sexta-feira, 15 de junho de 2018

O fio que me guiou o percurso



1. Embora tenha havido um passado de estudante de engenharia e de teologia e um trabalho de leitura dum texto antigo relacionando-o com a sua época de escrita, semiótica com história em perspectiva althusseriana, as coisas com que me divirto hoje partiram da minha tese de doutoramento. O seu alvo era uma questão que se discutiu muito nos anos 60 da França estruturalista, sem se ter encontrado solução, como indicava uma entrevista do grande linguista Émile Benvenista[1], cuja citação é a exergue do meu texto[2]. Perguntava-se ele se o verbo ‘faire’, com 80 referências no dicionário de francês Littré, tinha 80 sentidos ou só um, e concluia: “on ne sait pas”. Saussure introduzira dois substantivos novos, a partir de duas formas do verbo ‘signifier’, o ‘signifiant’ e o ‘signifié’ e o que não se sabia, no fundo, era qual é o estatuto da face do signo a que chamou ‘signifié’; o que se sabia era que o ‘signifiant’ era de facto ‘um’ e que o ‘signifié’ não era a ‘signification’ (o significado) dos dicionários (que eram as tais 80 do Littré). O que eu fiz foi, em vez de partir da ‘teoria’ e das discussões em torno dela, partir da prática (laboratorial) dos linguistas, da comutação ilustrada pelo mesmo Benveniste no primeiro Problèmes de Linguistique générale, e restituir a dupla articulação da linguagem, tratando-a em seguida com a maneira como em De la Grammatologie, Derrida aborda o ‘signifiant’, ou melhor a diferença entre ele e os sons, pela redução fenomenológica destes, mostrando que o que fica como ‘domínio da linguística’ são as diferenças entre os sons que foram reduzidos. Então a minha astúcia (Derrida não trabalhava sobre as duas categorias de Saussure) foi mostrar que o ‘signifiant’ correspondia à diferença entre sons da articulação fonemas / palavra, a fala como voz, e o ‘signifié’ correspondia à diferença entre sons da articulação palavras / frase, a fala como discurso ou texto, o que sublinhando a unidade do primeiro, revelava que o estatuto do segundo era justamente a sua polissemia, dependendo o ‘signifié’ de tal significante em tal texto das suas diferenças na frase e das desta no texto, relevando pois da fala / escrita como acontecimento, ao invés da língua emm seus paradigmas restituídos pela linguística.
2. O que implica que a linguística trabalha sempre sobre ‘falas’ orais ou escritas, que são justamente acontecimentos, desde as repetições de rotina (‘bom dia, como está?’) até aos poemas, e que a língua (os signifiants e os signifiés) descoberta como ‘paradigmas’ não permite saber das falas senão as suas possibilidades. Nem sequer o ‘um’ do signifiant’ coincide com o som da voz, não é ‘substancial’ como se julga, digamos, mas feito de diferenças, ele é o mesmo, as mesmas diferenças entre sons ou vozes não idêntico/as, (mesma palavra / voz não idêntica): mesmo / não idêntico é um par da gramatologia derridiana. No que diz respeito ao ‘signifié’, a polissemia, a diferença mesmo / não idêntico, é muito mais vertiginosa, já que são sempre diversos paradigmas morfológicos, sintácticos e textuais que jogam para produzir tal ‘signifié’ em tal substantivo ou verbo de tal texto. Donde o recurso dos dicionários ao chamado referente, à evocação por outras palavras da coisa significada, para dar a significação da palavra, donde que o verbo ‘fazer’ conheça os tais 80 sentidos num dicionário exigente; assim também as figuras tipo metáfora se acrescentam aos termos úteis correntes alargando as polissemias, jogo poético por excelência.
3. Antes mesmo de acabar a tese, depois de ter lido os dois textos de Derrida sobre o duplo laço (ver “Derrida em Lisboa” neste blogue), foi-me dado compreender, por um desses acontecimentos misteriosos do pensamento que vem quando ele quer, como dizia Nietzsche, que os duplos laços, ausentes da tese, permitiam compreender esta razão teórica da dupla articulação da linguagem (entre fonação e ser ouvida da voz e rede cerebral do discurso) mas também abriam a compreensão das outras ciências do século XX, com os seus mundos de possibilidades e da mesmos / não-idênticos. Mas foi apenas um vislumbre, só a leitura de cientistas e a escrita a par e passo vinda dessas leituras me veio a fazer compreender do que se tratava, levei bem 15 anos, senão 30 e tal, contando com este blogue: ele acaba por ser na maior parte dos seus textos, dum reformado livre e feliz, a continuação de pequenas descobertas neste vasto mundo que assim se abriu.


[1] Problèmes de Linguistique générale II, p. 20.
[2] Epistemologia do sentido. Entre filosofia e poesia, a questão semântica, Gulbenkian, 1991.

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