quinta-feira, 30 de junho de 2016

Pensar : reduzir o que transborda para reter o pensável



As reduções do pensamento filosófico tradicional
As reduções do pensamento fenomenológico
As reduções do pensamento bíblico
As reduções do pensamento chinês
As reduções dalguns pensamentos científicos
As reduções do pensamento das ciências das sociedades

Como que sem querer, levado por leituras e pela escrita,
tornei-me num experimentador de filosofia fora da filosofia,
 vantagem (ou inconveniente, dirão alguns) sem dúvida
de não ter sido filosófica a minha primeira formação.
O que segue é um exemplo de acrobacia fenomenológica:
 pôr em paralelo o que é pensar
em filosofia, ciências, bíblia e chinês!

1. O que chamamos pensar é uma atitude que nos é necessária de vez em quando, quando nos concentramos, como se diz, mas que não é tanto, como a palavra pode sugerir, centrarmo-nos na nossa interioridade mas em relação ao que se chama de forma vaga realidade, que se nos dá habitualmente como uma espécie de cacafonia, muitas coisas sem ordem entre elas em que nos conduzimos rotineiramente, vamos fazendo como de costume, como aprendemos, ‘sem pensar’ justamente. É em relação a essa ordem habitual do nosso habitar, em casa, na rua, no emprego ou onde seja, que algo nos impele por vezes a ‘pensar’, a largar essa habituação rotineira para esse ‘algo’, tenha ou não a ver com a situação concreta em que se está, já que pode ter a ver com uma lembrança de um passado ou leitura recente, ou com um ‘que fazer?’ que se impõe com pertinência mas sem se saber bem como, ou ainda com um espanto que nos assalta inesperadamente, ou simplesmente uma associação de ideias que se revela não trivial. Tudo isto para dizer que pensar implica ‘abstraírmo-nos’ da tal ‘realidade’ envolvente, o que se vê e ouve por onde se anda, as associações de ideias que incessantemente nos passam pela cabeça. Há que reduzir essa proliferação mais ou menos caótica que perturba esse ‘algo’ que nos desperta para pensar, redução essa que visa reter apenas essa nova preocupação que nos veio.

As reduções do pensamento filosófico tradicional
2. Já nomear esse algo faz parte da processo de redução, nem sempre os nomes do que se busca pensar são claros e a sua restituição implica desligá-los das suas possibilidades abertas de nomeação, mormente das suas possibilidades de metaforização ou de figurações várias de coisas ‘concretas’, do que pejorativamente se diz imaginações, fantasias, que se ligam a desejos variados. Com efeito, a denominação, por substantivos ou verbos mormente, consiste na primeira e mais frequente operação de redução que torna possível, antes mesmo de pensamentos, as trocas mais elementares de dizeres, receitas, narrativas e outra falas quotidianas. Pensamos com nomes de coisas e acções, porque eles são susceptíveis de se separarem das coisas e acções concretas que nomeiam para nomearem outras, porque são susceptíveis também de abstracção. Esta no Ocidente foi inventada com a definição filosófica por Sócrates e teve entre os seus discípulos principais dois alcances diferentes, quase antagónicos, que marcaram a amplitude das atitudes do pensamento europeu. Platão definiu essências imutáveis, eternas no mundo celeste sempre igual a si mesmo em seu movimento astronómico perfeito, em oposição às coisas e qualidades do mundo terrestre, sujeitas permanentemente à geração e à corrupção, ao nascimento e à morte, as principais definições relevando da ética: o bom, o justo, o belo, a virtude. Aristóteles baixou essas essências para compreender o movimento destas coisas da terra, a substância em cada uma permanece aquém desse movimento: o motivo de ousia tanto diz nas Categorias, primariamente, essa substância do que se move como, secundariamente, a essência que é comum às substâncias da mesma espécie (eidos). A definição reduz assim o contexto real e concreto de cada coisa definida, o que justamente difere de caso para caso, para reter a essência comum, com a qual se pode argumentar: em physica, nas ciências que a ousia tornou possíveis, na lógica. Até ao século XVII, foi do fulgor da redução da definição que se fez o saber filosófico ocidental.
3. Os cientistas desse século inventaram uma nova operação de redução, a que implica o laboratório científico, trazendo das observações e cálculos astronómicos uma maneira de medir os movimentos de deslocação espacial e inventando uma medição instrumental do tempo (a peso de água por Galileu!), a que juntaram as medições de pesos e no século XIX de intensidade e tensão eléctricas, desdobrando assim as técnicas da antiga geometria e criando com os laboratórios (cujo ‘labor’ é justamente o de medir dimensões de movimentos, reduzindo todo o contexto extra-laboratorial) possibilidades de calcular dimensões não medíveis directamente (velocidades e acelerações para começar, massas e densidades diversas, momentos de forças, e por aí fora). Estas medições e cálculos – o que a redução laboratorial retém – foram sempre acompanhados, precedidos ou seguidos, por definições de ordem filosófica especializadas em paradigmas científicos, que se foram autonomizando das definições filosóficas, mormente metafísicas, autonomização que teorizou o trabalho filosófico de Kant e levou a separações benéficas até que as técnicas resultantes dessas ciências trouxeram consigo poluições diversas que obrigam a pensar inter-disciplinaridades difíceis, porque sem reduções evidentes além das que relevam das respectivas disciplinas laboratoriais, as filosofias mostrando dificuldades em abraçar as novas e difíceis questões.

As reduções do pensamento fenomenológico
4. Uma das novidades que as ciências físicas e químicas trouxeram ao pensamento delas foi a como que expulsão do cientista do processo laboratorial, das suas técnicas de medição e dos cálculos matemáticos da teoria consequente: é certo que os pensadores como Galileu e Newton e Lavoisier eram necessários mas os resultados da ordem da (geo)metria e da matemática impunham-se nos consensos científicos, como ‘objectivos’ (neles a ‘realidade’ objecta à hipótese teórica e confirma-a como certa laboratorialmente ou não), toda a discussão em termos de definições teóricas (leis científicas) se fazendo ‘subjectivamente’ – como se fosse filosofia! – em torno desses resultados ‘objectivos’. Foi o que o matemático Descartes compreendeu: ‘sujeito’ e ‘objecto’ (res cogitans e res extensa) oferecem-se separadamente e assim vingou o pensamento europeu, mesmo nos filósofos que se reclamavam duma abordagem empirista, critica do ‘idealismo’ cartesiano. Ora, foi um matemático filósofo como já era raro haver, Husserl, que procurou romper com esta separação – ele via muito negativamente a introdução do laboratório por Galileu na Origem da Geometria! – em nome de não haver consciência (e portanto ‘sujeito’) que não fosse “consciência de qualquer coisa”, do que também chamava ‘objecto’ e que vinha preencher uma intencionalidade da consciência; ou seja, esta não é uma ‘substância’, uma ‘res’, o que implicou num filósofo matemático, que deveria ser émulo de Platão o Geómetra, um gesto à Aristóteles, que tratou do intelecto num tratado ‘biológico’, o Da alma. Ao fazê-lo repetiu a ruptura deste com o mestre da Academia, proclamando “o retorno às próprias coisas!” mas repetindo igualmente Platão, a sua operação de redução da definição filosófica: a da empiricidade do dito ‘objecto’, ou seja aquilo que o liga ao contexto do mundo que o dá. Paradoxalmente terá sido o primado da percepção no seu discurso sobre a consciência que o puxou do lado da intemporalidade do eidos, do ‘viso’ da coisa até à sua essência eidética, sem lhe considerar os movimentos.
5. Foi este manter-se no domínio aberto pela definição, o das essências intemporais, que Heidegger criticou no mestre ao romper com ele: o ‘objecto’ da consciência estava já previamente definido, cortado do seu mundo, e é a reviravolta para este que ele opera à consciência husserliana, substituída pelo ser-no-mundo, sendo que o que privilegiou como Ser, com maiúscula, estava do lado do mundo como o ‘lá’ (Da) que o Da-sein era. Neste romper, Heidegger rejeitou a redução husserliana mas ao propor o motivo de diferença ontológica entre o Ser e os entes e ao sublinhar que esse Ser não era ente, ou seja não era ‘substancial’ mas diferença pura, foi como se se tratasse duma operação de redução da substancialidade deste Ser, evitando nomeadamente qualquer hipótese de relação desse Ser com o Deus criador do cristianismo. É que este Ser diferença, onde se aloja o pensamento, é a doação dos entes e da sua temporalidade histórica, doação que se oculta, dissimula, como condição da própria ‘entidade-tempo’ e que ganhará a sua concepção final em 1962 como Ereignis, isto é, como Acontecimento ontológico que faz doação e deixa ser cada ente em seu tempo, em seus acontecimentos. Onde se torna mais visível tratar-se de uma operação de desdeificação, aproximável à de Sibony em relação à Bíblia hebraica, duma redução que se poderia aliás aproximar também das noites místicas dum João da Cruz, em que o próprio nome de Deus é reduzido, as palavras com que ele possa ser designado, maneira radical de ser fiel ao tão estranho segundo mandamento do velho Decálogo, “não invocar o nome de Deus em vão”. Mas gostaria de deixar esta fuga à divindade que a deixa ainda na penumbra que a recusa, e dar ao Ereignis de 62 o nome da phusis no texto sobre a Origem da obra de arte: a Terra (que não planeta, já que com o sol, a atmosfera e as nuvens), é ela a doadora dissimulada, fecundidade de todas as substâncias de que ela é a matriz, essa archê que Aristóteles diagnosticara na phusis que Heidegger herdara juntando-lhe o retiro de Heraclito. Com esta, fez-se assim retorno aos pensadores de antes de Sócrates, de antes da definição.
6. Ao descobrir filosoficamente a escrita, Derrida pôde retomar a redução husserliana para aclarar o pensamento linguístico de Saussure – “na língua não há senão diferenças, sem termos positivos” – e legitimar assim de forma cabal a operação de redução das substâncias das diversas ciências, da matéria energia, dos vivos, das sociedades, dos textos, deixando fora destes e dos nomes que eles utilizam as ‘substâncias’ e outras matérias e almas e pensamentos e sentimentos e intenções e consciências e sei lá que mais, e dizendo “não há fora de texto”, numa grande redução que se revela inclusiva do próprio ‘fora’, que o texto retém ‘dentro’. Tudo o que dizemos que há, que existe, é dizendo-o que o dizemos, e podemos sempre dizer mais coisas e mais coisas, inesgotavelmente, porque as línguas são sempre elípticas e nunca dizem tudo, mas tudo podem dizer. Há pois redução: da árvore substancial quando digo uma frase com a palavra ‘árvore’, mas é essa árvore substancial que retenho ao assim dizê-la, como faria uma sua fotografia, e com ela tudo o que dela sei dizer no que ao seu contexto se atém. Por outro lado, isto é igualmente verdade do que penso relativamente a ela, pois que não sei pensar fora duma língua.

As reduções do pensamento bíblico
7. Pode parecer estranha esta invocação, mas desde que a exegese científica do chamado Pentateuco, constituído pelos cinco primeiros livros da Bíblia hebraica, mostrou nos últimos 40 anos que foi o último, o Deuteronómio, que foi escrito em primeiro lugar – o que aliás, embora com outra argumentação, já fora tese de Spinoza no seu Tractatus theologico-politicus – e todos os outros posteriores de um a dois séculos, que me apercebi de que havia que colocar a categoria de escritores chamados Profetas como os autores da Bíblia hebraica, assim como os Filósofos gregos são os autores da filosofia que nos veio, à Europa. Se me entusiasmei, num dos últimos textos deste blogue, com a aproximação que Daniel Sibony fez entre o pensamento da Bíblia hebraica e o de Heidegger, falar no entanto em redução do pensamento bíblico é manifestamente uma abordagem crucialmente diferente dos textos proféticos. O livro do Deuteronómio foi escrito três séculos e meio após a tomada de Jerusalém por David e conta como muitos anos antes desse início da monarquia israelita os seus antepassados teriam recebido numa montanha dum deserto uma aliança do seu Deus, Yahvé, a qual dá a matriz do texto hebraico. No coração dessa aliança, como se faziam entre soberanos após uma guerra nas condições de vassalagem que o vencedor impunha ao vencido com a obrigação de o defender de outras nações, estava o Decálogo, os Dez Mandamentos de Moisés. Porquê falar de redução aqui? O que é que é reduzido nesta ficção dum povo nos seus antepassados no deserto? São justamente os usos e costumes da sociedade monárquica que permitem a reprodução da sociedade, as suas bases agrícolas e de rebanhos, a saúde das gentes e dos gados (e até as vitórias eventuais nas guerras). Reduzido todo o saber futuro na “terra prometida” “em que correrão o leite e o mel”, o que é que a ficção da aliança retém? Uma relação ética  política concretizada nos mandamentos entre as casas israelitas e o seu Deus como soberano. Por exemplo, no episódio das “dez pragas”, Yahvé opõe-se ao Faraó e não aos Deuses egípcios, assim como os textos que contam o surgimento da monarquia com Saúl e David e a continuação até à grande derrota diante dos Caldeus de Babilónia insistem na obediência dos reis ao soberano da aliança. O essencial do pensamento profético diz-se nas listas de bênçãos e maldições de Deuteronómio 28 e Levítico 26: a casa do justo diante de Yahvé será abençoada nas suas colheitas e rebanhos, será honrada ao longo das gerações, Israel será forte e sábio diante das outras nações que virão aprender com eles a conduzirem-se segundo a justiça.
8. Manifestamente este pensamento falhou, como teria falhado o da República de Platão se posto em prática: nenhuma sociedade foi em sítio algum que saibamos duravelmente uma sociedade de justos. O livro de Job é a constatação em forma de drama desse falhanço num caso individual, mas também a história de Israel, que se tinha constituído num período de vazio das grandes potências imperiais desde 1177 a C, começou a partir de 850 a ser feita de derrotas: sucessivamente face a Assírios, Caldeus, Persas, Gregos e por fim Romanos, até à revolta militar contra Roma, em 66, que levou à derrota final em 70 e à expulsão dos Judeus do pais, pondo termo à história que o Deuteronómio ficcionara. Foi neste contexto que os judeus que continuavam a acreditar no Deus da sua aliança encontraram como única saída a que se manifesta na literatura apocalíptica dos dois últimos séculos antes da nossa era: na sua perspectiva, a reactivação da redução da aliança do deserto indica-se no motivo escatológico do Reino de Deus, só o Soberano pode salvar Israel dos Romanos (como é claramente enunciado na primeira parte dum hino em Lucas 1, 58-65), essa soberania manifestar-se-á radicalmente no acabamento da história da Criação. João Baptista e o seu discípulo Jesus de Nazaré perceberam o que a história posterior comprovou, que o império romano era para durar alguns séculos e só este final seria adequado à aliança. Sendo a concepção da transcendência de Deus já muito apurada na época, esta escatologia implicará a actuação dum ‘ungido’ (como eram os reis outrora) ou ‘messias’, no Novo Testamento Jesus ressuscitado, a quem Paulo de Tarso chama ‘Senhor, ao descrever na sua primeira carta aos Tessalonicenses ” (cap. 4, vers. 16-7) uma ascensão colectiva dos justos para os Céus: “[...] os mortos que estão no Messias [Jesus ressuscitado] ressuscitarão em primeiro lugar, depois do que, nós os vivos que ainda cá estaremos, seremos reunidos a eles e transportados em nuvens para encontrar o Senhor nos ares. Assim estaremos sempre com o Senhor”. Esta perspectiva escatológica é predominante nas cartas de Paulo e nos evangelhos de Marcos e de Mateus; ela tem elementos recebidos de Zaratustra (os Judeus foram vassalos relativamente felizes dos Persas durante dois séculos: foi nessa época que a Bíblia hebraica foi ultimada como Lei e um segundo Templo construído para substituir o de Salomão, destruídos por Babilónia): o motivo dum Juízo final de descriminação ética com a ressurreição dos justos mortos, no caso de Abraão e toda a sua descendência que não tenha prevaricado (assassinatos, roubos, adultérios, difamações, os principais delitos do Decálogo).
9. Esta noção, tanto de João Baptista como de Jesus e de Paulo, de que o final dos tempos estaria iminente, implica uma reelaboração da redução do deserto (onde o primeiro viveu e o segundo fez uma estadia espiritual de 40 dias) que se transforma em temporal, uma redução escatológica (sobre a qual, sem o termo, Agamben escreveu um belo livro, Le temps qui reste). Pode-se dizer que se trata de reduzir nos usos e costumes das casas dos crentes os poderes sociais – da riqueza, do domínio politico, da ortodoxia religiosa – como se expressa nas três dicotomias do Reino de Deus dos evangelhos sinópticos: Deus ou o Dinheiro, Deus ou César, Deus dos vivos ou Deus dos mortos (o poder do Templo que condenou Jesus à morte). Para reter nesses mesmos usos e costumes a sua fruição frugal e solidária, partilhando o pão e o vinho entre eles e cuidando especialmente dos pobres (em continuidade com a Bíblia hebraica que colocara no Deuteronómio 15,4 como imperativo “que não haja pobres no meio de ti” e no Levítico 18,19 “amarás o teu vizinho como a ti mesmo”). O gesto eucarístico de partilha do pão e do vinho é o ritual que dá a ver este mandamento  crucial do amor do próximo como a si mesmo, o rito da edificação do “corpo (social) do Messias”, do corpo dos justos em ascensão segundo Paulo, como outra figura igualmente colectiva na sua origem, a do Filho do homem, manifesta em Mateus 25,31-40, em que serão acolhidos os justos que se preocuparam com a fome, sede, roupa, tecto, saúde e falta de liberdade dos mais carentes. Seja dito de passagem que esta perspectiva de partilha dos seus haveres na iminência escatológica explica o chamado “comunismo primitivo” dos crentes (Actos dos Apóstolos, cap. 5), que venderam as suas propriedades e puseram os frutos em comum, como se já não fosse preciso produzir e se viram anos mais tarde na pobreza, precisando do auxílio  de outras comunidades gregas: eis um aspecto concreto da falência deste pensamento ético escatológico, como já tinham sido a morte politica de João Baptista e a de Jesus, esta no ano 30. Este fracasso foi recoberto pela fé na ressurreição de Jesus, tornado Messias escatológico que voltaria em breve, esperança essa que se foi desvanecendo ao longo dos anos 60, a geração dos que conheceram Jesus morrendo, entre os quais Pedro, Tiago, João e Paulo martirizados. Eis senão quando a notícia da derrota do ano 70 e da destruição do Templo e do fim de Israel na Palestina reavivou a esperança de Marcos, redactor do primeiro evangelho que cita uma palavra atribuída a Jesus segunda a qual alguns dos que estavam com ele haveriam de ver esse Dia final e acrescenta: “leitor, compreende!” (13,14), é agora ou nunca. Foi nunca.
10. A falência desta profecia foi o segundo grande fracasso nas origens do cristianismo, ela que viera para cobrir o primeiro, pretendendo que o assassinato do Messias tinha feito parte do plano de Deus (evangelho de Lucas), mas foi fatal para o recrutamento de crentes entre os Judeus: o cristianismo sobreviveu virando grego e platónico mormente com Orígenes (185-254), fazendo sua a redução do corpo e do temporal. O que há de estranho na concepção escatológica duma ascensão colectiva entende-se num paradigma que coloca a questão da fome e da refeição no centro do pensamento de origem hebraica e não opõe corpo e alma, como descaradamente faz o platonismo, que reduziu o corpo e a sexualidade e corrompeu a ética evangélica (a chamada ‘moral judaico-cristã é de facto greco-cristã!). O título grego de Filho de Deus que Paulo inventou para os seus crentes de origem pagã, dito “definido” a partir da ressurreição (carta aos Romanos 1,4), com o verbo horizô que Platão usa para as definições da Formas ideais celestes, permitiu transladar o título celeste judaico, Messias escatológico, para este Filho de Deus, título celeste platónico; ora, isto veio a ter como consequência a elaboração teológica, quer da chamada ‘incarnação’ desse Filho (eternamente) de Deus, quer da Trindade deles com o Espírito, e os dogmas do século IV, o que teve como resultado o apagamento da própria ressurreição de Jesus, confinada à liturgia e sua origem judaica. Os dogmas gregos já fazem parte da história romana do cristianismo como religião do império e em seguida da medievalidade: as reduções bíblicas desapareceram com a ‘catolicidade’ platónica. Mas a redução escatológica, com os seus convites radicais nos textos evangélicos, suscitaram ao longo da longa história cristã movimentos de conversão e vocação em que as reduções espirituais retomaram as exclusões para manterem, pelo menos por uma ou duas gerações, a fruição frugal do amor do próximo e a alegria livre que ela traz.

As reduções do pensamento chinês
11. Passados alguns anos sobre a época da minha leitura de alguma bibliografia sobre a escrita ideográfica, os wen chineses, que desaguou num texto intitulado “Como pensam os Chineses sem alfabeto?” (num dos meus blogues com este título), só posso recorrer a esse texto, mas já sem a memória viva das leituras que deu a sua escrita. Fraco apoio pois, falta-me obviamente a familiaridade que tenho com os outros espaços do pensamento ocidental, mais uns do que outros. A coisa mais estranha é que, por um lado, como qualquer texto, o wen reduz o contexto da ‘coisa’ que ele refere para o enfiar numa sequência de outros wen em frase e discurso escrito, retendo essa ‘coisa’, como quem fizesse uma banda desenhada de ‘coisas’ em que, todavia, cada qual não aparece no seu ‘aspecto’ (eidos) mas num desenho convencional, à maneira das notações matemáticas, mas por outro lado reduz também as línguas orais que permitem convencionar os wen, ainda aqui de maneira parecida com a matemática (como esta, a escrita chinesa é legível por falantes de várias línguas que não se entendem entre si a falar). Também como as contas e as equações, a ideografia reenvia à vista e não ao ouvido, não dá para ser lida em voz alta de forma interessantemente inteligível (se não se tiver a escrita diante dos olhos). Em vez do tiedro do signo alfabético, significante / sentido / coisa referida, o wen só conhece o par significante / coisa, paradoxo face à definição que justamente privilegia o ‘sentido’ que define como imutável, intemporal. Mas é uma certa intemporalidade que ele consegue assim na ordenação da sua escrita, como os números, com uma grande diferença: face a estes, a quem bastam dez algarismos e em que as respectivas posições contam, a escrita chinesa multiplica os wen até aos milhares.
12. Onde a matemática consegue calcular, fazer contas e equações, e a filosofia que define consegue construir argumentos intemporais e incircunstanciais, o que é que consegue a escrita chinesa que alinha os seus wen? Consegue pensar “o curso das coisas”, diz o filósofo francês François Jullien em que me baseei, reter os seus processos temporais e a respectiva regulação. O exemplo claro é, não como pensa um académico, como no Ocidente, mas como pensa um camponês, cujas evidências se fazem entre o Céu em cima e a Terra em baixo, ambos se alterando entre dia e noite, o fim de cada um sendo o princípio do outro (que não são pois opostos), e também ao longo das estações do ano, entre as que vão para o calor e as que vão para o frio, e ainda as sucessões das gerações. Temos assim, para começar um pensamento simultaneamente temporal ou sequencial e repetitivo ou cíclico, nunca idêntico mas mais ou menos regulado. Neste quadro geral se inscrevem os processos agrícolas, entre sementeiras e colheitas, precavendo-se os cuidados a ter segundo os tempos e as suas oscilações. Em vez de se ‘definir’ arroz, conhece-se e cuida-se – retém-se – o seu processo temporal. Aprende-se fazendo, com a repetição das experiências, reduziram-se as línguas enquanto fluxos de interesses particulares, sabendo-se, presumo, que o que se vai assim ganhando como digno de sabedoria é um mundo suficientemente vasto para ocupar uma vida dedicada a ela. Pensamento fortemente conservador, que se liga ao extraordinário fenómeno histórico que é o império chinês que durou mais de vinte séculos com uma casta dirigente de mandarins espalhados por todo o império, cuja sabedoria justamente se fazia através do estudo dos textos e das controvérsias da sua tradição, mas que também inovou: as descobertas que, segundo Francis Bacon, filósofo inglês do início do século XVII, foram decisivas para a modernidade que estava despontando, a bússola, o papel, a impressão, a pólvora, foram inventos deles (mas que não souberam dar-lhe todavia o proveito que lhes deram os Europeus).

As reduções dalguns pensamentos científicos
13. As reduções científicas são feitas pelos respectivos laboratórios e têm que ser buscadas na análise do que estes excluem da circulação normal dos seus fenómenos, consoante o tipo de ciência, obviamente. Comecemos pela área que conheço melhor, pois foi objecto da minha tese de doutoramento[1], a da Linguística. Na linguística estrutural, o laboratório – que reduz todos os laboratórios de outras ciências que possam ter a ver com a linguagem ou com os sons: Acústica, Fisiologia da audição e fonação, Neurologia e Psicologias – consiste na operação de comutação aos dois níveis duma fala, o da voz e o do discurso (dupla articulação da linguagem). Em qualquer deles, numa palavra no primeiro e numa frase no segundo, segmenta-se de forma a obter unidades que possam comutar entre si e nessa comutação produzir efeitos de sentido. Entre ‘casa’ e ‘cara’, a comutação ‘s/r’, por exemplo, dá duas palavras diferentes; em ‘chegou a minha cara amiga’ e ‘a vida está cada vez mais cara’, também as comutações de ‘cara’, por ‘querida’ num caso e ‘dispendiosa’ noutro, mostram que se trata de duas palavras diferentes (embora a primeira frase se preste à mutação metafórica ou irónica de ‘dispendiosa’). O que se reduz neste laboratório é o sentido das palavras nas frases analisadas, mantendo-se todavia a exigência, ao fazerem-se as mutações, de haver sentido. E o que é que se retém? É justamente a língua como objecto da ciência linguística (do suíço Ferdinand de Saussure), de que os trabalhos do russo Nicolai Troubetzkoy em Fonologia (Círculo linguístico de Praga), do dinamarquês Louis Hjelmslev em morfologia e sintaxe e do francês Maurice Gross em semântica e sintaxe são descobertas científicas das mais fabulosas e ignoradas do século XX[2].
14. Mas a Linguística é apenas uma parte do que se chamava a Filologia como disciplina dos textos, mormente os antigos a restituir em suas edições criticas, já que a língua que ela restitui não ultrapassa os limites da frase e deixa nomeadamente um campo aberto aos sentidos semânticos de ordem textual, aquilo a que Claude Lévi-Strauss (as suas quatro Mythologiques) e Roland Barthes (S/Z) chamaram códigos: são as estruturas semânticas internas dum dado texto e do corpus a que ele pertence. É a uma semiótica de textos singulares, tal como Barthes a inventou e praticou em mais dois ou três textos além da novela Sarrasine de Balzac, que me parece poder atribuir-se uma possível, embora muito difícil, cientificidade. A dificuldade de discernir o gesto exclusivo do laboratório consiste em que não basta reter que há sentido como na comutação linguística, já que os códigos descobrem-se enquanto estruturas desse sentido nesse texto, o que torna mais moroso o trabalho de análise, ainda quando o conhecimento do corpus dê os mesmos códigos de tipo ‘paramétrico’ nos vários textos: é que são os códigos de tipo sequencial que justificam o texto singular que se lê, é na análise deles que se descobrem os segredos do texto, as contradições que o trabalham, como, aluno modesto de Barthes, pude constatar na leitura do evangelho de Marcos há mais de 40 anos mas também na da Poética de Aristóteles e no Sobre a Verdade e a Mentira de Nietzsche. O problema é pois que o laboratório exige uma competência de leitura dos textos na respectiva época que, sendo longínqua, se pode caracterizar pela pertença dos dicionários respectivos ao laboratório. Ora, estes dicionários supõem a leitura dos textos da época, incluindo pois o que está a ser lido, há uma circularidade hermenêutica, em sentido heideggeriano, que é incontornável. Foi ela, por exemplo, que ofereceu uma grande dificuldade à decifração dos hieróglifos egípcios até à descoberta da roseta de Champollion: é preciso estar já dentro dos códigos do texto para dar por eles. Sucedendo embora que haja por vezes oscilações, ou mesmo divergências entre dicionários, manter que eles fazem parte do laboratório semiótico como estou propondo pela primeira vez permite atenuar fortemente o inevitável ‘subjectivo’ da leitura. Mas a minha experiência, limitada é claro, permite encontrar uma outra forma de atenuar a singularidade: ela tem a ver com a lógica restituída do texto quando se consegue enfim algum acabamento à leitura do texto e se exibe uma compreensão inédita da estrutura desse texto que possa eventualmente esclarecer aspectos da sua história. Foi o que sucedeu com a minha leitura de Marcos, embora haja que reconhecer que 40 anos mais tarde não parece que se tenham tirado consequências ‘científicas’ da minha descoberta barthesiana (que entusiasmou o próprio Barthes!)[3]. O que se reduz então nesta semiótica do texto singular, forte? O nomenclaturismo corrente das leituras, que relacionam o que se está lendo, frase a frase ou sequência a sequência, com uma ‘realidade representada’ que o leitor ficciona, imagina: pelo contrário, só se descobrem os códigos por um lento trabalho de reenvio de cada passagem lida às outras passagens em que haja elementos equivalentes semanticamente, é o texto que se decifra a si mesmo e nos dá após a tal ‘realidade’ tal qual ele a conta, que é justamente o que a redução retém.
15. A redução operada pelo laboratório de Física (e de Química) não precisa de ser detalhada, já tratei dela noutros textos deste blogue. O laboratório é composto de instrumentos de medição, de Geo-metria em sentido literal e em sentido matemático, de equações sobre dimensões correspondentes às medidas feitas, com os quais opera, de forma geral, sobre movimentos entre dois tempos. Fazendo-o, reduz todo o contexto exterior ao laboratório, impedindo o acesso a todos os que lhe são ‘estranhos’, que ainda que aí entrem, não compreendem o que lá se passa, embora se possam divertir com o que vêem. Mas a operação de mensuração de tal e tal dimensão do movimento (espaço, tempo, temperatura, peso, intensidade ou voltagem eléctricas, etc) também reduz a substância ou matéria da ‘coisa’ singular sobre a qual a experiência é feita, para reter com as repetições das experiências e os respectivos cálculos físicos (ou químicos), regras ou leis desses movimentos medidos segundo as respectivas dimensões. Mesmo a teoria física (ou química) da linguagem dessas leis, com a sua relação à tradição filosófica, saibam-no os físicos ou não, sendo embora necessária para a instituição do laboratório e das experiências e para a compreensão dos cálculos e das leis, mesmo ela é parcialmente reduzida, se dizer se pode, tendo em atenção que nunca ela é de consenso acabado entre os cientistas, o que não é verdade dos resultados experimentais, ainda que os instrumentos se aperfeiçoem, como aconteceu fortemente durante o século que passou. O que é com efeito assim retido são os resultados e equações que permitiram gerar técnicas inéditas com efeitos no contexto reduzido (alguns desses efeitos sendo de poluição, como é bom não esquecer).
16. No que concerne à Biologia, a questão mais delicada consiste em saber como articular a redução bioquímica com as disciplinas tradicionais da Anatomia e da Fisiologia, estas duas tendo sido sobretudo investigadas em cadáveres e hoje conhecendo aparelhagem sofisticada de visão detalhada dos diversos órgãos e tecidos, visão adequada a estudar movimentos deles. Não sei responder à questão, por falta de competência, por certo, mas também pela dúvida em saber se se trata de dois tipos de laboratórios ou de um só mais complexo do que um laboratório de tipo químico. Que adequação científica, teórica, haverá entre experimentações com as suas equações químicas e representações de moléculas, por um lado, e visões ecográficas ou equivalentes, susceptíveis de ‘descrições’ fenomenológicas, como de desenhos, por outro? Aparentemente, trata-se de duas metodologias irredutíveis. E aí estaria a raiz do que me parece, dos variados livros de biologia molecular e neurologia que tenho lido, ser uma espécie de divórcio entre as duas maneiras de se estudar biologia: complementares, dir-se-á, mas que não me parecem completar-se, antes uma faltar às conclusões bioquímicas, isto é, em dados numéricos, da outra. Provavelmente, como faz um/a médico/a que disponha dos resultados duma análise bioquímica e duma ecografia ou duma radiografia, por exemplo, esta servirá de ‘contexto’ em que se lêem os resultados, um pouco como os tempos duma corrida ilustram o vídeo da chegada dos atletas à meta. Ora bem, a questão é a de saber que retenção corresponde à redução bioquímica? O que se deve reter em termos de conhecimento científico será a globalidade dum animal vivo incluindo os seus comportamentos principais no seu meio ecológico; o que é que a Biologia actual retém? As leituras que fiz confirmam que a biologia molecular desencadeou uma espécie de ‘salto’ do nível celular descoberto com grande espanto e entusiasmo para o organismo e suas propriedades, saltando sobre a maneira como anatomia e fisiologia fazem o seu papel entre esses dois extremos. Como ligar cientificamente o conhecimento que se tem da estrutura das células e do seu metabolismo incessante com aquilo que o animal é e com aquilo que ele tem que fazer para que tal metabolismo seja alimentado por moléculas (aminoácidos) vindas com o sangue? Como estabelecer cientificamente o que nunca li em nenhum dos variados livros em que aprendi tudo o que sei de biologia e neurologia e dos quais deduzi que a anatomia do animal é constituída de modo a garantir essa alimentação celular, como os biólogos sabem sem saber. É aliás o que justifica a imensa diversidade das espécies!

As reduções do pensamento das ciências das sociedades
17. Também em Antropologia e de forma geral nas ciências das sociedades há uma dificuldade em estabelecer qual a redução que elas operam, dificuldade essa que é de ordem claramente filosófica: o estabelecimento do pensamento europeu sobre as sociedades fez-se em antagonismo com as estruturas monárquicas vindas do feudalismo e com a preponderância nelas das instituições religiosas, em antagonismo pois com a filosofia politica de Aristóteles então dominante nas universidades, visando a casa e a cidade, ou seja as duas principais unidades sociais das sociedades tradicionais. A utilização que nessa época de transição se fez da dupla análise / síntese em vários domínios consistiu em dividir o que há que analisar até aos seus elementos últimos e em seguida subir sintetizando até aos compostos donde se partira com as novas regras que a análise suscitara. Até ao ‘átomo’ (não divisível, em grego) em física, excluindo as ‘forças’ (‘dinâmica’) para caracterizar os móveis como inertes (excluindo os vivos); em lógica até ao signo, último termo com sentido, permitindo a ‘ideia’; e na filosofia social dividindo até ao ‘indivíduo’ (não divisível, agora em latim, como aliás ‘insecto’ em zoologia), e em seguida sintetizando no ‘contrato social’ como a relação básica de que os indivíduos têm a iniciativa. Ora, tal como as línguas também são vistas como ‘convencionais’, o que supõe indivíduos a decidirem sobre as palavras antes delas, o que se pressupõe assim é uma exterioridade prévia do indivíduo em relação à sociedade: vindo da ‘natureza’, o “bom selvagem”, ‘ele’ constitui-a. Reduziram-se assim os antepassados! (e também as crianças que deles aprendem). O problema metodológico essencial das ciências sociais é considerarem que as sociedades são compostas de indivíduos adultos, é não terem em conta que estes nascem nus e sem saber e que terão que aprender os usos sociais que já lá estão, recebidos dos antepassados, entre os quais são predominantes as próprias unidades sociais de habitação, como lugares de repartição social dos indivíduos, de residência e/ou de trabalho. Também elas e os respectivos usos são reduzidos de antemão, como se as sociedades fossem ‘multidões de populações’. Ora, são justamente os indivíduos com seus nomes próprios que têm que ser reduzidos para se reter a composição das unidades sociais, quer internamente – o paradigma dos seus usos – quer na inter-relação entre elas, a dimensão politica e cultural do conjunto, cidades em suas regiões e países.
18. Por outro lado, esta caracterização social do indivíduo reduz indevidamente o seu carácter biológico, seguindo implicitamente a oposição filosófica europeia entre natureza e cultura ou social: só esta dimensão é retida, os indivíduos acabam por ser os ‘sujeitos’ da filosofia europeia, herança das ‘almas’ de antanho. Fazer uma critica fenomenológica desta redução / retenção implica que para a substituir se tenha em conta a diferença entre estas ciências e as outras focadas anteriormente, sobre entes (mormente as da vida) ou sobre estruturas (sociais) com carácter de imanência (as linguagens[4]) no que à análise científica diz respeito (a operação de comutação). Pelo contrário, desde a Antropologia e mais ainda na História e na Sociologia (são as três grandes ciências globais das sociedades, embora estas duas tenham grande dificuldade em ultrapassar o carácter sectorial, limitado a certas estruturas), que uma ‘sociedade’ é uma grande estrutura horizontal que envolve muitos entes com dinâmicas específicas que demandam vários tipos de estruturas sociais mais ou menos complexas articuladas entre si: são as mudanças destas estruturas sociais e consequentemente da grande estrutura ‘sociedade’ que resulta dessa articulação que são o objecto das ciências das sociedades, que as comparam entre elas, o que têm em comum e as suas diferenças, maiores ou menores. Dito de outra maneira, as ciências das sociedades envolvem os resultados das outras ciências acima evocadas. O que é que todas as sociedades têm em comum, desde as tribos selvagens (isto é, que estão sob o domínio da lei da selva que rege o mundo ecológico) às sociedades históricas de agricultura dominante e às recentes sociedades industrializadas? Aquilo que as respectivas ciências tendem a reduzir: que se trata de populações de mamíferos, que têm que se alimentar todos os dias, que se reproduzem sexualmente, que estas duas dimensões biológicas tornam rivais e facilmente agressivos, que têm que repousar todas as noites e que serem protegidos reciprocamente. Ora bem, acontece que a única justificação da formação de uma sociedade em relação à condição humana na selva é a de melhorar a solução destas demandas mamíferas. É o que se pode dizer através do motivo gramatológico de suplemento: as estruturas de habitação prolongam as estruturas etológicas das sociedades de primatas e de outros mamíferos mais desenvolvidos que também já suprem as condições biológicas dos seus indivíduos. Reduzir a dimensão biológica dos humanos, permitiu reter fenómenos sem dúvida interessantes, como o dom, o potlach, os mitos, mas deixou escondido o que Lévi-Strauss restituiu esplendidamente: que o interdito do incesto é correlativo da exogamia e que este binómio dá conta duma sociedade como aliança de unidades sociais que trocam as suas filhas e irmãs de maneira tal que em cada unidade social há sempre alguém que vem de fora e que é esse alguém a mamífera que procria. Não se trata de um argumento de ordem biológica, Lévi-Strauss teve o cuidado de o mostrar (Estruturas elementares do parentesco), mas de um argumento que retém nas genealogias tribais o lugar da reprodução sexual no coração do laço social: reduzidos os indivíduos retêm-se apenas os seus lugares genealógicos. Outra demonstração equiva­lente de Lévi-Strauss foi a sua análise dos mitos ameríndios, como a lógica dos seus códigos era a lógica das qualidades sensíveis dos usos das respectivas tribos, em que a culinária predomina largamente. Freud e Norbert Elias são outros exemplos de retenção da consideração da sexualidade e da alimentação nas maneiras civilizacionais europeias (e, no primeiro caso, nos seus mitos). Se se tem em conta a importância dos costumes gastronómicos a par das diferenças de línguas nas relações entre indígenas duma dada tribo, ou casta ou classe social, percebe-se que a reacção primária em relação a quem não come e fala da mesma maneira, a quem é estranho ou estrangeiro, seja a de hostilidade, segundo uma lei da guerra que é herança da lei da selva devida à evolução biológica.
19. Citando “As ciências das sociedades numa perspectiva fenomenológica” (neste blogue), eis a definição de sociedade: ela habita uma dada terra ecológica que a alimenta, repartindo-se em unidades locais com seus paradigmas de usos e costumes e defendendo-se de estranhos: cada unidade local enlaça os seus useiros e por sua vez é enlaçada com as outras pela tribo por via do sistema de parentesco, duplo laço social. Ter em conta a predominância da lógica dos usos sociais (retidos com redução dos seus useiros, que aliás fazem parte desses usos) permite perceber como essa lógica comanda as modificações históricas, nomeadamente os usos de tipo técnico (agricultura e gado, especialização e divisão do trabalho nas cidades, escrita), todos aqueles cuja invenção deu origem a novos tipos de unidades sociais: casa (unidade de parentesco e economia) / arsenal de navios, manufactura, fábrica, banco, loja, etc, e família (separada da actividade económica) / escola, sinagoga, igreja, universidade / côrte real, administração de Estado, forças armadas, e por aí fora. Podem-se distinguir dois tipos de temporalidades nas sociedades: as de rotina, incluindo festas e celebrações para escapar à rotina, e os acontecimentos, de que as guerras são o exemplo clássico, quase rotineiro, as epidemias, as descobertas marítimas, todas as invenções que abriram paradigmas novos, sei lá. É tendência das ciências para privilegiar os acontecimentos, como foi óbvio até ao século passado, mas creio que a maneira de os caracterizar é correlativa da transformação de rotinas que ele opera e os seus limites: é acontecimento o que altera rotinas, isto é, paradigmas de usos. Em história, o que pode ser descobertas interessantes são as correlações que se podem estabelecer entre séries de mudanças, como o caso célebre de Max Weber entre a “ética calvinista” e o “espírito do capitalismo”: o que ele reduziu da ‘realidade concreta’ nas duas séries permitiu reter a relação entre uma motivação de tipo religioso e uma motivação económica nos mesmos sujeitos. Pelo contrário, não ter em conta esta predominância da lógica dos usos sociais terá como efeito nefasto o enclausuramento dos paradigmas das diversas disciplinas relativas a estruturas sociais e a dificuldade de cruzar transversalidades entre elas (mas é apenas um supor, não sei que chegue para sustentar esta hipótese).
20. Por exemplo, a invenção da agricultura e a correlativa invenção das cidades como especialização e divisão do trabalho teve como efeito que os citadinos ficaram dispensados de trabalhar directamente no que diz respeito à sua alimentação, mas também ficaram à mercê de emprego ou de fome, já que fora das casas autárcicas que punham a alimentação no coração da sua economia. As metrópoles da industrialização vieram reforçar esta vulnerabilidade social tremenda, a população agrícola reduzida a uma percentagem mínima; além da fome e alojamento (protecção), a indigência viu acrescer os problemas de saúde. Queria invocar três fontes diferentes para pensar esta questão. Uma delas é o pensamento profético do Deuteronómio, que propunha “que não haja pobre no meio de vós” (15, 4); entre os dez mandamentos do seu Decálogo, quatro – não matar, não roubar, não violar, não difamar – são esteios de qualquer moral social, nenhuma sociedade os pode ignorar e foi o que a Carta dos direitos humanos de cada cidadão veio detalhar e melhorar para a contemporaneidade; a terceira consiste em tanto a filosofia politica de Platão como a de Aristóteles proporem como ideal da cidade a felicidade. Será possível deduzir destas três fontes ideais uma consideração científica? Seria retomar esta noção dos grandes pensadores gregos de que todos somos os descendentes intelectuais, a de pensar a felicidade duma cidade ou região como questão de saúde social. Se as ciências das sociedades enquanto globalidade, Antropologia, História e Sociologia, souberem provar que todas as sociedades que estudaram têm em comum as suas populações de mamíferos terem que se alimentar todos os dias, que repousar todas as noites e que serem protegidos reciprocamente, além de se reproduzirem sexualmente e serem rivais e facilmente agressivos, como acima se aduziu deduzindo da Biologia, então pode-se pensar que seja possível caracterizar cientificamente uma panóplia de indicadores desta condição humana fundamental e ela valer nas análises das diversas ciências sociais, mormente económica e jurídica, para estabelecer, por exemplo, limites políticos e jurídicos ao direito de propriedade herdado dos Romanos, que estes estendiam do uso até ao abuso, como o capital financeiro e multinacional repetem, na sua maneira de empobrecerem as economias locais.
21. O que nos traz à questão do pensamento económico. Se a economia conhece um privilégio entre as ciências sociais, ele não resulta sem mais das questões que trata serem muito importantes, elas não são necessariamente mais importantes do que as questões de outras estruturas sociais, por exemplo as da linguagem, mas do facto de ter uma unidade de troca, a moeda, que exerce uma redução extremamente simples dos diversos factores sociais, alguns muito mais complexos e resistentes à análise. A moeda reduz tudo o que não é ela, mercadorias inclusive, seus proprietários (do lado dos lucros como dos salários), retém apenas as contas sobre estatísticas segundo as quatro operações da tabuada, somar, diminuir e multiplicar, e depois dividir para obter taxas. Sendo a sua força, esta redução simples e aritmética é também a ‘nossa’ fraqueza, porque dá aos seus praticantes e aos que directamente beneficiam dessa redução (o ‘capital’ é a parte valorizada do que é retido, seja quem for o proprietário) as evidências de discursos sobre o todo da sociedade, ocultando que não são senão discursos sobre as suas estruturas de mercado. É por isso que essas evidências só são questionadas quando a outra parte decisiva do mercado que, enquanto ‘força’ (de trabalho) não aparece como tal nas contas da economia (mas sob a rubrica ‘custos sociais’, a diminuir tanto quanto possível), quando essa ‘força’ se manifesta politicamente, sob forma de greve ou de necessária concertação sindical. Julgo que a discussão entre economistas, entre neoliberais e keynesianos, consiste em manter a redução da moeda irredutivelmente (monetarismo) ou ter em conta os efeitos políticos na própria economia, que o motivo de ‘salário’ exibe: ele há-de ser tal que torne, não apenas possível a reprodução biológica de quem trabalha e sem a qual não há economia pura e simplesmente, mas que a torne gratificante, no sentido em que o que se chama dignidade humana faz parte dos direitos inerentes à nossa condição. É porque justamente se trata de ir além da redução monetária e da maneira como capital e investimento são tratados como a chave determinante do pensamento monetarista, que a ciência económica deve compreender como condição sua que o mercado não é senão uma estrutura da sociedade entre muitas outras e que a lógica sociológica global deveria integrar as várias ciências sociais. Mas não é evidente ao fenomenólogo como é que isto se fará: será possível um discurso sociológico global que se sobreponha ao económico e, à maneira da prevalência das constituições, imponha critérios visando estatísticas adequadas à tal saúde social? Tratar-se-ia de uma economia que visasse, como condição democrática da sua cientificidade, a retenção de alguma igualdade social, antes que as especulações financeiras dêem cabo das economias.


[1] Epistemologia do Sentido, entre Filosofia e Poesia, a questão semântica, F. C. Gulbenkian, 1991
[2] A chomskyana ou gerativa não é fenomenologicamente científica, já que ignora a dupla articulação da linguagem; é apenas uma gramática como as houve ao longo da história greco-medieval-europeia, uma técnica de tradução a partir do inglês como língua quase sem morfologia. Não me consta que ela tenha alguma descoberta que se compare. Mas é certo que a linguística estrutural só trabalha numa língua de cada vez, o que, sendo muito mais laborioso, é o preço da cientificidade.[3] Mas sucede provavelmente que os interesses espirituais ou pura e simplesmente religiosos dos exegetas e historiadores destas coisas, ainda quando não crentes, impeçam de aceitar os resultados. É sem dúvida das zonas textuais que mais resiste à cientificidade. Tive em todo o caso a grande consolação de ver consagrado esse trabalho quase postumamente por um grupo de exegetas de língua alemã que me incluiram num texto publicado em 2009 com as 50 melhores exegeses bíblicas (por cristãos). Thomas Staubli (org.), Wer knackt den Code ? Meilensteine der Bibelforschung. 50 Porträts, Patmos, 2009, Dusseldorf [Qui peut déchiffrer le code? Grandes pierres de la recherche biblique. 50 portraits].
[4] Tal como também as músicas e as matemáticas.

quarta-feira, 29 de junho de 2016

Retorno à questão da mente (Damásio)



             1. A novidade, a meus olhos de fenomenólogo com ciências, da proposta de Damásio foi a de aclarar uma questão filosoficamente envenenada, recuperando um termo que fazia parte da oposição ao ‘corpo’ e portanto ao ‘cérebro’. O Livro da Consciência propõe que a ‘mente’ são os neurónios – que são constitutivos do cérebro, não se lhe opõem – mas enquanto só o próprio tem acesso a eles, o que sublinha a interioridade que a ‘mente’ (como a ‘alma’ e o ‘sujeito’) sempre reivindicou; abriu assim uma saída limpa de dualismos aos neurologistas, ao mesmo tempo que os obriga a uma difícil dualidade com as psicologias, que fazem a sua festa científica, melhor ou pior, com os discursos a que o neurologista não tem acesso pelos seus instrumentos de análise (irredutibilidade entre elas, que eu já antecipara antes de Damásio). Mas abrem-se novas questões. Quando se tem uma dor no pé ou noutra parte qualquer do corpo, diz-se ‘tenho uma dor no pé’ porque os axónios dos neurónios da zona, cuja trança forma o que chamamos nervos, assinalam a dor; mas esses neurónios do ‘meu pé’ pertencem à mente? Não dizemos ‘sou uma dor’, o ‘tenho’ marca alguma distância entre o pé e a mente que diz ‘eu’. Continuemos: se houver uma predominância da rede dos neurónios cerebrais sobre esses nervos de axónios para resolver esta primeira dificuldade, se a ‘mente’ for predominantemente essa rede de biliões de neurónios e suas sinapses, estas da ordem de alguns milhares a multiplicar os biliões, a questão é a de como imaginar essa predominância, pensá-la. Se dissermos que a mente ou consciência é esse ‘saber de si’ dos neurónios, o que também vale para a dor do pé, não creio que haja problema de maior: essa rede comporta muitos neurónios ‘esquecidos’ habitualmente e mecanismos de concentração da atenção no sector da rede que seja adequado à situação vivida no ‘aqui e agora’: a este nível, qualquer insecto tem mente e consciência, o que chega para inquietar a oposição metafísica tradicional.
2. Qual é a principal dificuldade? Chegar à questão do ‘eu’. Trata-se dum termo linguístico, que nem todas as línguas têm aliás, que indica aquele que está a dizer a frase em que ‘eu’ se diz, é uma instância de locução (Benveniste, Problèmes de linguistique générale). Esta dificuldade traz uma tentação perigosa: a de excluir os nossos primos primatas e outros mamíferos e aves, as espécies dotadas de um segundo córtex cerebral envolvendo o mais antigo, o dos peixes e répteis, o que dá uma maior complexidade de ‘consciência’ e por via de consequência maior complexidade de estratégias nas lutas da selva; a tentação é de reintroduzir a ‘oposição’ humanos / animais que Aristóteles ligou à existência de linguagem duplamente articulada. Sem sabermos como é que chimpanzés, leões e águias resolvem este problema da sua identidade, podemos pensar que os humanos descobriram na invenção da linguagem uma forma mais elaborada de solução, sendo certo que foi falando que as sociedades humanas criaram os seus mitos e as suas sabedorias além das receitas de culinária e habitação, entre elas a noção da ‘alma’ além do corpo, na acepção ‘imortal’, platónico-cristã, ou de ‘mente’ e ‘consciência’. Sentimos, vemos, tocamos e somos tocados, ouvimos música e dançamos como ‘actividades’ (ou passividades?) da mente sempre oscilante, tudo isso nos move. Mas desde muito pequenos que aprender a falar é aprender a dar palavras a todo esse sentido, visto, tocado, ouvido, dançado: a linguagem envolve e desenvolve a mente neuronal. Foi por isso que fiquei tão entusiasmado com a experiência relatado por Nicolau Ferreira num Público do final de Abril que refiro em “as palavras enchem o cérebro” (neste blogue).
3. No texto sobre a introdução ao problema da economia do signo na fenomenologia de Husserl, intitulado A voz e o fenómeno (p. 88 ed fr), J. Derrida trata da “auto-afectação pura” como “operação da voz”, a qual “opera no médium da universalidade”, de “idealidades que se deve idealiter poder repetir [...] como as mesmas”, e que é pura no sentido em que não há nenhum desvio pela instância de exterioridade, do mundo (como há na escrita, por exemplo, mas também no ver o próprio pé, ver-se ao espelho ou ainda no tocar ou ser tocado), sendo que a dor que se sente permanece empírica, sem ‘universalidade’. Ora, esta universalidade vem da linguagem que se aprende como saberes da sociedade em que se nasce; ao tornar-se operação pura de auto-afectação, quando se ouve dentro de si a falar ou a pensar, algo que se consciencializa como vindo de si em si no espaço-tempo da voz, corrente de sílabas e palavras e frases, isso só é possível porque o sentido dessas palavras em frases e estas em discurso lhes é outorgado pela língua aprendida dos seus, pelas “idealidades” que são as “mesmas” para uns e outros. Nos neurónios em que estes processos se fazem, na mente que são eles a saberem-se, não é possível distinguir senão por abstracção o idêntico e o mesmo, o auto-afectado como idêntico a si e o mesmo social. No texto De la grammatologie, a aplicação da redução fenomenológica aos sons empíricos da fala para não reter senão a “idealidade” que resulta da diferença deles, sons, entre si, é a ‘voz’ que é reduzida, retido contudo o sentido discursivo do que ela, voz, diz. Ou ainda, no texto de Marges intitulado “La différance”, esta é dita a indissociabilidade entre a “economia” (o mesmo da língua, igual para todos) e o seu excesso, “despesa sem reserva, [...] usura irreversível da energia, [...] relação ao totalmente outro” (p. 20, ed fr). Indissociável inconciliável de duas forças, o duplo laço que explicitará mais tarde (Glas e La carte postale) está já aqui a trabalhar desde os primeiros textos gramatológicos. Derrida não ‘ultrapassou’ a fenomenologia, deslocou-a da ‘consciência / objecto’ para o ‘texto’: “não há fora de texto” é já “o olho e o mundo na fala” (la voix et le phénomène, p. 96), e também a mão.
4. Os chimpanzés terão pois uma identidade mental empírica com aprendizagem etológica dos usos da sua pequena sociedade, enquanto que os humanos ganharam na selva uma ‘universalidade tribal’, universalidade essa que se expandirá historicamente com as casas, as cidades, a escrita, o cosmopolitismo. O que implica que da nossa identidade mental faz parte o que se sabe de si e que se aprendeu a dizer, o que se sente em cada situação, os usos praticados no paradigma doméstico e de trabalho, os saberes escolares, livrescos e mediáticos, tudo isto em forma de ‘eu sei que, sinto, amo, creio, penso, duvido, busco, espero’ e por aí fora. As mentes, que não são senão cérebros que sabem de si, são todas diferentes entre elas, em cada unidade social, cada tribo, mas também diferentes com os usos, de sociedade para sociedade, castas, classes, géneros em tudo o que há de ‘tribal’ no meio disto tudo.
5. Mas quando se diz ‘eu’ é numa certa situação, diferente duma outra em que se diz também ‘eu’, ‘eu’ que assim circula segundo as circunstâncias. E igualmente sem que seja dito, o ‘eu’ acompanha uma coisa bastante estranha que, se bem me lembro, já Hume tinha estranhado e daí tirado argumento empirista a que a gramatologia responde: esta corrente de ‘ideias’, como se diz ‘associação de ideias’, que passa constantemente, passa – é tempo – a correr – é correia, não se lhe foge senão por mudança de corrente. Como uma corrente eléctrica, dir-se-ia, de que aprendemos os interruptores, para nos concentrarmos, impedir que corra, fazer parar neste ponto em que se tem que insistir, ponderar, isto é, colocar ‘peso’ contra a corrente, ser responsável, decidir, cortar ou pelo contrário juntar, aliar-se em conversa com adversário ou cúmplice. A corrente conduz-nos e nós procuramos controlá-la, o ‘eu’ não basta, não se basta, oscila, é oscilado. Então quando dormimos e a corrente irrompe em sonho sem ‘eu’ a dizer ‘não!’, a oscilação passa todos os limites, ou por vezes estando acordado ‘perde-se a cabeça’. Foi Freud quem tirou a moral desta história, o narcisismo, as defesas do Ego, as pulsões.
6. “Eu penso, logo existo” faz parte das evidências de quem exista para pensar em qualquer tipo de actividade, mas não é um ‘universal’, apenas um existencial precioso, digamos assim. A grande dificuldade desta questão da ‘mente’ de Damásio interpretada fenomenológica e gramatologicamente é que ela questiona estas nossas evidências mais fortes. É muito difícil distanciarmo-nos delas, é um trabalho de longo fôlego, pede muitos anos. É que estas nossas evidências, como qualquer outra espontaneidade, resultam de aprendizagens, começaram portanto por não existirem e apagaram a que seria a evidência primordial, justamente a da aprender a falar: ninguém se lembra, fora casos clínicos, do que se passou antes dessa aprendizagem.

quinta-feira, 23 de junho de 2016

A lei da verdade



1. A noção de verdade abriu falência no seio do pensamento ocidental. Apercebemo-nos de que as nossas principais verdades, as que foram acreditadas como absolutas, precisaram de ser definidas se filosóficas, proclamadas dogmaticamente as teológicas, discutidas pela comunidade científica as das ciências laboratoriais. Esta nova atenção histórica concluiu que essas verdades, que se queriam universais e eternas, tinham uma história, e que portanto, como tudo o que é histórico, eram relativas às situações que as definiram, as dos filósofos gregos, da igreja cristã triunfante em Roma, dos laboratórios do renascimento europeu. Desta descoberta resultou posteriormente a atitude contrária à dos absolutismos, um relativismo generalizado: ‘não há verdades’. Que se acentua face às ‘verdades’ dos fanatismos que nos surpreendem e por vezes nos aterrorizam, que se manifesta no facto de que hoje os filósofos não ousam reclamar a verdade para os seus argumentos[1], de que os cientistas crêem que as verdades científicas são provisórias, “erros adiados”: a física de Newton já não seria verdadeira após as físicas da ‘relatividade’ (Einstein não gostou do termo, foi-lhe imposto) e quântica (apesar de continuar a sê-lo nas escalas das engenharias correntes).
2. E no entanto, como falar ou escrever prescindindo da verdade do que se diz ou escreve, como estou fazendo? Como ouvir ou ler o que se pensa não ser verdade, como se tudo fosse ficção? Mentira, erro e ficção, em que consistem, se não houver critérios sociais de verdade? Há palavras que estão desaparecendo por um erro ‘massivo’ (tem a ver com ‘massas’, multidões) que substitui esta por ‘maciço’ (compacto, sem ocos), ‘havia’ que desaparece por ‘há’ (que deixa de ser uma forma verbal!) e, pior que todos, a inexistência do que deveria ser a palavra médias, como fazem franceses e espanhóis, em vez do colonialismo americano dos brasileiros que herdou o horrível ‘média’ como plural, e chega a ser dito e escrito ‘mídia’! Erro clamoroso!. Mas se for só eu a bramar contra ele, como pretender que é um erro? Com as regras de derivação das palavras portuguesas do latim, claro, e não latim-americano-português![2]. Essas regras são relativas, porque históricas? Sim, mas são verdadeiras. E não me parece que essa relatividade afecte a sua verdade linguística.
3. A língua como estrutura social é um conjunto de regras impostas inexoravelmente a quem a aprende como condição de sermos entendidos pelos outros da nossa tribo. Lei da verdade: corrigem-nos os erros, castigam-nos as mentiras, inquietam-se com as ficções, as ‘fantasias’. O meu querido mestre R. Barthes deixou-se levar ao erro de dizer que “a língua é fascista”, mas são essas regras que nos dão a liberdade de falar de forma não anárquica: elas compõem o social com o individual de forma extraordinária, sem corte possível entre um e o outro. Mas não se trata apenas de regras intra-linguísticas: quando aprendemos os substantivos e os verbos, aprendemo-los uns como nomes de coisas, plantas, animais e os outros de movimentos ou comportamentos: as palavras trazem consigo o mundo a dizer e a fazer. Também aí há regras, há metáforas e outras maneiras de estender os sentidos de palavras correntes a coisas menos correntes, há lugar para a liberdade do artista, para a transgressão de tal ou tal regra, nos limites em que essa transgressão é subentendida. Só nos entendemos a falar e a escrever, justamente porque as regras da língua que permitem dizer e contar e querer modificar o nosso mundo o fazem sob o alcance da lei da verdade, grande lei da circulação da palavra. Foi com ela que definições, dogmas e verdades científicas foram possíveis, assim como a respectiva discussão critica.
4. Tudo o que dizemos e fazemos (ou escrevemos) é ligado em paradigmas, tanto os dos costumes quotidianos e da sua moral, como os das diversas instituições, científicas, politicas, e por aí fora: as verdades são relativas às regras desses paradigmas (com a grande dificuldade de estes se cruzarem frequentemente). O que faz a relatividade da verdade é trazê-la, da universalidade absoluta, para a localidade temporal do que fazemos, dizemos e contamos em nossos discursos e narrativas, onde a mentira, o erro e a ficção só podem funcionar se se derem como verdadeiros: os dois primeiros até serem descobertos, a última com uma paleta mais ou menos variada de transgressões do realismo (ficção científica, literatura fantástica, etc.).
5. A língua multiplica os matizes do acesso à verdade, à certeza. À questão ‘é verdade que a Maria veio?’, posso saber que sim, ou pensar que talvez, ignorar, crer, duvidar, achar, julgar, imaginar, hesitar, e até ter-me esquecido. O verbo saber é o grande cúmplice linguístico da verdade, a sabedoria que ela pode trazer a uma vida.



[1] Excepto, modéstia à parte, “a fenomenologia reformulada, em verdade” (Web).
[2] Além da luta contra o AO, há que prevenir a catástrofe, a nossa língua a tornar-se um crioulo do inglês.

sexta-feira, 3 de junho de 2016

As palavras enchem o cérebro!



1. No Público de 28 de abril, Nicolau Ferreira apresenta um trabalho publicado na revista Nature que se me afigura notável. Analisando os cérebros de voluntários a ouvirem uma narrativa de 2 horas, vão marcando as zonas dos cérebros que se ‘activam’ para tal e tal palavra, substantivos e verbos, da narrativa e verificam uma razoável correspondência nos vários testes, com algumas diferenças. O exemplo fornecido é o da palavra ‘carro’, verificando-se que há três zonas activadas, a cada uma delas correspondendo o que se pode chamar um ‘campo semântico’ diferente. Mas o que há de mais notável, um desenho mostra-o, é que o cérebro todo se mostra preenchido de palavras, contrariando aparentemente a noção corrente de que a linguagem se joga, com poucas excepções, no hemisfério esquerdo dos humanos. Digamos que este enchimento do cortex com palavras tem que ser articulado com as áreas de Brodmann[1], que não deixam certamente de ter valor, por exemplo que os nervos ópticos entram no cérebro por uma área occipital, na nuca, como os auditivos por outras vizinhas desta. Ora, se bem entendi leituras antigas, o que faz esta cartografia, com um terceiro tipo de áreas recebendo nervos da pele e doutras regiões do corpo (somestesia), é permitir entender a temporalidade do trabalho cerebral, dos grafos de Changeux, que se encaminham para as chamadas áreas comuns a estes três tipos de acesso do mundo ao cérebro (visão, audição e tacto, o gosto e o odor tendo outras vias que vão directamente ao paleo-cortex).
2. Senti-me como alguém a quem operaram cataratas que lhe toldavam a visão. O cérebro aparecia-me como campos separados com funções diferentes especializadas, uma série de gavetas por onde transitariam os fluxos neuronais; tornou-se agora uma grande sala ocupada por palavras que não se encolhem em tal ou tal canto mas se reconhecem em vários espaços, de acordo com o que os linguistas chamam polissemia. Assim, a palavra ‘carro’, consoante a sequência da narrativa escutada, activa-se no campo semântico ‘condução na estrada’ ou no ‘vigilância policial’ ou no ‘destino da viagem’, os dois primeiros pressupondo que os voluntários conduzem habitualmente e o segundo inclusive que são relativamente indisciplinados ao conduzirem. O que significa que, mais do que ‘campos semânticos da língua’ (americana), se tratará de códigos narrativos, à maneira de Lévi-Strauss ou de Barthes, os quais variam justamente com os usos dos voluntários (será o que o investigador J. Gallant chama “diferentes tipos de memória”), o que se pode testar facilmente com pessoas que não tenham carta de condução ou andem raramente de carro, ou então, por exemplo, com narrativas abundando em códigos culinários e voluntários que cozinhem e outros não.
3. Mas que os investigadores ponham a questão em termos de querer saber “como o cérebro associa o som ‘caneca’ ao conceito de um recipiente cilíndrico, mais alto do que baixo, com uma asa e que se enche de líquidos para se beber” – e não é por acaso que N F comece o seu texto por aí, onde espreita a filosofia espontânea dos neurologistas, a que Damásio chamou no título do seu primeiro livro “o erro de Descartes”, que é aqui o dualismo entre pensamento e sons. Ora ‘caneca’ não é um “som” (nem uma ‘grafia’, que é o que a gente lê no jornal), é uma palavra com sentido, polissémico consoante a frase em que joga. Não há nenhuma razão aparente para se pensar que o cérebro tenha uma cartografia de ‘sons’, outra das mesmas palavras em letras e uma terceira de significados, é provável pelo contrário que economize essas ‘três coisas’ numa só: é isso uma palavra que se aprende com o que ela diz, coisa em que se mexe, se vê (ou lê, se são abstractas). ‘Recipiente’, ‘cilíndrico’, ‘asa’, também são palavras no cérebro. É como saber o que é o significado duma palavra num dicionário: este só dá outras palavras, que por sua vez têm a sua entrada no dicionário com outras palavras por significado. O cérebro neste aspecto é como o dicionário, redes que se esclarecem por reenvios entre os seus elementos (os americanos têm uma tradição linguística inadequada, a da gramática gerativa de Chomsky, que justamente se reclama de Descartes e é mau guia num laboratório neurologista). Muito provavelmente, o que se activa no cérebro dos voluntários que escutam são apenas ‘palavras’, sons e sentidos indissociáveis. O que me parece significar que (além das áreas de Brodmann percorridas em sequências temporais das frases do texto que se vão sucedendo) o conjunto do neo-cortex alberga as palavras conhecidas em códigos aprendidos com os respectivos usos quotidianos de cada um (sabe-se o que é ‘caneca’ bebendo cerveja, por exemplo, ‘cilíndrico’ na aula de geometria). Não haverá a ‘língua portuguesa’ no cérebro de todos os nativos portugueses, mas os códigos tribais de cada um nessa mesma língua, que convergem nos mesmos paradigmas culturais. E para esta imensa complexidade e suas variações, maiores ou menores, todo o cérebro funciona, não algumas gavetas apenas: palavras e coisas, saberes e fazeres com palavras por todo o lado, como mostra o desenho do texto. Foi esta iluminação que me comoveu.

O atlas pode ser consultado na página virtual


P. S.
4. A minha primeira intervenção em coisas destas, no Público (14/03/2008), foi contra a noção de “imagens mentais” (já na altura tratava-se de Jack Gallant), dizendo que os neurologistas nos ensinaram que no cérebro só há química e electricidade (é o primeiro texto deste blogue). As palavras que agora detectam são ouvidas não apenas pelos voluntários mas também pelos investigadores que sabem fazer incidir tal palavra com a química eléctrica do cérebro voluntário. A dificuldade que temos em perceber o funcionamento cerebral, a palavra ‘caneca’ e imagens visíveis e palpáveis de canecas de cerveja ou de galões, como é que a palavra, sons com sentidos, se ajusta a tal imagem, releva do tal “erro de Descartes”, separando pensamento de tudo o que é corporal, não apenas as “emoções” a que Damásio se referiu. Os sons chegam aos ouvidos e as imagens aos olhos e desencadeiam um processo neuronal, feito de electricidade química (de iões, não de electrões como a electricidade industrial), através de grafos, circuitos de sinapses já lá, que não repetem os sons e as imagens a que continuam ligados, se dizer se pode, como ‘memória’, como processo desencadeado dali.
5. Há um slogan de marketing que diz que “uma imagem vale mais do que mil palavras”: o erro cartesiano deste slogan é não perceber que não há imagens sem palavras, ainda que mentais, não ditas, como condição de ser imagem de qualquer coisa, sem esta (e são sempre muitas, se for uma pessoa tem o que veste, por exemplo, além das expressões) serão apenas ‘riscos e cores’, como N F julga que ‘caneca’ é um “som”. Quando vemos fotos ou filmes do que chamamos países exóticos, este adjectivo significa que nos faltam palavras para os ‘ver’, não apenas para os comentar, ou se se quiser não sabemos comentar porque não sabemos ver, não nos são familiares, escapam às nossas palavras, aquelas com que vemos e mexemos no nosso mundo.


[1] Como diz J. Gallant, as áreas de Broca e Wernicke do hemisfério esquerdo relevam da “produção da linguagem”, da fala, não da escuta. Ver em Filosofia mais ciências 2 : “Conjugar Broca e Wernicke, como é que é possível falar ?”