sábado, 21 de outubro de 2017

As desigualdades actuais em escolaridade e economia : porquê o populismo ?



1. O demógrafo francês Emmanuel Todd é o autor de textos notáveis tão iluminadores como objecto de polémica dos seus pares (ou ímpares), nomeadamente O terceiro planeta (1983), publicado em português sob o título A diversidade do Mundo (I. Piaget), juntamente com um outro texto dele, A infância do mundo. A sua tese é a de que há uma correlação entre as estruturas familiares – morgadio (herança do filho mais velho), igualdade entre irmãos, comunitarismo familiar (endogâmico) – e a super-estrutura ideológica das sociedades, quer religiosa quer política. Publicou vários livros, nomeadamente uma análise comparativa dos casamentos mistos nos Estados Unidos, Inglaterra, França e Alemanha que lhe permitiu mostrar como os casamentos mistos de autoctones, respectivamente com os negros, os paquistaneses, os magrebinos e os turcos, são claramente mais baixos do que quaisquer outros, sendo pois uma espécie de ‘ponto fixo’ do racismo de cada um[1]. Ora bem, Todd acaba de publicar  Où en sommes-nous? Une esquisse de l’histoire humaine, no Seuil, de que Le Monde publicou extractos no seu número de 1 de Setembro. Pela primeira vez, leio uma história da escolaridade contemporânea, e mais ainda, colocada face à da economia, o que permite perceber melhor o que se chama ‘sociedade de conhecimento’ e também abre uma pista de compreensão da subida dos populismos, que deduz-se que é um dos objectivos do livro mas que não consta dos extractos.

Escolaridade e economia crescem juntas e interferem
2. Segundo os números que ele dá nos países mais avançados, houve três fases na história da escolaridade moderna, a do ensino primário para todos (ler, escrever e fazer contas) ao longo do século XIX, a do secundário de massas e a do ensino superior. Foi na segunda fase que os Americanos passaram de 10% em 1900 a 70% em 1940, bem à frente dos principais países europeus, sem números nos extractos. A terceira fase diz respeito ao acesso ao superior, onde os números americanos vão de 3 e 2 % (homens e mulheres) em 1900, 7,5 h e 5 % m em 1940, 27 h e 22,5 % m em 1975, finalmente 30 % homens e 35 % mulheres em 2000, em França havendo uns 30 anos de atraso[2]. Além da ultrapassagem dos homens pelas mulheres que se tornou regra nos outros países também, há um fenómeno por assim dizer inesperado: a evolução dos números relativos ao ensino superior não foi a mesma do que fora no primário e no secundário, onde tendeu a atingir toda a população, enquanto que o ensino superior conheceu em todos estes países mais avançados uma estagnação, a correspondente aos 30 % homens e 35 % mulheres em 2000, mas já em 1980 houvera estagnação e até algum recuo.
3. “A questão que é posta é a dum limite à elevação do nível educativo da humanidade”, escreve Todd. Enquanto que a escola primária e o liceu representaram um progresso claro, que “tinha alimentado um subconsciente social igualitário”, o aumento da população estudantil universitária “rompeu a homogeneidade do corpo social”: “o tecto da educação superior gerou, nos Estados Unidos, depois nos outros países, um subconsciente desigualitário”. Todd recorre então às curvas de evolução do rendimento submetido ao imposto do livro de Saez e Piketty para encontrar justamente em 1980, o ano da eleição de Reagan, o ano em que “a liberação dos rendimentos dos mais ricos escapa ao peso de qualquer racionalidade técnica ou económica; o neo-liberalismo toma o comando, num clima de guerra social”. A tese é que “o cultural, o ideológico e o politico precedem o económico”. “Este carácter de lâmina de fundo do movimento desigualitário permite afirmar o primado duma determinação pela educação e a ideologia e o carácter derivado da evolução económica”.
4. Passar de ‘precedência’ à palavra ‘determinação’ aplicada a infra- e super-estruturas mostra o enviezamento do raciocínio: o que Todd busca é ‘inverter’ Marx e a sua velha tese da determinação em última instância das super-estruturas pela instância económica, tese essa  que ‘invertia’ Hegel; ora, a escolaridade invadiu a economia de forma tal que a oposição entre tais estruturas se torna caduca, bem como à sua reinversão toddiana. A proposta da história da escolaridade em correlação com a dos PIB sugere-me outra reflexão, já que a evolução da escolaridade fê-la penetrar na do PIB, para começar por duas vias de escolaridade especializada, a saber a dos engenheiros e a dos economistas e financeiros. O fordismo do princípio do século XX, a invenção da montagem em série dos automóveis Ford, é já o indício de como os ‘patrões’ do século XIX – que tinham legitimidade clássica de serem ‘pais’ (quando nas casas de antanho a economia e o parentesco eram chefiadas pelo mesmo, o pai-patrão) mas que incluía a competência que lhes vinha de conhecerem o ofício – foram sendo substituídos por engenheiros cuja especialização eles, patrões, ignoravam. O saber vindo da ciência por via da escola não era já ‘interno’ e para o voltar a ser as grandes empresas vieram a ter que criar ateliers de investigação própria. Os nomes de Keynes (com Roosevelt) e de Friedman possivelmente indiciam algo de equivalente em termos de competência de economistas e financeiros, o primeiro tendo tido um papel orientador nos célebres 30 anos gloriosos a seguir à 2ª grande guerra e o último na inflexão neo-liberal que, pondo os lucros das empresas à cabeça, as desligaram do campo politico compreendido nas fronteiras dos estados-nação e lançaram as multinacionais (termo do início dos anos 70, se bem me lembro) para a globalização e o crescimento dos países não ocidentais, sobretudo asiáticos, fora o caso à parte do Japão.
5. Como é frequente, Todd resume a 2ª revolução industrial pela “electricidade, automóvel e aviação”, esquecendo o betão armado que tornou possível as grandes cidades e seus prédios de apartamentos para as novas famílias das populações que tinham feito o liceu, as chamadas ‘classes médias’, bem como ignora os seus médias devidos à escolaridade, revistas, rádio e cinema, e depois televisão. Ora, se as suas curvas colocam a Europa avançada com duas ou três dezenas de anos de atraso em relação à América, Todd que não se esquecera de dizer que entre as duas guerras as universidades e investigação científica que contavam eram sobretudo europeias (parece óbvio que os Americanos, tal como os antigos Romanos em relação aos Gregos, são sobretudo engenheiros, não tanto ‘pensadores’), não dá relevo nenhum às incidências dos médias (terão curvas de crescimento a par da da escolaridade) sobre os estudantes liceais e universitários e à contemporaneidade das revoltas juvenis e feministas dum lado e doutro do Atlântico e até ao longínquo Japão. O livro de Luc Boltanski, Le nouvel esprit du capialisme, de 1999, mostra como as empresas francesas se des-hierarquizaram estruturalmente na sequência do Maio de 68, incidência da escolaridade e dos médias.
6. Ora bem, porque é que, tendo melhorado fortemente os níveis de escolaridade, ainda que tendo em conta a estagnação do processo no superior, o neo-liberalismo teve o vento em popa até provocar a gravíssima crise de 2008 e ter em seguida continuado quase como se não tivesse havido crise? Há provavelmente duas razões principais: por um lado, o desenvolvimento dos meios electrónicos de cibernética (e a robotização nos meios de fabrico e transporte) que permitiram acelerar tremendamente a globalização multinacional, levando de vencida a cada vez mais fraca resistência ‘política’ do estado-nação, e por outro lado, a fraqueza ideológico-política deste praticamente soçobrou com o ‘fim do medo do comunismo’ das burguesias ocidentais a partir de 1989. Destes dois factores terá surgido o ‘pensamento único’ desvastador das classes médicas. Aliás, a cibernética das chamadas redes sociais, tipo Facebook, mas já antes a Microsoft e a Google, dá exemplos de novidade na história dos PIB, quando se vê engenheiros muito jovens tornarem-se em poucos anos chefes de grandes empresas multimilionárias: trata-se não de inventores de máquinas (hardware) mas das suas linguagens (soft), o que reenvia para a questão da escolaridade a intervir estrondosamente na produção económica.

A critica do argumento de autoridade
7. Chego então ao ponto que me trouxe a questão de E. Todd: como situar o populismo recente nesta problemática? Estes dados chegam ou há que olhar de forma mais alargada à história da escolaridade? Recuemos à Idade Média, onde nos séculos XII e XIII se deu algo de totalmente inédito na história dos humanos[3]: em vários lados, começando em Bolonha, comunidades de clérigos pegaram na herança greco-romana e árabe para ensinar os seus alunos lendo e comentando os textos recebidos. Estas universidades são a fonte histórica da escolaridade europeia de que se falou acima: desprovidos de saber autónomo, esses clérigos liam textos que discutiam, textos cuja posição era dela mesma a duma autoridade em termos de saber[4]. Ora, quando no século XVI se consumou a crise do magistério eclesiástico no norte da Europa e “os mares nunca dantes navegados” abriram os caminhos marítimos da globalização, essa abertura foi também a da ‘crítica’ dos argumentos provindos da autoridade dos textos que se liam nas universidades, os quais ignoravam quase tudo destas novidades em terras, gentes e hábitos: ao saber literário é oposto o saber da experiência. O alvo principal desta crítica são os textos de Aristóteles, que até aí englobavam uma boa parte do saber que se ensinava. A introdução do ‘labor’ experimental no saber filosófico pelos laboratórios científicos foi parte importante, marginal às universidades em grande parte até às reformas destas no início do século XIX, dessa critica, dessas Luzes a que Kant atribuiu o papel de tornar os humanos adultos pela Razão que, na sua época, fecundou a revolução francesa. Todos os humanos, em princípio, mas a tal estagnação é também a do igualitarismo das Luzes que Todd deplora. É que ser adulto é pensar em autonomia após se ter aprendido, o objectivo da aprendizagem é justamente a autonomia, a liberdade do pensamento, da expressão, e o que a igualdade pressuporia era um nivelamento das possibilidades desse pensar autónomo, que se restringe para a maioria ao saber tribal e ao que é recebido dos médias, mas também para os de nível universitário conhece as inevitáveis restrições da respectiva especialização.
8. Quem é hoje depositário de saberes? Na maneira como as nossas sociedades estão organizadas, a resposta parece ser esta: os professores universitários, já que são eles que ensinam as novas gerações, que ensinam inclusivamente os professores de liceu que vão ensinar os adolescentes. Mas também os médias contribuem para os saberes, os livros antes de mais, revistas e jornais, médias de voz e imagem, e há enfim as ditas redes sociais entre computadores pessoais e telemóveis. As democracias organizam eleições como processo de designação dos responsáveis de vários níveis da coisa pública, no pressuposto de debates que esclareçam e permitam que se vote como adulto autónomo informado. É certo que dos responsáveis que são eleitos são excluídos professores, médicos, cientistas, engenheiros, etc., uma série grande de lugares de eficiência social relevante mais ou menos circunscrita, que devem ser nomeados mediante exames e concursos diversos. Ora, toda esta gente é altamente especializada, em razão mesma da proficiência dos progressos dos saberes, e em consequência não há nenhuma sede de saber de tipo ‘geral’ ou ‘universal’ a que se possa recorrer, fora das competências especializadas. Como se tem visto na questão das alterações climáticas, será sempre o debate entre especialistas o último recurso em termos de saber. Mas como é este acessível? Até há algum tempo, a resposta consistia nas bibliotecas, os professores sendo não apenas autores de livros mas também e sobretudo os cicerones das bibliotecas, que encaminhavam os leitores. Era ainda o tempo dos argumentos, mais ou menos bem tratados, mas era preciso ler e saber ler, ouvir e saber ouvir. As chamadas redes sociais vieram alterar fortemente as coisas. Sem dúvida que já os médias dedicavam muito tempo ao entretimento e ao divertimento, além dos argumentos, esses médias tinham todavia os limites de as suas emissões serem unilaterais em relação aos seus clientes: leitores, ouvintes ou espectadores não tinham voz nem mãos, limitados a receber e a interpretar o recebido, ou a mudar de livro para música, ou a mudar de canal, como sua ‘liberdade’. As redes sociais, que neste sentido não são propriamente ‘médias’ mas ‘redes’, que excluem a unilateralidade e multiplicam os pólos possíveis, criando circuitos diversos mas com tendência, parece, a funcionarem em percursos fechados nos seus interesses. Elas têm uma acutilância: dão voz e mãos-teclado a quem quer que seja. E é onde os argumentos e os saberes desaparecem, submersos cada vez mais no mar das ‘opiniões’ e dos seus interesses. Ora, como sabemos por experiência própria, é mais fácil ouvirmos a nossa voz do que a voz alheia, raros são os que aliam inteligência com a atenção suficiente ao próximo para dele aprender alguma coisa que valha como saber que oriente. O cúmulo deste processo está por um lado no crescente abandono dos livros, da maçada de os ler, e no outro extremo, no uso político do chamado twitter, que, ao que se diz, só admite 140 caracteres:  deve ser a medida mínima para evitar qualquer argumento, a sua substituição por pontos de exclamação. Foi nesta caricatura que desaguou a ‘crítica do argumento de autoridade’ em favor da autonomia do pensar, da liberdade de expressão, agudizando esta até ao ponto do relativismo generalizado que não sabe já o que é saber. É aonde o populismo, como demagogia, se tornou possível.

A réstia de esperança
9. Pessimismo? Foi em águas assim que a Filosofia medrou nos tempos gregos e se fez a sua renovação europeia com a Física: foi a multiplicação de manuscritos no século V a.C. em Atenas e de livros impressos na Europa do Renascimento que originaram relativismos. É que essas multiplicações de ‘médias’ provocaram cortes abruptos com o saber ancestral aprendido, cortes esses que dão testemunho, quer o célebre “só sei que nada sei” de Sócrates (que arrogância! tudo o que aprendeu não valia nada!), quer a “dúvida metódica” de Descartes. A cibernética é uma mais valia tremenda de possibilidades: o gosto de saber como necessidade, que é das coisas mais fabulosas da experiência terrestre, mostrará, sabe-se lá quando, que há-de haver por aí novas gentes a criar novos argumentos. Talvez vindos de fora dos velhos paradigmas europeus refazer estes, de maneira inédita que sirva para as muitas línguas e tribos que se estão a globalizar. Os Trumps grotescos só podem ser um estímulo, o que, seja como for, não se quer.


[1] Le destin des immigrés.Assimilation et ségrégation dans les démocraties occidentales, Seuil, 1997
[2] Em 2010, em França há mais de 50% de ‘superiores’, mas divididos ao meio : os que têm o nível de licenciatura e os que não a têm [após Bolonha, creio], o que mantém a desigualdade.
[3] Só tem como paralelo, bem diferente, a maneira como a estrutura do mandarinato chinês permite compreender os mais de três milénios do respectivo império e portanto a originalidade do seu ‘comunismo capitalista’.
[4] Nos limites, é certo, da autoridade do magistério eclesiástico, cuja inquisição veio a ser terrível.

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Questão (prigoginiana): o que é a energia, a força atractiva e a entropia?



1. Uma questão que se pode pôr à ciência que se ocupa dela, a Física, é a de saber o que é a energia, que reconhecidamente se conserva no universo e nele se degrada, segundo os dois princípios da Termodinâmica, mas também é susceptível de constituir estabilidades instáveis (Prigogine), segredo entrópico da evolução dos vivos e da história dos humanos[1]. Dizia o conceituado físico generalista R. Feynman, num texto citado a seguir, que “na física de hoje, não temos o conhecimento do que é a energia” (p. 95). Então haverá que questionar a Física e a Química com os olhos instruídos por Prigogine, como ele próprio não o terá conseguido por falta de filosofia adequada. Antes porém, interroguemos a própria palavra que o físico inglês Thomas Young, em 1807, foi buscar ao vocabulário filosófico de Aristóteles para substituir as ‘forças vivas’ dos físicos clássicos. O par dunamis / energeia corresponde na Physica de Aristóteles a duas situações do movimento dum ente vivo, animal ou humano, da sua alteração: dunamis, a que precede o movimento mas corresponde a haver já a sua capacidade, a ‘potência’ (tradução habitual) ou possibilidade, ‘ele pode’ (do verbo dunamai, poder) mudar, incluindo a força para tal (donde a ‘dinâmica’ newtoniana como teoria das forças); en-ergeia, a situação que corresponde ao ‘acto’ (tradução habitual) desse movimento efectuado, trabalho (-ergon) sobre si (en-); e como movimento diz-se kinêsis, donde ‘cinético’, o que dá para entender porque é que os físicos europeus foram buscar este par aristotélico para dizer as energias potencial / cinética, com a diferença de que em Aristóteles se trata da própria substância (ousia) que se move, que se altera, enquanto que na nossa física se trata da diferença medida, relativa à energia, entre duas posições de graves, por exemplo, no campo da gravitação: numa barragem, a diferença entre o nível da água da albufeira e a posição mais baixa da turbina é a energia potencial, enquanto que a energia cinética é a do movimento da água caindo efectivamente dum desses níveis para o outro.

O labor no conhecimento científico
2. Poder-se-ia pensar que, anterior à vida, a matéria de que Física e Química se ocupam, a matéria ‘verdadeiramente substancial’, conhece uma autêntica estabilidade sem oscilações instáveis. É o que aliás Prigogine parece ter pensado, ao falar na “estabilidade dos átomos do nosso Universo morno”, como que se postulasse que eram inacessíveis à ‘produção de entropia’, descoberta na química do metabolismo celular (o que lhe valeu o Prémio Nobel de Química em 1977) e que ele buscava em turbilhões e outros fenómenos mais ou menos marginais, embora por vezes diga que a sua nova concepção se destina a toda a Física. Para tratar da questão, podemos recorrer ao famoso texto Seis lições sobre os fundamentos da Física do prémio Nobel Richard Feynman[2], cuja pedagogia inovou de tal maneira que talvez se o possa ler na sua lógica de 1961-62, sem ter que saber das descobertas dos mais de 50 anos posteriores, acreditando que os ‘fundamentos’ da Física não foram entretanto alterados nem terá havido textos acessíveis a leigos tão pujantes de clareza.

3. Para adaptar a perspectiva entrópica de Prigogine além do metabolismo celular, à Biologia animal e às ciências relativas aos humanos, foi necessário denunciar o preconceito aristotélico substancialista no paradigma dessas ciências: ‘corpo próprio’ nas biologias em vez de ser no mundo[3], ‘população de indivíduos’ como constituindo as sociedades, em vez dos paradigmas dos usos dessa população nas unidades sociais. A questão será a de saber se se pode, e como, ‘des-substancializar’ os átomos e as moléculas de que os graves e os astros são constituídos. O que será um procedimento fenomenológico equivalente em relação à Física lendo o texto de Feynman? implicará privilegiar o motivo do campo de forças atractivas sobre os corpos ou os átomos a eles sujeitos. Trata-se dum motivo da Física que é paradoxal, já que, tomando o exemplo do sistema solar e dos seus planetas, são os astros que se atraem reciprocamente, com o sol como foco principal, não sendo o campo ‘nada’ de substancial, apenas o jogo entre si dessas diferentes forças de atracção, jogo esse que é no entanto o que sustenta o sistema na sua estabilidade, reconhecida desde os antigos Caldeus e Egípcios. Este paradoxo não permite decidir entre os astros e o campo, já que este não existe sem eles, mas é o que faz o preconceito substancialista, de índole empirista, que considera o campo ‘depois’ dos astros, a partir das suas substâncias e massas. Para compreender isto, teremos que começar por uma questão epistemológica prévia: porque é que o laboratório é essencial à Física?

4. O laboratório busca aliar saber e técnica para pôr à prova as definições e argumentos filosóficos herdados dos Gregos e dos Medievais[4]; ele consiste 1) em retirar um fenómenos dado (delimitado, definido) da respectiva cena de circulação aleatória, 2) determinando-lhe o movimento em condições de determinação com técnicas de medição apropriadas, 3) ao conhecimento adquirido devendo seguir-se um movimento de restituição teórica do fenómeno conhecido à cena donde fora retirado (já que é esta ‘realidade’ que se busca finalmente conhecer por etapas laboratoriais). Tal como em geometria e astronomia, os números da matemática, entre equações e medidas, permitem uma exactidão maior do que aquela que as definições teóricas buscam em linguagens estruturalmente polissémicas como a matemática não é: esta sua exactidão – adentro de margens de erro, repetem-se tais quais em qualquer outro laboratório – corresponde a uma estabilidade a que as filosofias nunca chegaram, mas também não as próprias teorias científicas que interpretam os resultados das experiências laboratoriais. Já que estas têm um ponto fraco, são fragmentárias (como qualquer tipo de problemas em álgebra clássica, cada um com a sua equação), só permitem conhecer com exactidão laboratorial de cada vez um aspecto determinado do movimento dum fenómeno, sendo à teoria, herdeira da filosofia, que cabe a unificação do conhecimento, mas este sempre aproximado, instável pois, já que os ‘fenómenos inteiros’ não são susceptíveis de laboratório e são obviamente indeterminados nas respectivas cenas de aleatório[5]. Assim, por exemplo famoso, Newton descobre as equações da força da gravidade sem saber imaginar esta, como ainda hoje, segundo Feynman, não se sabe o que é a energia ou o porquê da inércia.

5. Uma questão decisiva do laboratório pode ser ilustrado a partir da famosa experiência de Galileu demonstrando o movimento uniformemente acelerado com uma bolinha correndo por uma ranhura num plano inclinado. Não havendo ainda relógios adequados a medir esses tempos, Galileu usa um recipiente com água que escorre durante o tempo da queda e depois se pesa, “as diferenças e proporções entre os pesos dando-nos as diferenças e proporções entre os tempos”[6]. Medir o tempo em gramas de água ou em segundos, tanto vale, só das diferenças sabe o físico experimentalmente, e não das ‘substâncias’; sobre o tempo define e argumenta, faz teoria, ou seja, filosofia; o mesmo se dirá do espaço, da massa, da força, da energia, da intensidade de electricidade, como atesta a convencionalidade (arbitrária) das ‘convenções’ que definem unidades das diversas dimensões (esta palavra sublinhando que em Física só se trabalha sobre medidas). As teorias evoluem historicamente, enquanto que as experiências, fora a precisão das técnicas de mensuração, continuam válidas: por exemplo, se a física de Newton foi reelaborada por Einstein para fenómenos de velocidade perto da da luz, ela continua válida cientificamente para a velocidade da maior parte dos fenómenos de engenharia corrente na Terra. Ora, com as técnicas de mensuração, foi a técnica que entrou no âmago das ciências físicas e (bio)químicas, donde que delas tenham vindo a resultar as invenções técnicas mais diversas, testemunhando da estabilidade dessas ciências, enquanto que os cientistas debatem as respectivas teorias, testemunhando assim da sua instabilidade: o grande problema destas é o movimento de restituição do saber fragmentário adquirido laboratorialmente sobre o fenómeno, restituição à cena donde ele foi retirado, fora do laboratório pois, ao fenómeno inteiro, já que é sobre este que deve versar a teoria. As técnicas laboratoriais fazem parte da elevação entrópica das ciências exactas, juntamente com as ‘vontades’ dos cientistas que, na definição de ‘paradigma’ de Kuhn, são por este ‘atraídos’ (attract)[7] e ligadas as suas ‘vontades’ como colegas do mesmo paradigma pela respectiva aprendizagem. À estabilidade corresponde o curso normal dos paradigmas segundo Kuhn, o que se poderia chamar a homeostasia laboratorial, em contraste com as suas crises, manifestação de instabilidade em fortes polémicas, quantas vezes de gerações.

6. Podemos agora voltar ao heliocentrismo. Se fez parte do génio de Newton compreender a estabilidade heliocêntrica do sistema em termos do princípio da inércia e da sua descoberta das forças de gravidade como atracção dos corpos na razão directa das suas massas e na inversa do quadrado da sua distância – isto é, ele não teria lá chegado sem estes dois motivos fundamentais da sua Mecânica –, o que é notável é que a sua demonstração não se fez através deles mas utilizando as leis de Kepler (o qual utilizara as medições de Tycho Brahe, anti-copérnico), nas quais jogam apenas os espaços e tempos dos percursos das órbitas dos planetas e as razões entre as respectivas superfícies. Parte-se portanto do sistema enquanto ‘campo’ teórico, concluindo aliás Newton pela confissão, reiterada por Feynman cerca de três séculos mais tarde, de que não sabe explicar o que é a força da gravidade enquanto atracção a distância[8], como ainda hoje, segundo o mesmo Feynman, não se sabe qual é a causa do princípio de inércia (que mantém um corpo em movimento se nenhuma força actua sobre ele, p. 114), cujos efeitos podem todavia ser medidos e calculados. Pode-se dizer que esta maneira ‘não substancialista’ de demonstrar o heliocentrismo bate certo com o que se pode deduzir da afirmação de Galileu medindo o tempo em unidades de peso de água: ele só conhece “diferenças e proporções” entre medidas de tempo, e não  o tempo em si, não as substâncias (númenos, dirá o newtoniano Kant). Ora, acontece que Feynman procede de maneira inversa à de Newton, por exemplo, ao definir carga eléctrica, parte das cargas para os campos: “temos assim duas regras: (a) as cargas geram um campo e (b) as cargas em campos ficam sujeitas a forças e movem-se” (p. 60), 1º cargas, 2º campo, 3º forças!  Outro exemplo: no primeiro capítulo, argumenta longamente sobre os átomos de água, vapor e gelo sem nunca referir as forças electromagnéticas perdidas na vaporização ou ganhas na solidificação. O problema manifesta-se ainda na sua concepção de força como interacção, a da gravidade sendo uma interacção a distância (p. 57), o que parece significar que a força é pensada como as forças habituais da mecânica, tipo bola de bilhar sobre outra bola de bilhar, acção e reacção, aquilo a que se pode chamar ‘força local’. Feynman chega ao ponto de caracterizar a força electromagnética pela “propriedade de gostar de repelir e não de atrair” (p. 58): só considera a relação entre cargas do mesmo sinal e não entre as de sinal contrário, de atracção, ora, são estas que justificam que os átomos tenham electrões, atraídos pelos protões, bem como que haja moléculas e graves, gelo, água e vapor! Ora bem, as forças fundamentais da Física, nuclear, electromagnética e da gravidade, constituintes dos átomos, moléculas, graves e astros, as únicas das quais há campos, são forças atractivas, e é porventura a razão pela qual não sabemos imaginá-las: a nossa experiência intuitiva é justamente de ‘forças locais’, tão importantes na dinâmica newtoniana[9]. Dada a sua portentosa atenção ao detalhe que muda as perspectivas, não se pode apontar estas coisas como devidas à inatenção de Feynman, só pode ser algo de inscrito na força do paradigma (atractiva!) que institui os físicos enquanto tais (donde que não haja que esperar da parte deles grande aceitação deste texto).

Energia, força e entropia

7. Se os grandes ‘génios’ da Física, desde Newton até Feynman, não conseguiram, a partir das ‘substâncias’, imaginar o que são as forças atractivas, a energia e a inércia[10], não se tratará de esperar um futuro ‘génio’ que o consiga; é mais provável pensar que o problema está mal posto: porque não partir destes motivos ‘inexplicados’ para compreender melhor o que são as tais ‘substâncias’? Estes motivos, que logo de início estruturaram a Física clássica, manifestando como os seus inventores eram também hábeis filósofos, constituem o motivo fundamental de campo; é claro que não tenho a pretensão de os ‘compreender enfim’, mas, assim como se fala de princípio de inércia, eles poderão ter um estatuto, digamos, de princípios laboratoriais, isto é, de princípios duma filosofia (duma teoria) confrontada com a experimentação de movimentos, princípios necessários à compreensão de qualquer análise de laboratório[11]. Des-substancializar será então considerar teoricamente forças e energia como epistemologicamente (e não cronologicamente!) prévias às ‘substâncias’, ao átomo, molécula, grave, astro, carga electrica, as 3 forças jogando juntas e a energia sendo o que, por inércia, se expande sem elas. Não se ‘parte’ do átomo, como faz Feynman, porque não há ‘o’ átomo, nem ‘a’ molécula, nem ‘o’ grave: o que há, antes de mais, são os campos dos astros em que os três tipos de força actuam. No caso do sistema solar, as órbitas dos astros são estáveis devido ao campo de forças de gravidade que os retêm, campo que são eles próprios em movimento inerte faces uns aos outros[12]; também os graves de que cada astro é feito são retidos pelo campo dessas forças, graves que por sua vez são feitos de moléculas que forças electromagnéticas retêm agregadas, os seus átomos por sua vez devendo a sua estabilidade à retenção de protões e neutrões no núcleo por forças nucleares. O que significa este ‘reter’ sublinhado quatro vezes? Que o que é retido tem estabilidade e que a perderia se deixasse de ser retido: a explosão da gasolina líquida num motor é um exemplo do fim duma tal retenção por forças electromagnéticas e a consequência é que as suas moléculas, gasosas agora, se expandem sob forma de explosão, o mesmo sucedendo, mutatis mutandis, aos protões e neutrões das bombas nucleares que explodem por lhes serem retiradas as forças nucleares, como ainda se expandem os fotões quando electrões se movem e perdem algo da força que os retinha. Se um foguetão enviado à Lua ou uma sonda a Marte, após deixarem o campo da força de gravidade que os retinha na Terra, seguem sem precisarem de mais energia do que a que os expulsou (seria impossível alimentá-los pela estratosfera fora como o foram até aí), seguem num movimento inerte, perdido de ligações a forças quaisquer. Então definir-se-ia uma força atractiva pela sua capacidade de reter o que, de inércia sua, se expande ilimitadamente. Ora, o que assim se expande, explode, são exemplos essenciais e não quaisquer, de energia. Então, o que as forças atractivas fazem em seu reter ou ligar, é criar entropia positiva, isto é, energia interna tal como Einstein a concebeu como equivalente à massa vezes o quadrado da velocidade da luz[13]. A palavra grega ‘entropia’ (‘fechar-se em si, timidez, vergonha’)[14] convém a esta ‘energia’ einsteiniana. Não são só os gases e os líquidos, os ares e os mares, que são sujeitos a ventos, ondas e outros turbilhões, também os sólidos são instáveis segundo a sua posição no campo da gravitação, como rochas sujeitas a erosão, sucedendo por vezes, de forma dramática, que vulcões ou sismos nos venham recordar que as palavras ‘terrível’ e ‘terror’ derivam de ‘terra’. Instabilidade química ainda, sempre que a proximidade entre moléculas dê azo às transformações que a química estuda, como os ferros que se oxidam. Tudo isto será construído entropicamente, em sentido de Prigogine, e é por isso que tudo pode ser destruído, que há entropia no sentido de Clausius, é por isso que há uma ‘história’ do Universo, da cena da gravitação[15].

8. Explosão, expansão, inércia, serão pois contra-exemplos da entropia prigoginiana, são movimentos de degradação dela, entropia clausiana que cresce. Mas são também os exemplos da estranha mecânica quântica, cuja principal estranheza é justamente a instabilidade da sua população de partículas, electrões à solta que disparam como balas ou como ondas (exemplos de Feynman no último capítulo), raras sendo as que conseguem perseverar quando soltas (protão, electrão, fotão e poucas mais); nem se lhes pode chamar ‘população’, que implica duração, nem ‘mundo’ ou ‘universo’ quântico, nem sequer ‘matéria’, já que ‘aquilo’ (que é estranho) só existe na luz, irradiações e corrente eléctrica e fora disso fugazmente em laboratórios. Quando o grande físico multiplica as advertências sobre a dificuldade de compreender a gravitação em termos de forças electromagné­ticas quânticas, deplorando o que se veio a chamar a não unificação das duas grandes teorias da Física do século XX, relatividade e quântica, a questão que o leigo pode colocar é a seguinte: qual é a barreira entre a grande estabilidade do nosso universo macro e a instabilidade inacreditável, ultra caótica, deste estranho micro quântico? Eis a resposta que arrisco: os campos das forças atractivas. Dum lado, só partículas, ainda que átomos isolados, do outro graves e astros que, analisados, se vê que são constituídos por átomos e seus núcleos, por moléculas[16]. Ora, como é que esta barreira pode ser ultrapassada? De cá para lá, por desintegração técnica dos graves até às partículas, em bombas nucleares ou nos grandes aceleradores; e de lá para cá, para a nossa matéria? Do big Bang para as estrelas? É possível ‘pegar’ em protões, neutrões e electrões e fabricar átomos e moléculas?

9. Se se aceita a concepção de ciência física proposta acima (§§ 4-5), haveria que concluir que o seu núcleo duro consiste nas equações correspondentes aos resultados experimentais, estes sendo os ‘dados’ que vão ‘verificar’ nessas equações as suas ‘variáveis’. Enquanto os instrumentos de medida não variarem, essas equações (variáveis e dados) verificam-se, como se diz, são verdadeiras. Galileu e Newton resistem às físicas do século XX, era sobretudo a física deles que se ensinava nas escolas de engenharia de meados desse século. Interpretar essas equações e essas experiências fragmentárias numa teoria, com as suas definições de conceitos e respectiva argumentação, sendo necessário para criar o próprio laboratório, é todavia trabalho de físicos ‘filósofos’ (ou teóricos) que definem e argumentam para compreenderem o que ao laboratório vem, já que as equações não atingem as ‘substâncias’, apenas diferenças e proporções, como disse Galileu[17]. Isso tem algumas consequências que os físicos terão dificuldade filosófica em aceitar. Uma delas é que os laboratórios são irredutíveis e portanto as equações e as técnicas de mensuração da Física newtoniana continuam cientificamente válidas, nomeadamente permitindo inúmeras construções técnicas, ainda que a interpretação ‘filosófica’, vinda de outros contextos laboratoriais (velocidades altíssimas, distâncias ultra microscópicas), possa rever as antigas interpretações, mas não declará-las ‘erradas’, como faz Feynman peremptoriamente uma vez ou outra. Fazendo-o, e é uma segunda consequência, não é enquanto físico (já que os respectivos laboratórios são irredutíveis) mas enquanto filósofo. Igualmente ‘filosófica’ será a pretensão de que a mecânica quântica seja válida em toda a realidade extra-laboratorial, no nosso universo material onde as velocidades são ‘pequenas’ e ‘minúsculos’ os comprimentos de onda, por via das dimensões macroscópicas dos graves. Ou seja, dada a irredutibilidade dos laboratórios respectivos, a tão desejada unificação das duas grandes teorias do século XX só poderia ser ‘filosófica’, incluindo a dimensão filosófica das ciências. Ora, o filósofo Cornelius Castoriadis evoca “a antinomia epistemológica formulada por Heisenberg desde 1935 entre a constatação da não validade das categorias e das leis da física ordinária no domínio microfísico e a demonstração dessa não validade por meio de aparelhos construídos segundo as leis dessa física ordinária e interpretadas segunda as categorias usuais”[18]. O que significa que a unificação das duas Físicas, relatividade e quântica, só seria possível tendo em conta os laboratórios em que elas foram formuladas, os seus instrumentos de medição e respectivas diferenças de escala[19], e portanto também a validade laboratorial da Física de Galileu e Newton, cujas equações aparecem quando reduzidos os factores de escala (quando v/c tende para zero nas equações relativistas).

A entropia e a flecha do tempo contra o determinismo

10. O que Prigogine descobriu foi o segredo de toda a evolução, de toda a história, invenções e descobertas, da chamada flecha do tempo. A partir duma situação caótica ameaçando degradação, implosão ou explosão, entropia de tipo Clausius, como é que pode a vida adiar a morte, a desintegração: como é que, de formas muito diversas consoante o nível de que se trata da chamada realidade, se produz entropia de tipo Prigogine, se criam novas estabilidades com suas regras adequadas a circulações aleatórias, portanto instáveis. Permitiu compreender que a entropia não é só ‘não’, é ‘sim’ e ‘não’, sem se oporem (como foi talvez a sua tendência de pensamento), já que a flecha do tempo vai primeiro ao ‘sim’ e depois ao ‘não’, a morte depois da vida e como condição desta (já que só sobrevivemos comendo cadáveres).

11. Recapitulemos. Há duas formas essenciais de matéria na Terra. Matéria inerte em sentido clássico que se faz da agregação de moléculas relativamente simples e iguais para atingir dimensões macroscópicas, sólidas, líquidas e gases: como perdura, de gelo a água e desta a vapor, a ligação entre os átomos de oxigénio e de hidrogénio, que se revela mais forte do que a solidez e a liquidez. A outra, matéria viva, que, para também chegar a dimensões macroscópicas e formar organismos muitíssimo variáveis, se faz da composição de moléculas diferentes em suas funções celulares e muito complexas, à base nomeadamente de carbono, e por isso instáveis e pedindo serem refeitas constante­mente, pedindo alimentação; que contraste com a estabilidade e a impenetrabilidade dos átomos, graças aos seus núcleos, impenetrabilidade que os torna irremediavelmente outros entre si. O que fez a vida, foi inventar um novo nível de mesmo, acima desta alteridade empírica radical: o nível de indivíduos diferentes da mesma espécie. E foi no metabolismo da matéria viva que Prigogine descobriu uma entropia positiva.

12. É de crer que o sábio tenha sido levado pela importância da sua descoberta a uma oposição entre a sua entropia e a de Clausius, a uma exclusão entre os fenómenos entrópicos, a uma oposição em seguida às certezas que acompanharam as lendárias descobertas dos seus predecessores, cujo fim um seu título proclama: “o fim das certezas”[20]. Ora, as certezas da física clássica, laboratoriais, mantêm-se, como se disse, não passaram a ser leis meramente estatísticas, e em vez de se dizer que são leis deterministas, deve-se dizer que são leis determinadas, isto é, deduzidas nas condições de determinação do laboratório. O problema é que sempre se pensou que o que era válido no laboratório era automaticamente válido na chamada ‘realidade’; mas obviamente que aí sempre houve incertezas, devido à confluência não dominável de efeitos, que é justamente o que implica a necessidade de laboratório. Ora, o motivo da cena, como é claro com a máquina automóvel, esclarece a questão: as regras de detalhe estudadas pelos laboratórios correspondem no todo teórico a situações aleatórias, a máquina é construída rigorosamente nas suas peças para seguir o aleatório da lei do tráfego. Como a anatomia de qualquer animal, ‘construída’ segundo a cruel lei da selva que comanda que se coma outro vivo para se sobreviver. A lei da gravidade vale sempre na terra, mas a trajectória de cada grave depende da sua posição aleatória na cena. Quanto à mecânica quântica, o problema da incerteza das medidas terá a ver com o facto de que a distinção entre laboratório e cena fora desaparece num acelerador de partículas (instabilidade total, nem de cena se pode falar). Que fora do laboratório reina a contingência sempre se soube, duma maneira ou doutra, desde Platão que colocou as entidades resultantes da definição na eternidade celeste porque na terra só havia contingência, geração e corrupção. Mas é certo que, na esteira dele e do neoplatonismo do século III onde o terrível Agostinho foi beber, um Deus absoluto opunha-se a essa contingência e marcou os sábios europeus, fossem ou não crentes, com uma concepção determinista que extrapolava as certezas laboratoriais (que a astronomia justificava), e contra esse determinismo Prigogine estava certo. Mas era preciso outro argumento em tal combate. O que não se sabia – não se escreveu que se soubesse da forma generalizada que convém a um tal saber –, o que o mestre também não soube, é que as regras (ou leis), os saberes científicos que alimentaram a narrativa lendária das ciências europeias dos últimos quatro séculos, não se realizam substancialmente, vimo-lo com Galileu, mas são regras estrutu­rais de regimes aleatórios de circulação: exemplo do automóvel entre o rigor laboratorial da sua construção e o aleatório do seu jogo no tráfego, da anatomia animal que joga no aleatório da caça ecológica e da fuga a ser-se caçado, das regras da língua que servem para o aleatório das conversas ou das escritas. E este ser das regras para o aleatório só é possível, em todos os seus níveis, devido à entropia prigoginiana. Como acima das rochas, dos mares e dos ares, móveis por certo mas duradouras de grande estabilidade se as temperaturas não mexerem muito, se estabeleceram in/estabilidades vivas, não só eminentemente frágeis já que mortais, mas fazendo da morte vida, lei da selva, em espécies cada vez mais complexas, que são elas que duram além das gerações de indivíduos mortais que procriam.

13. É o ser das leis científicas para o aleatório, quero crer, que reabilita – sem determinismos e segundo a relatividade do saber ocidental enquanto histórico – a verdade delas e a das ciências exactas dos sábios europeus, contra muitos dos seus próprios herdeiros que hoje facilmente crêem que uma tal ‘verdade’ é provisória, um erro suspenso. As técnicas que dos laboratórios delas derivaram desmentem esse cepticismo.


[1] Com alguns acrescentos ao que aqui coloquei em 10/ 2014 e agora retirei, por ocasião da comunicação que dele fiz ao Colóquio de Fenomenolgia e Física na Faculdade de Letras de Lisboa, 16-18/10/17, What is a physical entity?, é um texto  que propõe uma fenomenologia científica (http://filosofiamaisciencias.blogspot.pt/) e considera quatro grandes cenas históricas: a do gravitação (cosmo), a da alimentação (vida), a da habitação (sociedades humanas) e a da inscrição (saber definido ocidental), os elementos de cada uma sendo caracterizados respectivamente pelo núcleo atómico, pelo ADN, pelas unidades sociais com disciplina sobre a sexualidade e pelo alfabeto e definição. A viragem fenomenológica em relação à filosofia europeia deu-se com Husserl, Heidegger e Derrida, colocando as diferenças (respectivamente ontológica e com a) antes das substâncias, como adiante se dirá terem iniciado Galileu e Newton.
[2] Ed. Gradiva Presença 2000.
[3] Ver No paradigma da Biologia falta o ‘ser no mundo’ (debate com Teresa Avelar e António Damásio) in  http://filosofiamaisciencias2.blogspot.pt/
[4] Herança reconhecida pelo grande físico que foi Feynman: “[...] o que era hábito chamar filosofia natural, de onde derivou a maior parte das ciências” (p. 74), crendo aliás, erradamente mas como Newton, que a Física é o seu equivalente moderno.
[5] As regras que as ciências descobrem jogam em função de tal aleatório, como um automóvel é projectado laboratorialmente para se mover no aleatório do tráfego.
[6] Galilée, Discours et dé­monstrations mathématiques concernant deux scien­ces nouvelles, in­trod., trad. e notas por M. Clavelin, 1970, A. Colin, p. 144.
[7] Thomas Kuhn, La structure des révolutions scientifiques, [1962], Flammarion, 1983, p. 31.
[8] Feynman diz que “Newton não elaborou hipóteses, ficou satisfeito por descobrir o que ela fazia, sem se interessar pelo seu mecanismo. Ninguém desde então propôs qualquer mecanismo” (p. 128). De facto o que Newton disse foi que não era capaz de ficcionar (latim ‘fingere’, fingir), imaginar, uma hipótese explicativa dessa estranha força a distância : “não consegui ainda deduzir dos fenómenos a razão destas propriedades da gravidade e não imagino uma hipótese (hypothesim non fingo)” (Newton, Principes mathématiques de la Philosophie natu­relle, trad. de Mme Châtelet, Paris [1756], édition fac-simile de A. Blanchard, 1966, pp. 178-179).
[9] Quero crer, seja dito de passagem, que o ‘gravitão’ dos físicos que não há meio de ser encontrado, releva desta concepção de força local e que não terá cabimento em forças atractivas. Mas como não se sabe o que estas são, só que não são substanciais...
[10] Feynman sublinha constantemente esta ignorância dos físicos do seu tempo sobre motivos fundamentais da Física: pp. 57, 66, 95, 106, 107, 113-4, 128-9, 133.
[11] As forças atractivas, a energia e a inércia não têm qualquer sentido senão pela sua proveniência do laboratório físico, o que não é verdade de espaço, tempo, velocidade, peso… Sem o campo da gravidade, não há movimentos de graves na terra, sem explosões electromagnéticas ou nucleares não há óptica nem relatividade nem mecânica quântica.
[12] A diferença fenomenológica entre o campo das forças e os astros ou graves que o constituem é equivalente à diferença entre espécie biológica e os seus indivíduos, uma língua e os seus discursos e textos, uma sociedade e as suas populações. Afirmar num primeiro tempo o primado do ‘campo’ sobre os astros, só se pode fazer apagando-o em seguida para se dizer que são o ‘mesmo’, um não vai sem os outros.
[13] Foi sobre radiações electromagnéticas que ele argumentou no 4º texto de 1905, de três páginas apenas, que estabelece essa fórmula.
[14] Em 'entropia', o verbo trepô significa ‘mudar, virar’, que o ‘en-’ interioriza, significando ‘mudança interior’, de sentimentos: aqui, de energia interna.
[15] Até onde é que a ‘atracção’ por forças continua a jogar nos níveis entrópicos da vida e dos humanos? Ao nível biológico, as noções de ‘faro’ e de ‘fome’ jogam como atracções químicas essenciais na reprodução alimentar dos vivos, assim como as pulsões sexuais são atracções químicas para a reprodução das espécies. Na habitação social, o motivo de ‘vontades’ responde igualmente ao paradigma dos usos que as ‘atrai’, continuando o jogo dos desejos a ser de atracção, tal como as rivalidades funcionam entre rivais que se buscam combater e vencer. Enfim, ao nível da inscrição, a curiosidade é o grande motor atractivo de todo o saber, aprendizagens como descobertas e invenções. Treino e educação são maneiras de reter a espontaneidade química dessas atracções para criar nelas entropia, isto é, fazer delas uma espontaneidade hábil capaz de servir em qualquer momento útil. Eis uma maneira de justificar aos físicos a ousadia da proposta feita.
[16] Seria tentado a dizer que a física das partículas é kantiana e a do átomo husserliana. Os pés de barro do kantismo são o seu ponto de partida nas ‘sensações’, como se estas fossem ‘entes’ donde partir, enquanto que Husserl foi mais avisado e assentou o seu edifício fenomenológico na percepção da coisa, sempre a mesma ainda que variando as percepções dela. Quer Kant quer a compreensão (que me parece ser a) da física das partículas obedecem ao princípio cartesiano de ir até ao mais simples e depois ir subindo. A questão é a de saber se esse mais simples, sensações e partículas respectivamente, subsistem por si de maneira a poderem servir de base possível da síntese.
[17] A primeira definição de Newton é de “quantidade de matéria”, que designa pelas palavras ‘corpo’ ou ‘massa’ e conhece-se pelo peso dos corpos, isto é, por mensuração; começara aliás por dizer que “os Modernos rejeitaram enfim, há algum tempos, as formas substanciais e as qualidades ocultas”. Quantidade (por diferenças medidas, como Galileu) e não qualidade: des-substancialização.
[18] “Science moderne et interrrogation philosophique”, Encyclopædia Universalis, vol. Organon, 1975, p. 48.
[19] Tidas em conta nas respectivas equações, como faz para a relatividade restrita Laurent Nottale, La relativité dans tous ses états. Au-delà de l’espace-temps, Hachette, 1998.

[20] Também editado pela Gradiva, 1996.

domingo, 15 de outubro de 2017

Ética espiritual : o que significa ‘amar o próximo como a si mesmo’ ?



1. Que sentido pode receber a palavra ‘espiritual’ na fenomenologia aqui praticada? Não é ‘religioso’, como foi argumentado num texto deste blogue (26/9/2013), nem sequer necessita de nenhuma divindade. Opõe-se a ‘material’ no sentido corrente do ‘materialismo’? também não, em rigor, se verificarmos que tudo é material, por certo, mas não há nada de ‘espiritual’ que não tenha algo a ver com algo de ‘material’. Além dos fenómenos? Na minha maneira de seguir, tanto quanto sei e sou capaz, a gramatologia de Derrida, o que estrutura cada humano são os usos que vai aprendendo, entre os quais os costumes, tal como as regras morais, desde o interdito do incesto até às ‘finalidades’ que levem a romper com elas e com o próprio paradigma tribal (familiar e escolar: estrutura de base), romper para a aventura: ora, são tudo coisas que implicam a linguagem. Esta foi analisada por Derrida a partir da redução fenomenológica (de Husserl) sobreposta à diferença linguística entre os sons e os significantes, estes sendo diferenças entre aqueles. Se já o som pode dificilmente ser dito ‘material’, já que se trata de oscilações atmosféricas com frequências repetidas, ainda mais a diferença entre sons, que não é um som (como a diferença ente duas cores não é uma cor) nem é nada de substancial (que o som como fenómeno ainda seja), nem é sequer ‘um sentido’ (uma ideia, no exemplo europeu) mas uma rede indefinida de sentidos: não é nada que possa ser dito ‘material’ mas também não pode ser ‘oposto’ a ‘material’ (como querem os espiritualismos e os materialismos que se opõem àqueles). Aliás, a palavra latina ‘spiritus’, tal como a grega ‘pneuma’ e a hebraica ‘ruah’, que se costumam traduzir por ‘espírito’, significam sopro, como se, ao falar-se, se soprasse sobre o outro, se soprassem sons com sentido de coisas que ele entende na mesma língua, coisas relativas ao mundo de ambos, aos fenómenos, este ‘entender’ tanto podendo ser aceitar como rejeitar após o tempo da fala, a qual deixou um rasto estruturante do que se ouviu e aprendeu (ainda que esquecido rapidamente a maior parte das vezes). Este rasto (diferença não substancial entre substanciais) efectua a aprendizagem, tanto das palavras como das coisas e gentes do mundo que elas dizem.
2. Levinas contrapôs a este rasto da aprendizagem, que se pode dizer ‘sincrónico’, simultâneo ao que fala e ao que ouve, ao que ensina e ao que aprende, um rasto diacrónico que lhe permite pensar a santidade, sendo no santo (o que ama o próximo como a si mesmos) o rasto dum Deus “sem existência nem essência” que o envia ao Pobre como ‘refém’ dele, para que o ‘substitua’ naquilo em que ele seja impotente. Com todo o respeito pela figura de Levinas e pela sua própria santidade, que quem o conheceu atesta, nem ‘refém’ nem ‘substituição’ – hipérbole levinassiana – me parecem palavras éticas. Guardo dele, chamando-lhe ‘espiritual’, este motivo de rasto diacrónico, ética não aprendida, além da moral tribal, à maneira dos talentos tão precoces que parecem inatos em muitos artistas ou outros grandes apaixonados. O espiritual terá algo de arranque ao paradigma da tribo, de aventura além das finalidades de vida que ela promove educando.
3. A injunção “amarás o teu próximo como a ti mesmo”, no livro bíblico do Levítico (19, 18), recomenda uma relação de amor pelas famílias vizinhas, é uma injunção ética de ordem social, que pretende criar um clima de paz social dentro duma aldeia ou dum bairro. Mas que não se trate apenas duma relação como a que se tem com os membros da sua própria família, porventura lembrando que a primeira parelha familiar de irmãos foi a de Caím e Abel, ciente pois que adentro da família amor e rivalidade vão a par com frequência, mas “como a ti mesmo”, introduz uma espécie de introspecção ética – como é que te amas a ti mesmo? – e um correlativo ‘sai de ti mesmo’ que deve vir de dentro de ti mesmo, tal como os teus pensamentos vêm de ti: uma injunção ética muito intrigante nos seus dois itens, o amor do próximo e o amor de si mesmo, este dado como termo de comparação ou de avaliação do primeiro. O que é ‘amar’ em cada caso? Comecemos pelo amor do próximo e vejamos primeiro o que ele não é. Não é um amor de paixão, como quando se diz que se está apaixonado, pois aí trata-se duma relação exclusiva, ligada ao sistema sexual como erotismo.  Também não é uma relação de ocasião igualmente erótica, muito menos se envolvendo prostituição e excluindo o amor. O que parece ficar assim excluído é que este ‘amor do próximo’ tenha incidências com a química hormonal da ordem do erotismo, que é a acepção mais corrente da nossa palavra ‘amor’. Uma segunda hipótese será a da ‘amizade’, enquanto relação de preferência por um ‘tu’ singular, cultivada por um convívio partilhado, recíproco, que tanto vale para mim como para ti, que joga no desinteresse mútuo além dessa partilha afectiva. Fruto de circunstâncias que suscitaram a amizade, parece que lhe é estranha qualquer forma de injunção: não se decide unilateralmente ser amigo de alguém, é algo que acontece a ambos e por ambos é reconhecido como gratificante. Não tem sentido dizer a alguém que deve ser amigo do seu próximo.
4. Sobra então, parece, uma terceira possibilidade de amor, o que se chama habitualmente compaixão, que implica um desnível entre o que ama e o que é amado, supõe neste uma carência de qualquer ordem que pesa sobre a sua autonomia de vida e naquele uma atitude de querer ajudar a colmatar tal carência. Neste sentido, a injunção afasta-se da relação de boa vizinhança que o Levítico sugeria, embora outros textos da Bíblia hebraica multipliquem o apelo a cuidar dos sem casa, do órfão, da viúva, do emigrante, desde o primeiro grande texto, o do Deuteronómio (15, 4), com a sua injunção a todo o Israel: “não haja pobre no meio de ti”. A Bíblia cristã retomou a injunção do Levítico claramente entendida agora como compaixão ou misericórdia pelo que tem fome ou sede, pelo estrangeiro ou pelo nu, pelo doente ou pelo preso (Mateus 25, 35-45), a injunção da compaixão operante sendo proposta como critério decisivo de avaliação do que foram os destinos de cada um em relação ao Reino dos Céus. Há uma modificação decisiva, passou-se de uma moral de toda a sociedade de Israel para uma ética individualizada e responsabilizadora, para uma injunção ética além de toda a moral tribal, correlativa da maldição que é lançada sobre os ricos em Lucas 6, 24-6. Este mesmo autor (10, 29-37) reinterpreta o motivo levítico, estendendo-o bem além da vizinhança, dos amigos e conhecidos, propondo uma parábola em resposta à questão “quem é o meu próximo?”, na qual um judeu que descia de Jerusalém para Jericó foi vítima de bandidos que o despojaram e feriram, deixando-o meio morto: um sacerdote e depois um levita (duas categorias sociais votadas ao culto religioso) que passaram e seguiram caminho e foi um semi-estrangeiro, da Samaria, uma zona religiosamente mal vista pelos Judeus de então, quem se ocupou dele e o fez tratar. A compaixão não conhece fronteiras políticas ou religiosas, muito mais além das fronteiras da tribo, dos bairrismos e dos nacionalismos.
5. Mas também não é um afecto vazio, é um amor praticante, de obras[1]. O que de si restringe, se dizer se pode, o próximo, como aliás já o faz a noção de proximidade: não se trata de amar os meus conhecidos quando passo por eles, nem de dizer ‘que horror!’ diante das desgraças que a televisão mostra. Trata-se de amar o próximo em suas carências, fome ou sem abrigo, doença ou aflição, trata-se de atender ao que elas implicam de... quê? É a esta questão que o “como a ti mesmo” ajuda a responder. Que amor se tem a si mesmo? Não se tratando de narcisismo ou de egoísmo, que são o contrário de ‘amor’, pode-se pensar que se trata do ‘cuidado’ que tenho dia a dia com o meu viver. Então a questão será: o que é que eu tenho de que o outro carece? A possibilidade de o ajudar nessa carência, a qual possibilidade me é dada pela minha autonomia de viver, que justamente recebi da minha tribo, que me fez doação dela como heteronomia que se retrai para deixar ser a autonomia: o ‘onde’ se nasce, que foge a qualquer escolha, configura aquele que se será, que só escolherá dentro dessa configuração, trate-se mesmo de rebeldia contra ela. A autonomia recebida gratuitamente é a doação que é feita a qualquer um que nasce em tal tribo. É do que carece o que merece compaixão: que se o ajude a recuperar a autonomia que lhe falta, que se substitua, não a ele, carente, pois que isso significaria permanecer sem autonomia, mas aos da sua tribo que lhe faltam. A esta interpretação heideggeriana corresponde uma outra injunção evangélica de Mateus 10,8: “recebeste gratuitamente, dai gratuitamente”. Diante do que tem fome ou não tem abrigo, quem come em sua casa atesta dum privilégio gratuito: antes de todos os esforços feitos para garantir casa e refeição, nasceu aonde recebeu por aprendizagem de doação tribal as possibilidades desses esforços. ‘Nascer aonde’ é gratuito, ajudar o carente releva da mais elementar solidariedade humana, gratuita igualmente como o amor. É por isso que é dito ‘ama’. ‘Como a ti mesmo’, alarga sem fim os limites desse amor, se se trata de ajudar o outro a aceder à sua autonomia ‘como’ a minha.
6. ‘Nascer aonde’ é gratuito: ninguém pode perscrutar-se suficientemente para poder vir a aceder conscientemente a essa gratuidade. Mas cada filho ou filha que se tenha e de que se acompanhe um pouco o percurso testemunha dela. Como dizia a minha sogra dos filhos: “podemos criá-los, não podemos fadá-los”. A diversidade de destinos parte da gratuidade dos nascimentos antes de todo outro factor de percurso. Faz parte do segredo da fecundidade, quer dos nascimentos, quer das aprendizagens doadas com retiro dos doadores: este retiro da heteronomia é justamente a não substituição que torna possível a autonomia. Amar o próximo efectivamente como a si mesmo é participar no grande segredo da vida, o da fecundidade das suas doações gratuitas, contribuir para melhorar as autonomias diminuídas em vista do que chamamos a humanidade: autónoma, solidária, pacífica.
7. Mas quem sou eu para falar de amor ao próximo?


[1] A tradição eclesiástica elencou sete obras de misericórdia corporais”, as seis de Mateus 25 mais “enterrar os mortos”, e sete “obras de misericórdia espirituais”: dar bons conselhos, ensinar os ignorantes,
corrigir os que erram, consolar os tristes, perdoar as injúrias, sofrer com paciência as fraquezas do nosso próximo, rogar a Deus por vivos e defuntos. 

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Linguagem e conhecimento




1. Trata-se duma breve adenda ao último texto sobre a des-substancialização e talvez aos três sobre a questão do conhecimento de janeiro e fevereiro 2017. O conhecimento segundo a minha leitura do “não há fora do texto” de Derrida ficou mal explicado: trata-se duma posição que integra as duas posições da tradição filosófica sobre o conhecimento, entre as quais quase sempre oscilou. Dum lado, a tradição dita ‘idealista’, iniciada com Platão, herdeiro de Parménides, em que o conhecimento é algo que releva da alma e visa as essências eternas definidas de que as coisas terrenas são cópias frustres. No Crátilo, após uma longa dissertação sobre etimologias gregas das palavras mais importantes para o filósofo, Platão exclui as palavras como incapazes do conhecimento, condição para poder colocar as suas Formas ideais. O outro lado, o dito ‘realismo’, foi o resultado da critica desta posição por Aristóteles (anunciada já no Parménides) que colocou o conhecimento na sequência das sensações corporais e efectuou o primeiro ‘retorno às coisas’, trazendo-lhes as Formas ideais como ousia segunda, categoria do discurso que coincide em cada coisa com a ousia primeira que ela é sob os seus acidentes particulares. As coisas são pois realmente conhecidas pelas respectivas definições, mas apenas no plano inteligível da argumentação gnosiológica, enquanto que as sensações só conhecem os seus acidentes, nas narrativas e discursos quotidianos.
2. No que diz respeito à tradição europeia a partir de Galileu e Descartes, antes da separação kantiana entre filosofia e ciências, pode-se dizer que o problema do conhecimento foi sempre colocado entre a inteligência no interior da alma e depois do sujeito, e as coisas sensíveis, exteriores, os empiristas partindo destas para aquela ao invés dos idealistas que ligavam as ideias a Deus. Foi o que, depois de Kant e Hegel, quebrou o passo da intencionalidade de Husserl e depois o do Dasein, ser no mundo, de Heidegger, passos esses decisivos na ultra-passagem da separação inteligência / coisas, nomeadamente com a importância que o II Heidegger dedicou ao peso histórico das palavras, na sua interrogação das etimologias gregas e alemãs, ficando apenas eventualmente a questão do ‘pensamento’ a impedi-lo de chegar às ‘coisas’. Era a lacuna das palavras na problemática europeia do conhecimento que tornava este insolúvel, oscilando os pensadores entre um subjectivismo solipsista (devido às manifestas diferenças individuais) ou um realismo objectivista e nos cientistas determinista.
3. Uma excepção importante foi a do conceito de ideologia do marxismo, todavia não suficientemente trabalhado por Marx, os seus problemas assentando na contradição económica e histórica essencial da infra-estrutura, como se deu como sintoma o debate soviético em torno da linguística, que Estaline decidiu com a famosa tese de que “a língua não pertence à super-estrutura”, tese essa que. dando a importância devida à linguagem, permite uma elaboração do conhecimento mais adequada ao materialismo histórico, julgo eu (formulei esta hipótese numa tentativa de elaboração duma “teoria formal do conceito de modo de produção”, primeira parte da minha leitura materialista do evangelho de Marcos, em 1974).
4. Voltando à corrente fenomenológica, formulando em termos clássicos a solução de Derrida “não há fora do texto”, ela consistiu justamente em chegar ao conhecimento das coisas na sua singularidade jogando com as palavras que as nomeiam: por um lado, o seu lado ‘realista’, o qual, não separando sensações corporais e inteligência subjectiva sem voz, permite, por exemplo maior, conhecer as coisas que se utilizam rotineiramente, fazendo a unidade com elas dum ciclista com a sua bicicleta, unidade do dizer com as mesmas palavras que são de todos com o fazer os mesmos usos com as mesmas coisas (argumento contra todo e qualquer cepticismo solipsista); por outro lado, o seu lado ‘diferencialista’ dos sujeitos, palavras e usos sendo aprendidos de forma sempre singular, os textos que são ditos ou pensados por cada qual têm sempre essa singularidade enigmática, até para o próprio em certas vertigens da vida, a singularidade do jogo de diferenças entre as palavras, como entre os jeitos de fazer. Com efeito, as diferenças que tecem os textos – fios dos têxteis – permitem matizar indefinidamente o que se pensa e sente, desde a musicalidade das entoações às figuras literárias que enxameiam os próprios dizeres quotidianos. Derrida ‘realiza’ assim o ‘idealismo’, se se pode dizer, assumindo o antagonismo estrutural do pensamento greco-europeu.