1. O grande paradoxo da história ocidental da
inscrição é que as suas invenções cruciais, a definição filosófica e o
laboratório científico, têm como meta
o conhecimento das coisas do universo mas voltando as costas a este, retirando
o fenómeno que é a definir ou a experimentar do contexto em que ele é dado, o
qual contexto é justamente uma parcela do ‘universo’ a conhecer. Esse paradoxo
foi marcado pelos dois filósofos mais importantes na relação entre filosofia e
ciências: o grego Aristóteles decretou com o motivo dos acidentes não susceptíveis de ciência, isto é, de
definição, que a sua ciência e a sua filosofia não conheciam o
‘fora-da-definição’, o que o europeu Kant confirmou, tendo encaixado a sua filosofia
crítica na matriz do laboratório newtoniano, ao apontar o que não entrava nele,
o ‘fora-do-laboratório’, como númeno, o que escapa aos conceitos do entendimento (científico) e às ideias da
razão pura (filosófica), ficando apenas à mercê da razão prática, da ética
nomeadamente. Se se pretende que o motivo de duplo laço (Derrida) vem substituir no novo
paradigma gramatológico a ousia de Aristóteles, haverá que elucidar como é que ele enfrenta esse paradoxo.
É o que se vai tentar aqui.
2. Se se trata de procurar desenhar as
grandes linhas da chamada realidade terrestre (para não abusar do termo
‘universal’) fora dos laboratórios das ciências, obviamente que se depende
destes e se introduz nessa realidade terrestre as fracturas irredutíveis entre
eles, as quatro grandes cenas da gravitação, alimentação, habitação e
inscrição, além de muitas outras que nelas se inscrevem criando relações entre
várias delas, como é o caso notável da psicanálise, mas também da invenção da
máquina, do automóvel e da lei do tráfego, e de muitas outras, nomeadamente as
electrónicas que estão a revolucionar as sociedades actuais: o que permite
prever que não haverá ‘monismos’, antes pelo contrário, os duplos laços são
multiplicáveis indefinidamente, a cada uso que se aprendeu, a cada texto que se
lê ou escreve. Mas se este novo paradigma, sendo de filosofia com ciências, depende destas ao abrir o espaço
daquela, também é certo que, situando-se na descendência de Husserl (fora do
laboratório) e de Heidegger (fora da definição), ele entra em conflito com as
teorias científicas que parecem incapazes de ‘saírem’ do respectivo paradigma
(científico) que é estritamente laboratorial, como aliás Kuhn sabia, ao
defini-lo como aquilo que os cientistas fazem seguindo programas estabelecidos,
normais.
3. Foi um choque, perceber essa limitação no caso
do João Resina, um amigo meu extremamente inteligente, físico e professor do
IST, autor de livros sobre relatividade e quântica, mas também doutorado em
filosofia: propus-lhe a questão do automóvel, fabricado laboratorialmente
segundo regras da física e da
química e devendo fazer percursos aleatórios, ao que ele me retorquiu com as causalidades do
motor, peça a peça, sem qualquer incidência no que ao tráfego diz respeito.
Dei-me conta de que por regra – de formação, como se diz – o cientista não sabe as
consequências fora do laboratório da sua ciência, confirmando Aristóteles e
Kant! Ou estarei eu enganado, as regras laboratoriais dum carro são de outro
nível do que as do tráfego, que relevam duma antropologia? Sim, se se trata do
código da estrada, mas não, se se trata do funcionamento do carro fora do laboratório, aquilo para que ele
é feito, avançar, acelerar, travar, fazer curvas, etc, tudo coisas que o
engenheiro do laboratório tem que ter constantemente em conta nas suas experiências
e decisões. É certo que se trata de dois planos diferentes, um diz respeito a
fragmentos laboratoriais e o outro ao conjunto do carro, à teoria que justifica – pelo seu telos, como diria Aristóteles, o seu fim – o todo. Aqui é óbvio que faz diferença tratar-se de
engenharia, de técnica, e não de ciência: foi esta que liquidou a noção de
causalidade final, mas aquela recuperou-a, dando-se ou não conta disso. O caso
da biologia molecular é exemplar aqui: a introdução dos laboratórios de bioquímica
que permitiram as análises do metabolismo de bactérias e as descobertas do ADN
e dos ARNs foi seguida duma extrapolação absurda da causalidade genética para o
todo do organismo e dos seus comportamentos ou capacidades (o que hoje se
tornou uma burrice generalizada a qualquer tipo de opinião, ‘é o ADN, meu ou
dele, que...’), como se o que a bioquímica descobriu não fosse pura e
simplesmente os processos que as células têm de auto-reparação mediante
alimentação, como se o conjunto do organismo não funcionasse segundo as regras
anatómicas que relacionam os diversos órgãos entre si e com o seu mundo
ecológico.
4. O que é que está em causa? É a ignorância
teórica do papel do laboratório quando se trata justamente de fazer a teoria do
que acontece fora do laboratório quando se juntam os seus diversos fragmentos
de experimentação, ignorância essa que é aliás correlativa da ignorância
tradicional da filosofia sobre o papel da linguagem, considerada um simples
‘instrumento’ na relação sujeito / objecto. Essa ignorância resulta duma evidência empírica que privilegia os olhos e as mãos no que ao conhecimento diz respeito: a
evidência de que se está diante de ‘objectos’, como se estivessem soltos,
justapostos uns aos outros, sem relação uns com os outros, sem consideração
pelo mundo que eles fazem e de
que o ‘sujeito’ conhecedor é parte também, face a esses ‘objectos’ delimitados.
Um exemplo flagrante em física clássica da causalidade desta visão das coisas é
o das bolas de bilhar que batem uma na outra e transmitem movimento e força,
exemplo simples já que não necessita de se interrogar sobre a mesa de bilhar
nem sobre os tacos e o giz, não precisa de laboratório. Ser e Tempo em 1927 e Tempo e Ser em 1962 puseram isto em questão.
5. De repente, veio-me uma tentação: pensar que a
verdade das teorias físicas e químicas não é dada ao seu nível puramente
teórico, sem mais, mas apenas ao nível do conjunto ciência e técnica (esta resultante daquela), e aí, essa verdade é,
por assim dizer definitiva,
ainda que mais tarde essas técnicas se tornem obsoletas. O que iria contra a
ideia que parece maioritária entre cientistas e filósofos de que as teorias
actuais são erros adiados. Mas se for assim, ao nível destas ciências exactas,
encontra-se uma maneira de ultrapassar o paradoxo enunciado no § 1: as máquinas
e outras técnicas científicas serão maneiras de conhecer em casos concretos,
universais (onde haja laboratórios) e históricos, que vão até esta dada máquina
que eu sei utilizar, embora não conheça o seu funcionamento nem as diversas
teorias que ela supõe: aqui não haverá ‘acidentes’ nem ‘númenos’, Kant não
chegou a conhecer os comboios e, segundo Derrida algures sobre Hegel (Marges), este não foi capaz de introduzir no seu sistema
uma máquina que funcione.
6. Mas há uma outra maneira, mais trivial
porventura mas podendo ir alem da técnica, de considerar a questão, se se
conjugar o conhecimento teórico, por exemplo, duma espécie animal suposta bem
conhecida cientificamente, com o conhecimento concreto desse animal, um gato de
estimação. Se o gato em questão é da estimação dum veterinário, tratar-se-á de
valorizar nessa conjugação o chamado ‘conhecimento sensível’, desvalorizado
filosoficamente por via da oposição metafísica entre inteligível e sensível, só
o primeiro tendo as honras duma ‘verdade’ digna das academias. Ora, o que assim
se explicita é, em contrapartida, uma forma fenomenológica geral de dizer em
que é consiste a verdade teórica das ciências no que diz respeito ao fora do
laboratório: aquilo que qualquer ciência digna desse nome conhece dos entes de
que se ocupa é, por assim dizer, o mapa das suas possibilidades. É justamente o que cada máquina, automóvel ou
computador, traz como razão de ser, o que o faz comprar. De cada vez que uma
delas é utilizada voltamos à conjugação da verdade científica com a do piloto
que a utiliza com seu saber adequado ao trajecto que está executando como
possível. Também a lei da selva completa a verdade biológica das diversas espécies,
cada indivíduo sendo obrigado a caçar para comer e a fugir de ser caçado, toda
a sua anatomia sendo construída para esse efeito.
7. É-me mais difícil pensar em termos de ciências
das sociedades actuais, limitar-me-ei ao paradigma das unidades locais de habitação, famílias ou
unidades de trabalho, admirando-me de me parecer que não é esse um objectivo,
digamos antropológico, corrente. É provável que a extensão do motivo de Kuhn a
qualquer unidade social além das ciências seja já algo que não faz parte das
metodologias, como não o parece ser também o motivo de uso social, apesar da sua repetição nas unidades do mesmo
teor. Porventura, a razão de ser desta lacuna, a meus olhos, será que se trata
de coisas que os indígenas sabem muito bem, e por isso não pareça aos inquiridores algo de significativo.
Se for assim, importa pôr a questão do que haverá a descobrir e para isso
recorrer à disciplina que serviu de piloto a este tipo de ciências no chamado
estruturalismo francês, a linguística saussuriana, que também foi importante no
trabalho filosófico de Derrida. Seja o caso estranho de se
poder ler um texto sem se saber quem o escreveu, que foi o que Platão repudiou na escrita. Basta saber a língua,
incluindo os significados habituais de nomes e verbos. Quando a filosofia das
definições veio a prescindir de considerar as línguas, tomou nomes e verbos
pelas ‘coisas’ e ‘acções’ que eles indicam, isto é, segundo as evidências
empíricas imediatas (§ 4), sem mundo ordenado nem situação do que lê em relação
a esse mundo: lê-se como se se estivesse a ver (o que é aliás um grande louvor
que assim se faz à linguagem! sem dar por isso, talvez). O que é que a
linguística saussuriana veio esclarecer, reduzindo metodologicamente, quer o sujeito que fala (os
sons da sua voz) ou escreve (a sua letra pessoal), quer as coisas de que se
fala ou escreve, veio pôr em análise os jogos de diferenças variados (fonológicos, aquém dos sotaques;
sintácticos, morfológicos, semânticos e códigos textuais) que não são por regra
perceptíveis, já que têm efeitos por ‘paradigmas’ (em sentido linguístico,
aqui) sem que elementos destes estejam em jogo. Por exemplo, ‘a Maria é uma
rosa’ indicia que ela é uma ‘flor’, a sua feminilidade reduzida ao que esta tem
de ornamento, de beleza em vaso que a fixa. Outro, derridiano: se nesse texto aparece a palavra ‘corpo’, também
‘alma’, ‘consciência’, ‘sujeito’, pares metafísicos habituais de ‘corpo’ jogam pela
calada (semioticamente), sem se dar por isso. São o que se chama conotações, a psicanálise manifestou muitas como figuras eróticas
escondidas em conteúdos inocentes. Acrescento-lhe dois, que julgo não serem
conhecidos: as invectivas obscenas ‘vai-te f...’ (fuck you, vas-te faire
foutre) ou ‘vai para o c...’, que quando eu era garoto só se usava entre
rapazes e homens, só tinham sentido por serem marialvas, anti-gays,
equivalentes a chamar ‘maricas’, já que ‘fornicar’ é algo de agradável, não
pode ser insulto dito a uma mulher que é suposta gostar, tem que ser mandar um
homem fornicar com outro homem ou, no outro caso, um homem é enviado para o
pénis de outro homem. Ou seja, aparecem clichés não explicitados mas que
reflectem relações sociais e as línguas estão pejadas de jogos conotativos
destes, dos quais são importantes os que a própria filosofia criou, como a
ontoteologia que Heidegger explicitou e o logocentrismo devido a Derrida, que
são fáceis de reconhecer como formando a matriz do pensamento ocidental,
ignorada por civilizações com outros percursos, chineses, indianos,
eslavos cristãos ortodoxos, talvez
islâmicos. Quem quer saber porque é que foi a Europa que chegou às ciências,
tem que procurar a resposta decisiva nesta matriz, o paradoxo sendo que foi a
ciência tornada possível por ela que encetou o lento processo da sua
desconstrução, ao eliminar a ‘substância’ experimentada das equações da teoria
para apenas reter as medidas dessa experimentação.
8. Mas como os cientistas são filhos da filosofia
e das suas evidências empíricas na matriz ontoteológica e logocêntrica, eles
não se mostram capazes de compreender as transformações teóricas que as suas
descobertas laboratoriais demandam, as da realidade fora do laboratório. Reside
aqui um dos grandes problemas da filosofia com ciências, que faz com que ela seja de difícil
entendimento[1]. O que foi decisivo para a sua descoberta foi o motivo filosófico do duplo laço que Derrida foi buscar ao psicólogo americano Gregory Bateson e que ligou
na minha cabeça as cinco ciências principais e as suas descobertas decisivas
pelo critério que permitiu reconhecer os duplos laços em cada ciência: no campo
de fenómenos de cada uma, encontrava-se uma zona retirada, de não-fenómenos, já que ‘fenómeno’ é o que se
manifesta. Na física-química, a teoria do átomo e da molécula supõe que estas
são constituídas por átomos que se ligam por electrões móveis, em processo que
chega aos graves, o núcleo atómico sendo retirado por uma força nuclear que liga protões e
neutrões, impedindo-os de cederem à atracção da gravidade e à transformação
química com outros núcleos atómicos. Na biologia, a teoria da célula com o
seu metabolismo que reelabora
incessantemente as moléculas da célula por síntese de proteínas ditada por um
ARN mensageiro, o qual é, de cada vez transcrito como cópia diferencial dum ADN
retirado no núcleo celular
(eucariotas), mantendo-se para a próxima vez enquanto que o ARN se degrada
quimicamente. Na antropologia, as unidades sociais jogam com um interdito de
relação sexual entre familiares que propulsiona as raparigas para troca com
outra família, conseguindo-se assim criar um sistema de parentesco inclusivo de
todas as unidades sociais da tribo, tendo vindo a aperceber-me que este retiro
das relações incestuosas se encontra nas instituições sociais como interdito de
sexualidade entre quem quer que seja, como condição de disciplina do paradigma,
como já era o caso no interdito do incesto; este motivo antropológico de
disciplina da sexualidade para boa efectivação dos usos da unidade social
implica uma espécie de privaticidade geral dos paradigmas, que os retira da multidão indígena exterior. A psicanálise elaborou a sua teoria das pulsões
em termos de inconsciente, um sector libidinal retirado da consciência, correlativo do interdito do
incesto. Enfim, a linguagem conhece uma dupla articulação das suas palavras,
por um lado articuladas em frases cuja sintaxe e morfologia permite produzir
sentidos comunicáveis segundo uma língua tribal comum, por outro as palavras
são articuladas por fonemas (letras) que são imotivados, retirados de sentido e de referência. Ora, o que as
análises vieram a permitir estabelecer, jogando como modelo dum automóvel, foi
que – exceptuando os dois casos iniciais, constitutivos
dos dois grandes tipos de entes, inertes e vivos, a saber o átomo e a
célula, – o laço de elementos
retirados é quem fornece energia ao
movimento do fenómeno em questão, à maneira dum ‘motor’, e que o outro laço é
quem regula a circulação do fenómenos face aos outros, à maneira dum ‘aparelho
regulador’ que dá sentido: causa e fim restituídos.
9. Como com Aristóteles e com Galileu e Newton, é
pois de movimento dos entes e
das estruturas sociais que tratam os duplos laços, incluindo o da sua geração e
corrupção, como diziam os Gregos, bem como da sua alteração. Ora o movimento,
tendo embora causas e condições, é dele mesmo indeterminado, não se sabe nunca a priori que haverá tal ou tal movimento em tal ou tal
direcção. O que Newton demonstrou foi que o movimento dos inertes terrestres
releva da força da gravidade do planeta, assim como esta se joga com as do sol
e dos outros planetas: ora, a Terra é o conjunto dos todos os graves, é este
conjunto que atrai o movimento de cada um desses graves – uma pedra que cai
resistindo-lhe o ar ou outros sólidos no percurso, um fumo que sobe ou a
rotação da terra que alterna o dia com a noite – regido por essa estranha lei
da gravitação, a que, além dos protões e neutrões atómicos, talvez só escape a luz (que não ‘cai’
para a terra) e porventura os sons e os electrões da electricidade industrial.
Mas não lhe escapam os vivos, cujo movimento por si mesmos (kath’autôn) se faz contra a força da gravidade a que estão
sujeitos, as árvores a crescerem para cima, os animais que erguem as patas para
andar e correr, as aves e os insectos que voam. É o carácter geral desta
indeterminação que implica a necessidade do laboratório criando condições de
determinação, por exemplo, o
vácuo para atestar a aceleração da queda livre, mas sem nunca se poder fugir à
lei da gravidade terrestre. Quanto aos vivos, a indeterminação deles é
estrutural, já que depende da respectiva alimentação e esta releva das
condições ecológicas: as anatomias dos organismos têm órgãos de percepção –
faro, olhos, ouvidos, tacto – justamente tendo em atenção essa indeterminação
(como já era o caso do motivo aristotélico do ‘acidente’). Os duplos laços
respondem desta indeterminação geral, regida pelas suas duplas leis (indissociáveis
e inconciliáveis), é o que justifica que as ciências apenas possam detectar possibilidades, como se disse acima.
10. Ora, os duplos laços articulam-se com outros
de níveis diferentes, os da alimentação animal, por exemplo, jogando sempre com
os da gravitação, a biologia supondo a física-química, nos humanos também com
os da habitação, da economia e da politica. Esta correlação entre duplos laços
de níveis diferentes implica que os laboratórios das ciências de cada um desses
níveis tenha que reduzir os
duplos laços que relevem de outros níveis (a linguística reduzindo a acústica,
por exemplo, e a fisiologia da fonação, a fonética jogando na fronteira dos
dois níveis), o que os torna de experimentação possível. No entanto, cobrindo a
totalidade da realidade terrestre e relevando de ciências, os duplos laços
constituem uma rede que se pode dizer sistemática, o indeterminismo de cada um deles impedindo que
seja totalitária, isto é, que ofereça qualquer ponto de interpretação susceptível
de maîtrise, de domínio tanto
intelectual como prático. Que haja duas pontas iniciais para este sistema, a do
átomo e a da célula, como que fazendo uma fractura no sistema, a que existe entre as duas químicas,
a inorgânica ou mineral e a orgânica ou bioquímica, deixa duas questões de
origem em aberto: a dos graves é
respondida actualmente pelo mito astrofísico do big Bang, deixando em aberto
como se formaram os átomos de hidrogénio de que as estrelas se constituíram; a
dos vivos tem a meu ver a melhor aproximação na teoria semântica da evolução de Marcello Barbieri. Abstraindo do mito
estrondoso sem luz nem ruído, qualquer questão de origem, no decorrer da
evolução biológica como da história das sociedades humanas e das suas invenções
de inscrições, encontra sempre como resposta que há sempre já repetições aquém,
como dizia Derrida, que é a repetição que é originária.
11. Enfim, a verdade das ciências, para além da
proposta das técnicas, manifesta-se em filosofia com ciências pela maneira como o motivo de duplos
laços se revela adequado à descrição dos movimentos realizados fora dos
laboratórios dos vários níveis. Mas uma tal verdade é relativa à história filosófica e científica do Ocidente,
à sua vertente fenomenológica desde Aristóteles. Dentro desses limites
históricos, não há aqui nem determinismos nem reducionismos nem relativismos.
12. Resta sublinhar, citando um texto recente
deste blogue, a diferença da maneira de argumentar deste paradigma de
fenomenologia com ciências
face à maneira tradicional, desde Platão, de argumentar sobre ‘categorias’,
‘essências’, ‘conceitos’, temas resultantes da definição: a gramatologia que me
inspira tem antes demais em conta o gesto de escrita que isolou esses temas, retirando-os do
respectivo contexto, a saber, a operação de definição filosófica e o laboratório
científico, gestos históricos da escrita dos textos que impõem fronteiras aos
temas filosóficos e científicos que eles tratam, sobre os quais argumentam. É
numa paisagem totalmente modificada que os gestos das várias ciências se dão a
uma leitura filosófica que termina com a suspensão kantiana e permite perceber,
tendo em conta o contexto fora do laboratório, os duplos laços dos fenómenos de que elas se
ocupam, entre fenómenos expostos e (não-)fenómenos, retirados. São exemplos de
‘gestos’ em filosofia: o ‘sei que nada sei’ socrático e a dúvida metódica
cartesiana; com a definição, a instituição da Academia e do Liceu; a Physica como filosofia com ciências; o plurilinguismo helenista, donde o motivo
do ‘signo’, abrindo uma brecha no ‘mesmo’ de Parménides, que tinha continuado
em Platão e Aristóteles; a maneira como o platonismo se apoderou do discurso
cristão em Orígenes; a teologia cristã levando no seu bojo a filosofia para a
Europa; a recepção dela pelas universidades medievais; Aristóteles substitui
Platão no tomismo; transformação nominalista; papel de Newton na critica de
Kant; a redução husserliana e a doação com retiro heideggeriana; a questão da
escrita posta à filosofia por um herdeiro de ambos, permitindo entender não
apenas o que os pensadores ‘pensam’ (logocentrismo), mas também o que eles
‘fazem’ escrevendo historicamente (desconstrução).
[1] Há poucas
hipóteses de que alguém a
compreenda, porque ninguém conhece suficientemente as várias ciências para
entender o alcance da proposta, quer para cada ciência quer para a filosofia,
já que os próprios cientistas têm da sua ciência uma perspectiva ontoteológica
que os formata, recusam a priori o que um out sider
propõe.