justamente a da voz (entre os fonemas ou letras e a palavra) e a do discurso (entre as palavras e a frase e o poema). O ‘antes’ será o da “água da voz que é anterior à água das palavras”. O poeta sabe que, como dizia outro poeta, Manuel Gusmão, para fazer o seu poema ele só tem as palavras dos outros e por aí sabe que essas palavras já cá estavam antes da sua voz que teve que as aprender. Mas para isso a anterioridade da água da voz só pode ser não dissociando: as palavras em sua água só podem ser colhidas à nascente pela voz que já seja sede de palavras. Sem essa sede, ninguém fala, não haveria palavras, como mostram os jogos hábeis de entoações dos actores que já as crianças de poucos anos sabem entoar aos outros em suas vozes. É no chilreio dos bebés como puro brincar sem palavras que a voz começa a afirmar-se desde o primeiro choro, quando eles são quase só alma, sem nenhum saber.
5. O que interessa LM Cintra é que temos todos vozes diferentes com que dizemos as mesmas palavras segundo as mesmas regras da nossa língua, mas sobretudo que cada um tem voz diferente consoante o seu estado de espírito, como se diz, a circunstância e as entoações que ela pede. E é esta voz que ele quer que o actor deixe vir de maneira a ver-se-lhe, a ouvir-se-lhe a alma quando diz o texto que lhe é dado, de que tem que saborear o saber, antes de decorar. E aqui ele desmente o poema, que não é a voz que busca a nascente das palavras mas estas que buscam uma voz inédita para nascerem teatralmente, uma voz que não se sabia, que só para aquele momento servia. O que há de admirável na maneira como Cintra fala desta sua arte é como ele desconfia de técnicas que embaracem a voz e escondam a alma, esta dando-se na espontaneidade que há de vir, de soltar-se desse saborear.


[1] Luis Miguel Cintra, Cinco conversas em Almada, 31º Festival de Almada, colecção O Sentido dos Mestres, 2015, p. 111

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