segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Identidade?


Identidade ?

1. Será que tem sentido perguntar o que é que caracteriza um humano como sendo o mesmo, ele mesmo, o que é que nele ‘responde’ ao nome próprio? Em ‘caracterizar’ há ‘carácter’, inscrição durável, que se presta ao ‘idem’ (mesmo, em latim) de identidade. Sem dúvida que o programa genético, da espécie mas também da tribo, da família e com marcas individuais, que se repete em todas as células com excepção das que se prestam à reprodução de outro indivíduo (curioso!), esse programa de várias mesmidades biológicas e sociais e que vai até à individualidade, faz parte da resposta. E mais? O sangue (há vários tipos e não coincide sempre com o da mãe) que vai a cada célula e por aí faz laço, será parte da identidade? Feito de células que se reproduzem e alteram pois, que são aliás substituíveis numa transfusão, não parece pertencer. Nem o jogo hormonal, que parece fazer parte da anatomia e fisiologia da espécie, não ter individualidade que não seja a dum jogo que responde a variações aleatórias, se presta. Isto é, parece não haver nada mais de biológico estritamente que se preste, a não ser que se tenha em conta que as células do sistema neuronal, os neurónios, são permanentes, não se reproduzem (pelo menos significativamente, para o caso que nos interessa, digo isto para ter em conta uma notícia qualquer de jornal há algum tempo).
2. Ora, ter em conta os neurónios é ter em conta o social dos usos que neles se inscreve, o que se aprende e cria sinapses (E. Randel), os grafos da memória (Changeux). Ora, estes sim, perduram a vida toda como língua e a cultura tribal que com ela vem, os usos elementares que se repetem no quotidiano dos anos todos da vida, as especializações de ofícios que se vão tendo e aperfeiçoando, e por aí fora. É certo que há sempre coisas que se perdem por falta de prática, mas o que se vai ganhando como ser no mundo tribal (chamo tribo ao ‘nosso’ mundo, da famílias em que se nasce e cresce e da(s) que depois se cria com outra pessoa, dos colegas de escola e de trabalho, dos amigos e conhecidos, de vista e encontros mas também dos médias, sei lá) estrutura-se de uma maneira que cria um estilo de fazer e dizer, que sabemos nosso e os nossos reconhecem e têm em conta nas  suas relações connosco. Ora, a memória é algo de irrepresentável, nunca ninguém sabe da sua como um todo, ela vem como ‘subvir’ (fr. souvenir) por associação com o que sucede e suscita as lembranças necessárias para agir e reagir; por outro lado, ela perde-se no sem fundo da infância das primeiras aprendizagens e nos deslocamentos que se fizeram e fazem, lugar do que Freud chamou ‘recalcamentos’ (a conjugar no plural para cada um, justamente por causa dos deslocamentos tribais). Não tem princípio nem fim, como as nossas conversas aleatórias, leituras e audições, todo este mundo de linguagem em que estamos sempre a entrar e a sair, com fios emaranhados que se perdem e reatam sem darmos por isso. Identidade? Talvez melhor estabilidade relativa, que vai oscilando ao longo do tempo, ganhando-se memórias novas e perdendo antigas, crescendo mas também variando. Certamente que isto, esta memória não controlada e esquecida a maior parte do tempo, irrepresentável (como também não podemos representar um livro que acabamos de ler, ou de escrever, não podemos tê-lo ‘presente’ na memória como um todo), faz parte da nossa ‘identidade’, ou talvez que sejamos nós que fazemos parte dela. Mas será porventura o estilo dessa memória, por vezes dito carácter em termos morais, que melhor ‘pendant’ faça com o ADN para nos identificar, a cada um de nós.