segunda-feira, 19 de maio de 2014

Piketty : o livro que faltava à Esquerda


1. Há vários anos já, como atestam alguns textos deste blogue listados no final deste, que me tenho atrevido a escrever publicamente sobre economia sem ser economista (nenhum número apareceu nesses textos) e advogado a necessidade duma reformulação da ciência económica, de ordem terapêutica ou pragmática, pois falta pensamento teórico de ordem económica à Esquerda, capaz de mobilizar estratégias e energias. Tratar-se-á de lhe dar orientações estratégicas adequadas aos tempos presentes de guerra de capitais financeiros desenfreada global e electronicamente desde que Reagan e Thatcher puseram Friedmann a mandar nas economias. O Capital no século XXI de Thomas Piketty, segundo a resenha de João Constâncio no Público de 16 de Maio, parece ser o livro tão esperado, que eu resumiria desta forma: sendo necessário o capitalismo ao desenvolvimento humano, ele só será viável democraticamente sob a forma da social democracia, com redistribuição por via de impostos dos capitais (acumulados), de maneira a garantir confortavelmente o Estado social e a impedir que a guerra dos capitais destrua as economias, a aliança entre empresas e famílias que é a sociedade moderna. O Estado tem o papel essencial de regulador, de maneira articulada com a escola e os médias democráticos para que uma opinião pública esclarecida possa apoiar e ser apoiada por esta reformulação da ciência económica.
2. Sem dúvida que são imensas as dificuldades para impor esta nova visão em sociedades interligadas cada vez mais por mercados sem cabeça central nacional, numa União Europeia ameaçada de nacionalismos egoístas, bem como numa globalização em que países emergentes de enormes populações procuram afirmar-se como potências. Mas o que me parece certo é que sem uma teoria económica contrariando as desigualdades criadas pelo “pensamento único” não há réstea de esperança possível. A convicção politica que a nova economia traga aos partidos de Esquerda será decisiva, não apenas nos seus círculos tradicionais mas também aonde um partido de centro direita se denomina de ‘social democrata’ e junto de quem se reconheça na doutrina social dos predecessores do novo Papa que denuncia corajosamente “a economia que  mata”, doutrina que pode ser revisitada como exigindo a redistribuição fiscal que tornará possíveis Estados sociais sustentados. Não apenas a Esquerda mas toda a gente “de boa vontade”, como dizia uma célebre encíclia de 1962, Pacem in Terris, todos os que se têm indignado com a visão da destruição das economias que tem feito a “Austeridade” dos pobres e remediados para devolver aos ricos, como se fossem estes que, sozinhos, tivessem enriquecido, como se, em época de robots e computadores, se preparassem para serem os seus únicos beneficiários. É uma excelente notícia quando a Troika se vai embora.
3. Voltarei a este texto para retomar de forma critica a comparação que J. Constâncio faz com Darwin, que falha quer com este quer com Peketty, mas não quis esperar por tão boa notícia.



http://filosofiamaisciencias2.blogspot.pt/2011_10_01_archive.html


segunda-feira, 12 de maio de 2014

Da Economia como ciência pragmática




1. Um velho texto de António J. Esteves, sociólogo da Universidade do Porto, que evoca as engenharias como “ciências de projecto” de Herbert Simon para incluir nelas a Economia, trouxe-me algo que procurava há vários anos. Segundo ele, “a determinação de ‘como as coisas podem ser’ e de ‘como devem ser’ para a realização de determinados objectivos delimita um conjunto de saberes que não se resumem às disciplinas científicas nem à sua ‘aplicação’”, diz Esteves, o projecto da Economia devendo ser “uma nova politica de bem estar social para um Estado” (H. Simon)[1]. Ciência de acção e portanto de mudança, pragmática assim, a sua verdade consistirá na transformação que ela consiga operar nas estruturas sociais sobre que incide, implicando a definição de objectivos.
2. Era esta descrição que me escapava, modesto fenomenólogo praticante de filosofia com ciências. Sendo uma ciência dos mercados, a economia é apenas uma ciência social entre outras que a ausência duma ciência global das sociedades capitalistas levou a ocupar esse lugar, indevidamente por certo mas a apelo do vazio. O seu carácter sectorial implica que os ‘objectivos’ a reconhecer-lhe não dependem exclusivamente dela mas de algo que a ultrapassa: a dupla grande crise que atravessamos, económica - financeira e climática, orienta o nosso olhar para o mais largo objectivo da Economia, a perpetuação da espécie humana, posta em questão por duas questões dramáticas, o enorme desemprego jovem (que futuro daqui a 30 anos?) e as consequências da progressiva alteração dos climas (que futuro daqui a 100 anos?). Estas duas questões impõem à Economia a consideração da nossa condição biológica como axioma imperativo, se dizer se pode: qualquer animal tem como problemas principais comer e proteger-se de ser comido e a sociedade começa por ser uma forma cooperativa mais económica de enfrentar esses problemas. No que dependa da Economia, há que garantir a alimentação (o “bem estar social” de que falava Simon, a que chamamos na Europa o Estado social) e a protecção de todos os cidadãos, a nossa liberdade (o Estado de direito). O imperativo estende-se à salvaguarda do planeta que nos dá a vida: a este nível, de que não me ocuparei, o papel da Economia será nomeadamente o de remover obstáculos derivados da arbitrariedade da especulação financeira.
3. Ora, a Biologia oferece também uma espécie de modelo para delinear os objectivos da Economia, à maneira da Medicina. Sabemos hoje que há uma inter-relação entre a determinação genética que diz respeito à reprodução das moléculas de cada célula do organismo e a circulação do sangue (que as alimenta a todas elas), a qual, instável, deve ter uma estabilidade homeostática cujos limiares, máximo e mínimo, são o objectivo médico, a nossa saúde: tensão arterial, seus teores variados (análises de sangue), mormente os de nutrientes e oxigénio. Para o que nos interessa aqui, este imperativo da saúde cifra-se em não se comer nem de mais nem de menos. O que nos tem chocado a todos nesta crise é ver-se a maior parte da população ser despojada mais ou menos brutalmente do que tem para viver, muitos do emprego, outros de parte do salário ou da pensão, enquanto que os muito ricos enriquecem e põem os capitais a darem dividendos lá fora.
4. O escândalo é que, aos olhos da Economia, isto parece ser apenas algo de lamentável, nem sequer ‘imoral’: o argumento com que nos enchem os ouvidos é o da ‘credibilidade’ junto dos grandes capitais especulativos, ditos ‘mercados’ como se fossem honestas mercearias. Ou seja, este baixar até à miséria de milhões de pessoas e a grande riqueza de poucos milhares não é nada que pareça dizer respeito à Economia enquanto ciência, algo que é deixado como preocupação aos políticos. Nela não haver respeito pelos limiares mínimos e máximos da Economia, faltar no seu arsenal axiomático o que define os seus objectivos enquanto ciência da ‘habitação’ (oikos, casa). No entanto, a crise ilustra como proceder na homeostasia social, na estabilidade instável (Prigogine) das conjunturas: garantir os mínimos (o Estado social) – que deverão ir até ao pleno emprego, diminuindo as horas de trabalho de todos para que todos o tenham – e corresponder a essas despesas com impostos (é a social-democracia) sobre a propriedade ‘privada’ (do social), a qual só vale por essa ‘privação’ que lhe dá contexto (ou seja, os impostos são devolução ao social duma parte do recebido dele). O nosso governo troikista, pelo contrário, forçou aquém dos mínimos sociais sem qualquer pudor, para garantir os máximos aos credores que vivem de especulação – jogam com títulos para lá, títulos para cá –, sem que a Economia enquanto ciência pareça ter algo a dizer a esse respeito, como se fosse apenas uma questão moral, ou o fatalismo de “as coisas serem como são”.
5. Não sou de economia nem de qualquer outra área social e percebo a dificuldade imensa de uma ciência económica global e que pretenda domesticar os capitais internacionais. Mas as crises são as sociedades a tornarem-se laboratórios exibindo o que falta às ciências, pedindo para as reformular, se ainda for a tempo. Ou para o que sobrar de espécie humana.

Público, 12 de Maio 2014 



[1] In M. Pinto e S. Silva, Metodologia das ciências sociais, 1986, p. 255-6