segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Secularização e democracia



adenda a
AS CIÊNCIAS DAS SOCIEDADES 
NUMA ABORDAGEM FENOMENOLÓGICA

http://filosofiamaisciencias.blogspot.pt/2015/11/as-ciencias-das-sociedades-numa.html

Cosmopolitismo e secularização
O espaço de saber espiritual
A secularização económica
A “instituição” secularizada: da Igreja romana ao Estado do século XIX
Breve caracterização do messiânico
Dos movimentos espirituais e de reforma aos movimentos críticos
A secularização da busca do saber, do ‘espiritual’ ao ‘intelectual’
O messiânico e a democracia




1. Nesse texto sobre as ciências das sociedades não aparece sequer a palavra ‘secularização’, o que não impede que a questão lá esteja, mas não elaborada de forma explícita. Ora, com a leitura de alguns textos sobre ela na revista Noésis (univ. Nice) sobre Philosophie et religion aujourd’hui[1] estimularam a pensar, dei-me conta de como textos que fazem actualmente autoridade na questão, mormente Le désenchantement du monde de Marcel Gauchet, me parecem falharem aspectos fulcrais do fenómeno da diminuição drástica das práticas e crenças religiosas nas sociedades desenvolvidas do Ocidente, nomeadamente nos últimos 50 anos. A tese da substituição das funções anteriores das igrejas pelas da escola (§ 26 do texto de referência) permite entender o ponto essencial da secularização, desde que se acrescente, para se perceberem as razões estruturais do processo, que o cosmopolitismo helenista do império romano já consistiu na época numa forma de modernidade secularizante.

Cosmopolitismo e secularização
2. Em que é que consiste o cosmopolitismo? Na colocação do mecanismo que define o que chamamos modernidade: a avaliação critica dos saberes recebidos dos Antepassados que permitiam que as sociedades se reproduzissem, as novas gerações aprendendo com as adultas os usos e costumes dessa reprodução. Esta transmissão continuou a fazer-se nos meios agrícolas e pastoris em que a inovação é muito lenta (os ‘pagi’, camponeses fixados à terra, que resistiram ao cosmopolitismo e depois ao cristianismo como religião, serão chamados os ‘pagãos’), mas as cidades, sobretudo as grandes metrópoles (Atenas, Roma, Alexandria, Antioquia, Constantionopla), conhecem por um lado uma inovação razoável de usos e por outro uma mistura de tradições ancestrais de costumes religiosos, com atenuação gradual da própria tradição genealógica (menos nas casas de grandes heranças). É aonde a escrita permitiu, desde os meados do milénio antes da nossa era, a formação de escolas de exercícios espirituais – Zaratustra na Pér­sia (sec VIII), Lao-Tseu e Confúcio na China (sec. VI-V), Buda na Índia (sec. VI-V), os Profetas em Israel (s. VIII-VI), também Heraclito, Par­ménides, Pitágoras, Sócrates na Grécia (s. VI-V) – em torno dos textos dum Mestre que rompera com os usos dominantes, religiosos inclusive, da sua sociedade (riqueza, glória da guerra, luxos da mesa e do corpo) e propunha outras intensidades para o viver, a sabedoria, a temperança, a virtude, como é claro na Apologia de Sócrates e no  Fédon, um misto do que chamamos intelectual com o que chamamos espiritual. Foi nomeadamente onde Sócrates inventou a definição que Platão e Aristóteles utilizaram, este último abundantemente, nos seus textos gnoseológicos a que chamamos filosofia. Esta avaliação critica de escolha (‘heresia’ em grego) do recebido tradicional holístico, isto é válido para todos (holoi), em que consiste a religião, institucionalizou-se como escola, a qual substitui a relação de aprendizagem das casas, entre pais e filhos, por uma relação entre mestres e discípulos exterior à ordem do parentesco, à hereditariedade e à herança das casas. Esta substituição é o princípio da secularização, o paralelo entre as duas formas de herança – a da economia das casas e a da transmissão escolar de saberes além dessa economia – é a trave mestra de qualquer modernidade. A relação holística religiosa em torno do sagrado, pertencendo à ordem do parentesco e da soberania, é substituída por uma relação cultural, que privilegia os antepassados da escola, guardando os seus nomes e os seus textos. A antiguidade grega e romana foi já uma modernidade[2], em que escrita e leitura supõem uma invenção técnica relativamente desenvolvida em termos de divisão do trabalho nas cidades.
3. Mas esse cosmopolitismo não resistiu ao desmoronar das grandes metrópoles onde houve a sua possibilidade e a religião holística voltou ao Ocidente, como Cristandade: o que fora inicialmente forma marginal de ‘leitores’ de textos espirituais tornou-se um fenómeno de religião global a várias sociedades, acima das suas variadas genealogias. Como o Judaísmo no tempo do domínio persa, o Budismo provavelmente na Ásia, o Islão alguns séculos depois, esta religião com textos cobrindo várias sociedades formou-se segundo duas camadas sociais: na Cristandade, dum lado a dos clérigos, capazes de lerem os textos, do outro a dos leigos analfabetos, camponeses mas também artesãos das vilas e nobres guerreiros. A genealogia religiosa cristã sobrepôs-se às genealogias de parentesco, como aliás já sucedera no mundo israelita nos séculos VI-V, o livro bíblico da Tora, resultante da escrita profética, tendo-se imposto na formação do judaísmo, o que veio a gizar várias escolas de interpretação dos textos como movimentos espirituais, de que o cristianismo é exemplo nos séc. I-II: heresia do judaísmo, platonizada por Orígenes de Alexandria no alvor do s. III, o que o tornou também em heresia de Atenas. O que a Cristandade medieval significou foi que no cosmopolitismo antigo a escola não chegou a ser obrigatória; foi necessária uma boa dezena de séculos até ao ressurgir dum novo cosmopolitismo, de cidades de artesanatos e comerciais em expansão e Renascimento humanista, que veio a tornar possível a industrialização, cuja secularização substituiu as igrejas por uma escola agora holística.
4. Uma vantagem de se considerar a diferença entre religião e movimentos espirituais em torno de textos escritos (a nova religião escondeu a Bíblia em latim) é de permitir compreender como a leitura dos textos evangélicos foi sempre fomentando fenómenos espirituais (mosteiros, conventos, frades) e mesmo, aquando do alvor das comunas dos séc. XII e XIII, gerou escolas universitárias, entre o escolar e o eclesiástico religioso (§ 24). Ora, este espiritual-e-intelectual nas margens da Cristandade teve efeitos críticos sobre esta, com apelos à reforma do aparelho eclesiástico encostado ao poder politico das armas, o que veio a ter, a partir da produção industrial de livros na segunda metade do século XV e as traduções vernáculas da Bíblia, como efeito o grande cisma cristão que cindiu as sociedades do norte da Europa de línguas não latinas do sul latino e católico romano. As diversas confissões protestantes organizaram-se todavia como religiões holísticas (como testemunham as guerras de religião que se seguiram) mas, com a leitura da Bíblia no centro da piedade, as reformas espirituais da Reforma e os ‘revivals’ foram-se disseminando de forma cosmopolita clara.
5. Mas enquanto a forma de riqueza tiver a sua base na agricultura e a maioria das populações for feita de camponeses, ciosos da fecundidade dos seus campos e rebanhos, os rituais religiosos continuam a ser praticados no mundo rural e nas pequenas cidades, onde quase não haja escola. A secularização actual vai bastante além do cosmopolitismo das sociedades de energia apenas biológica, ela tem uma outra fonte muito clara que no § 26 é enunciada assim: a grande diferença entre as sociedades europeias clássicas e as da modernidade é de ordem energética, contraposta às formas biológicas das sociedades de dominância agrícola e pastoril; a partir da invenção da máquina a vapor, a energia será doravante produzida industrialmente, com dois grandes saltos posteriores, o da electrificação social e o da electrónica. A fecundidade dos campos, misteriosa até à biologia molecular dos meados do século XX, cede à produtividade devida às máquinas do saber científico e técnico. Este ponto nenhum dos vários textos sobre secularização na dita revista tem a menor noção de como é crucial na secularização moderna, a torna bem mais conseguida do que a da Antiguidade.

O espaço de saber espiritual
6. O que é que fez a escrita no cosmopolitismo? A “invenção da transcendência”, disse Gauchet, além da imanência, pois: inventou saberes além da economia das casas e das cidades, da guerra e do comércio, das honras das riquezas e do poder. Inventou um espaço de espiritualidade, autónomo dos usos quotidianos e critico eticamente da super-estrutura de poder (social, político, religioso): de busca de sabedoria, de pensamento verdadeiro (invenção socrática da definição), de amor, amizade e beleza, de ética, de conhecimento das coisas, ciências e lógica (Aristóteles), de busca de saberes sem utilidade imediata, o equivalente no que à escrita e discussão diz respeito ao desporto olímpico no campo dos atletas da física. Saber de ociosos (scholê, ócio, lazer) que não trabalhavam de suas mãos (tinham escravos para isso), saber do que ia além do que se via crescer e mudar, desse ‘além’ nos ficando o prefixo ‘meta’ dos textos aristotélicos que se seguiam aos da physica, ou o latino ‘sobre’ da teologia da ‘graça sobrenatural’. Saber metafísico e sobrenatural, que os modernos pejorativamente chamam ‘especulativo’, mas foi dele que sábios burgueses testaram saberes desses em aparelhagens (físicas) que ‘laboravam’ produzindo movimentos que mediam, que homens como Galileu e Newton retiraram um saber novo, que se veio a revelar capaz de energias inesperadas e de máquinas que trabalham a partir delas, saber que se veio a revelar fecundo duma modernidade inédita, além da physica aristotélica dos vivos, duma modernidade ‘metafísica’ e ‘sobrenatural’ (em seus prodígios que nos maravilham). Que esta maneira de dizer sublinhe como a ética e a espiritualidade foram o rasgão que os nossos antepassados deram ao social criando novos saberes, que ela nos ajude a ofuscarmo-nos de ver as suas heranças nas mãos de ‘especuladores financeiros’ que não vêem um palmo à frente do nariz (ai de nós!).
7. Já agora, há que acrescentar (num domínio a que o meu apelido deveria me ligar mas a que sou alheio de educação, hélas!) que também as artes – poesias, músicas, pinturas, esculturas, arquitecturas – relevam desta maneira de se pensar a diferença espiritual, já que usam meios de usar quotidianos de forma não utilitária, transcendendo, indo além da utilidade da reprodução da habitação, das necessidades da vida ecológica, sem sair todavia do seu horizonte, ‘sensível’ como se diz, já que esta necessidade da arte manifesta assim – na imanência do material que trabalha, elabora, transformando matéria – a gratuidade da doação da própria condição ecológica e humana. Por isso as artes apareceram em situações rituais, repetições que traziam pujanças ancestrais, os Mortos fecundando mitologicamente os vivos.

A secularização económica
8. Se a palavra ‘secularização’ foi forjada para dizer a maneira como a Revolução francesa se apropriou dos imensos bens eclesiásticos franceses – do campo do ‘sagrado’ ao do ‘século’, como era a maneira clerical de falar do mundo profano e ‘temporal’ dos leigos, que eles, clérigos, ocupavam-se da ‘eternidade’ –, há que voltar à Cristandade medieval para entender as razões históricas do processo. Como foi ilustrado por G. Bataille em La part maudite, um livro de economia geral, além do utilitário e mercantil de que a ciência económica se ocupa, o excesso da economia medieval, sem comércio digno desse nome, era desviado para o campo do sagrado, catedrais, abadias, conventos; o livro de Jacques Le Goff, O nascimento do purgatório, permite compreender como essa invenção teológica, um terceiro lugar provisório entre céu e inferno – nestes a Igreja não tinha poder – em que as almas iriam para o céu depois de purificadas, durante um período que as esmolas e missas de sufrágio, além daquelas obras eclesiásticas, poderiam abreviar. Era uma economia ‘transcendental’, que em Portugal ainda se manifestou na primeira metade do século XVIII com D. João V e o convento de Mafra.
9. Ora, a Reforma de Lutero pôs essa economia directamente em questão. Tendo visitado Roma na época em que se construía a Basílica de S. Pedro, reagiu violentamente contra a pregação de “indulgências” a favor das almas do purgatório, cuja ‘venda’ tinha essas obras como objectivo. A sua dicotomia célebre entre “a fé e as obras”, excluindo estas (e a própria noção de purgatório) da salvação das almas que só a “fé” justificava, teve como consequência o encerramento dos conventos do mundo protestante, os quais foram assim secularizados de boa vontade, por razões evangélicas, cerca de três séculos antes dos revolucionários franceses seguidos de outros latinos terem secularizado à força os bens católicos, vistos como inúteis pela nova economia mercantil em vias de industrialização. Max Weber assinalou na sua A ética protestante e o espírito do capitalismo, como o próprio Lutero fez a transição do termo ‘vocação’ (Beruf) do mundo religioso que ele reformara para o uso profano profissional que se institucionalizou: celebrou assim a secularização, poupando aos povos nórdicos a peste do clericalismo e do anticlericalismo (após as guerras da religião) e fomentando, com o mercantilismo, o que Marx chamou a acumulação capitalista que tornou possível a industrialização.

A “instituição” secularizada: da Igreja romana ao Estado do século XIX
10. A tese é do alemão Carl Schmitt, teórico do direito (católico e nazi), que pretendeu que “todos os conceitos do poder legislativo e da metafísica aparecidos na Europa no decorrer da história dos últimos séculos e que exerceram uma influência na formação da sociedade, provêm da supremacia da Igreja romana na Idade Média, e mais, relevam do facto de que essa Igreja, como diz Schmitt, é ‘em larga medida, a que transporta o espírito jurídico e que é a verdadeira herdeira da jurisprudência romana’ ” (André Doremus, La théologie politique de Carl Schmitt[3], p. 31). É fácil de presumir que ao ser institucionalizada durante o século IV, de Constantino a Teodósio, a igreja de Roma tornou-se ‘romana’, substituindo formas litúrgicas e organizativas da religião civil que se esgotara (o Papa como ‘Sumo Pontífice’ e a sua ‘Cúria’ são ainda hoje termos herdados assim), mas quando as formas do Estado imperial se esvaziaram, elas como que foram continuadas à maneira de uma instituição religiosa que ganhará funções cívicas administrativas. Ora, que essa instituição com uma rede de bispos e clérigos espalhada pela geografia da cristandade tenha adoptado uma forma de celibato para todos os seus funcionários religiosos, fosse mais ou menos cumprida de facto mas entendida como devendo-o ser, é algo que merece ser sublinhado: a relação mestre / discípulos própria da escola espiritual e intelectual, distinta da de pai / filhos mas pensando-se na sua matriz parental (‘padre’), reforça uma distinção provavelmente inédita historicamente entre as duas esferas, a da economia e parentesco por um lado, a da instituição do “governo das almas”[4] e (politica) dos lares por outro. Que as universidades tenham mantido durante séculos, mesmo após o cisma do século XVI, a teologia como disciplina de topo e a filosofia como a sua ‘serva’ (ancilla), isto é, um discurso que busca esclarecer e justificar o outro, que é posto como proeminente mas cujo texto base, o bíblico, não tem meios para essa busca teórica, eis o que parece explicar que “todos os conceitos significativos da doutrina moderna do Estado”, diz o terceiro capítulo da Teologia politica (C. Schmitt), “são conceitos teológicos secularizados. E isso não apenas pela sua evolução histórica, já que eles foram transpostos da teologia à doutrina do Estado, como por exemplo no caso do Deus todo poderoso tornado o legislador omnipotente, mas também na sua estrutura sistemática, cujo conhecimento é necessário para observar estes conceitos dum ponto de vista sociológico” (Doremus, p. 27). Depois de citar a ‘vontade geral’ em Descartes e Rousseau, Doremus exemplifica como “das leis da natureza, tais como Descartes, Malebranche e Leibniz as desenvolvem, decorrem já em d’Holbach as ‘leis do desenvolvimento económico’ a que o Estado tem que se submeter” (Doremus, p. 44).

Breve caracterização do messiânico
11. Além desta perspectiva dum cristianismo secularizante vinda da jurisprudência, poder-se-ia aproveitar a boleia que ela oferece partindo duma outra visão do cristianismo mais integrada, se dizer se pode, retirada da minha leitura dos evangelhos num texto inédito[5]. Os dois primeiros a serem escritos, o de Marcos e o de Mateus, inserem-se numa perspectiva apocalíptica, anunciando logo de entrada o fim dos tempos para breve, o que tem como incidência a radicalização das posições: Jesus forma com os seus discípulos um movimento messiânico que propõe três oposições politico-espirituais (estas duas dimensões no contexto apocalíptico são indissociáveis): “Deus de vivos / Deus de mortos” (Mc 12, 27, Mt 22, 32, também Lucas 20, 38) “Deus / Dinheiro” (Mt 6, 24, Lc 16, 13) e “Deus / César” (Mc 12, 27, Mt 22, 21, Lc 20, 25). O que significam estas oposições?
12. Em que é que consiste o “Deus de mortos”? A discussão passa-se no Templo que Jesus desembaraçou violentamente do comércio que nele se fazia em função dos sacrifícios do culto e pode dizer-se que na economia dos textos evangélicos (excepto no de João) o Templo é o Adversário simbólico do Messias: o “Deus de mortos” é o Deus desse Templo. Numa outra passagem de Lucas (9, 60), o termo ‘mortos’ é usado de maneira equivalente; a alguém que quer seguir Jesus como discípulo mas pede para que o deixe primeiro ir enterrar o seu pai, a dura resposta é esta: “deixa os mortos enterrar os mortos deles”, o zelo religioso é desqualificado de forma apocalipticamente radical. Em resumo, o “Deus de mortos” é o da religião hierarquicamente instalada como um poder social, bem dissociado do “Deus de vivos” de quem o movimento messiânico se reclama, no caso como aquele que ressuscitará todos os mortos no final dos tempos anunciado para breve.
13. A oposição a César é entendida habitualmente de forma anacrónica, como se se tratasse duma repartição de actividades, um pacto entre dois ‘poderes’ substantivos: ao poder do Estado o que lhe compete, ao mundo eclesiástico a sacristia e o seu rebanho de pastores. Mas uma leitura atenta do episódio que culminou nessa frase mostra o anacronismo que seria deixar-se todo o domínio de César ao seu arbítrio. Trata-se com efeito de uma armadilha: “é ou não lícito pagar o imposto a César?”, questão politica por excelência num pais ocupado militarmente pelos exércitos de César para justamente cobrar esses impostos. Se Jesus disser que não é lícito, será denunciado à autoridade romana ocupante, a quem esse imposto se destina; se disser que sim, será abandonado pela multidão anti-ocupação romana que o aclamou à entrada em Jerusalém e à expulsão dos comerciantes do Templo, deixará portanto de ser perigoso. Se a resposta de Jesus fosse a que hoje corre, ele teria caído na armadilha e teria sido renegado pela multidão, o que obviamente não sucedeu: a resposta não foi a dum ‘colaborador’ com o ocupante. A astúcia de Jesus foi pedir a moeda e pegar pela imagem de César nela: a Lei bíblica proíbe as imagens de humanos, aquela imagem é pois ilícita, estrangeira, mandá-la para César equivale a expulsar a moeda do pais, o que por um lado convém à multidão que o aclama e por outro não dá pretexto a acusação aos Romanos. “E eles ficaram espantados” com a resposta, concluem os três evangelhos. César é a cabeça do poder politico e dos seus exércitos, oposto ao Deus de vivos de que o movimento messiânico se reclama; no livro do Apocalipse, César é o adversário do Messias.
14. Quanto à oposição de Deus ao Dinheiro, há que dizer que o que provoca algum espanto é a importância politica dessa oposição já nessa época, algumas parábolas aliás testemunhando da divulgação do comercio e do dinheiro na Palestina ocupada. Proposto como equivalente às trocas de coisas produzidas, a sua acumulação em mãos dos senhores de casas ricas torna-o capaz de poder económico sobre os que têm que trabalhar para receber um salário de sobrevivência.
15. Em todas as estruturas que consolidam um poder, ‘substantivo’ de uso corrente, este tende a impedir o que os seus subordinados podem, ‘poder’ agora como ‘verbo’. O motivo evangélico do serviço extremamente radical – “vocês sabem que os que são vistos como chefes das nações mandam nelas como senhores e que os grandes fazem sentir o seu poder sobre elas; não deve ser assim entre vocês: pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vocês, far-se-á o vosso servo e quem quiser ser o primeiro entre vocês, far-se-á o escravo de todos” (Mc 10, 42-44) – pode ser lido como fomento das possibilidades dos que estão sujeitos aos poderes, ajudá-los a libertarem-se para o que possam fazer e ser. O que significa que se há uma ética messiânica, ela não consiste em virtudes pessoais das almas, numa moral de indivíduos como a dos 10 Mandamentos da Bíblia hebraica, rebuscada pela cristandade e ensinada nos catecismos, mas numa ética de amor do próximo, de solidariedade, que tem a ver directamente com o mundo social, com a inversão do seu poder. Foi esta ética que propuseram constantemente os movimentos espirituais que sempre foram surgindo nas margens dos aparelhos eclesiásticos, uma ética de vivos assim testemunhada bem além dos que a professavam. Porquê chamar-lhes ‘messiânicos’? Para marcar a radicalidade apocalíptica em torno da figura escatológica do ‘Messias’, termo vindo hebreu que em grego se traduziu para ‘Cristo’ e rapidamente perdeu a perspectiva escatológica hebraica, tornado no mundo greco-romano o apelido de ‘Jesus’. A palavra cristão traduz  messiânico, a palavra cristianismo traduz messianismo.
16. Com efeito, durante dois séculos e meio, o movimento espiritual, messiânico ou cristão, perdida a esperança apocalíptica breve, disseminou-se nas cidades do império romano, mal tolerado e por vezes perseguido cruelmente, manifestando todavia uma relativa frontalidade aos três emblemas simbólicos que cativavam os desejos dos pais de família em ordem à relativamente ordeira reprodução social que os três poderes, religioso, imperial e económico procuravam assegurar tanto quanto possível: o dinheiro permitia que as trocas económicas tivessem alguma racionalidade, o imperador velava para que o direito se cumprisse assegurando as armas a boa ordem, os sacrifícios religiosos procuravam ganhar a bênção dos Deuses que detinham o segredo da fecundidade dos campos e dos rebanhos; em resumo, os emblemas do poder eram necessários para que, melhor ou pior, a sociedade funcionasse. Ora, o cristianismo, como o budismo sem dúvida, de movimento espiritual que, exilado da Palestina de origem e da esperança messiânica breve, guardou da sua dimensão politica apenas a resistência às perseguições durante esses dois séculos e meio, veio ao longo do século IV a ocupar o lugar de religião do império, rapidamente aliás tomando atitudes de poder persecutório contra a antiga religião oficial e contra os outros cultos espirituais, filosóficos inclusive. Donde que o messiânico se tenha deslocado para as margens do mundo religioso, retomando nas vidas de eremitas, monges, frades, etc., o desígnio do amor do próximo e do serviço, segundo as três oposições evangélicas. Mas nas gerações seguintes, conventos e ordens mais ou menos se integraram no mundo eclesiástico, abrindo caminho a futuros movimentos espirituais.

Dos movimentos espirituais e de reforma aos movimentos criticos
17. Sejam três observações gerais. Uma diz respeito à maneira como os mosteiros beneditinos, entre os primeiros movimentos espirituais a institucionalizarem-se, teve como desígnio ora et labora, colocando o trabalho considerado servil, próprio dos escravos e dos servos, no lugar nobre da instituição, em comum com a oração. A noção de ‘serviço’ fazia pois parte estrutural dela, ainda que entre os trabalhos dos mosteiros houvesse também os que diziam respeito aos manuscritos que eles copiaram, permitindo um mínimo de transmissão do acervo da Antiguidade greco-romana. A segunda consiste em sublinhar o sentido da palavra ‘ministro’ que designa nos países ocidentais os lugares proeminentes da governação e do poder. Ora, em latim, o magister e o minister eram o senhor das casas ricas e o respectivo escravo, o ‘magis’ e o ‘minus’, o maior e o menor. Que o termo que dizia o escravo se tenha tornado o que diz os lugares de poder, é um sintoma de secularização: os chefes cristãos ainda não tinham esquecido a injunção do serviço ao invés das nações, e o termo secularizou-se invertendo o sentido semântico da palavra latina. A terceira diz respeito à maneira como os juros de empréstimos foram proibidos na cristandade, segundo a Bíblia hebraica que só os permitia a estrangeiros (Deuteronómio 23, 20-21): donde que cristãos não podiam emprestar a cristãos nem judeus a judeus, mas estes, minoritários, podiam emprestar a cristãos, o que explica historicamente o lugar proeminente que alguns tiveram na história das finanças europeias. O mundo católico após a Reforma manteve essa proibição até 1745 (encíclica Vix prevenit), onde o ‘atraso’ capitalista desse mundo se sublinha historicamente e que a admissão da cobrança dos juros no sec XVIII se mostra como secularização.
18. A reclamação da reforma da estrutura eclesiástica na chamada Alta Idade Média, os séculos das comunas e das universidades, é um movimento cujo fôlego é simultaneamente espiritual, nas suas motivações, e politico nos seus objectivos, que visam uma estrutura eclesiástica com dominação temporal frequentemente (no Estado pontifício romano, em feudos de Abadias e Arcebispados) e enredada ao poder feudal nas outras regiões: sintoma de como esse conluio se manteve no mundo católico até ao século XX são as capelas dos palácios nobres com os respectivos capelães na sua casa civil. Ora, essa reclamação é uma atitude ‘moderna’, faz-se a partir da leitura critica dos textos evangélicos e da sua injunção de serviço, das três oposições aos emblemas dos poderes sociais. Assim os socialismos utópicos terão frequentemente motivos cristãos explícitos, como é o caso do inglês G. Winstanley (sec. XVII), desde os tempos medievais que as ditas heresias (Valdenses, Joaquim Fiore, Jan Hus, Muntzer, Anabaptistas) foram suas antepassadas. A filosofia de movimentos espirituais como a chamada devotio moderna ou o pietismo, será de ordem platónica, vincando tudo o que é invisível, destacando-se inclusivamente da própria liturgia e dos seus rituais. É a salvação das ‘almas’ após a morte que, como sempre, é o mote decisivo, mas ainda com referências às oposições evangélicas: poder-se-á dizer que a secularização encontrará no fôlego destes movimentos um suporte que traz os objectivos de mudança para o social e politico deste mundo. Mas o próprio marxismo se formulou teoricamente a partir duma ‘inversão’, que se pode dizer secularizante, da dialéctica hegeliana e da sua matriz teológica: a solidariedade cristã do amor do próximo pode-se dizer que é revertida secularmente no lugar essencial do proletariado na revolução comunista. Completar-se-á assim em parte, que se trata aqui de questões que nunca trabalhei, a perspectiva sobre a secularização política aberta por C. Schmitt.

A secularização da busca do saber, do ‘espiritual’ ao ‘intelectual’
19. Se a Physica de Aristóteles é “o livro de fundo da filosofia ocidental” (Heidegger), isso foi devido à maneira como Tomás de Aquino o introduziu no pensamento medieval: desde ele até Galileu pelo menos que se lhe chamou “O Filósofo”. Ele ganhou com efeito o lugar proeminente nas universidades em que a Teologia era a disciplina principal, de que a Filosofia era a ‘ancilla’, como disse acima. Aonde quer que, do século XVI ao final do XVIII, se encontrem autores para dizerem mal de Aristóteles, quase todos os modernos, temos aí a confissão de que foi com ele que aprenderam a pensar e a criticar, e que o criticaram também a ele. Se o anti-aristotelismo é pensar ‘contra’ Aristóteles, é sempre o segundo tempo dum pensamento que foi feito a partir dele. Galileu di-lo claramente no Diálogo dos grandes sistemas: “Aristóteles retirado da sua cátedra, a quem recorreríamos nós para pôr fim às nossas controvérsias? Que outro autor seguir nas escolas, nas academias, nas universidades? Que outro filósofo tratou de todas as partes da filosofia natural com tanto método, sem negligenciar a menor conclusão particular?” (ed. 1966, pp. 161-2). Ora, a critica da modernidade é anti-aristotélica: é Platão, o mestre que ele criticara na Academia, que ocupa agora a posição critica. Os seus textos foram traduzidos para latim na segunda metade do século XV – à boleia dos livros impressos, das naus atlânticas e do humanismo renascentista por estava a começar a modernidade europeia –, abrindo a possibilidade de o platonismo de Descartes (penso = existo como coisa cogitante) se tornar por sua vez crítico do aristotelismo e fecundar cientistas e filósofos europeus, formados na universidade com as problemáticas e conceitos de Aristóteles mas sendo na sua maioria enquanto inventores marginais à universidade, até que as reformas desta no século XIX, a partir de Humboldt, desalojou a teologia e o aristotelismo de vez e entregou a formação dos estudantes aos cientistas e aos pensadores modernos. Esta marginalidade do pensamento e do ‘labor’ científico que veio a fecundar a modernidade pode ser lida como um fenómeno de secularização, a do ‘sopro’ para a razão e a liberdade: em vez de irem para os movimentos espirituais nas margens das igrejas, os jovens foram para os movimentos intelectuais as margens da escola, criando as condições da sua reforma, que a pudesse tornar na instituição holística do mundo do saber e da busca da sabedoria, substituindo as igrejas cristãs.
20. Ora, esta secularização da busca do saber fez-se pela escola mas também pela edição industrial de livros desde o sec. XV, sem a qual a escola não se teria expandido. A edição de jornais, que se generalizou lentamente a partir do sec XVII, veio criar condições de debate politico, fomentando uma opinião pública entre os s suficientemente escolarizado que sofreu um incremento notável no sec XIX com a generalização da escola e dos movimentos políticos e sindicais. É no sec XX todavia que há uma mutação deste fenómeno, que se caracterizou por aquilo que os americanos chamaram ‘médias de massa’ com sons e imagens em movimento, rádio, cinema, televisão, discos, com expansão paralela à da formação do que se chama ‘classes médias’, caracterizadas pela urbanização em apartamentos de prédios, pela escolaridade liceal e por ofícios em escritórios e equivalentes. Há dois grandes tipos de modo de produção destes médias, os que distribuem geograficamente o que produzem, livros, jornais e revistas, discos, filmes, e os que emitem directamente a sua produção por ondas electromagnéticas recebidas em antenas nas residências familiares. Ora, este tipo de produção de imagens, músicas e discursos, em que é de sublinhar a sua incompatibilidade com os livros, ganhou um alcance holístico que prolonga o da escola obrigatória e concluindo de facto a substituição das igrejas holísticas de antanho. Mas ambos estes tipos de produção, por distribuição geográfica e por emissão de ondas para antenas, jogam o que se chama ‘comunicação social’ de forma unidireccional, de emissores para consumidores, o controle democrático fazendo-se por via da publicidade, cujas finanças procuram os médias de maiores audiências e tende pois a uma mediania, senão a uma ‘mediocridade’ que bate certo com ‘médias’ para classes ‘médias’. Provavelmente como as medianias religiosas de outrora.

O messiânico e a democracia
21. É aqui que a Internet, a ‘rede entre’ computadores, aparece com uma novidade que pode oferecer possibilidades de ‘comunicação social’ sem a estrutura unidireccional de emissores para consumidores, já que a existência de publicidade e o papel dos ‘servidores’ não interfere directamente com o jogo dos utentes em seus computadores e equivalentes: embora este jogo também tenha a ver com os usos gerais dos outros médias e com as suas ideologias, esta ausência de pólos de produção de discursos aproxima-se mais da concepção de democracia à maneira de Claude Lefort, embora se deva ressalvar que os médias, desde a televisão que parece manter um lugar proeminente, estão abertos a correntes de opinião razoavelmente contrárias e contraditórias entre si, com excepção é certo das propostas ‘extremas’ em relação às medianias correntes: privilégio das médias (estatísticas) e dos centros, com alguns ‘pensamentos únicos’ em economia e finanças.
22. Segundo Lefort, que cito de segundas mãos, a democracia define-se pelo lugar vazio do poder politico, vazio de ideologia, entenda-se, do nazismo como do comunismo, de qualquer partido politico que, de ‘parte’ que exclui as outras ‘partes’, se situa como ‘parte única’, vazio de ‘verdades’. Como deveria excluir o pensamento neo-liberal que hoje predomina na União Europeia e tanto mal nos fez: as decisões politicas fazem-se a partir de debates da opinião pública, entre os que (partidariamente) das suas ‘partes’ relevam. O ‘poder’ (-cracia) do ‘povo’ (demos-) em seus conflitos, insiste Lefort. O que chamei messiânico – motivo de filosofia politica de vários autores de confissão judaica que não li[6]– desenha o horizonte da democracia, que, tal como a justiça e a paz, nunca estão realizadas, são sempre a recomeçar. O que não significa um adiamento sistemático. Com efeito, pode-se dizer que a Cristandade medieval, que os movimentos espirituais ‘contestaram’ vitalmente, foi organizada sob a égide do ‘Deus de mortos’ e que a sequência das guerras de religião dos sec XVI e XVII foi, em França nomeadamente, os regimes absolutistas de ‘reis pela graça de Deus’, em que o ‘Deus de mortos’ ficou no lugar de cobertura de César, até que a revolução francesa viesse decapitá-lo, republicanamente. Reis nórdicos e presidentes da república ocuparam o lugar burguês de César, de que Hitler, Mussolini, Salazar e outros se apoderaram como afirmação de César “acima de todos”, de quem os parlamentos democráticos devem limitar os poderes. A globalização financeira e cibernética veio a delimitar o ‘poder politico’ quando o religioso já se tornou minoritário e os médias o substituíram: que os Estados, governos e parlamentos, não tenham senão o poder que o sistema financeiro, em suas concorrências especulativas, lhes deixa (um pouco como os governos nacionais fizeram aos governos municipais), mostra como o Dinheiro finalmente suplantou César (Kaiser, czar) que suplantara o Deus de mortos.
23. Mas não são só as finanças que justificam que o Dinheiro seja hoje o ocupante do lugar do poder, basta pensar no papel que ele tem em todos os orçamentos empresariais e familiares, que faz com que ele seja o mais desejado de todos os bens (sem ser outra coisa do que um meio de troca de bens!) por praticamente toda a gente (como atestam as lotarias), porventura o único ‘laço social’ que nos une a todos. A questão democrática então seria a de saber se é possível, não acabar com o dinheiro, mas, por exemplo, tornar a redistribuição das riquezas igualitária, justa. Tratar-se-á em qualquer caso,, na sua radicalidade messiânica, de ‘esvaziar’ este lugar de poder social, este obstáculo democrático. Foi o que os espirituais sempre buscaram, cuja forma secularizada hoje são os inumeráveis que dedicam as suas vidas, ou são dedicadas porque tem que ser, a alguma das causas sociais impossíveis, às misérias que a globalização tem fabricado por esse mundo fora. A esmagadora maioria anónimos e tantos deles não crentes nas religiões tradicionais, os não corruptos nas tarefas várias, económicas e politicas, mas também nos médias e nas artes, no pensamento e na animação cultural e social.
24. As igrejas cristãs têm conhecido crises fortes em consequência da secularização, a crise católica francesa entre 1965 e 1978 sendo contada pelo sociólogo D. Pelletier[7]. É certo que elas têm um lastro religioso terrível, como se vê com os evangélicos americanos de extrema direita, que devem fazer perder a paciência a tudo o que seja padres ou pastores. Mas pode-se pensar que a secularização as empurra para voltarem a ser movimentos espirituais messiânicos no contexto da actual modernidade, local como global, problemas insolúveis é que não faltam.




[1] Em que publiquei o texto De la fécondité spirituelle, no meu blogue em francês sobre questões do cristianismo.
[2] Meu e.book Da Natureza à Técnica, da Modernidade antiga à moderna.
[3] https://www.cairn.info/revue-les-etudes-philosophiques-2004-1-page-65.htm
[4] Título duma obra ‘pastoral’ do papa reformador Gregório Magno (590-604)
[5] Qu’est-ce que le christianisme? Essai de phénoménologie historique.
[6] Pierre Bouretz, Témoins de futur. Philosophie et messianisme, Gallimard, 2003. Trata de Hermann Cohen, Franz Rosenweig,Walter Benjamin, Gershom Scholem, Martin Buber, Ernst Bloch, Leo Strauss, Hans Jonas, Emmanuel Levinas. Não inclui todavia Derrida (não confessional?), cujos textos de ética e politica, das duas últimas décadas da sua vida, conheço pmal.
[7] Denis Pelletier, La crise catholique : religion, société, politique (1965.1978).Payot, 2002

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

˙A relação da Matemática à Física



Uma história da função zeta de Riemann
‘No princípio eram os números (primos)’?
Aritmética, álgebra e geometria
A geometria dos físicos
A questão da entropia
Porque é que os cientistas são ‘platónicos’?


1. Sempre gostei muito de números – aos 23 anos acabei engenharia civil no IST antes da viragem para as humanidades filosóficas e teológicas – mas ignoro quase tudo da história da matemática. Foi o meu amigo Artur Mário, com quem há 50 anos abalei em boa hora daqui para a Bélgica (donde ele não voltou), que, adivinhando o gosto que eu ia ter, me ofereceu o livro dos gémeos franceses de origem russa Igor e Grichka Bogdanov, Le code secret de l’Univers (2015, Albin Michel), que coloca (inadvertidamente) de maneira muito estimulante a questão da relação entre estas duas grandes disciplinas do saber científico europeu, dando-lhe uma solução explicitamente platónica: haverá uma entidade matemática, a função zeta de Riemann (de que eu nunca ouvira falar), que ‘existia antes’ do big Bang e que é a lei secreta de toda a realidade material de que a Física se ocupa. Um deles é físico e o outro matemático, mas ambos, se o livro foi escrito a quatro mãos como se presume, contam bem com ênfase romântico a história dessa função, os seus heróis a descobri-la em contextos evocados em detalhe, como nos bons romances históricos que aqui não parecem ficcionados. Essa função corresponde a uma lógica imanente à aritmética dos números primos, de que sempre gostei mas sem passarem duma curiosidade. E se o livro me interessou como quem lê um romance agradável, as dúvidas que o ‘enredo’ me deixou levaram-me a fazer algo que raramente terei feito na minha vida, de reler logo de seguida as suas 300 e poucas páginas.
2. Seja um exemplo engraçado. O matemático medieval que introduziu em 1202 os algarismos vindos dos árabes, Fibonacci (1170-250), criou uma sequência de números que tem o seu nome, começando em 0, 1, em que todos os outros números subsequentes são obtidos somando os dois anteriores: 0, 1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21, 34, 55, 89, 144... Um matemático alemão do séc. XIX, Adolf Hurwitz (1859-1919), descobre que a divisão entre dois membros seguidos a partir de 21/13, seja pois 34/21, 55/34, 89/55, e por aí fora – faça as contas na sua calculadora – dá sempre o mesmo número 1,61qualquer coisa! O chamado ‘número de ouro’ desde a Antiguidade que verificará depois que é um número irracional (como π ou raiz de 2). Dar-se-á conta em seguida de como os números primos da sequência de Fibonacci têm um papel escondido nela. É um exemplo dum fenómeno inesperado mas que se dá como resultante duma lógica imanente à ordem da matemática, seja a dos números inteiros seja a das suas operações, adição e divisão no caso. Ora, por outro lado, Hurwitz descobre que o número de pétalas de várias flores são sempre 1, ou 2, ou 3, ou 5, ou 8, números da sequência de Fibonacci, e nunca 4 ou 10 ou 15 ou 23 (que não são dela), assim como as curvas das espirais da couve-flor ou das conchas e das formas das pinhas dependem do número de ouro: correlação assim destas imanências da matemática com fenómenos naturais, dir-se-ia de geometria biológica.

Uma história da função zeta de Riemann
3. Contar esta história, constitui-la, é o enredo do livro: inicialmente uma sequência matemática (Euler, Gauss, Riemann) que com Maxwell e sobretudo Boltzmann ganha também uma sequência física e se dirige para um ‘happy end’ bogdanoviano que alterará a vida dos leitores (sic!) que compreenderem que nesta função – é certo que nunca demonstrada até hoje –, nas sua dupla incidência matemática e física, consiste o “código secreto do universo” de que os autores são o arauto, algumas citações recentes de sábios de peso garantindo-lhes que um tal código existe, o que aqui será questionado dum ponto de vista fenomenológico interrogando o tipo de relações entre matemática e física que permitiu as grandes descobertas desta última desde Galileu (1564-642) e as grandes invenções técnicas desde Watt (1736-819).
4. Na história que releva da matemática, são os números primos que ocupam o lugar principal, o de se saber qual é a sua distribuição no conjunto dos números inteiros, se é susceptível duma lei, duma regra de cálculo que permita conhecer de maneira certa as posições que ocupam entre os inteiros que não são primos, que se definem por serem decomponíveis em factores primos (84 -> 2 x 2 x 3 x 7; 124 -> 2 x 2 x 31, etc). Entre as descobertas de Euler (1707-83), está a de que a soma dos inversos dos quadrados da série dos números inteiros, de 1 a infinito, seja π2/6.
          1      1     1      1       1                   π2
 1 +   --  +  -- +  -- +  -- +  -- + ...... =  --------
          22       32      42     52      62                 6
Ora π é um número ‘geométrico’, a razão entre o perímetro e o diâmetro duma circunferência, um número calculado a partir de ‘medidas’, enquanto que as operações aritméticas sobre os números jogam-se num universo imanente, ‘abstracto’, isto é, que reduz as coisas da dita ‘realidade’ que os números permitem contar e medir. Encontrar π como resultado da soma duma série imanente é pelo menos inesperado, embora haja formas imanentes de o calcular, à maneira de Leibniz (1646-716). Outra descoberta, a igualdade entre a soma dos inversos da série dos números inteiros elevados a uma dada potência s e o produto dos inversos de 1 – 1 / ps em que p é a série dos números primos, o que cria uma relação entre os números inteiros e os números primos.  Sendo embora uma fórmula adentro da imanência aritmética, aponta obviamente para uma ‘lógica’ dos números primos, embora sem permitir conhecê-la. Quase uma centena de anos mais tarde, Riemann (1826-66), o homem das geometrias não euclidianas (o que os autores não assinalam), retoma a soma dos inversos da série dos números inteiros elevados a uma dada potência s de Euler, que a tinha chamado função zeta, e modifica-lhe o coeficiente s, um número inteiro, tornando-o um número complexo, com uma componente real e outra imaginária (a + bi, em que i2 = - 1). Em consequência, as soluções não triviais dessa nova função zeta – uma “recta imaginária que corta verticalmente o eixo horizontal dos números reais no ponto 1 / 2” (p. 132) – correspondem à série dos números primos (não se explica como no livro). Sua única contribuição para a teoria dos números, a chamada hipótese de Riemann, até hoje não demonstrada, se alguma vez o for permitirá provar que a distribuição dos números primos na série dos inteiros tem uma lógica interna, que é o que permite aos autores falar de um código universal.
5. A sequência física desta história vem de Maxwell (1831-79) retomado por Boltzmann (1844-906) em torno da teoria cinética dos gases, da distribuição das suas moléculas: a equação deles (velocidades das moléculas no primeiro, energias no segundo) corresponde, segundo os autores, à função zeta de Riemann relativa à esfera dos números, aqui aplicada à termodinâmica estatística e no século XX à mecânica quântica. Com Boltzmann, tem a ver também com o tempo e com a entropia de Clausius (1822-88). Claramente aqui está-se na física, está-se à descoberta da chamada ‘realidade’, para os nossos autores gémeos é um ponto culminante, que reaparece num encontro comovente em 1972 entre um jovem matemático americano, Hugh Montgmomery (1944), e um físico inglês, Freeman Dyson (1923): na cafetaria duma universidade dos E. U. descobrem que, com dez anos de intervalo, encontraram algo de equivalente cada um no seu domínio, a repartição estatística dos zeros da função zeta e as matrizes aleatórias dos níveis de energia das partículas do núcleo dos átomos.
6. Até aqui, a história é muito interessante, haja ou não código universal. Mas o último terço do livro envereda sobretudo pela teoria matemática da informação, pelo que se pode chamar uma ideologia numerária ou digital, que perdeu muito do interesse que trouxe o fenomenólogo pela história evocada, diremos porquê. Mas a critica de vários pontos que faremos, em ordem ao título deste pequeno texto, não pode escamotear que não fora a crença que se quer contagiante dos dois autores no tal código e esta história não seria contada assim, ao nível da divulgação, como mostram as vezes várias em que, a propósito de tal ou de tal ponto, fomos pedir mais esclarecimentos à wikipédia e encontrámos quase sempre exposições para iniciados. Ora, o que tão radicalmente resumimos não chega obviamente para se entender que a convergência das duas disciplinas em torno desta função zeta é algo de fascinante, susceptível de abrir perspectivas a quem traga balanço.

‘No princípio eram os números (primos)’?
7. A noção de código contra o acaso, foi a minha primeira reacção à leitura, logo nas páginas iniciais, mas volta várias vezes: a perspectiva determinista dos Bogdanov, digna dum Laplace (1749-827) ou dum santo Agostinho (354-430) que é muitas vezes o credo de cientistas que pensam que as leis que se vão descobrindo no laboratório correspondem ao determinismo sem mais fora dele. Eis uma citação que me arrepiou logo na p. 17. “Alguns – nós entre eles – murmuram que antes do nascimento da matéria, existia talvez uma espécie de ‘código cósmico’. Uma informação original que já lá estava antes do big Bang, ‘codando’ com uma precisão de dar vertigens, sem deixar o menor lugar ao acaso, a imensa explosão original e tudo o que deveria resultar dela”. Cada partícula dessa nuvem explosiva, na sua trajectória – justamente o que a mecânica quântica renunciou a conhecer, como diz o (aqui nunca citado) princípio da incerteza de Heisenberg (1901-76) – seria ‘determinada’ pelo ‘código’: por um dos seus termos, por vários, pela função inteira? O mínimo que se pode dizer é que vai contra toda a nossa ideia de explosão! O que será um tal código? Codificará qualquer partícula do universo, “tudo o que deveria resultar” da explosão inicial, será a versão numérica do Deus criador de todas as coisas: ‘no princípio eram os números (primos)’, já não o Verbo, o logos?

8. Para sublinhar a importância que os números primos têm para eles, os Bodganov citam um matemático londrino, Yan Fyodorov (1962): “os números primos são os elementos ou ‘tijolos de construção’ da aritmética” (p. 267). “Basta multiplicá-los entre si  para gerar todos os números inteiros possíveis e imagináveis” (p. 36), explicavam eles ao propô-los inicialmente, “números fora do tempo que existem num mundo independente da nossa realidade física” (M. du Sautoy, 1965, outro matemático), “números insólitos, já lá [...] antes do Big Bang”, concepção confessadamente platónica (p. 37). Arrisco-me a contestar matemáticos de envergadura? A questão é saber se se trata dum privilégio dos números primos, se estes têm algum sentido ‘antes’ dos números inteiros, estes só depois do big Bang? Construídos pelos primos (multiplicação dos factores de decomposição em primos, como exemplo do § 4) que seriam os ‘tijolos’ da aritmética? O problema é que eles só se distinguem na série dos números inteiros, sem os quais pura e simplesmente não há números primos. Com efeito, estes só são detectáveis a partir de operações aritméticas de multiplicação e sua inversa, a divisão, seguindo um a um os números inteiros. Ora a série destes resulta da adição de 1 a cada um partindo dos primeiros, dos dez dedos das mãos: a multiplicação não é senão uma abreviatura cómoda de várias adições do mesmo número inteiro. Ou seja, a série dos números inteiros é prévia à dos primos, estes não são identificáveis sem operações mais complexas do que a elementar que gera os inteiros todos, primos incluídos. Dizer isto não retira nada ao gozo da história de Euler, Riemann e Boltzmann, mas provavelmente deita por terra a excepcionalidade pré-big Bang dos números primos. Ao fim e ao cabo, porque é que não seriam todos os números inteiros a existirem ‘fora do tempo’, antes dele? Por exemplo, os números de 1 a 120 que jogam na sequenciação da tabela periódica, dizendo o número de protões de todos os átomos do universo.

Aritmética, álgebra e geometria
9. Uma das dificuldades nestas questões resulta de não se ter em conta a maneira como os números (e os outros sinais matemáticos) foram inventados, assim como em filosofia não é costume ter em atenção que ela só foi possível devido à invenção do alfabeto, que os chineses ignoram na sua sabedoria milenar, irredutível à do Ocidente (ver). Já havia geometria havia muitos séculos, no Egipto, Babilónia, Índia, China Grécia, quando os algarismos árabes (indianos) e o zero foram introduzidos na Idade Média, a minha ignorância não me permite dizer o que é que não era possível fazer matematicamente sem a posição decimal que o zero permitiu, a facilidade das operações aritméticas, como é que estas grafias foram decisivas para o cartesianismo e a física do século XVII. É que, ao contrário do que os Bogdanov pensam, a matemática é estruturalmente uma escrita, o cálculo mental é muito limitado, como todos sabemos e os computadores exibem espectacularmente.
10. Para que servem os números? Essencialmente, para contar e medir coisas da tal ‘realidade’ de que eles, como as letras das palavras, são uma abstracção. A vantagem disso é poder-se reduzir as coisas, abstrair delas e fazer operações fora delas: multiplicar euros por kilos de laranja, o resultado é um preço a pagar / a receber, mas sem que euros e laranjas interfiram na conta (o mesmo, mutatis mutandis, sucede com as regras das línguas com que dizemos as coisas). Mas contar e medir não são a mesma coisa: para uma precisa-se de aritmética, para a outra também se precisa de geometria e esta faz intervir umas ‘unidades’ convencionadas (metros de linhas, graus de ângulos, etc) que permitirão calcular, por exemplo clãssico, a altura duma pirâmide a partir da sua sombra comparada com a de uma vara. Então regressa-se às coisas, ganha-se um conhecimento novo sobre elas que só os números, sem os instrumentos de medição, não conseguem. Esta diferença, crucial para a convergência da aritmética dos primos com a física, nunca aparece no texto, pelo contrário: a propósito dum caso excepcional de matemático indiano que obteve resultados inéditos por ‘inspiração’ duma ‘voz’, eles falam platonicamente de “laço directo” de números [primos] “com o pensamento, sem a barreira do cálculo”. Claro que esta ‘barreira’ também não existia ‘antes do big Bang’, onde também não havia coisas para contar ou medir. O que ela explica é que a física dos Bogdanov não tenha laboratório, apenas números, como se os físicos fossem apenas matemáticos que fizessem contas directamente sobre a ‘realidade’.

A geometria dos físicos
11. Ora, os físicos são geómetras (desde a época em que as coordenadas cartesianas geometrizaram a álgebra ou algebrizaram a geometria, em que Galileu argumentou o seu discurso sobre duas novas ciências geometricamente!) que foram inventando relógios (o balde de água nesse discurso para medir o tempo da esfera a rolar no plano inclinado) e outros instrumentos de medidas de dimensões variadas, relativos a forças, energias, acelerações, intensidades eléctricas e por aí fora, medidas de movimentos de coisas da dita ‘realidade’ mas que tinham que ser tiradas dela e trazidas para um laboratório, criando condições para não haver os ‘acasos’ ou os factores ‘aleatórios’ que abundam no universo. Precisam portanto de instrumentos de medida mas também de matemática, só que não lhes basta a aritmética, precisam de álgebra, de equações capazes de, a partir das variáveis medidas experimentalmente repetidas vezes, calcular incógnitas, descobrir propriedades das coisas. Os números primos, bem interessantes que são como a história contada me revelou, não intervêm no laboratório, escuso de acrescentar que nunca ouvi dizer ou li: não fazem parte do laboratório, enquanto relevando meramente da aritmética. Mas é por isso que é um espanto que o número π, que releva do laboratório dos geómetras, apareça na fórmula matemática de Euler!
12. Mas o π não chega para o desiderato dos autores, precisam de física verdadeira, a de Maxwell e Boltzmann, dos homens da termodinâmica estatística do século XIX que veio a inspirar a mecânica quântica do século XX. Ora, creio que a estatística põe-lhes um problema: é que ela consiste não apenas na recusa, mas na real impossibilidade de ‘medir’ fenómenos da dimensão das moléculas, átomos, partículas, e portanto de constituir laboratórios susceptíveis de circunscrever os aleatórios das respectivas trajectórias (a incerteza de Heisenberg): a estatística, tal como em economia ou sociologia, soma e faz médias dividindo, o que são operações de tipo aritmético. É por isso se prestam à convergência com a função zeta de Rienamm, o que me maravilhou, mas deixam de fora dela todo resto da física! Cúmulo do azar para os dois gémeos deterministas: matemática e física convergem onde justamente esta aceita a indeterminação, as situações aleatórias, recusa o determinismo. No que diz respeito à teoria dos gases, a diferença entre a do século XIX com a do século XVII, dita lei de Boyle-Mariotte (1627-91; 1620-84), é esclarecedora. Esta lei põe a relação entre a pressão e o volume duma dada porção de gás, a temperatura constante. Ora, ela é correntemente chamada “lei dos gases perfeitos”, porque, explicou-me uma vez o físico Eduardo Arantes e Oliveira (1933), meu amigo e colega do Técnico, nenhum gás verifica rigorosamente a equação dessa lei, como se no que lhes diz respeito a matemática geométrico-algébrica não jogasse com tanto acerto como nas outras áreas. Donde a necessidade dois séculos depois de se vir à muito mais incerta, inexacta, estatística. Como sabemos sobejamente da economia, e disso padecemos, os métodos estatísticos não dão para conseguir ciências exactas. Não dão para determinismos como o da citação do § 7 que me arrepiou.

A teoria matemática da comunicação e os bits cibernéticos
13. Donde que a maior parte da física relativa ao ‘universo’ ficasse fora do alcance do código procurado. Sem se darem conta explicitamente da dificuldade, parece ser ela que os empurrou, no termo da história contada, para a “teoria da informação”, para a “teoria matemática da comunicação” elaborada na segunda metade do século XX em torno da linguagem computacional dos ‘bits’, 1 / 0. Aqui vão encontrar teóricos reconhecidos como seus cúmplices no platonismo, tal como o teórico da cibernética Wiener (1894-1964): “tudo é informação”. Os Bogdanov explicitam: “uma maçã, uma locomotiva a vapor, um cão, um corpo humano ou uma montanha, tudo isso não é senão informação [...] que define uma coisa de A a Z e que se pode medir muito precisamente com a ajuda dos bits”. De A a Z quer dizer que com todas as letras que comporta a definição – duma essência como fez a filosofia grega mas que não bastou a Galileu nem a Newton? – ou de tal maçã reineta, do corpo esbelto duma estrela de cinema ou do dum velhote trôpego? Como é que se definem estas coisas singulares de A a Z, com todas as letras, para depois transformar estas em bits? Os platónicos passaram por cima sem dar por ela (Platão deu-se a um trabalho prolongado de discussão de etimologias no Crátilo para poder dispensar as letras!): dizem-se as coisas pelos nomes, o que implica a redução da singularidade empírica dessas coisas, a qual necessitaria de muitas e muitas mais frases do que uma definição de essência para serem descritas e então passadas a bits, tal como essas frases podem passar ao telefone entre lugares distantes, mas não a maçã nem o corpo de alguém (embora sim a imagem). Com os bits não se vê que seja diferente: um ‘romance’ contando a maçã pode ir de computador em computador em inglês, para facilitar a universalidade da Web (que está muito limitada pela Babel das línguas), mas a maçã fica. Digamos aos platónicos que sonham com mandar coisas pela corrente eléctrica, que retomar-se-á a questão quando isso for conseguido.
14. Faltava ligar os bits ao mundo estudado pela física, o que foi feito a partir do princípio de Landauer (1927-99), segundo o qual o apagamento dum bit de informação aumenta a entropia do aparelho de tratamento da informação ou do seu ambiente e liberta energia sob a forma degradada de calor. O que permitirá a Wheler (1911-2008) dizer: “tudo o que existe – cada partícula, cada campo de forças, até ao próprio espaço-tempo – recebe a sua função, o seu sentido, mesmo a sua existência (ainda que indirectamente em certos contextos), das respostas trazidas por aparelhos aos jogos de questões ‘sim ou não’, representando escolhas binárias, bits. It from bit [seu slogan, a coisa vem do bit] simboliza a ideia de que cada elemento do mundo físico tem no fundo – lá bem no fundo – nas grandes profundidades quase sempre, uma fonte imaterial, assim como uma explicação. O que chamamos realidade resulta, em última análise, de respostas dadas às questões ‘sim ou não’. Em resumo, todas as coisas físicas têm origem na informação” (p. 238). Quais laboratórios, qual carapuça! Os computadores encarregam-se de todo o ‘labor’, mas este é ‘esquecido’ quando se vai bem ao fundo, ao ‘imaterial’. Em tempos, o director do Laboratório de Engenharia Civil na altura, Eduardo Arantes e Oliveira, dizia-me, se não o atraiçoo, que os modelos reduzidos das experiências laboratoriais de obras de grande dimensão se fazem actualmente com simulação computacional, mas ressalvava as barragens hidro-eléctricas que continuavam a necessitar de modelos reduzidos, a hidráulica como os gases também releva do domínio da estatística. Mas isso não é uma objecção à argumentação que aduzi, não abona em favor do platonismo das citações e do ‘imaterial’. O que estas citações revelam é a projecção que estes físicos da computação fazem do modelo cibernético sobre as coisas da ‘realidade’, a tal que fica sempre fora do laboratório, como as maçãs fora do computador.
15. O que é que se escamoteia assim sem dar por isso? Nada mais, nada menos do que o software, a programação que trabalha na computação, labora nos cálculos sobre os números (para não falar nas palavras que descrevem a maçã). Como se sabe, o 1 / 0 dos bits corresponde às duas possibilidades interessantes da electricidade para o hardware: passar a corrente / interromper a passagem (como também as sinapses dos neurónios). Apagar informação e libertar energia será verdade a esse nível ‘profundo’, mas ainda ‘material’ (equivalentes para a linguagem serão as vozes feitas numa garganta-boca ao falar): mas como é que os bits chegam às coisas, as quais são ainda mais materiais? Através da tal “barreira do cálculo” que o platonismo desconsidera (§ 10): ‘sim ou não’ são momentos, muitos e variados, dum programa de cálculos de software bem mais complexo, equivalente aos triliões de sinapses da rede cerebral ou às centenas de regras linguísticas de uma fala humana. Ou seja, nomes e números – que são transformados em bits – reduzem eles próprios as ‘coisas’ singulares que nomeiam, contam ou medem; além disso, contar e medir reduz também os nomes e as ‘essências’ definidas das coisas, como se disse, e é o segredo do triunfo das ciências. Que pagam um preço por ele: nunca são capazes de conhecer cientificamente nada de singular, maçã ou corpo de alguém, nada daquilo de que falam os romances e que os retratos mostram, em ambos os casos segundo a perspectiva adoptada pelo artista. Se for certo que é neste ‘esquecimento’ do labor do software que consistirá o engano desta ideologia digital, a questão a por então é a de saber se esse labor apenas faz crescer a entropia no sentido de Clausius ou se, antes desse crescimento, também produz “entropia positiva” no sentido de Prigogine (1917-2003).

A questão da entropia
16. A tradição filosófica ‘esqueceu’ a linguagem no pensamento (por exemplo, a noção de ‘ideia’), é por isso que o platonismo habitual dos cientistas ‘esquece’ a intervenção do laboratório nos seus resultados e os informáticos citados acima ‘esquecem’ o software; ora bem, também a teoria da entropia vinda de Clausius, segundo os autores implicando uma entropia nula do universo no seu começo (Boltzmann) e a sua morte térmica (Maxwell), parece ignorar o processo da vida na Terra e a sua evolução para uma maior complexidade, atendendo apenas talvez à morte como solução final de qualquer vivo. ‘Parece’, já que eu não sei como é que ela é hoje proposta habitualmente, fora da descoberta por Prigogine das “estruturas dissipativas” da bioquímica celular como produção de entropia, coisa de que obviamente os irmãos Bogdanov nunca ouviram falar. Este belga, também ele de origem russa, apesar do Nobel que essa descoberta lhe valeu em 1977, ao que eu sei, não teve uma recepção muito eloquente pela classe física; ora, eu creio que essa descoberta está bastante perto duma ‘chave’ para a compreensão do Universo que vai além do nível físico químico.
17. A entropia de Clausius e Boltzmann aumenta em sistemas fechados segundo o 2º princípio da Termodinâmica: energia de trabalho que se perde sob forma de calor. Por exemplo, a entropia vai sempre aumentando no percurso dum bloco de gelo que se liquefaz, depois a água ferve numa chaleira e solta-se em vapor, o seu calor significando a forma degradada de energia, que não dá para trabalhar. Em termos de sistema fechado, a explosão do vapor é a forma máxima de entropia de tipo Clausius, energia perdida. O que foi genial na invenção de Watt foi reter num cilindro estanque essa energia perdida e recuperá-la como energia de trabalho para um eixo de biela manivela. Assim contrariou o 2º princípio, esse contrariar sendo o segredo de toda a produção energética que é a base da modernidade.
18. Ora, que a explosão do vapor seja a forma máxima de entropia de tipo Clausius torna difícil de entender a noção corrente do grande Bang, da grande explosão de partículas com o calor de temperaturas ‘divinas’, como o início da matéria e da energia do Universo: em vez da “entropia nula” de Boltzmann, seria a entropia máxima, sem relação a outras fontes que tragam ‘qualidade’ energética baixando a entropia; não parece haver condições para nenhuma evolução que venha a culminar na formação de estrelas, para começar na formação dos átomos e moléculas de hidrogénio e hélio de que elas são compostas. A partir das estrelas e das suas combustões a temperaturas elevadas que estão na origem de outros átomos com núcleos maiores – mas como é que ‘aparecem’ as forças nucleares dos átomos, é um mistério para a minha ignorância – a noção de evolução começa a ser possível de ser pensada, incluindo a da vida no planeta Terra. Ora, foi na bioquímica das células que Prigogine detectou o processo de produção de entropia positiva, em contraste com a de Clausius, mas só possível com fontes energéticas exteriores ao sistema, porque gerando uma estabilidade (“estrutura”) improvável a um nível de instabilidade (“dissipativa”) bioquímica supra-molecular, dizendo respeito ao conjunto de transformações do metabolismo celular inter-agindo entre elas igualmente. Esta estabilidade instável implica uma energia com entropia positiva, ao passo que a morte da célula, transformações químicas que se tornam desconexas, releva do crescimento entrópico de Clausius. Isto é, a vida é frágil devido a esta instabilidade necessitando de alimentação frequente – é anti-entrópica em termos de Clausius – e mortal quando essa instabilidade deixar de ser possível – a entropia de Clausius vencendo enfim.
19. Mostrei como esta produção entrópica prigoginiana (o autor fez uma ‘filosofia’ de que me distancio) pode ser desenvolvida com dois motivos fenomenológicos, um heiedeggeriano de doação retirada, apagada (mecanismos de autonomia com heteronomia apagada) e outro derridiano de duplo laço (motor cego que dá movimento e regulação adequada à cena de circulação que faz a doação). Pode-se assim descrever os aspectos principais, elementares, das ciências biológicas, sociais, linguísticas, psicanalítica e físico-químicas e deduzir que se não há nenhum código secreto do universo antes dele, há um ‘segredo’ dele que Prigogine ajudou a desvendar. Mas o acaso jogou constantemente nos processos evolutivos e o aleatório é essencial às cenas de circulação (por isso as ciências precisam de laboratório, de experimentarem determinações em situações não aleatórias). (http://filosofiamaisciencias.blogspot.pt/2008/02/manifesto.html)

Porque é que os cientistas são ‘platónicos’?
20. Porque é que se ‘esquecem’ de contar com o laboratório e passam logo para a teoria e nesta também se ‘esquecem’ dos números e até das equações, para tratarem prioritariamente de conceitos e do conhecimento da dita realidade, ‘universal’ como se julga, como fazem os filósofos? São induzidos a fazê-lo pela própria tradição filosófica de que são herdeiros que se ignoram, não levam a sério que Newton (1643-727) se considerasse filósofo sabendo que estava a fazer ciência com matemática: Princípios matemáticos de Filosofia natural, é o nome do seu texto fundador da Mecânica. Na porta da Academia havia a célebre inscrição: “quem não é geómetra não entre!”. Ela serve de título a um texto dos filósofos brasileiros Gabriele Cornelli e de Maria Cecília de Miranda N. Coelho na Web que explica como Platão na República coloca a geometria e seus desenhos de figuras na passagem entre o sensível e o inteligível e como Aristóteles critica no platonismo a sua “metafisicização da matemática”: segundo ele, “o objecto de matemática (figura e número) está dentro da realidade, não fora dela (Metafísica 992a33-b1)”. O que chamei ‘platonismo’ dos cientistas corresponde de forma mais geral ao que o filósofo Jacques Derrida (1930-2004) chamou logocentrismo da filosofia greco-ocidental – a saber o privilégio do pensamento e da voz sobre a escrita (que atinge também portanto o aristotelismo) –, o qual foi, digamos aproximativamente, instituído (a ‘filosofia’: textos do saber por definições de essências e argumentação sobre elas) na sua grande força histórica que veio até nós pela doutrina das Formas ideais de Platão (428 a.C – 348), conhecida habitualmente como platonismo. Tendo entrado na Academia, o jovem Aristóteles (384 a.C – 322) foi o seu primeiro grande critico, atestam-no certos índices do Parménides de Platão, essa critica tendo sido prosseguida pelos textos seguintes do próprio Platão (por exemplo, o “parricídio” de Parménides no Sofista faz parte desse percurso) até ao Timeu e pode dizer-se que foi onde foi desembocar a Physica de Aristóteles, a que Heidegger (1889-976) chamou “o livro de fundo da filosofia ocidental”, devido à maneira como Tomás de Aquino (1225-74) o introduziu no pensamento medieval.
21. Os textos de Platão foram traduzidos para latim na segunda metade do século XV, à boleia dos livros impressos, das naus atlânticas e do humanismo renascentista que estava a abrir a modernidade europeia, abrindo a possibilidade de o platonismo de Descartes (1596-650) (penso = existo como coisa cogitante) se tornar por sua vez crítico do aristotelismo e fecundar cientistas e filósofos europeus, formados na escola com as problemáticas e conceitos de Aristóteles: houve assim uma parceria entre o mestre de outrora e o seu discípulo crítico na génese do pensamento da Europa moderna. Neste texto, a argumentação visou o privilégio platónico do “imaterial” (pensamento, ideias, mental) em matemática, ignorando que esta é estruturalmente escrita, o que torna a diferença material / imaterial improcedente nela, sem pertinência: é anti-platonicamente que Newton explica a sua Física pela conjugação da Mecânica (ciência das forças) com a Geometria, sublinhando que esta só se pode fazer depois de se desenharem figuras (description, na tradução de Mme Châtelet (1706-49), ed. fac-simile de A. Blanchard, 1966), o que implica, escreveu Newton, que a “Geometria pertença em parte à Mecânica”. Genial!