quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Breve fenomenologia da aprendizagem




1. A aprendizagem fascina-me e que ela seja, com a linguagem, uma das maiores lacunas da tradição filosófica, acrescenta a esse fascínio. Que há nelas que explique essa omissão dos grandes pensadores de que somos os descendentes, com cujos textos aprendemos a pensar por nossa vez? Porventura o serem fenómenos indissociavelmente de mais do que um, cuja descrição ou definição não se faz só com uma alma ou sujeito ou consciência ou indivíduo.
2. Em português todavia há dois verbos complementares que repartem entre os dois parceiros o que se dá entre eles, um aprende e o outro ensina, embora se possa aprender sem se ser ensinado, vendo fazer com cuidado, por exemplo. Mas em francês, que tanbém tem um verbo ‘enseigner’, apprendre pode ter como sujeito ambos os termos, tanto o mestre como o discípulo, como se ambos estivessem ‘presos’ um ao outro no ‘a-prender’. Como entre nós ‘alugar’ uma casa, tanto se diz do dono que aluga como daquele que vai usar o alugado, ao contrário de vender / comprar; porquê? Provavelmente, porque a venda feita, a relação entre vendedor e comprador desfaz-se, o que não acontece quando se aluga: o que é alugado permanece como ‘lugar’ que ‘prende’ os dois que ‘alugam’. Se for assim, então a mesma lógica do francês ‘apprendre’ implica que o saber que se aprende fique como relação entre mestre e discípulo, professor e aluno, pai e filho. Ou de forma geral entre antepassado e descendente: com efeito, por exemplo da língua, o que distingue gentes de línguas diferentes é justamente a relação aos antepassados, estes permanecem no uso linguístico dos seus descendentes. Focando-me na aprendizagem da linguagem, é sobre este ‘permanecer preso’ da língua e do saber entre os adultos que ensinam a falar e as crianças, que a reflexão fenomenológica se pode exercer, valendo certamente para outros usos.
3. O antepassado morreu, passou; se permanece, é pelo que ensinou antes de passar, pelo que deu, por essa doação não apenas permanecer no que aprendeu, mas tê-lo estruturado enquanto capaz de falar e pensar na ausência do que ensinou, capaz de falar e pensar sem ter o mestre a bichanar-lhe ao ouvido o que dizer, sem ditadores. Deu-lhe as regras e deixou-o autónomo a usá-las, as mesmas regras. Autonomia quase biológica, inserida, gravada no circuito neuronal que vai do ouvido à laringe e à boca, as regras dos outros (hetero-nomia) tornadas as minhas regras, em que, aprendendo sempre, se vai tornando habilidoso, espontâneo de mim a mim, sem poder ter memória das primeiras palavras que assim aprendeu e muito menos do que antes brincava sem saber ainda de si. Ora, tal autonomia espontânea com as mesmas regras dos outros e o esquecimento estrutural da aprendizagem, esta coisa de espanto só é possível porque o antepassado ‘passou’ antes de morrer, retirou-se, ou melhor, foi retirado naquele que aprendeu, onde pois ele permanece como doador retirado: passou, dando e deixando ser (Heidegger).
4. Na maneira como Derrida relê Husserl na De la grammatologie, o que é dado é a língua social, o seu jogo regrado com saber, é dado na nova voz da criança; o que é reduzido é a própria voz do antepassado (as vozes são mortais, enquanto que o social continua enquanto houver nascimentos). A nova voz é pro-duzida (ainda Heidegger) na criança, mas ninguém a produz, produz-se como de si mesma ‘duzida’, pondo o ‘pro’ reduzido, retirado, entre parêntesis: (pro)dução. A gramatologia de Derrida reuniu ambos os seus dois antepassados fenomenológicos: a aprendizagem como re(pro)dução. É aqui que se dá algo que creio totalmente inédito na história do pensamento ocidental: esta re(pro)dução, que alia a redução husserliana (fora do parêntesis) com a (pro)dução heideggeriana que dá deixando ser, colocando a doação entre parêntesis, isto que é um trabalho de pensadores revela-se ser a própria operação ôntica do fenómeno da aprendizagem, uma espécie de mecanismo fenomenológico de corte num e enxerto no outro: isto dá à fenomenologia que resulta destes três escritores pensadores um cunho de verdade. Já que não se trata apenas da aprendizagem da língua, mas também de toda e qualquer aprendizagem de saberes, de usos, e além disso, de tudo o que seja reprodução de vivos, por via de alimentação, ou o que seja reprodução de unidades sociais por via dos seus usos, se for verdade que qualquer unidade social reproduz as anteriores, ainda quando lhe junta inovações (que também reproduzem doutros lados, como enxerto).
5. Porque será então que a aprendizagem não fez parte da tradição filosófica? sabendo-se que todas as sociedades a têm como imperativo de sobrevivência, basta lembrar a importância da escola nas sociedades contemporâneas. Uma hipótese possível terá a ver com a noção, como atesta a língua portuguesa, de que ‘aprender’ é um verbo cujo sujeito – activo, pois – é o aprendiz, o que é contraditado pela experiência frequente de que nem sempre se consegue que ele aprenda; tanto neurologistas como psicólogos parecem abordarem-na assim, como coisa só do que aprende: dificuldade de se ter em conta a duplicidade de parceiros, o que isso implica no que aprende de passivactividade, um verdadeiro enigma estrutural, como mostram os fracassos de todos os tipos, escolares e familiares, empresariais. Uma outra dificuldade é a de se saber, quando se procuram exemplos, o que é que se aprende, o que é que tem que se aprender: não uma coisa qualquer, que os ratinhos de laboratório possam ajudar a compreender. O que se aprende são regras, rotinas, o que contraria os preconceitos ideológicos do ‘progresso’ e da ‘criatividade’, são justamente os usos sociais: o que pede articulação com a antropologia, outra dificuldade de tomo em tempos de especializações e respectivas rivalidades.
6. Permita-se-me uma memória. Quando Derrida veio da primeira vez a Portugal, em Novembro de 1983, eu estava escrevendo a minha tese de doutoramento sobre epistemologia da semântica saussuriana e tinha encalhado num impasse: a língua saussuriana não parecia ter nada a ver com o corpo, aliás reduzia-o, à acústica, à neurologia e ao aparelho fonador, como condição do seu laboratório científico, a comutação; parecia-me estar a jogar na oposição alma / corpo, a língua do lado daquela. Foi disso que falei com ele, que me recomendou a leitura de dois livros, Glas e La carte postale, Hegel, Genet e Freud, onde descobri o motivo do duplo laço que se revelou a fonte da fenomenologia de que aqui falo. Ter podido conversar com ele – tinha tido uma crise de fígado terrível nessa noite, mas disponibilizou-se na mesma para me receber – foi decisivo para o meu trabalho futuro, mas demorou bastantes anos a dar frutos; como canta o Sérgio Godinho, “a vida é feita de pequenos nadas”.
7. E já agora, pego na palavra: haverá grandes ‘nadas’, Sérgio? Há, aqueles que monopolizam os cientistas, mas também Heidegger e Derrida. Essa agora! Com efeito, o que é que Derrida chamou trace, rasto, vestígio? Justamente aquilo que se aprende, que passa do que ensina ao que aprende. Por exemplo, a língua. O que é ela? Nem a voz nem o discurso, as duas componentes da fala (parole), mas as regras que as organizam, que variam com as línguas, as regras dos fonemas ou letras mais as da morfologia, da sintaxe e da semântica. Ora, uma ‘regra’ pode ser dita ou escrita, é justamente o que as várias ciências fazem, mas quando se as dizem, elas são, digamos, receitas de falas, ou seja são também falas, tal como um dicionário ou uma gramática são discursos, textos. Mas a regra enquanto ‘faz’, organiza, estrutura uma voz que discursa, não é senão o que opera nela, sem ser ‘nada’ de voz nem de discurso. Se opera, ‘há’ a regra, a língua, quer no que ensina quer no que aprende, e a prova que há, é o trabalho dos linguistas que restituem essas regras... como vestígios detectados nas falas e discursos, único lugar onde as há. Não se trata da mesma coisa do que Heidegger dizia o “Nada que nadifica”, o que é doado pelo Ser que não é ente, coisa, gente, mas andam perto, este ‘Nada’ e o rasto ou vestígio da trace derridiana. Um campo de forças atractivas, como aquele que aguenta a estabilidade do sistema planetário, também não é uma ‘força’ e muito menos um astro, é ‘nada’, o jogo recíproco das várias forças de gravidade. Em qualquer ciência, sejam quais sejam os entes de que se ocupam os seus laboratórios, só se encontram diferenças estruturadas que aguentam esses entes nas respectivas cenas. Como uma diferença de duas cores não é uma cor, a diferença entre os tamanhos de dois miúdos não é o tamanho dum miúdo, etc. Mas tratar-se-á de ‘grandes nadas’ ou só dos ‘pequenos nadas’ que cantava o Sérgio? 

domingo, 26 de novembro de 2017

‘Différance’, escreveu Derrida


  
1. Mergulhemos num dos fenómenos mais fabulosos da linguagem humana : seja um texto de paixão, a sua escrita ou leitura, um poema. Por exemplo que muito me comove, a Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya, de Jorge de Sena. Este poema pode ser analisado por um linguista ou por um semiota, por um especialista de literatura poética. Ele está aí, em papel inscrito, diante do leitor qualificado, que o lerá várias vezes, para a frente e para trás, dissecará as palavras, as rimas, os ritmos, as aliterações ou consonâncias, as cadências, que sei eu ?, o que se pode chamar a estrutura significante. Mas também as imagens, as metáforas, as figuras poéticas, os temas, as ideias, os conteúdos, etc., o que se chama sentido. Ligá-lo ainda a outros poemas do mesmo autor, encontrar-lhe constâncias de estilo, de temas e de figuras, relacioná-lo com a sua biografia, a sua época, e por aí fora. Analisa-se o que lá está, já produzido, depois de escrito, depois de lido. Aceitemos que se trata de um bom leitor, que o resultado seja bem interessante e nos dê uma leitura nova, mais sugestiva, do poema.
2. Mas falta-lhe qualquer coisa que é o que aqui nos vai interessar : o ‘movimento’ que o escreveu, como escrit-ura, antes de ele ficar escrito ; o movimento de leit-ura de quem o leu como poema, antes de o analisar. O sufixo sublinhado, –ura, diz esse movimento, aberto ao fut-uro, de fazer : ‘poesia’ vem do verbo grego poiein, fazer (versos) como arte (technê) humana. E fazer implica a espacialidade do que é assim feito, o tempo de o fazer. Como arte implica um paschein, uma paixão dizemos nós, um certo turbilhão do movimento afectivo que o escreveu ou leu. Também escrever implica quem o escreveu, como ler implica quem o leu como outro, destinatário daquele, que para se ser lido se escreve. E enfim, as tais figuras poéticas e os tais temas só têm sentido porque falam de ‘algo’, acontecimentos ou emoções, como muitas vezes se diz, que se crê serem exteriores ao poema, referir a realidade dita extra-linguística, serem outra coisa do que o poema. Ora, o que aqui me importa, é que, no movimento de escrever ou de ler, nada disto que nós não podemos dizer senão cada coisa à sua vez, distinguindo-as umas das outras, nada disto se dá como distinto e muito menos separado do poema.
3. Este movimento tem qualquer coisa dum arrebatamento, dum enlevo, dum rapto. O –ura, da escritura como da leitura, diz esse movimento que rapta o escritor ou leitor à sua serena adesão de si a si, à sua consciência de si, que o (en)leva no jogo espácio-temporal do poema, dos seus fonemas e acentos e ritmos, das suas letras e palavras e figuras e frases, que arrasta também indissociavelmente o complexo e plural sentido do poema, intrinsecamente inerente à estrutura significante, que traz com ele aquilo de que ele fala, que impede de separar sujeito – escritor (ou leitor) e objecto – poema. Que permite mesmo quiçá ao leitor ‘ouvir’ a voz do poeta a dizer o poema sem lhe ter conhecido o tom nem o timbre, como se para o leitor ele falasse e a distância entre ambos se atenuasse quanto fazer se pode, no rapto aquele que é raptado pela escrit-ura e aquele que é raptado pela leit-ura entrando em cumplicidade artística, a qual se pode tornar numa cumplicidade de vida tal que nunca mais o leitor se aparte deveras do poeta que o habita na memória que perdura do poema, podendo este, por exemplo, vir alucinar aquele em sonho, como que lhe dizendo : ‘não sou mais outro, mas doravante sou em ti, sou teu antepassado que não mais te largará, habitantes que somos os dois do poema que em ti habitamos’. Ou mais prosaicamente, escrever com o poeta outro poema ainda.
4. Foi o que tentei dizer à entrada como fenómeno fabuloso da linguagem, e pode-se entendê-lo de outras linguagens de outras artes, músicas ou pinturas, de encontros amorosos a que o termo arrebatamento mais facilmente se aplica, ou experiências espirituais de conversão, ou ainda de textos fortes de pensamento que um dia connosco boliram de maneira a nos sentirmos também pensadores. Assim Malebranche encontrando um livro de Descartes numa livraria de Paris e exclamando : “moi aussi je suis philosophe”, ou o jovem Corregio que vendo pintar um pintor que veio à sua cidade saíu correndo : “anche ío sono pittóre”, ou outro jovem que descobre a sua vocação para realizador de cinema vendo e revendo deslumbrado West Side Story, ou Léo Ferré cantando Beethoven : “must es sein ? … cela est !”, ou Pascal no seu memorial de fogo, encontrado cosido no bolso interior do seu casaco : “ […] depuis environ dix heures et demie du soir jusques environ minuit et demi, Feu. ‘Dieu d’Abraham, Dieu d’Isaac, Dieu de Jacob’, non des philosophes et des savants. Certitude. Certitude. Sentiment. Joie. Paix. Dieu de Jésus-Christ […]”. Ou ainda, mas como dizer o ‘coup de foudre’ ?, o tempo que muda qualitativamente tal é a intensidade que o amor provoca, esbatendo em névoa o mundo em redor, os dois amantes não sabendo já quem são do que um em outro passa e vem, “amada en al amado transformada”.
5. Para evitar que estes exemplos induzam uma concepção romântica da inspiração poética ou do pensamento, que me é estranha, sublinho que, ainda quando corrigindo posteriormente partes de um texto, o escrever implica sempre algo de aventuroso, duma certa errância, de ‘acontecer’ virem tais palavras ou frases inesperadamente, sem que haja domínio ou contrôle do que se escreve por quem escreve (que não é pois ‘sujeito’ gramatical e causal do verbo escrever) ; mas também que só faz poesia quem leu e ouviu muita poesia já, como só pensa quem pensamento já longamente leu. Mas não se trata apenas de fenómenos ‘sublimes’ : quando dizemos de alguém que está absorvido na leitura dum romance ou dum jornal, que não dá sequer pelas conversas à sua volta, não se pode dizer que a leitura o raptou ? E de uma dessas conversas que seja suficientemente interessante, não se dirá depois que até nem se deu pelo tempo passar ?
6. Ora, e é o ponto, entender tais fenómenos como fenómenos de ‘linguagem’ implica que a esta se dê um outro estatuto do que o tradicional ‘instrumento do pensamento’, ‘meio de comunicação’, ‘signo’ de coisas ou ‘expressão’ de ideias, maneiras essas de sistematicamente secundarizar ou derivar o que estes exemplos mostram poder revelar : a pujança de metamorfose da vida dum humano. A palavra ‘linguagem’, com os seus sentidos habituais, é porventura inadequada para dizer esta pujança imensa, mas se algo do que chamamos discurso, texto ou obra, se presta por vezes a experiências tão fortes, então há que concluir que as experiências mais triviais de ‘linguagem’ que todos temos, desde meninos muito meninos, têm elas também a potência imperceptível de nos fazerem humanos no jogo com os outros humanos. Com Heidegger podemos falar aqui de habitação na terra, dizendo ele da arte por vezes, do sagrado outras, que dão “a medida da habitação do humano”, habitar na terra como mortais sendo a sua essência8. Também Derrida, generalizando o termo escritura, fala da “inscrição em geral, […] (quer) a inscrição na palavra (quer) a inscrição como habituação sempre já situada”9.
7. Dito de outra maneira, se se reconhecem os fenómenos a que se aludiu – e podíamos acrescentar ainda o que nos faz rir e o que nos faz chorar, nos abala assim o corpo de estremecimentos, ou ainda, aceitando a sugestão de Carlos Amaral Dias de que se trata em tudo isto aqui de “loucuras provisórias”, haverá também as questões das loucuras como sofrimento e exílio dos outros – se se reconhece pois que esses fenómenos têm a ver, não apenas é certo, mas essencialmente sempre, com o que chamamos linguagem, não será necessário ter estudado muito de filosofia para se perceber que não haverá nenhuma tradição filosófica sobre a linguagem que permita pensar estas questões. Eis o desafio que, recorrendo a Heidegger e sobretudo a Derrida, aqui se procurará aceitar.

O triângulo poesia, filosofia, ciências
8. Aproveitemos esta pequena reflexão sobre a poesia para caracterizar, de forma muito sumária um texto como poético ou literário : a predominância do trabalho de escrita na estrutura significante, na literalidade da letra, mas sem que o termo predominância implique a mais pequena subordinação do sentido à letra, ambos sendo indissociáveis por definição (se dizer se pode, já que a definição dissocia). Ou a resistência do poema ao resumo, à paráfrase, à explicação, e mesmo à tradução noutra língua, a qualquer equivalência de sentido entre o que o poema diz e o que se julgaria ser (e nunca é) o ‘mesmo’ sentido dito de forma não literária, a mesma ‘mensagem’ diria o teórico. Seja um exemplo de Fernando Pessoa.
“Baste a quem basta o que lhe basta / o bastante de lhe bastar”,
verso que nunca se poderá dizer equivalente a este outro :
“Triste de quem é feliz ! / vive porque a vida dura / nada na alma lhe diz / mais que a lição de raiz / ter por vida a sepultura”,
ou ainda
“ […] sem a loucura que é o homem / mais que a besta sadia, / cadáver adiado que procria ? “
Dizer que é o mesmo ‘tema’ é ignorar o poema.
9. Por definição, disse. E dizendo-o, estou já a falar da diferença entre a poesia (que lhe resiste, à definição) e a filosofia, que não é a diferença do pensamento – a alta poesia pensa – mas da forma de dizer o pensamento. O alvor da filosofia grega – de que a tradição europeia é filha – foi a definição que Sócrates ‘inventou’, consumando a ruptura com a literatura poética até aí dominante na Grécia. Definir um termo, uma palavra, atribuindo-lhe um sentido exacto que permita argumentar com outras igualmente definidas, separando pois esse sentido de outros sentidos veiculados por essa palavra na linguagem de todos os dias, é o gesto primeiro do discurso filosófico, que o torna como busca predominante do sentido, subordinando-lhe inequivocamente a estrutura ou letra significante que o diz. Enquanto que o poeta pensa na letra, o filósofo ‘quereria’ pensar além da letra.
10. Quanto às ciências – adentro do mesmo tipo gnosiológico de textos definidores e argumentativos que a filosofia –, podemos caracterizá-las pela relação inextricável que nelas se estabelece, em cada uma à sua maneira, entre um estrato teórico que define e argumenta e um outro que trabalha (em laboratório ‘labora’) e experimenta. Donde resulta um carácter intrinsecamente regional das ciências, que se institutem em função dum domínio delimitado de entes ou fenómenos científicos, susceptíveis justamente de experiência laboratorial. Ao invés, o discurso filosófico, ainda que admitindo uma relativa disciplinarização académica (ontologia, estética, ética, epistemologia, etc.), separa-se das experiências ‘particulares’ que o filósofo em seu percurso humano e de pensamento faz, e estabelece-se num plano ‘meta-experimental’, no sentido que o prefixo grego ‘meta-’ ganhou no termo tradicional de metafísica. Nas respectivas práticas, a diferença entre filosofia e ciências manifesta-se porventura bem na maneira como a primeira retorna incessantemente aos velhos textos do seu percurso de vinte e cinco séculos, enquanto que as segundas, novas e sedentas de novidade, assentam o essencial da sua prática no que consideram adquirido na contemporaneidade.
  11. Ora, tanto filosofia como ciências, enquanto se ocupam do que à linguagem diz respeito, não podem ter em conta senão textos já escritos, sobre os quais possam exercer as suas análises e definições, bem como métodos experimentais (comutação linguística, por exemplo). O que dá a entender que, se queremos ter em conta o movimento da linguagem como escrit-ura ou leit-ura, alguma distância haveremos de estabelecer com os discursos da tradição filosófica e científica.

O jogo do ‘a’ e do ‘e’
12. A introdução do neologismo ‘différance’ foi imagem de marca dos textos de Derrida desde 1967 até aos primeiros anos da década seguinte, com a pequena provocação de que a ‘escrit-ura’ é ‘anterior’ à linguagem oral. Intraduzível, esta diferença aposta à palavra francesa ‘différence’, à maneira dum erro de ortografia, não é susceptível de ser ouvida em discurso oral e dá-se apenas à leitura dum texto gráfico, escrito. E como ‘différance’ não tem qualquer sentido sem ‘différence’, pode-se dizer que não se trata duma nova palavra, nem dum novo conceito, mas dum jogo filosófico que, ao sublinhar que não existe oposição de fundo entre linguagem oral e escrita, rejeita o privilégio que toda a tradição ocidental – desde Sócrates (que se recusou a escrever) até hoje, passando nomeadamente por quem não devia, pelo Curso de Linguística Geral de Saussure e por Freud – sempre deu à linguagem oral como mais perto do pensamento da ‘alma’, reduzindo a escrita alfabética a uma mera transcrição dos sons da voz, atribuindo-lhe o malefício venenoso10 (Fedro de Platão) de se poder ausentar do que a escreveu, de poder durar para além da sua morte, de poder traír as ‘intenções’ do seu autor. Rejeitar esse privilégio do oral (e do pensamento) e fazer valer a positividade do escrito – foi assim, por uma questão nunca antes colocada, que Derrida entrou na filosofia – não implica inverter simplesmente a subordinação metafísica (a escrita não é ‘mais’ do que a fala) mas deslocá-la para um outro lugar filosófico, em que a linguagem oral – uso social que permite reproduzir os outros usos sociais –, no seio da condição mais geral dos humanos como habitantes da Terra (Heidegger), releva também ela da inscrição (nos cérebros dos meninos se inscreve por aprendizagem), das mãos humanas que traçam um território para viverem, caçarem, se enfeitarem, casarem, etc., para habitarem em suma. A voz que fala e as mãos que trabalham (trabalhar é inscrever uma obra) são contemporâneas da humanidade dos humanos, a inscrição (Derrida dirá também trace, traço que traça, inscreve, marca vestígios – ‘traces’, em francês – que duram, como um caminho, uma senda aberta na floresta, por exemplo) tão antiga quanto a oralidade.
13. O grande renovador da Linguística europeia do século XX, Ferdinand de Saussure, compendiou a sua novidade epistemológica no aforismo feliz : “na língua não há senão diferenças, sem termos positivos”11. Por exemplo : diante duma elipse 0, só se decide que se trata dum algarismo [0,13] ou duma letra [0lha cá !] pelas diferenças com o contexto. Derrida radicalizará : nem no discurso, nem no texto, nem em qualquer nível do que quer que chamamos ‘realidade’, não há senão diferenças, diferanças, diferendos. E tudo se faz por inscrições (traces, rastos) que traçam tais diferenças. Ora, o verbo latino differre tanto significa ‘produzir diferenças’ como ‘diferir’ no sentido de adiar : é esta dimensão temporal do verbo que o substantivo ‘diferença’ não tem e ‘diferança’ introduz. Tentaremos ilustrar como a différance ou trace de Derrida busca dizer o que acima chamámos ‘movimento’ como escrit-ura ou leit-ura, o momento que rapta tanto escritor como leitor. “A estrutura geral da trace imotivada faz comunicar na mesma possibilidade e sem que se as possa separar senão por abstracção a estrutura da relação ao outro, o movimento da temporalização e a linguagem como escritura”12.
14. Voltemos à página do poema de Jorge de Sena : vemos aí frases, palavras, letras, intervalos brancos entre estas e um pouco maiores entre aquelas, maiores ainda entre parágrafos, acentos e sinais de pontuação. Tudo “termos positivos”, segundo o aforismo de Saussure. Mas não basta este ‘ver’ para ler o poema : se este estiver escrito em sueco, vemos aquilo tudo e não lemos nada. Para ler, é preciso aprender os jogos de diferenças entre letras e entre palavras, é preciso aprender as regras desses jogos de diferenças, nas quais regras (entre as quais as palavras) consiste a língua (portuguesa) em que o poema está escrito. A diferença não se ‘vê’, não releva do ‘puro’ sensível, daquilo a que se chama percepção (o que se vê, ouve, apalpa), é diferença entre grafias sensíveis13 ; por ser ‘entre’, tem que se ‘ver’ estes sensíveis, portanto também a diferença não é ‘puro’ inteligível, mas algo que resiste a esta tão forte oposição da tradição filosófica e teológica do Ocidente. Implicando o olhar, ela não se reduz ao olhar ; implicando a inteligência, não se reduz a esta também, não releva nem da alma nem do corpo, e aqui temos uma primeira razão pela qual a metafísica, suportada pela oposição entre estas duas instâncias (na definição heideggeriana), não pôde deixar de secundarizar a linguagem como ‘instrumento’ ou ‘meio’, sob pena de se lhe abalarem os alicerces, os fundamentos14.

Espaçamento e temporalização
15. Se escrever ou ler é um ‘movimento’, o tempo é-lhe essencial. Mas também a espacialidade : a das linhas e versos do poema, as quais linhas não existiam ainda no papel em branco. A linearidade espacial é produzida pelo movimento de inscrição de diferenças, incluindo os seus intervalos, sem os quais não somoos capazes de ler. Leia, se fôr capaz :
erassobreerassesomemnotempoqueemerasvemserdescontenteéserhomemqueasforçascegassedomempelavisãoqueaalmatemassimpassadososquatrotemposdoserquesonhouaterraseráteatrodododiaclaroquenoatrodaermanoitecomeçougréciaromacristandadeeuropaasquatrosevãoparaondevaitodaaidadequemvemviveraverdadequemorreudomsebastião.
Com dificuldade, não é, sobretudo se não conhecer o poema. E se as letras se inscrevessem umas por cima das outras ? (o que o computador não permite exemplificar sequer, mas era possível nas antigas máquinas de escrever). Escrever (e ler) é produzir este espaçamento linear, que permite também segmentar tal ou tal frase e enxertá-la noutro texto, como citação. Ninguém pode pretender que se trata aqui de fenómenos acidentais : é inerente à escrita. E será fácil de perceber que também é inerente ao discurso oral, cada palavra sai depois da outra, numa sucessão espacial sonora, sem que os sons se possam atropelar. Derrida chamou espaçamento a esta produção de diferenças espaciais, característica essencial da linguagem humana.
16. Ora, este espaçamento é indissociável do tempo da sua ‘produção’, que a tradição filosófica não recorreu por acaso, de Aristóteles até Hegel15, à figura espacial da linha para representar o tempo. Mas a temporalização da escrita joga noutro sentido também. Quando lemos (ou ouvimos) um texto, temos que ir retendo na memória o que lemos como condição de entender o que vem e, da mesma maneira, lemos na expectativa do que virá a seguir, que vem completar o que já lemos (‘suspense’ dum romance, mas também estrutural numa conversa, mesmo trivial.). Na leitura do texto, é essencial este jogo de diferenças entre as várias partes do texto, lidas uma de cada vez, é estrutural este jogo de retenções et de protenções, entre antes e depois, esta temporalização que é a leitura. Como é, essencialmente, a escrita do que escreve que, ao inscrever um verso, adia, difere, os versos ainda não escritos, retendo os já escritos. Diferança, escreveu Derrida. O que pode ser vertiginoso, quando se percebe que as palavras de cada frase se sucedem instante a instante, sem que nunca o ‘sentido’ do que se escreve ou lê esteja em nenhum deles, mas tão só neste jogo de reenvios e adiamentos. Pode-se sempre resumir melhor ou pior o sentido dum texto, mas que seja por vezes necessário fazê-lo significa que nunca ele está em ‘sítio’ nenhum16, é a rêde de diferenças extremamente complexa que ele é, em seus fios, como um textil.

A relação estrutural ao Outro
17. É este ‘movimento’, espaço – tempo – jogo – de – diferenças17 que nos absorve quando escrevemos ou lemos. Somos, onticamente se se pode dizer, esse jogo ou movimento durante esse tempo, como se tudo o resto que somos também, estivesse ‘retirado’, ‘esquecido’ (à maneira como está esquecida a digestão que neste momento em nós se faz, ou a circulação do sangue, tipo de coisas de que podemos ganhar consciência em certas condições, se nos doi o estômago, por exemplo, ou buscamos estar em relaxe). É este jogo que nos impede, ao escrevermos ou lermos, de coincidirmos connosco mesmos em con-sciência, de coincidirmos com a situação existencial no mundo em que estamos (Dasein), donde como que somos raptados ou arrebatados ao escrever ou ler, raptados de nós mesmos, da nossa identidade próprias, para sermos, em sentido que quereria ôntico, o poema. E esse poema que somos é o jogo de diferenças da sua escrita ou leitura, em seu espaçamento – temporalização. Diferança ainda. Ora, como o que escreveu o poema também foi, em sentido ôntico também, esse jogo de diferenças enquanto o escreveu, encontramos necessariamente esse Outro quando o lemos. Passa-se o mesmo quando escutamos alguém falar, ele é o que está dizendo e nós somos o que estamos ouvindo, o mesmo texto ou discurso é relação estrutural ao Outro. Mesmo e Outro indissociavelmente somos nestes fabulosos fenómenos de linguagem. E como isso é assim desde criancinhas, desde o sermos iniciados no jogo de escutar e de falar, como nós somos isso desde sempre, o que os outros nos disseram (e rapidamente esquecemos em geral) é a condição do nosso falar, fica em nós como vestígios (traces) dos outros18. Mas não sem diferendos, sem zangas e castigos, sem polémicas e debates, como condição de auto-nomia nossa, isto é, de não ficarmos sujeitos sem defesa à hetero-nomia dos outros, à lei social que eles em nós inscrevem, apagando-se eles porém. Enigma de grande espanto. As regras da linguagem, as suas leis, são-nos comuns a uns e outros (assim como as de outros usos sociais quotidianos), são condição do que chamamos comun-icação, de nos entendermos sendo diferentes19. Que esta comunicação seja sempre-já atravessada pelos debates da nossa autonomia, de querermos con-vencer o outro do que achamos ser a ‘nossa’ razão ou verdade como diferente da do outro, explica que comunicar seja também frequentemente não comunicar : nossos percursos singulares, de retenções (que chamamos memória), nossa idiossincrasia, que faz com que leiamos o mesmo poema de maneira diferente do seu autor e doutro leitor. A diferança é pois relação estrutural ao Outro e diferendo com ele (em francês, ‘différent’, ‘différant’ e ‘différend’ soam todos ao mesmo, só graficamente diferem).
18. Mas tratando-se de regras de uma língua como condição de entendimento do outro, quem quer que conheça essas regras pode sempre entender também o que dizemos ou escrevemos, para além daquele a quem é destinado. O que escrevo, todos os que sabem ler o podem ler, o que digo, as paredes têm ouvidos para ouvir, como se diz. Por isso todos os estratagemas e dissimulações20 usadas para guardar segredos, desde a secretária (móvel e as suas gavetas fechadas à chave) ao secretário (o que está nos segredos do patrão). Mas também a possibilidade sempre, de jure, ainda que de linguagem cifrada se trate, de tais segredos serem desvendados, possibilidade aliás correlativa do risco inverso, de o ‘verdadeiro’ destinatário poder sempre não receber (ou não entender) o que lhe foi enviado21.
19. Há outra coisa ainda nesta relação estrutural ao Outro : aquilo de que se fala, o que o poema diz ou conta, o que ele refere como referente (em termos de linguista) e que, como é óbvio, é ‘materialmente’ diferente, ‘outro’ do que as palavras ditas ou escritas. Se conto o acidente que tive ontem, as palavras ditas são ‘sonoras’, materialmente diferentes do acidente como tal, o referente da narrativa contada dá-se como ‘exterior’ a essa narrativa, outro do que ela ; também um crime o é em relação com a (ignorância da) sua narrativa pelo detective que o investiga. Irredutivelmente palavras e coisas. Posso inclusivamente contar coisas que só ouvi ou li, que não presenciei, posso até mentir, inventar um acidente como desculpa dum atraso, fingir, fazer ficção, autobiográfica ou não, nunca o próprio sabe bem. E no entanto não posso separar as palavras que digo daquilo que elas dizem, sob pena de não dizer nada, de só fazer ruídos. Contra a tenaz tradição segundo a qual a linguagem representaria a ‘realidade’ de que fala, a tornaria ‘presente’ em sua ausência, há que dizer que um discurso ou texto é aquilo de que fala ; “pensar (dizer) e ser são o mesmo” (Parménides). Não há ‘interior’ nem ‘exterior’ aqui, nem intra-linguístico (ou pura imanência do discurso) nem extra-linguístico (transcendente). Sabendo que Heidegger não separa discurso e pensamento, podemos ler o que ele diz deste como sendo verdade também daquele : “se nós todos neste momento pensamos daqui mesmo [Darmstadt, onde ele fazia uma conferência] na velha ponte de Heidelberg, o movimento [eu sublinho] do nosso pensamento até esse lugar não é uma experiência que seria simplesmente interior às pessoas aqui presentes. Bem pelo contrário, quando pensamos na ponte em questão, pertence ao ser desse pensamento que nele mesmo ele se mantenha em todo o afastamento que nos separa desse lugar. Daqui nós estamos ao pé da ponte lá em baixo, e não por exemplo, ao pé do conteúdo duma representação alojada na nossa consciência”22. Se a linguagem não é aquilo de que ela fala, ela não é nada, só barulho23. Ela é sempre a possibilidade24 fabulosa de sermos outras coisas do que aquilo que somos na situação em que espácio-temporalmente estamos25. Os discursos e textos, dos outros e nossos, levam-nos, do aqui e agora ao algures e quando do que eles dizem. Condição de liberdade da nossa tribo (o que chamamos ‘cultura’), mas também de que o nosso ‘saber’ vá muito mais além do que experimentamos com nossas mãos, em nossos corpinhos. A ‘realidade’ que conhecemos, no que diz respeito à linguagem, vem-nos no que ouvimos ou lemos, no que dizemos ou escrevemos : o nosso ‘saber’ é inscrito como nossa memória de forma textual : sentido e saber na estrutura significante.

Linguagem como inscrição (trace) imotivada
20. Se sou raptado ao escrever ou ler, não sou eu a fonte ou causa desse movimento que me arrasta. Donde vem ele então ? Que causa o suporta ? Vem dele mesmo, como jogo imotivado, sem outra causa que não seja ele. Escreve Heidegger : “nós gostaríamos de não pensar senão a própria palavra ; nós quereríamos apenas segui-la. A palavra ela mesma é : a palavra – e nada fora disso. A própria palavra é a palavra. […] Como é que a palavra vem a ser enquanto palavra ? Resposta : a palavra fala [Sprache spricht]”26.
21. Só entendo o texto que ouço ou leio porque já conheço as palavras e as outras regras desse texto, porque re-conheço, o re- dizendo que a linguagem é essencialmente repetição (ou lei, ou regra do jogo, que os não há sem regras) que dos outros vem sempre-já, ninguém inventou. A nossa língua portuguesa já era antes do nascimento de cada um dos portugueses actuais e sobreviverá à sua morte : a língua vem dos Antepassados. Eminentemente social, não é função dos sujeitos falantes, dizia Saussure. Mas se o jogo implica regras, estas não podem determinar o jogo de forma a eliminar-lhe a aventura, o desafio, o risco que lhe é essencial por definição mesma de jogo, cujas regras só têm sentido porque se trata de situações aleatórias (asim como o código da estrada só se justifica pelo carácter aleatório do trânsito). Segmentável pelo espaçamento, sempre comutável, enxertável cada segmento noutro contexto como citação27, tais regras muito finas e complexas só têm sentido por, justamente sendo repetição, induzirem sempre alteração na resposta ao que veio a suscitá-la. Mesmo quando o poeta contemporâneo transgride tal ou tal regra sintáctica e/ou semântica (assim a ‘metáfora viva’ de Ricœur), tal transgressão não é alteração da regra, só se entende enquanto referida a ela, como quando se diz que “a excepção confirma a regra”. Repetição e alteridade : iterabilidade28.
22. O movimento de escrit-ura ou de leit-ura é pois uma inscrição, inscreve à mão, traça deixando marcas, vestígios : as letras no papel, os traços mnemónicos no cérebro29. Só os vestígios ou marcas nos são dados, o ‘movimento’ da trace ou différance nunca se dá como tal, nem ‘presente’ em si nem no passado que passou, mas também não ‘ausente’, pois que traça, tem efeitos : não é pois ‘causa’ em sentido físico (nem ‘physico’, da Physica de Aristóteles), não é nada de substancial, é ‘nada’ que deixa rastos, e que rapta aquele que a Filosofia pensou como ‘causa’ do pensamento. ‘Coisas’, isto é, diferenças entre sons que não são ‘coisas’, capazes de durarem séculos, como a língua portuguesa ou a basca por aldeias de analfabetos, ou o mirandês. Não são coisas de grande espanto ?
23. Há pois, Heidegger também o marcou, como se sabe, um privilégio da escuta, por onde a linguagem dos Outros nos vem, antes mesmo de haver voz para responder. Observe-se um bébé em seu berço, que faz uns poucos sons iguais em todos os bébés de todo o lado, que não é ainda voz. Ele ouve vozes diferentes : da mãe e do pai, da avó mais velhinha ou do irmão que já vai à escola, cada um com seu timbre, uns mais agudos, outros mais roucos, mas ele não vai imitar nenhuma dessa vozes, empiricamente todas diferentes umas das outras e da que ele terá, o bébé. Cada um de nós ouve vozes diferentes e entende nelas as mesmas palavras que repetirá. A tal iterabilidade : ouvem-se vozes (diferentes), entendem-se diferenças sonoras (repetidas : as mesmas), o que Saussure chamou significante. Esta diferença essencial entre sons e significantes (na língua não há sons, só nas falas ; nas línguas apenas as suas diferenças)30, o mestre de Paris e Genebra não soube tematizá-la epistemologicamente, não tinha filosofia disponível para isso. Derrida fê-lo através da ‘epochê’ de Husserl, deslocando esta das idealidades geométricas ou científicas para aqui : redução dos sons ouvidos, empíricos, do Mundo, para ressalvar o ser-ouvido fenomenal ou estrutural, as diferenças (mesmas) entre os sons reduzidos. ‘Transcendental’ em Husserl, Derrida chamar-lhe-ia mais tarde “quase-transcendental” : apagou, rasurou o ‘transcendental’ após ter passado por ele, após lhe ter permitido os efeitos de suspensão ou redução do empírico, evitando assim que o ‘sujeito’ falante (que no caso é escutante) se torne fundamento, como na tradição europeia ocorreu. Ora bem, é esta diferença quase-transcendental que o bébé entende nos sons que ouve, como nós todos constantemente, é ela que traçará a sua voz, ‘trace’ (re)produtora duma voz que antes não existia no mundo. Radicalidade desta iterabilidade que ao repetir altera, inventa uma nova voz.
24. O ‘movimento’ pois vem mas não é causado : nem pelos pulmões e gargantas e bocas que soam, nem pelas mãos que riscam, nem pela biologia cerebral, nem pelos usos de habitação da sociedade que fala para os dizer, as receitas desses usos, nem pelo pensamento ou razão de qualquer habitante mais sábio ou melhor lembrado. Não há sociedade humana habitante que não tenha já esses usos e a respectiva linguagem : que haja diferenças tais, de sociedade para sociedade, que um estrangeiro não entenda e se confunda do que vê e ouve, eis um argumento – clássico desde os Gregos – para dizer, não que as línguas são convenções (reuniões de não-falantes, (con)vindo de áreas diferentes, que acordariam que tal som seria para tal coisa, e tal outro para tal humano, … que caricatura !), mas sim que elas são imotivadas, sem motivo ou causa outra do que o próprio jogo se reproduzir : inscrições sem origem, pois que sempre-já repetições. Paradoxo duma repetição originária, que obriga a abandonar o conceito clássico de ‘repetição’ de um singular original, bem como o de origem simples. Não há origem que não seja mítica, não há língua que não seja a dos nossos Mortos.

O texto como dom de muitos
25. Jogo sem motivo pois31, mas motivador de movimentos : que nos raptam, arrastam, nunca largámos esse nosso motivo inicial. Rapto é tema de romances de aventuras e de estratégias, de enredos e de ‘suspenses’ : também assim a escrit-ura e a leit-ura. O que escreve é con-sciente, ciente do ‘seu’ discurso, do que ‘quer dizer’, das suas ‘intenções’. Mas aquilo que se escreve, o texto que o leva e transporta, transborda esse seu saber que o guia como um fio (pre)meditado, surpreende-o por vezes, denega-o outras, traz-lhe motivos não previstos, impõe-lhe até continuações que contra-dizem o que pre-tendia in-tender, e quanto bem isso não é, ventura das maiores destas paixões de escrever. Estratégia calculada do discurso, única maneira de começar em qualquer frase, quantas vezes um texto não espera até que essa frase de arranque venha e traga outras por arrasto – seja um texto de paixão – já que começo absolutamente necessário não há, a filosofia bem o sabe que tanto o buscou, a archê, o fundamento, o princípio, sempre sem êxito, sem saída (aporia : beco sem saída). Errância do texto que se escreve, sem que se possa opôr necessidade ou regras a aleatório ou acaso : destinerrância, escreveu e disse Derrida32. E o segredo será : nada – do que à pena ou à fala vem – vem sem relação de diferença ao que já veio e/ou virá depois, esta con-temporização é inerente ao jogo diferencial que é o texto, e nenhum escritor pode saber alguma vez dela, da inextricável rêde de que os vários sintagmas da escrita entre si são tecidos. Para que o discurso do escritor, o fio que vai levando a candeia que vai à frente e alumia duas vezes, possa puxar pela escrita, é necessário que se desatente do que ficou para trás e do que ainda demorará algumas frases a vir, tem que atentar na frase que está escrevendo (ou dizendo), nem na anterior nem na posterior, não pode atentar – não há atenção possível, nem tento para isso – no texto que assim se faz, que o (en)leva e o transporta, quase como um barco leva o piloto que o conduz, atento à procela que se levantou. O i-motivado motiva, diz e faz simultaneamente. (Re)produz texto, ao mesmo tempo estrutura significante, sentidos, forças e ‘realidade dita’, pensar e conhecer, verdade e ficção, e tudo vem dos Antepassados (ainda que vivos ainda, ou estrangeiros traduzidos) como dom, sem causa, politeista, inter-texto, dir-se-á : não se fala sem antes ouvir, não se escreve sem antes ler que a força de pensar também de outrem nos vem. E a outrem irá depois, é a esperança de quem escreve ou diz. Como a dos pais que falam ao bébé na expectativa de que ele venha a falar, dos professores que ensinam na de que os alunos aprendam : que haverá neste mundo que melhor mereça ser dito ‘esperança’ ? Ou promessa.



8 Essais et Conférences, 1958, Gallimard, pp. 234-245.
9 De la grammatologie, Minuit, 1967, p. 410.
10 Um pharmakon, uma droga, remédio (para a memória) e veneno (a memória descansa na repetição garantida).
11 Curso de Linguística Geral, [1916], trad. de José Victor Adragão, Sá da Costa, 1976, p. 202.
12 De la Grammatologie, p. 69, cf. também a p. 88.
13 Há regras ‘ausentes’ do que presentemente se ‘lê’. Por exemplo, quando leio a palavra ‘ler’, conto também com as palavras ‘ver’, ‘ter’, ‘ser’, ‘lar’, ‘lei’, que são diferentes ; conto com elas – sem pensar nelas, é claro – no sentido em que ‘ler’ é muito próxima (uma só letra diferente) mas não é nenhuma delas. Igualmente, quando leio ‘bem’ conto com ‘mal’, que não está necessariamente lá, mas que dá sentido à palavra ‘bem’. O mesmo se passa com o discurso oral, agora não em torno do ‘ver’ mas do ‘ouvir’ (se ouço os sons duma fala russa, não os entendo sem aprender a língua, onde não há senão diferenças). É o motivo linguístico de paradigma que se joga nesta ‘ausência’, como Saussure teorizou (Curso de Linguística Geral, p. 211-3).
14 Além de ‘alma’ e ‘corpo’, ‘ideias’, ‘matéria’, ‘sujeito’, consciência’, ‘experiência’, ‘percepção’, quantos motivos pensados como prévios à linguagem, como lhe sendo exteriores e condição dela. O sintoma mais óbvio : a linguagem não fazia parte do léxico filosófico europeu.
15 Derrida, « Ousia e grammê », sobre Heidegger, in Margens. Da Filosofia, ed. Rés.
16 Em rigor, não há o que os Europeus inventaram como ‘ideia’, se esta é algo ‘em si’, fora destes jogos da linguagem (5.7-9).
17 Ver o motivo do Zeit – Spiel – Raum, tempo – jogo – espaço, em Heidegger, Le principe de raison, Gallimard, 1962, p. 150.
18 Com a linguagem também os outros usos da nossa tribo, os mesmos para todos. É a raiz do que os sociólogos chamam socialização dos indivíduos.
19 Mas não estrangeiros : os que não têm a mesma lei, são de outra tribo.
20 Por isso também, a dissimulação nos é estrutural, como, a partir de François Flahault, tentei dizer em A Conversa, linguagem do quotidiano, Presença, 1991 (ver 6. 10).
21 Sobre esta questão, ver o último texto de Derrida em Margens. Da Filosofia.
22 Essais et conférences, pp. 186-7.
23 Como o retrato da Amália é a Amália, não apenas riscos e cores, como o mapa de Portugal é Portugal e não desenhos arbitrários.
24 Uma das possibilidades, que não há que opôr a outras : a de pintar, de trabalhar, de ouvir música ou de fazer amor, que sei eu.
25 A tripla estrutura existenciária do Dasein em Ser e Tempo (§§ 29-34), a saber o ser-se (estar-se) afectado pelo mundo, a (pré)compreensão e a interpretação discursiva da situação, implica o que estamos dizendo : embora não tematizado assim, só pode haver distinção entre as duas primeiras e a terceira devido justamente a esta diferença introduzida pelo jogo de diferenças da linguagem.
26 Acheminement vers la parole, Gallimard, 1976, pp. 14-15.
27 Ver o § 9 do cap. “Ciências das línguas e dos textos”, Filosofia e Ciências da Linguagem, Colibri, 1993.
28 Marges, p. 375. “Iter : repetir outra vez” (mesmo e alteridade) ; caminho, em latim (repetição dos passos, leva do mesmo ao outro) ; ‘outro’, em sânscrito.
29 Os grafos de J.-P. Changeux, O homem neuronal, [1983], D. Quixote. Ver o cap. “Biologia e Linguagem” de Filosofia e Ciências da Linguagem, Colibri, 1993.
30 Tratei desta questão sistematicamente em Epistemologia do sentido. Entre Filosofia e Poesia, a questão semântica, F. C. Gulbenkian, 1991, I parte.
31 Sem ‘motus’ exterior a ele (‘motus’ é movimento em latim).
32 Ver o cap. “Psicanálise e Linguagem” de Filosofia e Ciências da Linguagem, Colibri, 1993, §§ 49-50. “O conceito de jogo anuncia, na véspera e além da filosofia, a unidade do acaso e da necessidade num cálculo sem fim » (Margens. Da Filosofia, p. 9).

domingo, 12 de novembro de 2017

As ciências contra as nossas evidências



1. Os nossos olhos são geocêntricos, vêem o sol de nascer e pôr-se rodear a terra, tal como o nosso comboio parado parece andar quando outro se desloca em sentido inverso. Foi por isso que a primeira grande demonstração da (astro)física europeia por Copérnico, Galileu, Kepler e Newton provocou tanto escândalo nesse tempo. O que é extraordinário é que todos nós que passámos pelo liceu aceitamos de boa mente essa contradição da ciência com as nossas evidências, destes nossos olhos que a terra há-de comer, como se dizia antes da moda das incinerações, embora as aventuras dos astronautas tenham vindo ajudar a essa aceitação. É certo que, como dizia Cornelius Castoriadis, a verdade geocêntrica faz parte intrínseca dessa demonstração, já que as medidas (de Tycho Brahe) com que esta foi calculada são geocêntricas, feitas a partir da terra segundo as evidências dos olhos dos astrónomos. Mas não me lembro, após 60 anos de leituras de autores muito variados, de ter visto nenhum filósofo espantar-se dessa contradição – salva a honra de Husserl cujo fundamento na percepção lhe exigia que “a terra não se move” – entre a primeira grande tese científica e as nossas evidências sensíveis (contestadas estas por cartesianos, é certo). Quem sabe como é que Newton conseguiu enfim demonstrar o heliocentrismo?[1] Não a esmagadora maioria das gentes, com certeza. Conclusão: a física não é democrática, há um acto de crença generalizada na adesão à ciência. O problema de Galileu com a Igreja, ainda que não fossem esses os conteúdos da disputa, atesta historicamente o início da transferência de crenças entre as duas instituições, consumada com a posterior generalização da escola e com a viagem de Armstrong.
2. O que é picante é que, no início do século XX, Einstein e os outros seguidores de Planck tenham desembocado estrondosamente na nova área das partículas, tanto os fotões da luz e a sua velocidade inultrapassável como os átomos e os seus constituintes, tais entes ínfimos tendo comportamentos que punham por sua vez em questão as evidências da física clássica de Newton. Ainda hoje o problema não está resolvido e andam em busca de unificar o que ficou quebrado por laboratórios irredutíveis.
3. Então não é que as ciências acima da matéria inerte e da sua química mineral, se encontram numa situação semelhante, sem saberem todavia que os seus paradigmas de busca integram evidências que os impedem da cientificidade postulada? Digamos que acontece nas ciências dos vivos, das sociedades humanas e das suas linguagens, cujos cientistas estarão presos muitas vezes ainda em epistemologias deterministas fora das quais não sabem o que seja ‘ciência’. Como as especializações se acentuaram muito, o apetite por questões epistemológicas ter-se-á esbatido e, se acaso esbarrassem com o título deste meu texto, achariam provavelmente que se trata duma evidência mais ou menos pueril.
4. Mas o que me interessa é a etapa seguinte a esse determinismo filosófico obsoleto, quando biólogos, neurologistas, cientistas sociais, filólogos ou semióticos compreendem que os entes dos seus domínios – vivos, unidades sociais e discursos ou textos – são constituídos como autónomos em cenas que os reproduzem e onde circulam e que, por via de consequência, as regras que vão descobrindo são justamente dadas como as dessa autonomia de reprodução. Marquei com itálicos as chaves desta concepção geral do saber sobre tudo o que releva da vida: são autónomos, sim, com regras que o permitem, mas essas regras são-lhes dadas por outros vivos, por geração e reprodução temporal, regras (da espécie, da tribo, da língua e do paradigma) de heteronomia, a qual permite entes individualmente distintos pois que os deixa ser em sua autonomia, heteronomia dissimulada, retirada (Heidegger). O motivo derridiano do rasto vivo (trace) é a descoberta filosófica desta regra geral do ciclo “vida morte”.
5. É quando se chega aqui que se entende que os cientistas destas vastas áreas têm, como todos nós, uma evidência que lhes oculta este processo de doação retirado, dissimulado, das regras autonómicas, a evidência da sua interioridade como ponto de partida do conhecimento, evidência que o cogito cartesiano reforçou: donde o primado do ‘interior’ (substancial) sobre o que o gera como ‘ambiente’, do corpo vivo, do sujeito, da população, do falante ou escrevente em suas intenções.
6. Na biologia molecular, são os genes que ganharam a primazia, como é claro na afirmação do biólogo chileno Francisco Varela, que esteve em voga nos anos 80 e 90, que defende o primado do indivíduo sobre a espécie: “a reprodução e a evolução, assim como todos os fenómenos que decorrem delas, aparecem como fenómenos secundários, subordinados à existência e ao funcionamento autopoiéticos destes sistemas”[2]. É a noção de autopoiesis que é esclarecedora, um sistema vivo auto-reproduz-se sem sequer a alimentação ser tida em conta: a reprodução e a evolução são secundárias, como se a determinação genética viesse substituir o criador de outrora pelo acaso das mutações! Em termos de lógica, é tanto mais inacreditável quando há o espantoso livro de Darwin, que mostra como as anatomias foram sendo ‘inventadas’ pela evolução seleccionadora das anatomias que conseguem subsistir à cruel “guerra da natureza”, à lei da selva. Entre a galinha e o ovo, não há escolha possível, ambos são estritamente necessários ao longo das gerações e das suas evoluções, isto é provieram da cena ecológica que dá galinhas que põem ovos donde nascem galinhas que põem ovos porque também dá outros vivos como alimentação possível. A cena é prioritária, já lá está sempre já com a sua lei resultante do ciclo do carbono a partir da fotossíntese, mas ela não existe sem galinhas e ovos, tal com o campo do sistema planetário não existe sem planetas: a prioridade é epistemológica, não cronológica. Ou seja, não se trata de inverter a relação dentro / fora : se a lei da selva determina a imensa variedade das espécies zoológicas e botânicas, só o faz através da coordenação genética da anatomia de cada indivíduo na sua luta pela sobrevivência que Darwin tão bem compreendeu.
7. Na neurologia, regozijo-me com a evolução de Damásio cujo novo livro A estranha ordem das coisas estou ansioso por ler, já que anuncia que, após ter vinculado a mente aos neurónios em O livro da consciência (2010), virou biólogo que se interessa especialmente pelo sistema cerebral e põe este na dependência da homeostasia do sangue. Mas parece continuar a ignorar o papel da aprendizagem dos usos da tribo, incluindo a linguagem, sem a qual nenhum cérebro escapa ao pior dos autismos: também aqui a tribo já lá é condição estrutural, como se depreende facilmente ao ver como somos indígenas tão diferentes, consoantes as vozes com as nossas tribos. Mas voltarei a Damásio, à maneira como ele define ‘sentimentos’, com grande esperança de compreender bastante melhor toda esta espantosa economia anatómica.
8. No que diz respeito às ciências da linguagem, a linguística saussuriana deu o grande volte face sem o qual Derrida teria sido impossível, ele que permitiu que a minha tese de doutoramento tivesse resolvido a contradição estruturalista entre língua e fala, que não vão uma sem a outra, esta multiplicada pelos inúmeros indivíduos falantes, aquela sendo a mesma em todos eles sem ser nada sem eles, dando-lhes as suas falas vindas de fora, de outros falantes, sendo o sistema paradigmático das regras que permitem o entendimento entre os falantes dessa língua. Esta linguística respeita a diferença entre as línguas, enquanto que a gramática gerativa de Noam Chonsky (excelente intelectual!) coloca uma semântica lógica no inatismo dos cérebros cartesianos e dela faz decorrer árvores sintácticas prévias às diferenças fonológicas e morfológicas de maneira a serem idênticas para todas as línguas, que obviamente ‘desaparecem’ na ausência da fonologia e da morfologia, sem lugar que não seja secundário para as tribos e para as aprendizagens, essas coisas vindas de fora que nenhum cartesiano pode admitir. Contra esta maneira de ignorar as tribos e o seu papel na aprendizagem da língua, basta reparar nos sotaques regionais alentejanos, minhotos, alfacinhas ou açorianos. Não se trata duma Linguística, duma ciência das línguas em seus usos específicos, mas duma gramática geral, que segue uma das duas grandes tradições greco-europeias, a duma lógica sobrepondo-se à linguagem, uma técnica de tradução para diferentes línguas a partir do inglês e da sua morfologia quase zero. Como é que as traduções automáticas da Google se fazem será um ponto em seu favor, mas por certo que supõem trabalhos linguísticox empíricos infindos de adaptação de detalhes.
9. Ferdinand de Saussure, Louis Hjelmslev, Émile Benveniste, André Martinet, Maurice Gros e outros fizeram o trabalho necessário em Linguística, que não acompanhei nas últimas décadas, creio que é no campo das semióticas textuais e das exegeses literárias que há questões interessantes, embora também aí não possa falar senão da exegese bíblica. De qualquer forma, limitar-me-ei ao aspecto que aqui interessa, que tem a ver com a definição de texto e de leitura, lembrando o papel nesta dos dicionários, fundamentais nomeadamente quando se trata de textos antigos e de línguas estranhas, bem como da necessidade do conhecimento de antropologias de usos e costumes bem diferentes dos nossos, coisas em que todas as cautelas são poucas. Há que ganhar antes de mais conhecimentos de historiador sobre a época da escrita e de gramática da língua do texto em questão, um bom dicionário sempre à mão. O que sendo necessário não é suficiente, justamente por causa das nossas evidências em relação à leitura, em que pensamos o texto como vindo das ‘intenções’ de alguém e ambicionamos como meta máxima poder chegar a tais intenções preciosas, reveladoras da interioridade do escritor ou pensador. É frequente dar uma importância desmedida a cartas ou diários íntimos, ou inéditos desdenhados pelo próprio, como podendo ajudar a decifrar a ‘verdade’ dos textos publicados, o verdadeiro pensamento ou mensagem do seu autor. Depois há questão das palavras difíceis ou raras, um hapax[3] a desvendar sagazmente, a discutir com outros exegetas. Os dicionários não propõem um único significado, multiplicam as polissemias possíveis, consoante os contextos. Ora, a regra de ouro aqui é que é o próprio texto o primeiro contexto a privilegiar, devendo-se construir, à maneira de Barthes ou de Lévi-Strauss, este para corpus de mitos vizinhos, aquele para esse mesmo texto que se lê, construir os códigos de significações. Curiosamente, nos dois textos escritos em grego que analisei à maneira do S/Z de Barthes, o evangelho de Marcos e a Poética de Aristóteles, dei-me conta de que as versões modernas traduziam as várias ocorrências do termo logos por termos diferentes e que foi o cuidado de as correlacionar entre elas e respectivos contextos próximos uma das traves mestras das minhas duas leituras desconstrutivas, se posso dizer, a mais de dez anos de distância uma da outra. Seja o caso de Marcos: o logos é a própria narrativa da prática de Jesus, do que ele faz e lhe acontece, o que por exemplo permite interpretar as parábolas da semente e do semeador (cap. 4) como dizendo respeito a ele e não à ‘palavra de Deus’ em geral, como seria o caso em João 1,1[4]. O que está em jogo nesta questão é que nós, leitores modernos, crentes ou não, sobrevalorizamos o pensamento (do sujeito, da alma em Descartes) sobre a linguagem, que varia com os povos e suas línguas. Os códigos são tecidos da língua que o texto – o têxtil – teceu para si, podendo o autor dar-se conta disso ou não. Não é preciso que Freud nos tenha ensinado que não sabemos coisas importantes de nós, que por vezes surpreendem o sujeito em psicanálise, com o que ele é levado a dizer sem querer e sem saber; basta pensarmos na rapidez com que falamos ou escrevemos para perceber que uma boa parte da escrita faz-se automaticamente – tudo o que são elementos de ligação sintáctica, os sincategoremas da escolástica, preposições, conjunções, artigos, possessivos, e a morfologia dos verbos e nomes, a fonologia – mas mesmo termos significantes verbos e advérbios, substantivos e adjectivos, vêem muitas vezes como que já ligados entre si sem quase atenção nossa, mais virada para o que virá a seguir e – sucede como boa ventura! – este ‘que vem a seguir’ surpreende-nos, não estávamos à espera, não tínhamos pensado assim. Ora bem, é este tecer-se do texto em sua quase autonomia (as regras jogam sem darmos por elas) que escapa às ‘intenções’ do que o escreve e o leva por vezes inadvertidamente a alusões, confissões ou contradições que não se quereriam escrever. Ou quando falamos e a língua nos foge para a verdade, como se diz do que se não queria dizer. O texto pensa mais do que o próprio pensador, sem que haja que opor os dois, é claro: nesse pensar mais do texto quem pensa é a língua e a cultura da tribo, doutros textos lidos ou ouvidos. Em sociedades que nos são culturalmente estranhas, este tipo de leitura de fenomenologia textual permite aceder a conexões que não são nossas. Os textos bíblicos foram cobertos pela filosofia grega pelo menos a partir de Orígenes nos inícios do século III, filosofia essa que reduziu deliberadamente toda a antropologia hebraica, considerada “bárbara” por um platónico como Orígenes teorizando sentidos morais e espirituais porque os literais, históricos, não eram dignos de Deus (ou de Platão)[5]. Foi esta tendência da teologia platónica de Alexandria que dominou a época helenística do cristianismo, nomeadamente se lhe opondo a escola de Antioquia (na Síria) de Teodoro de Mapsuéstia, mais perto do mundo bíblico e das suas categorias históricas literais[6].
10. O cap. 4 de Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida, consagrado às ciências das sociedades (antropologia, história e sociologia), definia sociedade como “a assemblagem de unidades locais de habitação, o sistema de usos que uma população transmite de antepassados em descendentes na ‘terra’ que os deu”. Esta definição pretende-se válida para toda e qualquer sociedade, que se diferencia das outras pelos respectivos sistemas de usos e pelo território, contando com a confissão de dois sociólogos franceses que admitiam não haver definições gerais que abarcassem todas as sociedades humanas, sem que eu possa aqui garantir como é que nos inumeráveis textos de especialistas, incluindo as ciências ‘sociais’ (que só abarcam uma zona de estruturas, o que aliás significa que ‘sociologia’ como ciência geral das sociedades contemporâneas não existe), é hoje tratada a questão da definição implícita de sociedade. Vou assim supor alegremente que ela inclui população, em geral vista como conjunto de indivíduos, e território[7]. Este é um conceito geográfico ou topográfico, dele mesmo despido de população, o que contrasta com o nosso termo ‘terra’ que inclui uma dimensão ecológica essencial: há que haver espécies zoológicas e botânicas que dêem possibilidades de alimentação, assim como fontes de água e qualidade respirável de ar, donde que seja a terra (como nós dizemos ‘a minha terra é...’) que dê a cena ecológica de qualquer sociedade, de que a população faz parte. Isso inclui algumas condições biológicas: a) a de ter que se alimentar quotidianamente, b) a de ter de garantir segurança diurna e nocturna de todos, mormente crianças e mães, c) a que é correlativa da descoberta essencial de Lévi-Strauss (interdito de incesto e consequente exogamia na lógica do parentesco), a necessidade de controlar o excesso de energia e desejo sexual numa espécie que não conhece a restrição deste a períodos de cio das suas fêmeas. Ora bem, e só ao escrever desta o percebi, o motivo de ‘unidade local de habitação’ como ‘sistema de usos’, que faz da população gente organizada e não uma mera ‘multidão’, surge como resposta a estas condições ecológico-biológicas, tanto os usos como as unidades locais. Mas esses usos excedem também tais condições, já que incluem a linguagem, mitos e rituais sobre as origens ancestrais, bem como ornamentações e festas, além de dispositivos, digamos políticos, de contenção de rivalidades.
11. O motivo de usos que se aprendem, a que todas as sociedades dão importância crucial, joga pelo conservantismo estrutural (como as células e as espécies em biologia): o movimento social consiste na reprodução das estruturas recebidas dos antepassados. Desde o início tribal se pode encontrar o que perdurará: Freud tendo mostrado como somos estruturados a partir desse interdito e Elias como as relações entre homens e mulheres de casais diferentes nas cortes monárquicas jogaram para afinar as etiquetas dos costumes entre ambos os sexos quando não casados, todas as unidades locais que vão além do familiar – escolas e empresas – terão que interditar as relações sexuais entre homens e mulheres no seu seio (como as questões do assédio hoje ilustram), a libertação sexual dos anos 60 e 70 sendo enfim como que o ‘acabamento’ desse processo. Por outro lado, a diferença de tamanho e de estrutura muscular entre machos e fêmeas herdadas da evolução e os cuidados maternos continuados em partos sucessivos, tanto justificam a guerra entre machos que herdaram agressividade e astúcia, como o machismo que exclui as mulheres das funções ‘dominantes’.
12. Mas o motivo de usos pede um motivo complementar que dê conta das transformações históricas (“a história é a ciência das mudanças sociais”, disse algures Marc Bloch), o de ‘invenção’ de usos ou costumes: serão sobretudo invenções técnicas e escrita diferentes que resultam de novas gerações. A invenção da agricultura foi decisiva para os humanos se subtraírem à lei da selva a que estavam sujeitos como as outras espécies, tendo tornado possível a libertação de gente para invenções técnicas que deram trabalhos especializados em cidades e um mercado de trocas correlativo. Entre outros produtos de luxo, o fabrico de armas tornou possível a estrutura de castas sociais que ilustra a interpretação dos mitos indo-europeus de Dumézil: os camponeses, os guerreiros e os dedicados à soberania e aos mitos da fecundidade, com uma nova abrangência da lei da guerra que tornou possível grandes impérios. Da terceira casta resultou uma outra invenção, a das técnicas de escrita que, além da Índia que ignoro, resultou em duas grandes correntes de dois milénios e meio de história: por um lado, a escrita chinesa dos mandarins garantiu um império inédito que durou mais de 2000 anos, por outro, a escrita alfabética permitiu, com a escola, a invenção da definição filosófica, da physica aristotélica enquanto filosofia com ciências, da lógica e da teoria geométrica de Euclides, assim como do direito romano, o que veio a fecundar a futura Europa com a sua conjunção com técnicas de medida em laboratórios, depois as máquinas e a electricidade, modernidade que ora se globalizou na aliança do mercado com a escola após dois milénios de marginalidade de ambos. Se o § 10 introduziu a ecologia na definição de sociedade, vale agora lembrar que é a aliança entre técnica e conhecimento no seio do laboratório físico e químico que explica o terrível problema da poluição actual, que consiste no que os limites do laboratório (a sua positividade) não permitem saber: por exemplo que os automóveis eléctricos vão resolver, a respiração humana dos gases dum carro não fazer parte dos testes deste.
13. Merece perceber o papel do cristianismo neste processo ocidental. A primeira consideração a fazer é que o cristianismo grego e depois eslavo, chamado ortodoxo, não teve influência nele, portanto o ‘motor’ do processo não foi somente o cristianismo. Em seguida, ele veio dum processo hebraico – ‘bárbaro’ para os Gregos – que implicou uma endogamia, como aliás estes também: ou seja, nem a escrita profética nem a filosófica se destinavam a sair para fora das respectivas sociedades de preferência endogâmica, que hoje diríamos ‘racista’ a maneira como repudiavam os gentios e os bárbaros respectivamente; o que significa que é no império romano, expansivo e integrador de bárbaros, que se deve procurar o segredo desse processo. Mas o cristianismo como movimento espiritual tinha na sua origem judaica endogâmica uma limitação interna: ele visava o fim dos tempos e como isso não sucedeu, a sua fonte judaica secou (e que mal tratada foi ao longo desta história!), tudo teria terminado aí se um tal Paulo de Tarso não tivesse dado a volta para os gentios detestados, o que levou o movimento para o helenismo, agora já com uma população de não judeus. Ora, a vitória da Macedónia de Alexandre sobre as cidades gregas teve um efeito parecido de expulsão da cultura ateniense para o seio do mundo que os Romanos estavam a conquistar, como ilustra a construção da cidade de Alexandria, onde os cristãos de Paulo se encontraram com os filósofos platónicos, os quais tomaram conta do respectivo discurso, duma maneira que a Bíblia deles era incapaz[8] e que os imperadores do século IV, na peugada de Constantino, apadrinharam para dar um ‘suplemento de alma’ ao império que começava a agonizar, nas suas fronteiras militares como nos costumes das principais cidades. O que aconteceu então foi que esse lento processo de dois séculos de apagamento do império e de entrada de ‘bárbaros’ que foram ‘cristianizados’ (expansão tipo ‘imperial romana’ do que com Paulo fora ‘espiritual’) permitiu que, de movimento espiritual o cristianismo se transformasse fortemente em religião da Cristandade de muitos costumes e línguas diferentes durante longos séculos de sociedades praticamente rurais, em que os seus mosteiros guardaram os textos da civilização que se apagara. Ora bem, quando novas cidades e mercados começaram a desenvolver-se nos séculos XII e XIII, este cristianismo gerou uma escola inédita, as universidades, que ofereceram às invenções que estavam para vir – a impressão de livros, as viagens oceânicas e a cartografia, um humanismo de perspectiva e maquinarias variadas – uma cultura livresca como nenhuma sociedade histórica, que se saiba, tivera até então no seu berço. A sequência do processo, a partir do século XVIII e das suas Luzes enciclopédicas, veio a deitar fora como ‘casca’ a religião cristã que lhe trouxera justamente o tal ‘suplemento de alma’ como ‘suplemento de cultura’. Nas margens deste processo, os sopros espirituais dos inúmeros movimentos que foram reformulando a leitura do evangelho no contexto dos anseios e reclamações das suas épocas, inquietando as estruturas eclesiásticas e os poderes instalados até que, com Lutero, Calvino e outros, o contexto de ruptura humanista e a expansão de bíblias impressas em línguas vernáculas colocadas nas mãos de burgueses letrados favoreceram o desencadeamento da Reforma: assim se criaram dinâmicas de mudanças variadas, éticas mas também de ordem civil, donde se desenvolveu a modernidade capitalista e industrial.
14. O cristianismo foi o que, do seu próprio lavrar entre filosofia, platónica primeiro e aristotélica depois, e narrativas bíblicas lidas com olhos gregos primeiro e latinos depois, ofereceu à Europa por vir o material de que ela se fez. Deslindar essa mistura, a que se acrescente o direito romano, é tarefa quase impossível, tender-se-á sempre a puxar para as suas especialidades e preferências. Mas há um motivo forte no seu seio, o da alma imortal que Platão herdou e tematizou no Fédon como convindo a Sócrates e aos sábios virtuosos que são os filósofos, que o cristianismo acolheu por sua vez – “platonismo dos pobres”, chamou-lhe Nietzsche – e generalizou a toda a minha gente, como motor dinâmico de alcance celeste que transfigurava muita vida de quotidiano muito duro. Foi esse dom à Europa que se manifestou na modernidade como individualismo e desejo de liberdade que não parece ter comparação nas outras grandes civilizações. Ora bem, é justamente esta tradição da alma latina, que depois virou sujeito e consciência, o que nos fornece as nossas evidências – de dentro [e-] [-vidência] – sobre nós e sobre os outros, é ela que dá as intuições aos cientistas que têm a ver com vivos (e mesmo com movimentos físicos em seus campos). Quando se pretende que os problemas actuais são da ordem das ‘mentalidades’, que se resolvem com ‘educação’, pensa-se na prioridade do ‘dentro’, mas em vão. Só que pensar estas coisas tão importantes é tremendamente difícil. “Estranha ordem das coisas”, espanta-se Damásio. A ele vamos de seguida.


[1] Tem um texto neste blogue que conta como foi.
[2] Autonomie et connaissance. Essai sur le vivant, 1989, Seuil, p. 71, sublinhados meus.
[3] Palavra que só se encontra uma vez no corpus dum autor.
[4] Mas mesmo nesse caso, não é impossível que haja uma correlação quando se trata de dizer que “o Logos se fez carne”, sabendo-se que esse texto inicial foi um acrescento e que o termo não volta a aparecer.
[5] Excepto num ponto em que, contra si mesmo, interpretou em sentido literal uma estranhíssima palavra do texto de Mateus, em que Jesus diz que há trtês tipos de eunucos, uns de nascença, outros por acção dos homens “e existem eunucos que se castraram a si próprios por causa do reino dos céus” (19,12, trad. F. Lourenço): literalmente, o jovem Orígenes castrou-se.
[6] Bastará este apontamento para perceber como o projecto da tradução duma Bíblia dita grega de F. Lourenço tem riscos enormes, por justamente ignorar os alçapões antropológicos do mundo bíblico criados pela língua grega! Talvez mais do que nas traduções das narrativas, sobretudo nas notas que interpretam o que traduziu
[7] J. L. Vullierme, Le concept de système politique, P. U. F., 1988, um livro aconselhado vivamente por Edgar Morin, recusa, com M. Mauss e contra M. Weber, que o território faça parte essencial da sociedade, argumentando com as sociedades fundamentalmente dispersas e os nómadas (p. 134).
[8] Ficou a dinamizar espiritualmente o culto das assembleias, enquanto o latim foi compreendido pelo povo.