sábado, 21 de junho de 2008

Sexo / género : que relação?

Isto foi publicado em
"Sexo e Género: que relação?", in Universidade de Verão, Actas, Em busca duma Pedagogia da Igualdade organizado pela C.I.D.M. e pelo Seminário Universitário de Educación no sexista (SUENS) da Univ. de Palencia (Valladolid), na Faculdade de Psicologia da Univ. de Lisboa, CIDM, 1995, pp.249-265






O surgimento explosivo da questão feminina
O género: um forte dispositivo social
Os quatro polos da questão
A bipolarização do sexo (homem/mulher)
A bipolarização do género (masculino/feminino)
A transformação actual do género





O surgimento explosivo da questão feminina

1. Foram as alterações espectacu­la­res do esta­tuto social das mulheres que fizeram surgir a questão do feminino, quer na ordem prática, quer na ordem teórica, nos últimos 30 a 40 anos.

2. Houve dois grandes tipos de causas para essas alterações. A primeira foi a entrada massiva das mulheres no mercado do trabalho, saindo elas de 'casa', aonde as funções fe­mininas tradicionais foram em grande parte esvaizadas (escolarização obrigatória das crianças; indústrias do 'pronto-a-vestir' e do 'pronto-a-comer', incluindo cantinas; electrodomésti­cos; saúde pública; etc.). Esse mercado de trabalho era fortemente masculinizado, com alguns sectores feminizados (enfermagem, magistério primário, creches, assistência social, etc), e ofereceu sobretudo empregos em certas indústrias (textil, cadeias de montagem de componentes electrónicas, etc.), em lugares admi­nistrativos (dactilógrafas, secretárias, etc.) e no ensino secundário. Os outros sectores resistiram mais à invasão feminina. O salário contribuiu para uma relativa autonomia financeira das mulheres em relação aos maridos e aos pais.

3. O outro factor foi o que se chamou revolução sexual, com a relativização do casamento e a fragilização da família: pílulas e outros meios de contra­cep­ção, permitindo forte autonomia (mormente feminina) da ac­tivi­dade sexual em relação à procriação; aumento do número de di­vórcios, como de casais não casados legalmente e do que se chama 'famílias monoparentais, as mães solteiras e as divorciadas com filhos; movimentos de homosexuais de ambos os sexos; maior protagonismo dos jovens e correlativa contestação da autoridade paterna; maior facilidade de relações sexuais pré- ou extra-conju­gais, etc. Qualquer des­tes factores resultou, por sua vez, do movimento mais largo de transformação da civilização in­dustrial.

4. As mulheres assumem-se assim como indivíduos na praça pública (com salário, profissão, direito a voto, relativa auto­nomia de decisão sobre a sua vida e a sua actividade sexual, etc.), o que até aí era praticamente reservado aos homens.

5. O movimento feminista - minoritário como organi­zação e militantismo, com algumas grandes manifestações públi­cas de massa nos inícios dos anos 70, mas com grande impacto junto das mulheres e dos homens - é o detonador e o porta-voz desta grande alteração do estatuto social das mulheres.

O género: um forte dispositivo social

6. Um provérbio, ainda hoje respeitado em muitas aldeias (exemplo de Pardais, no Alto Alentejo, estudado recentemente por Miguel Vale de Almeida), enuncia assim a tradição ocidental multissecular: "do homem a praça, da mulher a casa". Esta divisão tradicional do trabalho e da reprodução era assegu­rada por um forte dispositivo social de iniciação e de enquadra­mento das práti­cas e tarefas sociais, que 'forçava' os rapazes e os homens a serem mas­culinos e as raparigas e as mulheres a serem femininas, com dife­renciação nos modos de vestir e de se com­por­tar, de sentir e de pensar, com acesso diferente aos recursos ma­teriais e intelectuais da sociedade. É a este dispositivo social ex­tremamente forte que se chama género. Como ele tem uma grande inércia de reprodu­ção (é 'exterior', 'transcendente' às consciências de cada um/a), as alterações do estatuto social fe­minino vieram provocar um embate violento, nomeadamente nas mulheres que vêm ocupar um lugar masculino, pondo-lhes graves problemas de identidade: "quem sou eu, mulher num mundo masculino? como fazer para me fazer respeitar na minha nova autonomia?". Assim se acelerou a transformação do género, para o adaptar à nova situação de civilização.

7. É neste contexto que no campo da teoria irrompeu, a par­tir dos anos 60 mas sobretudo ao longo dos anos 70, os chama­dos Women's Studies (de origem americana), os estudos so­bre as mulheres e sobre o feminino: nas ciências sociais (antropologia, sociologia, história), na psicanálise (com crítica do modelo 'masculino' com que Freud interpretou a estruturação psíquica das mulheres, a célebre 'inveja do pénis'), na filosofia (pioneira francesa: Luce Irigaray), nos estudos linguísticos e lite­rários, mais recentemente também na biologia, mas com forte propensão in­terdisciplinar.

8. A grande tese que foi avançada consistiu justamente na distinção entre o género (feminino/masculino) e o sexo (mulher /homem), beneficiando da distinção (nomeadamente antropoló­gica, mas com uma muito antiga tradição filosófica) entre natu­reza, biologia, por um lado, e cultura, sociedade, psicologia, por outro. Mas o género apresenta-se historicamente, em todas as sociedades conhecidas, de forma não simétrica, como um dis­positivo hierárquico de dominação das mulheres pelos homens.

9. As primeiras formulações assentavam na ideia da per­manência do biológico, do sexo como um invariante, em contraste com a variablidade do género com as sociedades, quer as ditas 'primitivas' estudadas pela antropologia, quer as da longa sucessão histórica ocidental (sociedades grega e romana, cristandade medieval, Europa). Esta constatação adequava-se, sob a forma de uma evidência - quer da teoria, quer da experiência individual, quer da militância feminista -, à alteração acelerada do género na actualidade.

Os quatro polos da questão

10. O jogo entre estes poderá ser assim esquematizado:

MASCULINO --------------->    FEMININO (variável)   (?) (?)

HOMEM --------------->     MULHER (invariante)(?)   (cultural) (?) (natural) (?)

em que (?) assinalam as questões teóricas que interrogaremos e as setas ---> as que são, não apenas a questionar teoricamente, mas também a alterar social e politicamente. Essas setas indicam de facto a dupla ideologia - patriarcal (género) e ma­chista (sexo) - a qual pressupõe:
a) que a relação de sexo ou biológica é invariante, com o destino da mulher marcado pela maternidade (pela natureza);
b) que a relação de género resulta 'naturalmente' da relação de sexo, é pois também invariante.


A bipolarização do sexo (homem/mulher)
11. Analisaremos brevemente quatro pontos.

Do ponto de vista da ontogénese, ou seja da evolução biológica:
1) a) houve alterações substanciais dos primatas aos huma­nos, b) tendo os caracteres sexuais destes mudado nos últimos 100.000 anos;
2) nesta evolução, o sexo sofreu efeitos do género.

Do ponto de vista da morfogénese, ou seja da formação de cada humano:
3) o sexo não é pré-determinado exclusivamente pelos genes;
4) o sexo de cada um/a sofre efeitos também dos seus per­cursos singulares, nomeadamente a nível da economia libidinal, mas não só.

12. 1)
a)
Australopitecus ----> Homem de Neandertal ----> Homem moderno
(1 milhão anos)         (100.000 anos)                      (10.000 anos)
bacia:                        1/3 menor                              1/3 menor
crânio:                      400 cm3                                 1600±600 cm3 (4x)
altura:                       120 cm                                   170± 40 cm (1,5x)
gravidez: 21 meses   13 meses                                9 meses

O aumento do crânio e a diminuição da bacia obrigaram a que o parto passasse a ser de dorsal (primatas) a ventral, com o feto a dever fazer um duplo movimento de rotação e flexão e, en­fim, a uma muito maior prematuridade do nascimento do feto humano, propícia a um maior tempo de socialização do seu psi­quismo. A mulher tem assim um tempo maior de ligação às suas crianças (Peyre, Wiels, Fonton, 1991, pp. 34-37).

13. Outra alteração decisiva, embora já se verifique também com as fêmeas de algumas espécies primatas: não há cio na espé­cie humana, o que implica que os desejos sexuais das mulheres estão desligados dos periodos de fecundação (ovulação), estes nem sequer sendo assinalados exteriormente. Também resulta da gravidez ser por regra de um só bébé, do seu tempo de matura­ção ser muito mais longo e do elevado índice de mortalidade in­fantil (e até das parturientes), que a espécie humana é re­lativamente infértil (P. Tabet, 1985).

14. b) O diagnóstico do sexo de esqueletos humanos do pe­riodo neolítico (Peyre, etc., pp. 38-42) - com grandes diferenças entre populações da mesma época, situadas a cerca de 1000 km de distância: o esqueleto dum homem da Normandia é equiva­lente ao duma mulher da Renânia - é fácil de fazer para os 'extremos' feminino e masculino, mas difícil para o 'continuum' entre ambos, que corresponde a um bom terço da população, o que dá que apenas 70% desta tem "sexo determinável', "cada su­jeito [tendo] uma percentagem relativa de feminidade e de mas­cu­linidade. [...] Convém emitir a hipótese de que o sexo não in­fluen­cia a morfologia dos ossos por um determinismo simples" (idem, p. 40).

15. 2) O 'continuum' dos esqueletos neolíticos, quando com­parado com os Brancos americanos actuais, segundo duas variá­veis da bacia, leva a que todos esses esqueletos seriam 'femininos' segundo uma delas e todos 'masculinos' segundo a outra. Por outro lado, comparando também com os Negros ameri­canos actuais, verifica-se que, quer as mulheres negras, quer as neolíticas, estão mais perto dos homens respectivos do que as brancas dos seus. "Seria assim um facto sócio-cultural [de gé­nero, pois] intervindo na Europa após o Neolítico e dizendo res­peito ex­clusivamente às mulheres que teria modificado um carác­ter bio­lógico" (idem, p. 41). Trata-se aqui de hipó­teses de interpretação científica.

16. 3) São os pares de cromossomas XX que dirigem a for­mação das características sexuais das mulheres (vagina, ovários, etc.) e os pares XY que dirigem as dos homens (pénis, testículos, etc.), nestas características se contando também a maior altura, robustez física, voz mais grossa, da parte dos homens. Ora bem, até às 6 ou 7 semanas do feto, as gónadas sexuais são indiferen­ciadas (só após elas evoluirão para ovários ou testículos, secre­tando estrogénio e progesterona - hormonas femininas - e testos­terona - hormona masculina, respectivamente; mas estas hormo­nas também ac­tuam no cérebro (na sua constituição e no seu funcionamento), podendo, graças à presença de uma enzima, a hormona masculina trans­formar-se na feminina (Vincent, p. 262); numa questão muito complexa, digamos que cada sexo secreta percentagens maiores das respectivas hormonas, tratando-se as­sim de dominâncias tendenciais. À questão de saber o que é que determina essa evolução, as autoras, após evocarem algumas tentativas sem su­cesso, dizem que essa evolução é "verosimilmente resultado duma sucessão de numerosos aconte­cimentos agindo de maneira coor­denada e regulando-se mutua­mente" (Peyre, etc., p. 33). Haverá pois aleatório nesta evolução. Ora, pelo menos 6/1000 indivíduos (o que daria 60 mil na popu­lação portuguesa, por exemplo) não são XX nem XY, dos quais 50 num milhão são homens normais com XX e 30 num milhão hema­froditas com XX, havendo ainda, sem indicação de números, mu­lheres XY (idem, pp. 30-31).

17. O que significa que o sexo de cada um/a não é pré­determinado biologicamente exclusivamente pelos genes, mas depende também do jogo hormonal. Este jogo implica uma parte de aleatório no percurso de cada um, nomeadamente as secreções do hipotálamo (paleo-cor­tex) estando ligadas ao que sucede no neo-cortex, o qual, por sua vez, joga intrinsecamente com os factores ambientais ou sócio-culturais (e portanto com o género).

18. 4) É esta articulação entre a determinação genética e os efeitos, parcialmente aleatórios e dependentes, via hormonas, do género e dos percursos singulares de cada um no seio da família, etc., que permite perceber que nós somos todos, biológica e psico­logicamente, diferentes uns dos outros, embora com um pro­grama genético que é quase totalmente igual em todos os huma­nos (uma parte muito pequena dizendo respeito a diferenças bio-etnológicas, tipo raça e outras). O que implica também que a nossa 'biologia' se altere durante o crescimento, com os modos de vida, com acontecimentos traumáticos de vária índole, etc. Por exemplo: toda a gente que frequentou o liceu, adquiriu a capaci­dade de estar durante horas a fio sentada a uma mesa a ler, es­crever, fazer cálculos ou desenhos, que foi regulada pela disci­plina escolar (jogando sobre hormonas e criando hábitos), capaci­dade essa que a esmagadora maioria da humanidade passada nunca teve. Se se tem em conta que ser mais magro ou mais gordo, peludo, imberbe ou careca, forte ou fraco muscularmente, e por aí fora, tam­bém são diferenças 'biológicas' (que também têm a ver com os genes, mas não exclusivamente), percebe-se que a diferença biologia / psicologia-cultura (e por­tanto sexo / género) não é uma oposição essencial, mas uma articula­ção com efeitos recíprocos, em que determina­ção e alea­tório jo­gam indissociavelmente. Isto é, sendo embora a distinção ho­mem / mulher a mais óbvia (a pergunta "é menino ou menina?" tem em geral resposta clara), não é possível estabelecer catego­rias herméticas entre homens e mulheres a nível biológico; este não é rigorosamente pré-determinado, mas contém uma parte de aleatório na complexidade de factores que intervêm na constitui­ção de cada humano. Somos homens com parte de mu­lher (os mamilos, por exemplo, o atestam) e mulheres com parte de ho­mem, a repartição variando caso por caso, a regra estatística sendo que um dos polos se torne dominante.

19. Se dermos atenção às economias libidinais de cada um/a, tal como a psicanálise nos ajuda a entendê-las, a mesma constatação duma bisexualidade primária de todos os humanos se impõe. Aqui está-se numa zona em que mais cla­ramente a oposi­ção biologia / psiquismo (sexo/género) é inade­quada, já que são as energias sexuais, sempre excessivas em todas as espécies, que são culturalmente sublimadas. A po­limorfia das pulsões se­xuais, sujeitas ao que Freud chamou "princípio do prazer", parece ser a razão que levou o género pa­triarcal a tornar-se sobrema­neira rígido ("princípio de realidade"), a forçar essa sublimação no sentido heterosexual. Como os que são chamados homose­xuais foram vítimas de tal rigidez ao longo da história, podemos ter uma pálida ideia através do so­frimento dos que hoje têm bus­cado afirmar essa sua diferença, essas suas diferenças melhor dito, já que também se não trata de categorias estanques e es­senciais (sem mudarem nem de sexo nem de género: continuam homens masculinos ou mulheres fe­mininas), mas de percursos singulares libidinais diferentes, em transgressão da norma da adequação sexo-género dominante. Como atesta o facto de haver muitos ca­sos de hete­rosexuais (com filhos inclusive) que se tor­nam homo­sexuais, bem como de pes­soas que são as duas coisas, homo ou heterosexuais, consoante o sexo da pessoa que amam. Todos so­mos pois primaria­mente bisexuais e é a partir desta bise­xualidade que uma sexualidade tende a estabili­zar-se, preva­lecendo sobre a poli­morfia por factores em que o aleatório tem relevância grande (trate-se de 'biologia', de 'género' ou da singu­laridade dos percur­sos respectivos).

20. Sejam alguns casos mais atípicos da repartição desta bi­sexualidade. Estéreis (5 a 15% dos casais): são 'heterosexuais' incapazes de reprodução procriadora. Transexuais (parte dos tais 6/1000): com alguma 'falha' na questão XX/XY, sem diferen­ciação completa entre os órgãos sexuais, podem mudar de sexo e de género (sendo em regra estéreis), querendo ser hetero-sexuais e hetero-género. Travestis: não mudam de sexo, mas de género (homo-género).

A bipolarização do género (masculino/feminino)
21. O casamento sendo estrutura decisiva de todas as sociedades conhecidas, parece óbvio que seja ele o factor que crista­liza a bipolarização do género, como dispositivo que distri­bui os homens / mulheres de cada sociedade pelas tarefas e práti­cas que esse dispositivo define como masculinas e femininas. Segundo a tese de Lévi-Strauss em Structures élémentaires de la parenté (P.U.F., 1948), o tecido social constitui-se pelas alianças de casamento entre linhagens, em geral pa­trilineares, que entre si trocam as suas filhas (ou irmãs), segundo regras mais ou menos estritas (segundo lógicas não conscientes, que o autor restituiu de forma brilhante), as quais constituem tam­bém, simultâneamente, as próprias linhagens como estrutura do tecido social. Essas regras postulam sempre (universalmente) o interdito do incesto (entre os homens e as respectivas fi­lhas, irmãs e mães sempre, algumas outras parentes próximas consoante) e a exogamia das raparigas, que vão pois casar noutra linhagem (a que são 'estranhas'). Existência de linhagens e casamentos, interdito do incesto e exogamia, bem como o respec­tivo dispositivo do género, são fenómenos sociais, são a ossa­tura essencial de cada sociedade que garante a sua reprodu­ção enquanto tal de geração em geração, em vez de ser constituída por 'ilhas familiares'.

22. Esta ossatura enxerta-se na diferença sexual entre ho­mens e mulheres, a qual, por sua vez, é a condição (em qualquer espécie complexa, vegetais ou animais, com macho e fêmea e com morte dos indivíduos), da reprodução da es­pécie de geração em geração. Se se tem em conta, como vimos, a relativa infertilidade da espécie humana e a também relativa polimorfia biológica (e libidinal) dos sexos, percebe-se que não houve até hoje reprodução da espécie humana dissociável da reprodução das sociedades em que ela se organiza. Já Aristóteles definiu os humanos como "animais sociais" e "animais com linguagem" (ou cultura), isto é, biologia (sexo) e sociedade-cultura (género) são indissociáveis, não podem ser opostos (também Lévi-Strauss co­locou o interdito do incesto como escapando a esta oposição tra­dicional). Na situação actual de acelerada transformação do gé­nero, temos pois que analisar esta questão: quais os limites desta transformação? Como jogam os interesses e desejos dos indiví­duos, face aos das sociedades e da espécie? Como foi esse jogo no passado?

23. O mínimo que se pode dizer é que ele não foi meigo para as mulheres. P. Tabet (1985) defende que, diante da relativa in­fertilidade da espécie humana (§ 13), todas as sociedades tiveram que forçar as mulheres a exporem-se o mais possível ao coito e ao risco consequente da gravidez (sem saberem em que alturas ela é possível, sabemos hoje que num periodo mensal sempre muito curto, no máximo de 48 horas): o casamento é a instituição que provoca essa exposição. O dossier que a autora apresenta é catastrófico, de tal forma é grande a violên­cia a que os homens (maridos e pais, por vezes também com a cumplicidade de outras mulheres da linhagem do marido) sujei­tam as mulheres que se revoltam diante desse destino. Esta vio­lência é aliás a confirma­ção mais cabal da polimorfia do sexo biológico e dos desejos se­xuais (hetero ou homosexuais). Há que dizer que há casos fre­quentes descritos por antropólogos em que sociedades tribais abrem lugares para homosexuais e outros do sexo masculino, da mesma maneira que o divórcio, a poligamia e até a poliandria são por vezes instituidos.

24. Limitemo-nos agora às sociedades da civilização ociden­tal. Estas são pa­triarcais, como todas as sociedades de classes e Estado (com agricultura, criação de gado, classe guerreira e monarquia): a sua base é a casa, que é simultanea­mente unidade de pa­rentesco e unidade econó­mica (em geral, à base de agri­cultura e de gado). O género insti­tui simultâneamente a divisão sexual de reprodução (homens destinados a serem pais e mulhe­res a serem mães) e a divisão social e sexual do trabalho (tarefas guerreiras, políticas, religiosas e de trabalhos fisicamente mais duros para os homens; tarefas domésticas, a ver com a reprodu­ção dos corpos e seu sustento, para as mulheres). Enquanto que a divisão social do trabalho co­nhece outras formas também de se­paração entre classes sociais (escravos, servos feudais, etc.), em resultado, quer de vitórias na guerra, quer de outras formas em que o poder das armas perma­nece decisivo, sacramentado ou não com formas religiosas. Ora bem, ainda aqui parece que factores biológicos (maior estatura e força física dos homens) são condição desta maneira de se organi­zar a sociedade e o género, já que a guerra é a condição essencial destas sociedades, as classes guerreiras procu­rando sempre acrescentar os seus domí­nios e devendo sempre defendê-los da cobiça de outras.

25. Atendamos agora a alguns aspectos específicos do polo masculino do género patriarcal. Luce Irigaray (1974, 1977, ver Belo, 1987, § 42, com alguns extractos dessa filósofa) mostrou como a filosofia greco-ocidental se estruturou de forma patriarcal, com o primado do um-uno, do centrado, do visível, do sólido (como o phallus masculino erecto), sobre o duplo (os dois lábios da va­gina), o plural e o disseminado (erotismo no corpo feminino), o 'sem-nada-para-ver' (buraco vaginal, caverna), o húmido e fluido do sexo feminino. Pode-se acrescentar que, em concordância com o lugar público do homem e o lugar caseiro da mulher (a casa sendo também o lugar do trabalho agrícola e pecuário sobre a 'natureza'), ao homem foi atribuida a razão discursiva política (o logos, que discute na ágora), o inteligível, a abstração, a alma (platónica), e à mulher a relação à natureza, ao sensível, ao corpo. Mas também a medicina de Hipócrates: a mulher é aí definida pela maternidade, pelas mênstruas impuras e pelos humores instáveis (ligados à 'mobilidade' do útero, para cima e para baixo) (Teresa Joaquim, Menina e Moça).

26. Na Idade Média cristã, o dispositivo masculino parece ter duas formas complementares. Uma, clerical e celibatária (retirando pois o homem da casa, o que continuará a ser domi­nante até ao sec. XVIII, mesmo para filósofos, sábios e artistas não-clérigos, necessitando de mecenatos para se dedicarem à sua obra), 'penetra' a linguagem e dissocia-a: para o masculino, a lin­guagem do poder, sob a forma de leis, cânones, dog­mas, dis­cursos eclesiásticos e universitários, etc., linguagens visí­veis, públicas, perenes, imperativas, coercitivas, executivas (no duplo sentido do termo, governando e matando em fogueiras he­reges e feiticeiras), fixas, operatórias, escrevíveis, formais (no sentido de 'com-uma-única-forma'); para o feminino, a lin­guagem imprecisa, vaga, sem princípio nem fim (sem coe­rência), taga­rela, frívola, fútil, imaginativa, arbitrária, efémera, não-escrevível (mesmo as místicas terão dificuldades em escre­ver), etc. Linguagem sem corpo versus linguagem do corpo, em suma. A outra forma é guerreira e assume o corpo do homem como força e destreza muscular: na guerra, nos torneios, na caça, nos vários ofícios mais duros. O corpo do homem funciona aí como 'inteiriçado', à ma­neira das enormes armaduras militares, sem brechas internas e duma só peça, o corpo todo 'erecto' contra o que lhe é adverso. Duas formas que se completam: força da lei, lei da força.

27. A emergência de uma terceira forma do dispositivo masculino que vem acrescentar-se às duas medievais dá-se com o nascimento da Física matemática e ciências congéneres. Ela manifesta-se filsoficamente no célebre Cogito cartesiano e na es­pantosa 'ficção' que o segue no 4º capítulo do Discurso do Método: "depois, examinando com atenção o que eu era, e vendo que po­dia fingir que não tinha nenhum corpo, e que não tinha nenhum mundo, nem nenhum lugar onde eu fosse; mas que não podia fingir, para isso, que eu não existia; e que pelo contrário, disso mesmo que eu pensava em duvidar da verdade das outras coisas, seguia-se muito evidentemente e muito certamente que eu exis­tia; em vez de que, se eu tivesse somente cessado de pensar, ainda que tudo o resto do que eu tinha jamais imaginado, fosse verdadeiro, eu não tinha nenhuma razão de crer que eu tivesse existido [...]". Espantosa, não apenas porque ficção, fingimento, imaginário, isto é, coisas 'femininas' (note-se que 'imaginar o que fosse verdadeiro', como as mulheres são supostas fazer, não ga­rante a existência de que o faz) em que masculino se promove, mas também pelo seu portentoso alcance profético: a racionali­dade de tipo matemático e científico tornar-se-á lentamente do­minante no polo político das sociedades ocidentais e inscrever-se-á no dis­positivo masculino duma razão que finge não ter corpo, a razão dos físicos e dos químicos, dos engenheiros e dos economis­tas, dos médicos e de todos os técnicos que, enquanto tais, en­quanto em tal razão, não têm corpo próprio, seu operar permi­tindo no en­tanto transformar corpos, mundos e lugares, como hoje se vê, por via das máquinas e suas energias não-humanas. Homens de ra­zão-sem-corpo alçaram-se assim ao poder, domi­nantes até à náu­sea, enquanto um corpo armado de exércitos e polícias, comple­mento corporal da razão sem corpo, se encarre­gam de pôr na or­dem os corpos desordenados que porventura agitem as ruas.

28. Dos corpos, já se sabe, cuidavam as mulheres que os pa­riam. Excluidas secularmente da praça pública pelo dispositivo masculino, entregavam-se ao concreto, desenvolvendo uma ló­gica do cuidado (Teresa Joaquim): à base do gosto estético da casa e dos corpos, do saber cuidar dos pormenores, das crian­ças, dos doentes, das culinárias, da higiene, das roupas, tudo mundos rebeldes à razão masculina dominante e à sua homoge­neização unidimensional. O cristianismo contribuíra para remode­lar o dis­positivo feminino também, com o privilégio da materni­dade e da virgindade (a que se obrigavam, querendo-o ou não, as mulheres que da casa não queriam ou não conseguiam) tutelado pela figura da Virgem-Mãe, em contraponto com a cortesã, tam­bém deixada da casa para o serviço extra-conjugal dos prazeres machistas, a figura de Eva marcando as mulheres rebeldes à norma com o es­tigma das 'tentadoras' (Teresa Joaquim, Menina e Moça). À vio­lência física que força as mulheres à reprodução heterosexual, acrescenta-se a violência ideológica que faz a mulher duvidar dos seus próprios desejos, reprimir de forma 'interiorizada' a sua po­limorfia (estes §§ 25-28 são citações de Belo, 1983).

29. Exclusão e repressão ainda de todas as veleidades inte­lectuais e artísticas por parte de qualquer mulher, estigmatizada desde os Gregos pelo que seria a sua incapacidade radical de abstração, de sublimação estética. O que hoje, à vista do leque imenso de mulheres intelectuais e artistas, não pode deixar de provocar grande espanto. Fica em aberto a questão de saber, como algumas defendem e outras contestam, se há uma 'escrita feminina', ou maneiras femininas de pintar, fazer música ou rea­lizar cinema.

30. Se mosteiros e conventos são, até ao sec. XIII, sem re­pressão oficial e doutrinal, lugares de possível cultivo de afectos homosexuais, estes tornar-se-ão também razão de sofrimento para os homens cuja economia libidinal escape ao género domi­nante. Mesmo os que se dão à arte e à poesia, cuja 'lógica do cui­dado' os feminizava também, segregando-os numa certa margina­lidade que os confinava parcialmente ao feminino do dispositivo: a linguagem enquanto significante-corpo, letra-material em seu jogo rítmico, não domesticada pelo significado da verdade univer­sal, escrita que se impõe ao oral, por assim dizer (Platão, no Fedro, liga a tinta 'líquida' ao pharmakon, droga, remédio, ve­neno, mortal), linguagem pois de sensação, de imaginação e de corpo, sujeita também à mesma lei de exclusão filosófica que a oferecia de bandeja ao dispositivo feminino. Vê-se pois que muitas mulheres, homens também uns tantos, sofreram, na carne, nos desejos, nas aspirações mais fundas, a rigidez do género patriarcal: ou na resignação, ou pagando cara a rebeldia ao impe­rativo im­peria­lista da reprodução heterosexual da espécie-sociedade. Mas en­tre estas duas atitudes extremas, os provérbios parecem atestar que de preferência as mulheres usaram de manha.

A transformação actual do género
31. Recapitulemos, voltando ao esquema do § 10. A varia­ção da bipolarização do sexo foi argumentada, tanto quanto a biologia ainda se buscando o permite, através da bise­xualidade primária de cada humano, cada um com parte de ho­mem e parte de mulher, num 'continuum' em que os extremos se afirmam melhor, mas cujos lugares medianos atestam o aleatório do processo de constituição 'biológica' de cada sexo, o que a va­riabilidade ainda maior de economias libidinais confirma, e já a força esmagadora dos imperativos de adequação à norma da he­terosexualidade procriadora dizia como sintoma, como sofrimento de tantas e de tantos. Essa mesma variabilidade, que impede de aceitar que 'homem' e 'mulher' sejam categorias essenciais ou oposições exclusivas, que haja um 'nível biológico' taxativamente determinista e isolável, também questiona que 'masculino' seja sobreponível sem mais a 'homem' e 'feminino' a 'mulher' ("já fui barco, já fui navio / já fui chalupa e escaler / já fui moço, já sou homem / só me falta ser mulher", cantava, sem temer o ápodo de 'maricas', Zeca Afonso). E enfim, o carácter 'cultural' do homem-masculino e o carácter 'natural' da mulher-feminina revelou-se também ser uma elaboração cultural e histórica do dispositivo patriarcal ocidental, apoiado em suas filosofias e me­dicinas. Resta-nos indagar do futuro das setas da dominação desse dis­positivo, do horizonte da transformação acelerada que este está conhecendo.

32. Nem o movimento feminista, nem o movimento 'gay', nem a 'revolução sexual', se justificam por si mesmos. Eles avan­çaram pelo caminho que lhes foi aberto pelos dois grandes fenó­menos que assinalámos nos §§ 2-3, correlativos entre si, mas am­bos também consequência última da grande revolução da civiliza­ção ocidental, a saber: a substituição das casas de antanho, uni­dades simultaneamente de parentesco e de economia (§ 24), pelo que se pode chamar genericamente instituições (desde as empresas industriais, comerciais, financeiras, jornalísticas, etc., às do Estado) como espaços de emprego e salário para (quase) toda a população activa, espaços esses separados como regra dos novos espaços do parentesco, os apartamentos em prédios onde moram as famílias, reduzidas estas às funções de re­produ­ção (procriação e sustento no consumo quotidiano). Este alija­mento das funções de produção económica é a fragilização da família, foi ele que permitiu a entrada massiva das mulheres no mercado de trabalho que precisou delas, como também provocou a relativização do casamento. Este deixou de ser a ossatura do te­cido social (§ 20), substituído pelo próprio tecido das instituições económicas e pelo correlativo mercado (onde hoje se dão as crises sociais).

33. O que, para as sociedades ocidentais mais evoluidas, funcionou bastante bem durante os anos 50-70, digamos, período de grande expansão tecnológica e económica, justamente o pe­riodo de incubação e manifestação em força dos movimentos de militantes feministas e 'gays', como da 'revolução sexual'. Mas a década de 80 e o que já passou da de 90 trouxeram o desen­canto das crises e apagaram as fraternidades e sororidades exaltantes dos tempos idos. O desemprego alastra, devido em boa parte às novas tecnologias electrónicas economizando força de trabalho, ameaçando as fragilizadas famílias em seus apartamen­tos e magros orçamentos de consumo, atingindo sobretudo as mulheres e feminizando uma boa parte da nova pobreza destas opulentas sociedades. As finanças dos mecanismos de segurança social e de pensões de reforma estão em falência, anunciando futuros sombrios a pedir solidariedades difíceis em tempos de individualismo exarcebado. A liberdade sexual, tão dificilmente ganha, é ameaçada por uma epidemia nova diante da qual a me­dicina está desarmada. 'Last but not the least', o desmoronar do género patriarcal não é de certo o menor factor do que se chama 'crise de valores': de crenças éticas e de crenças no futuro, que as religiosas já antes tinham definhado. Para não falar das ameaças ecológicas, das crises económicas e políticas dos países libertados do comunismo soviético, da fome de tantos países sem saída à vista no dito Terceiro Mundo. É este o contexto em que temos que pensar os horizontes da transformação actual do género: eles não são propícios ao optimismo.

34. Sobretudo talvez para as mulheres, se for verdade que estas sempre resistiram melhor em épocas de catástrofes, ou seja, sempre pagaram o maior preço, quando os homens deixam cair os braços nos desânimos, bebedeiras e outras drogas e suicídios. De qualquer forma, estamos todos no mesmo barco, como se diz, e a questão que me parece se pôr é a de saber se o acesso massivo das mulheres ao mercado e à praça pública poderá dar alguma esperança a estes tem­pos difíceis que atravessamos.

35. Não creio, como por exemplo defende Christine Delphy, que tenha sentido "imaginar o não-género" (p. 100), isto é, o de­saparecimento das 'categorias' masculinas e femininas. Uma tal tese implica, por um lado, que estas não tenham nada a ver com a di­ferença (e não oposição) entre homem e mulher (posição filosó­fica contrária é a de Luce Irigaray, mas há que dizer que a litera­tura feminista teórica recente, ao menos de língua francesa, a ig­nora totalmente); por outro, que as sociedades se atomizem em indivíduos todos diferentes e que as questões de procriação e de busca do prazer erótico além da procriação (que é um dos grandes bens que se adquiriram nas últimas décadas) não tenham nenhuma incidência no plano social ou cultural. Ou seja, esta tese separa e opõe ainda sexo e género, como aqui se tentou evitar. Julgo mais correcto pensar, como, segundo me parece (que o não pude ler todo), sugere Miguel Vale de Almeida que é já o que se passa em Pardais e a fortiori nas grandes cidades, que o género tende a multiplicar-se em formas mais ou menos dife­renciadas de mas­culinos e de femininos, com a correlativa perca de hegemonia do modelo pa­triarcal e machista. Este pode aliás sobreviver muito mais acentuadamente, se se atender, por exemplo, aos modelos que aos rapazes oferecem os filmes violentos e os desportos de massa e de alta competição (onde a mixagem de sexos está ainda por se manifestar), e as mulheres (e os homens, porventura) que com tais machistas se queiram relacionar terão que ter muita arte, muita manha, para os modificar.

36. A questão de fundo seria esta: numa civilização forte­mente racionalista, isto é, masculina no sentido pejorativo da pa­lavra, que poderão as mulheres fazer, a partir da sua 'tradicional' lógica do cuidado (§ 28), para ajudar à sua transfor­mação, se for verdade que elas se sentem ameaçadas na sua identidade pela racionalidade desse mundo de instituições a que acederam (§ 6)? Pense-se nas questões ecológicas, por um lado, na das relações competitivas de mais adentro das instituições, no 'stress' que elas provocam e a todos ameaça, por outro. Não se trata apenas de 'relações humanas' a melhorar, mas também de tarefas de teoria e de estratégia (institucional, mercantil, política, urbana, etc.), de reelaboração das racionalidades estabelecidas, de abrir nelas, de forma fecunda a todos os níveis, lugar para as so­lidariedades, os afectos, a convivialidade. Não há que sermos in­génuos: as mulhe­res têm ainda, por regra, muitos obstáculos a vencer em seus percursos singulares para ganharem os seus lugares, estão sujei­tas, como os homens, ao individualismo domi­nante, poderá não lhes sobrar energia para tais tarefas quase im­possíveis, difíceis de articular em discurso, de propor a outrem de forma convincente.

37. Entre as raras utopias que têm aparecido, relevo a de o desemprego actual, provavelmente estrutural e não conjuntural, obrigar a uma redução mais ou menos drástica dos horários de trabalho para que os empregos cheguem para todos, com a con­sequência de aparecer uma nova tarefa de civilização: a criação de novos espaços de convivialidade social e cultural nos tempos livres acrescidos (André Gorz, Ivan Illich), uma nova polis (Hannah Arendt), espaços esses que permitiriam conter o peso excessivo da eco­nomia e do seu dis­curso nas vidas e nos fazeres das gentes. Esses espaços, na pro­posta do economista Gorz, seriam mais fru­gais, com menos con­sumismo e desperdícios, compensando as even­tuais quebras de salários. Também aí parece haver um lugar em que a 'lógica do cuidado' das mulheres (e de homens também) poderá ter empenhos deci­sivos. Digamos que se trataria de pro­por os 'novos valores' que permitirão aos nossos descendentes encontrarem motivações para viverem numa terra mais pacifi­cada. Mas as novas gerações de raparigas não são formadas já em ruptura com essa tradição feminina que tornou humanas as casas de antanho? Quem saberá dizer? Quem ousará a esperança?




Bibliografia citada

Almeida, Miguel Vale de, Corações de Pedra. Discursos e Práticas da Masculinidade Numa Aldeia do Sul de Portugal, Tese de Doutoramento em Antropologia Social, Lisboa, I.S.C.T.E., 1994
Belo, Fernando, "Quando masculino/feminino não coincide com homem/mulher", in J.L., 27-12-1983
Belo, Fernando, "Luce Irigaray: um sexo que não é um/uno", in Linguagem e Filosofia. Algumas questões para hoje, I.N.C.M., 1987, pp. 229-240
Delphy, Christine, "Penser le genre: quels problèmes?", in Marie-Claude Hurtig, Michèle Kail, Hélène Rouch (org.), Sexe et genre. De la hiérarchie entre les sexes, C.N.R.S., Paris, 1991, pp. 89-101
Joaquim, Teresa, Menina e Moça, A construção social da Feminilidade em Portugal (sec. XVII-XIX), Fim de Século, 1997
Peyre, Evelyne, Wiels, Joëlle, Fonton, Michèle, "Sexe biologique et sexe social", in Marie-Claude Hurtig, Michèle Kail, Hélène Rouch (org.), Sexe et genre. De la hiérarchie entre les sexes, C.N.R.S., Paris, 1991, pp.27-50
Tabet, Paola, "Fertilité naturelle, reproduction forcée", in Nicole-Claude Mathieu (org.), L'arraisonnement des femmes. Essais en anthropologie des sexes, Cahiers de l'Homme, série XXIV, E.H.E.S.S., Paris, 1985, pp. 61-146
Vincent, Jean-Didier, Biologia das paixões, Europa-América, [1986], 1988

A sexualidade como excesso e alteridade

DA SEXUALIDADE

COMO EXCESSO E COMO ALTERIDADE

A filosofia ocidental é assexuada
A alimentacionalidade
A sexualidade como desperdício
O interdito do incesto domina o excesso e prolonga a alteridade
Oscilação e sublimação
Sexualidade e lei segundo a psicanálise
O erotismo e a morte segundo Bataille


A filosofia ocidental é assexuada

1. “Os filósofos são castos”, dizia Gilles Deleuze numa aula sobre a teoria dos afectos de Spinoza, dizia-o com alguma ironia, estava-se nos anos 70, no auge da ‘revolução sexual’. Procurei em vão em três dicionários de Filosofia do sec. XX - um dos começos, sob a direcção de A. Lalande, dois do último quartel, um espanhol dirigido por M. Quintanila, outro francês dirigido por A. Akoun - nenhum incluia uma rubrica intitulada ‘sexualidade’. Esta nunca foi parte das questões filosóficas ocidentais a não ser como rele­vando da moral, do lado das paixões de que os filósofos se preca­viam. [Mas deixem-me que defenda a minha dama, que a castida­de não foi defeito mas condição de possibilidade: ao se abste­rem assim, os filósofos faziam uma escolha, a de se dedi­carem à grande experiência do pensamento e, não fôra essa esco­lha de tão grandes humanos, nós não estaríamos aqui a falar de ‘sexualidade’, a medicina estaria ainda nas sanguessugas dos ‘physicos’, não haveria ciência europeia nem portanto civilização moderna.] Sobre o Amor, sim, há esse monumento venerável que é o Ban­quete de Platão, mas que, significativamente, ‘à tort ou à rai­son’, deixou-nos como tradição a expressão ‘amor platónico’, ou seja o amor sem sexualidade. Isto foi assim provavelmente até à segunda metade do século XX, mas ainda hoje, ou encontramos os três volumes interrompidos da His­tória da Sexualidade de Fou­cault, em que se trata ainda de uma perspectiva ética, ou textos em que ela é encarada a partir da psicanálise, ainda mesmo quando ‘contra’ o Édipo. É nesta rubrica que os dois dicio­nários referidos se ocupam dela. A excepção, uma reflexão filosó­fica em que a sexualidade esteja no seu âmago, é G. Bataille, autor desse belíssimo livro, O erotismo, de 1957, de que, apesar do su­cesso que teve na época, se pode duvidar que esteja recebido como texto ‘filosófico’. Talvez haja algum texto recente que eu ig­nore que desminta este alheamento, pelo menos nos seus grandes no­mes, da tradição filosófica em relação a uma dimensão intrínse­ca dos humanos, embora não exclusiva deles. Porventura na imensa bibliografia feminista que, nos últimos 30 anos, se tem ocupado do prin­cipal efeito de tal dimensão intrínseca, a diferen­ça entre mulheres e homens.
2. Para não cancelar esta comunicação ‘sexualidade e filoso­fia’ num desanimado ‘nada consta’, procederei da seguinte manei­ra, antes de no final vir a Bataille: sem as explicitar como faria para um público de filósofos, terei em conta algumas categorias de pensadores recentes para reflectir, por mi­nha conta e risco, sobre alguns dados que nos vêm da biologia, da an­tropologia e da psi­canálise. Da conferência “Tempo e Ser” de Heidegger, de 1962, reterei o motivo do Ereignis, do ‘(não)-acontecimento’ que é a doação dissimulada, re­tirada, dos acontecimentos pelos quais o ente é constituido na sua singularidade própria, o que permitiria interpretar, por exemplo, a reflexão da filósofa Séverine Auffrey (citada por Teresa Joa­quim, Menina e Moça. A Construção social da feminilidade, 1997): “cronologicamente o um vem mais tarde do que o dois”, explicitação da gestação. De Derrida, que também é excepção ao panorama lacunar que evoquei, já que trata da se­xualidade em variados textos (mas sem fazer dela um título de capítulo ou de livro, como de nenhum filosofema tradicional, aliás, faz parte da sua maneira de pensar), reterei o motivo do rasto, vivo e imotivado que impli­ca a relação estrutural ao outro e o do duplo laço, que ele explici­tou justamente em leituras da filosofia da família de Hegel e da obra literária de J. Genet (Glas, de 1974) e depois do “Para além do princípio de prazer” (Carte postale, de Socrate à Freud et au-delà, de 1980).
3. O título deste pequeno texto, “Da sexualidade como exces­so e como alteridade”, diz as duas características de que me ocu­parei, sem pretender que sejam as únicas: o excesso, o desperdí­cio, o aspecto anti-económico da sexualidade, em que ela é pa­rente da arte, do sacrifício, do potlach, da festa, por um lado; a relação ao outro, em que a sexualidade é parente da linguagem, por outro lado. Ora, sucede que estas duas características só se podem defi­nir por contraste com a economia do mesmo, que é definitória da vida, nomeadamente animal, aquilo a que eu daria o feio nome de alimentacionalidade. Terei assim que fazer um desvio prévio, propondo o desenho desta espantosa propriedade da vida, sabendo embora que corro o risco de querer ensinar o padre-nosso ao vigário.

A alimentacionalidade

4. Em que é que consiste a grande descoberta da biologia molecular? Na maneira como a mesma molécula de ADN, em todas e cada uma dos cerca de 200 tipos de células especializadas dum mamífero, por exemplo, está retirada no seu núcleo para poder permitir as muito diferentes sínteses de proteinas do metabo­lismo no protoplasma dessa célula, donde ela está retirada para poder ser sempre a mesma (à diferença dos diferentes ARNm que de cada vez são copiados e depois da síntese operada degra­da­dos). Essas proteínas, sintetizadas a partir de mini-moléculas vin­das pelo sangue, vão fazer parte da estrutura funcional dessa cé­lula no conjunto do organismo: vão contribuir para quê? Cada te­cido e órgão, no lugar que lhe é específico dentro da eco­nomia geral do organismo, vai contribuir, essencialmente e em última análise, para que a cada célula especializada cheguem as proteí­nas de que ela necessita. A lógica da evolução foi assim a de, par­tindo de seres unicelulares que se alimentavam das molé­culas que as circundavam no mar onde a vida se originou, os ir juntan­do e especializando de forma a conseguirem essa alimenta­ção de forma cooperativa, digamos, coordenada e menos aleatória: to­das especializadas para que todas se ali­mentem do que todas contri­buem para fazer, sem outra finalida­de, para cada orga­nis­mo, do que essa alimentação, do que a reprodução da sua própria subs­tância. [Já se pode antever que é esta mes­midade que a se­xuali­dade vem perturbar, lá iremos.]
5. Foi esta complexidade que tornou possível aos animais largarem o mar e invadi­rem a terra, depois da aquisição duma espécie de ‘mar interior’, a circulação do sangue (como da seiva nos vegetais), encarregado da última fase da alimentação de todas as células, o chamado aparelho circulatório, após os digestivo e respiratório, formando o conjunto do sistema da nutrição. Falta considerar a outra parte do sistema animal: como ter acesso às moléculas que interessam o organismo, as complexas moléculas de carbono? Es­tas só existem em outros vivos: vegetais que rece­bem carbono por fotossíntese, animais herbívoros e carnívoros. No caso destes, um segundo sistema se encarrega de caçar e de fugir a ser caçado: o sistema neuronal, formado de órgãos percep­tivos, cérebro e nervos que fazem ac­tuar músculos ligados estra­tegicamente ao esqueleto ósseo, siste­ma que é feito agir por pul­sões hormonais desencadeadas pelo abaixamento dos teores do sangue no que à alimentação diga res­peito. O sistema neuronal completa o da nutrição, a troco da mesma vantagem: que as suas células sejam alimentadas em me­lhores condições do que se so­brevivessem sozinhas. O que chamo alimentacionalidade é este propriedade sistémica dos animais fa­zerem a sua própria subs­tância, desde a sua primeira célula, à custa da substância dos ou­tros. O mesmo faz-se de outros. Não é necessário detalhar aqui como, sabendo-se que, quer a caça de pre­sas, quer a fuga de pre­dadores, implica um aleatório fundamental dos comportamentos animais, há uma espantosa economia de meios, ana­tómicos e fisio­lógicos, de se realizar esta auto-reprodução à custa de outrem: a economia do mesmo.
6. Se nos deslocamos agora para o estrito campo dos huma­nos e atendermos a que o desenvolvimento das sociedades tornou muito mais complexa as tarefas sociais, muito além das da ali­mentação, poder-se-ia mostrar como - cada cria de humanos só se tornando humano, ele também, por via social, isto é pela aprendi­zagem da linguagem e dos outros usos necessários para a repro­dução das unidades sociais (famílias, empresas, etc.) - aprender um uso de outrem é também constituir o seu próprio saber-fazer a partir do saber-fazer dos outros (mas agora sem os destuir, é claro). Ou seja, também há aqui, mutatis mutandis, uma economia de alimentacionalidade, como base estrutural de qualquer socie­dade.

A sexualidade como desperdício

7. Voltemos ao nível da evolução e espantemo-nos de muito cedo esta ter inventado um terceiro sistema além do da nutrição e do neuronal, o da sexualidade, como condição da imensa varieda­de e complexidade das espécies. Uma hidra de água doce ou um verme (os exemplos que aprendi no liceu, já lá vão mais de 50 anos), reproduzindo-se por cissipa­ridade ou por ‘bourgeonnement’, não saiem fora da lógica econó­mica da alimen­tacionalidade: tal como uma célula que se torna grande de mais se divide em duas, assim fazem esses bicharocos, mantendo muito estritamente a mesmidade do ADN da espécie (creio). Ora, a re­produção sexual faz-se numa anti-economia fla­grante, ela implica que estes indivíduos se ‘acasalem’ por acaso, macho com fêmea, para além dos seus estritos interesses alimen­tacionais; é preciso pois criar neles interesses de atracção, ou até de sedução, sufi­cientemente fortes para garantirem o acaso desse acasalamento: quantidades enormes de células machas e fêmeas, ou mesmo de sementes que não terão condições de medrar, são pro­duzidas para que um qualquer zero-vírgula, vários zeros e um um no final por cento delas resulte. Ou em nós, humanos, desapa­reci­do o cio das fêmeas algures na maior extensão do neo-cortex dos primatas, não só muitos óvulos e um número astronómico de es­permatozoi­des são produzidos incessantemente em vão, em puro desperdício, como uma parte forte de energia de hormonas este­roides é de­sencadeada para atrair homens e mulheres em ‘prejuízo’ manifes­to das funções sociais quo­tidia­nas.
8. Este desperdício revelou-se todavia muito ‘útil’ no ganho de complexidade das economias da alimentacionalidade das es­pécies. Demos atenção ao primeiro ganho que veio com esta ‘inacreditável’ invenção da sexualidade, que tenho para mim ser como que uma segunda invenção da vida, quase tão improvável e sur­preendente como ela. Inventaram-se os machos, as fêmeas e os ‘ovos’, isto é, que um ser vivo nasça de um casal de outros dife­rentes, nasça ou um ou outra, nasça fora deles e deixando-os lá, com eles. Isto é, invenção do nascimento, da paternidade, da ma­ternidade e da filiação, da futura família, da possibilidade da aprendizagem; invenção por outro lado da morte, dos cadáveres, da morte ‘natural’ que acontecerá a quem não tiver sido comido. Percebe-se que a psicanálise, ao descobrir a sexualidade no ínti­mo do inconfessado a si mesmo dos humanos, a tenha encontrado em correlato estrei­to com o pai e a mãe, o nascimento, a infância e a morte. Nada disto há entre as hidras ou vermes: filhos não nas­cem de pais, não morrem deles mesmos.
9. Esta pulsão anti-económica de desperdício cria uma cliva­gem entre o indivíduo e a espécie, entre as suas pulsões da ordem da economia alimentacional (ou de auto-reprodução à custa dos outros), e as pulsões para o outro ou a outra, em pura perca de ‘mim’, apenas para bem da espécie. O que estou a querer sugerir, com a importância que estou a dar à dimensão biológica da se­xualidade muito antes de haver humanos, é como as suas várias facetas, sociais, afectivas, reprodutivas, prazer erótico possível de ser cultivado além da reprodução, relação à lei e à moral, etc., não são mais do que consequências, aumentadas por efeito da com­plexi­dade, do que ela é nela mesma, se se pode dizer, antes dos huma­nos. É já ao nível dos mamíferos pelo menos, que macho e fêmea são arrancados à sua estrita economia alimentacional, ar­rancados ao seu si-mesmo em direcção ao outro: dando-lhes pra­zer, é claro, compensação da espécie à alimentacionalidade no passo de a contrariar fortemente.

O interdito do incesto domina o excesso e prolonga a alteridade

10. Porque é que, de acordo com a célebre tese de Lévi-Strauss, todas as sociedades interditam o incesto? Com uma caja­dada mataram-se dois coelhos: uma dupla complementar de ra­zões se pode deduzir do antagonismo entre sexualidade e alimen­tacionalidade. Como ela é excessiva e não há já cio, haveria o risco de sexo a mais e alimentação a menos, de os excessos de desejo satisfeito com quem está ali à mercê impedirem os usos sociais da habitação quotidiana, o que chamamos trabalho, como se fosse sempre festa. O interdito do incesto é, por um lado, uma forma geral de contenção do excesso da sexualidade para que a alimen­tacio­nalidade se possa realizar estavelmente, que os usos corres­pondentes possam ser aprendidos pelos jovens. Por outro lado, admitir o incesto como meio de reprodução social fecharia a so­ciedade em ilhas consanguíneas, enquanto que o seu interdito re­lança a busca da alteridade fora da mesmidade do nascimento, cria laços sociais intrínsecos entre as várias unidades sociais pelas alianças entre famílias. É a extraordinária lição de Lévi-Strauss sobre o primeiro e essencial laço de qualquer sociedade: a exoga­mia, a troca de mulheres entre linhagens como corolário do in­terdito do incesto, é a maneira de qualquer sociedade criar uma nova forma de alimentacionalidade, se se pode dizer, de solida­riedade social en­tre unidades (um pouco como as células dum or­ganismo), uma forma mais extensa e completa, uma rede social de famílias com jogos de emulação entre os mesmos e os outros, em que o que chama­mos família tem sempre no seu coração materno, no seu co­ração reprodutivo, uma ‘estranha’ vinda de outra famí­lia.
11. O interdito do incesto, se é um travão da sexualidade, é para a lançar para alteridades mais distantes. Ele alia-se assim à aquisição da lin­guagem, que também é um factor de essencial al­teridade. Cada um de nós não dispõe para falar e pensar, como dizia M. Gusmão do poeta, senão das palavras dos outros, que es­tas não são de nin­guém mas de todos: alimentacionalidade por um lado assim da sua aprendizagem, mas também lançamento para a alteridade já que falar e pensar só para outrem também têm sen­tido, a lingua­gem é anti-autista por estrutura e funcionamento. Não apenas só se fala ou escreve para e com outros, mas também se fala em outros contextos e épocas, se compara e pensam coisas novas, se compõem mitos, ficções, poesias, ciências e filosofias: trata-se de intensificar alteridades sociais, factoras de história. Porque as novas gerações encontrarão novas coisas para aprende­rem, serão outras dos que as dos seus pais.

Oscilação e sublimação

12. Esta oposição entre trabalho, segundo a economia aprendida da alimentacionalidade, e a sexualidade como pulsão excessiva para outros, que perturba essa economia e a sua aprendizagem, não é uma oposição exclusiva, já que se insere nos ritmos de oscilação a que nos obrigam quer o dia e a noite, quer as épocas do ano, oscilações entre trabalho e repouso e fé­rias, en­tre trabalho e festas. É nesta última oscilação que joga a sexuali­dade, já que, como a festa, ela gasta energia, não dá repou­so. Sem o poder justificar cabalmente (porque implicaria um longo des­vio), eu proporia que é nesta oscilação que ela terá o pa­pel subli­mador que Freud lhe reconheceu. O conceito de grafos neuronais proposto genialmente por Changeux permite perceber como é que as aprendizagens sulcam o nosso neo-cortex de esta­bilidades so­cialmente adequadas, as de saber fazer com espon­taneidade e habilidade os mesmos usos do que os outros, com ajuda crucial da linguagem. Por outro lado, se pensarmos na pul­são maior da ali­mentacionalidade, a da fome, é óbvio que ela só nos obriga a co­mer, sem nos dizer como o fazermos, se cozinharmos e o quê, se fazermos uma sanduiche ou irmos ao restaurante. O jogo das pul­sões hormonais encaixa-se no dos grafos, Damásio tendo-nos dado outro tipo de exemplos, relativos também aos usos de rotina pro­fissional e ao papel da química (de tipo hormonal) dos neuro­transmissores nas decisões além dessas rotinas.
13. Ora bem, a sublimação freudiana seria justamente o como se tece este jogo entre pulsões hormonais e grafos de aprendizagem de usos e da língua, estes contendo aquelas e adiando-as (no pe­ríodo de latência), mas nessa conten­ção que adia (como que citando Derrida) uma parte dessa energia sexual a mais, excessiva, será des-sexualizada para fun­ções sociais, cultu­rais, sagradas, ar­tísticas. Seria o jogo das oscila­ções (de que os so­nhos são índice) que permitiria acasalar os dois factores de exces­so e alteridade, a sexualidade e a linguagem, in­clusive colocando-os ao serviço das alterações e melhoramentos da economia de alimentacionalidade. O desperdíco anti-económico é, ‘à la longue’, recuperado pela economia. De maneira talvez equivalente àquela pela qual alguns casais de grandes amantes são capa­zes de tor­near com a linguagem a precaridade do excesso da pai­xão deles e dar-lhes uma continuidade no longo tempo que, sendo por­ventura rara, ainda mais admirável se torna. Mas isto é tema para o qual me falta mais, do que noutros, a competência.

Sexualidade e lei segundo a psicanálise

14. Há hoje um tipo de resistências à psicanálise, diferentes das que ela encontrou inicialmente. Sugeri acima como a invenção da sexualidade nos primeiros tempos da evolução foi também a do nascimento e da morte, da p/maternidade e da filiação, da possibilidade da aprendizagem: não nos admiremos de que estes temas estejam no coração do discurso psicanalista. A este primei­ro argumento de conveniência, quereria acres­centar alguns ou­tros. Os sonhos serão restos de desejos, de excessos que não tive­ram cabimento, que voltam assim na oscilação do repouso que o sono paradoxal (Jouvet) proporciona. O que Freud encontrou neles de bizarro, para além da estranheza própria que sempre lhes foi reconhecida, foi que o seu deslindar encontrasse a certo mo­mento resistências no próprio sujeito, ou seja, que este se revelas­se, en­quanto dormia - em que, por assim dizer, ‘não era ele’ -, como uma complexidade de pelo menos três instâncias: a) a do sonhador que diz ‘eu sonhei isto e aquilo’ e continua no divã a fazer associa­ções em torno desse sonho, b) uma outra que nega e censura algu­mas dessas associações como se não fossem ‘minhas’, ou não de­vessem sê-lo, c) a terceira, a desse conteúdo sonhado que horrori­za o so­nhador, de querer fazer amor com a própria mãe, ou matar o pai, etc. Isto é, a sexualidade quando aparece nos sonhos, apare­ce sempre-já marcada pela lei, interdita. Além disso, a perturba­ção é ainda maior de tais desejos proibidos e portanto repugnan­tes vi­rem no aprofundamento do oculto de desejos muitas vezes bons e convenientes, ou excessivos, obcecados, como certas pai­xões de artistas, inventores ou pensadores. Por isso que o mate­rial se lhe foi impondo, Freud veio a falar respectivamente de ‘ego’, ‘superego’ e ‘id’ para as tais instâncias que dividem e compõem simultaneamente o psi­quismo, veio a falar de sexo, interdito e sublimação.
15. Dir-se-á que se tratava de intelectuais burgueses da época victoriana. É certo. Mas que grande espanto não é a leitura do volume de O processo civilizacional de N. Elias que conta como esse ‘super-ego’ burguês se foi forjando na história ocidental, em correlação com a formação, a partir do feudalismo, do Estado mo­derno e do seu monopólio da violência, se foi forjando na aristo­cracia da corte dos reis absolutistas, aonde conviviam largo tempo fidalgos e fidalgas de casas diversas, não abrangidos pois pelo in­tedito do incesto como em suas casas, e devendo a pouco e pouco criar as regras de civilidade sem as quais a civilização não teria sido possível. Sem as quais, por exemplo importante, não seria possível que homens e mulheres hoje partilhassem empregos em que convivem várias horas seguidas por razões de economia, tendo que conter mais ou menos espontaneamente as pulsões se­xuais que a evolução inventou há milhões de anos.

O erotismo e a morte segundo Bataille

16. É um tanto indecente resumir, no final desta breve re­flexão, a esplêndida inovação filosófica de O erotismo de Georges Bataille, mas provavelmente mais indecente ainda seria calá-la. Definido como actividade sexual independente da procriação, o erotismo é uma “exuberância da vida”, que não pode ser com­preendido fora da sua relação com a história do trabalho e com a história das religiões. O horizonte filosófico de Bataille, um pouco bizarro, há que confessar, é o do ser como continuidade, à qual os seres humanos são arrancados violentamente (ao ventre e seio maternos porventura) para serem instituídos como seres descon­tínuos, indivíduos separados uns dos outros, até que a última violência, a da morte, os faça regressar à continuidade original do ser. Ora, para Bataille, é esse regresso que fascina os seres des­contínuos que nós somos e o ero­tismo é um revelador desse fas­cínio, da violência que, por sua vez, ar­ranca os seres individuais à posse de si quotidiana, dissolve (como na ex­pressão ‘vida dissolu­ta’) os laços sociais, atrai-os ao obsceno, à nudez, ao vai-vem dos órgãos sexuais, à maneira duma expe­riência da continuidade, duma espécie de ‘pequena morte’, perdi­da a coerência do sujeito que se ‘estilhaça’ no orgasmo, é raptado violentamente na paixão amorosa ou ainda, por outros meios, na experiência místi­ca. É ainda este fascínio pela despossessão que Bataille encontrará nou­tros domínios, os dos jogos e das batalhas, do amor do perigo e do desafio em que tudo se arrisca, no sacrifí­cio pela/o amada/o. Que encontraremos ainda, se nos quisermos próximos da nossa vida mais prosaica, na fuga constante à repeti­ção, na busca do inespe­rado, do acontecimento surpreendente. Enquanto Ela não vem.

F. Gros, Os segredos do gene, [1986], D. Quixote
J.P. Changeux, O homem neuronal, [1983], D. Quixote
J.D. Vincent, A biologia das paixões, [1986], Europa-América
A. Damásio, O erro de Descartes, [1995], Europa-América
C. Lévi-Strauss, Les structures élémentaires de la parenté, 1947, PUF
N. Elias, O processo civilizacional, [1939], D. Quixote
G. Bataille, O erotismo, [1957], Antígona
Heidegger, “Temps et être”, Questions IV, [1962], Gallimard
Derrida, De la grammatologie, 1967, Minuit
Idem, Glas, Que reste-t-il du savoir absolu?, 1974, Galilée
Idem, Carte postale, de Socrate à Freud et au-delà, 1980, Flam­marion

Porque é que há Mal?


DA BEN(MAL)DIÇÃO: porque é que há Mal?

Para a Inês Patrício

1. A chamada questão do mal na tradição cristã, tratava da morte e da doença em vista duma teodiceia, do pecado (a certo nível tornado ‘mortal’) que as justificaria. Tudo isto duma forma razoavelmente individualista, a alma e o respectivo corpo. Recentemente, num panorama de pensamento largamente laicizado, é sob o lema da violência que ela é mais abordada, procurando-se-lhe causas e remedeios. Não sei como é que as coisas se processaram nas grandes culturas asiáticas. Mas o que tentarei ilustrar aqui é como a problemática do mal em oposição ao bem tem duas fortes raízes no Ocidente: foram de facto tanto a Bíblia hebraica[1], quanto a filosofia de Platão[2], de forma bem diferente, como é óbvio, que fizeram o gesto drástico de as cortar, de as separar, de as opor. Tese que implica que nas civilizações dessas escritas as duas noções estariam imbricadas. Basta pensar na (falta de) ‘moralidade’ das mitologias gregas e romanas, ou em como, nos cap. 28 do Deuteronómio e 26 do Levítico da Bíblia hebraica, a bênção e a maldição vêm do mesmo Yahvé, antes da invenção (persa?) de Satã.

A lei da selva
2. Mas não será por aqui que começarei. Não creio que se possa falar de bem e mal em relação aos processos físicos e químicos da constituição do planeta terra, apesar da violência enorme que eles suposeram, como sismos, tsunamis e erupções vulcânicas nos recordam por vezes: se estes fazem mal, é aos vivos e às suas construções. Creio que o limiar – em que a violência vira mal - se encontrará na diferença que no liceu aprendemos entre química inorgânica e orgânica. Com efeito, a bioquímica do metabolismo das células vivas consiste no fazer e assegurar a manutenção das moléculas de que elas são feitas, muito mais complexas do que as dos compostos inorgânicos (rochas, água, gases) : trata-se de moléculas heterogéneas e especializa­das, à base de carbono, das quais umas (as proteínas) são sintetizadas por outras (ácidos ribonucleicos) a partir das moléculas mais simples dos nutrientes que o sangue traz às células. Ora, por serem tão complexas, são também frágeis e susceptíveis de se fragmentarem, donde que o metabolismo tenha de as aguentar (por meio de enzimas catalizadoras), de lhes recomeçar a síntese quando necessário, num processo incessante que exige a alimentação e a respiração, um processo homeostático do próprio metabolismo, oscilante entre dois limiares (como a outra escala sucede no sangue). É esta fragilidade intrínseca das moléculas da vida (defendem-se muito pior do 2º princípio da Termodinâmica do que as moléculas inorgânicas às temperaturas terrestres) que explicará, em última análise, que a morte, uma das figuras tradicionais do mal, seja inerente à vida. As rochas sofrem erosão, as coisas estragam-se, mas não adoecem nem morrem, como pode sempre acontecer aos seres que são constituídos por células de moléculas complexas e frágeis.
3. Por outro lado, se há uma maneira de dizer o sentido da evolução a partir de células isoladas ou em colónias, consistirá na maneira como elas se associaram especializando-se em tecidos e órgãos, ervas e árvores, insectos e vertebrados, para mais facilmente resistirem à hostilidade do meio ambiente e conquistarem uma maior autonomia, invadindo a terra e até os ares. Ora, nas espécies mais vizinhas entre si, nomeadamente nos mamíferos, além da dimensão, parece que as maiores diferenças entre elas residem nas maneiras que encontraram de fazerem a predação e/ou de lhe resistirem. Por uma razão simples, que tem a ver com o lugar fulcral das moléculas de carbono nas complexas moléculas das células: aonde ir buscar essas moléculas preciosas? As plantas vão buscá-las ao CO2 da atmosfera, por meio da célebre foto-síntese, os herbívoros vão-nas buscar às plantas e os carnívoros aos herbívoros: os animais não sobrevivem sem comerem outros vivos. O princípio de conservação do carbono está assim na raíz daquilo a que se  deve chamar a lei da selva – expressão que habitualmente é aplicada metaforicamente aos humanos. Quanto maior é a complexidade dos organismos, tanto mais vasto é o leque de órgãos e astúcias para matar e comer, para se fugir a ser comido. Para isso joga o sistema da boca e dos membros, do cérebro e dos órgãos perceptivos, o qual é fortemente pressionado por pulsões hormonais. Aqui, obviamente que tanto se deve falar de mal como de bem, já que o bem do leão é o mal da gazela, a fuga desta é a fome do leão. O que é fabuloso – e constitui certamente o mecanismo decisivo da selecção natural[3] - é que matar para comer seja a regra essencial dos animais, morte e vida claramente indissociáveis. A agressão por fome, que foi crescendo em força muscular, é uma das raízes mais fortes do que chamamos ‘mal’, ela foi herdada pelos humanos como ‘conquista’ lenta da evolução: os músculos que desta nos vieram foram inventados para caçar, combater, defender-se e fugir, para a guerra pois, já lá iremos.

A sexualidade como excesso em desperdício
4. Atentemos agora numa outra fabulosa invenção da evolução, extremamente precoce aliás quer em animais quer em plantas, que deu à vida a imensa diversidade das espécies que os biólogos estudam. Como se sabe, à hidra de água doce cresce uma espécie de rebento que se separa dela atingida certa dimensão, da mesma maneira que certos vermes se cortam em dois e assim prosseguem, todos com o mesmo programa genético, sem que se possa falar em tais espécies assexuadas de pais e filhos, nem de morte (a não ser que sejam comidos), pois que não há cadáveres, nem falar sequer de indivíduos, muito menos de aprendizagem. Ou seja, estes motivos ‘familiares’ descobertos por Freud no discurso inconsciente dos seus pacientes têm origem ‘histórica’ na invenção da sexualidade pela evolução. Que os biólogos não dêem por isso[4], faz pensar que também à biologia se aplica o que foi dito da filosofia e da economia: ela é importante demais para ficar nas mãos exclusivas deles.
5. Ora, a sexualidade constitui um terceiro sistema dos organismos animais, além do da nutrição e do da mobilidade para a predação. Estes dois acordam-se um ao outro, melhor dito, formam não dois sistemas mas um duplo sistema (o cérebro coordena quer a homeostasia do sangue, dispositivo central da nutrição, quer os comportamentos de predação e fuga), cujo objectivo é o da auto-reprodução do indivíduo, estritamente ‘egoista’, dir-se-ia. A sexualidade, pelo contrário, abre-o à outra ou ao outro e tem a espécie como objectivo, podendo inclusivamente jogar contra os ‘interesses’ imediatos do indivíduo. Por outro lado, o seu funcionamento é claramente diferente dos da nutrição e da predação, que nos animais é estritamente económico em termos da relação volume / superfície dos órgãos, por exemplo[5], e nomeadamente de poupança de energia, que só é desenfreada quando a fome ou a sêde apertam, prevista, é certo, mas só em casos de excepção. Ora com a sexualidade, o desenfreado é a regra, também aliás nas plantas. De formas muito diferentes, é claro, as espécies criam imensas células genitais que por vezes (os espermatozoides humanos ou as sementes) só são úteis a sei lá quantos 0,00000001 por cento. Ou seja, neste sector crucial, as espécies trabalham estatisticamente, perdulariamente, excessivamente. E também esbanjam energia a pulsionar os machos muito fortemente para as fêmeas, excesso que só é possível porque limitado às épocas de cio, senão machos e fêmeas andariam sempre doidos[6]. Ora, nunca consegui saber porquê, nos humanos e creio que em algumas espécies primatas, o mecanismo do cio desapareceu. Mas sem desapareceram as pulsões fortíssimas entre fêmeas e machos, o que se tornou num dos problemas essenciais de todas as sociedades humanas. O interdito do incesto na raíz de todas elas implica que sempre os excessos da sexualidade humana estiveram sujeitos à lei - outra confirmação de Freud por vias exteriores à argumentação psicanalítica -, mas também que a exogamia que desse interdito é consequência (lição belíssima de Lévi-Strauss) abriu a sexualidade a maiores diversidades ainda, a nível social, já não meramente biológico mas que o prolonga.

A lei da guerra
6. As sociedades humanas (e já as de outras espécies animais que Lorenz estudou) tiveram assim que elaborar formas de contenção, quer das pulsões agressivas que sobravam da fome, das necessidades da predação, quer dos excessos da sexualidade. O facto, relativamente surpreendente, de quase todas elas serem (terem sido) sociedades guerreiras parece indicar que a guerra foi a forma corrente, talvez principal, dessa elaboração. Um texto do antropólogo P. Clastres[7], que joga entre o princípio de guerra de Hobbes e o princípio de troca de Lévi-Strauss, mostra como a troca de mulheres (exogamia resultante do interdito do incesto) estabelece uma fronteira social de endogamia: além dela, trata-se de estrangeiros - de ‘não-humanos’ no sentido em que os indígenas são humanos das mesmas tradições ancestrais -, faz-se-lhes a guerra. A troca de mulheres cria as solidariedades necessárias às defesas e aos ataques. Também as sociedades agrícolas, durante cerca de dez milénios, foram essencialmente guerreiras: basta chamar a atenção para o facto de as respectivas classes nobres terem a guerra como ofício, quer de defesa, quer de ataque a vizinhos sempre que estes dêem sinais de fraquejarem. Não é fácil de compreender este carácter tão geral da guerra que apenas o comércio internacional, a globalização das trocas, veio interromper (de 1815 a 1914 e de 1945 a esta parte, não houve guerras mundiais, K. Polanyi). Mas há pelo menos dois tipos de fenómenos que ajudam a compreender que se trata de deslocamentos da lei da guerra: dum lado, para o futebol e outros desportos, cuja paixão é a de vencer os adversários, do outro para a tónica dominante da concorrência económica, mormente a do capitalismo financeiro internacional actual cuja lógica parece ser a duma guerra de capitais. Para não falar em todo o tipo de bairrismos e clubismos, de bandos juvenis, de polémicas filosóficas, políticas, e por aí fora. Sempre se procura mostrar que se é o mais forte, o mais astuto, o que merece o melhor lugar, o primeiro prémio.
7. Digamos, da forma necessariamente simplificadora dum texto desta dimensão, que o que as sociedades humanas sempre tiveram que assegurar foi a contenção dessas pulsões que a ameaçam sem ‘matarem’ as emulações singulares de cada um. Não encontro em português um termo que tenha a vantagem do conceito de ‘envie’ de alguns antropólogos franceses, susceptível de ser entendido de forma pré-ética: tanto diz como os jovens têm que ter ‘envie’ de serem isto ou aquilo, através do modelo de outros, ou mesmo de serem os melhores, como pode dizer o carácter invejoso ('envieux') e agresssivo que daí resulta muitas vezes. Há, por um lado, que estimular as motivações por emulação, condição do dinamismo quotidiano de qualquer sociedade, sabendo-se embora que os lugares de prestígio são sempre poucos e por isso alvo de rivalidades e disputas, e, por outro lado, há que regular os seus excessos. Os quatro interditos principais do velho decálogo bíblico – não matar, não roubar, não violar[8], não difamar – explicitam o que qualquer sociedade humana não pode deixar de exigir aos seus membros para poder sobreviver. E também para que as rivalidades, as invejas e os ciúmes não impeçam a solidariedade necessária para a guerra aos outros.
8. O belo texto de Norberto Elias, O Processo civilizacional, escrito no final dos anos 30, correlaciona em dois volumes a serem lidos en confronto, duas histórias europeias: a da formação do poder monárquico e da sua confiscação progressiva do poder das armas, por um lado, e por outro da formação da etiqueta da sociedade da côrte real, em que nobres e senhoras conviviam largos meses por vezes sob o mesmo tecto, devendo assim aprender a conter as respectivas pulsões, quer no que diz respeito às maneiras de comer à mesa, quer, é bem de ver, às questões da sexualidade. Ele pretende fazer assim uma história da estruturação do super-ego europeu (com um olhar também para o mundo chinês). Podemos dizer que a sua lição é uma espécie de prolongamento para a nossa contemporaneidade da lição atrás evocada de Lévi-Strauss: onde o interdito do incesto se apresenta como maneira de conter as energias sexuais excessivas - fora as de marido e mulher – no quotidiano das mesmas unidades residenciais, são agora os nossos empregos - em que homens e mulheres sem relações familiares trabalham juntos várias horas por dia - que necessitam da herança desse processo europeu de estruturação do super-ego.
9. Que esta lei da guerra seja, também ela, prévia à distinção entre bem e mal não é de tão facil raciocínio como para a lei da selva. Sejam três argumentos: a sua generalidade a quase todas as sociedades, como forma de afirmação dum grupo social sobre outros estranhos; a maneira como se geraram éticas na maneira de combater (a arêtê grega, a spoudaias e a sua equivalente romana nobilitas como categorias ética, ou o cavalheirismo, a fidalguia)[9]; enfim, a guerra e a escravatura correlativa terem sido a única maneira de formar grandes reinos e impérios e portanto de desenvolver as cidades, as artes e técnicas, as escritas e as razões, isto é o progresso de que resultou a nossa civilização. Não é possível, sem maniqueísmo anacrónico e irracional, considerar que a guerra foi um mal puro, como também não são ‘maus’ os mamíferos carnívoros. O que não implica achar que as guerras regionais de hoje sejam boas; o progresso é avaliável não apenas em termos técnicos mas, de forma geral, como a passagem de usos à base de força muscular a usos à base de razão humana: diplomacia em vez de guerra, máquina em vez de escravos, democracia em vez de regimes autoritários, e por aí fora, à espera de que o direito internacional e as respectivas instituições se imponham ao arbítrio dos poderosos.

O dualismo do bem e do mal

10. Em Filosofia, há quem caracterize, desde Nietzsche a Heidegger, a estrutura dualista da metafísica pela oposição entre o inteligível (da alma e das ideias) e o sensível (do corpo e das suas percepções) como duas cenas[10] em que a primeira subordina a segunda. Mas não contradiz essa tese dizer que nela são razões éticas que opõem duas formas de viver. Tanto a Apologia de Sócrates como o Fédon mostram claramente como Sócrates põe o acento da renúncia nos bens que da casa advêm, dinheiro, reputação, honras (Apologia, 29e), fortuna, interesses da casa, comando do exército, carreira política, cargos de toda a espécie, ligações e facções políticas (Apologia, 36b), os prazeres do comer e do beber, do amor, a be­leza dos fatos, cal­çado e outros ornamentos do corpo, renúncia assim aos bens do corpo em oposição aos da alma, os da busca da virtude e do saber, do justo, do belo e do bom, da grandeza, da saúde et da força, essências a que só se acede prescindido dos olhos e ouvidos do corpo (Fédon, 64d-65a). Ou seja, trata-se de renúncia em prol da virtude e do saber ao que até aí sempre a tradi­ção religiosa como a grande poesia trá­gica conside­raram ser o grande dom dos Deuses: a riqueza por via da fecundidade das casas e das cidades em filhos, reba­nhos, ceifas e vindimas. O mundo dos interesses das casas e dos prazeres do corpo será o dos discursos da doxa, da opinião (que pode ser verdadeira), a que Platão opõe o saber que a alma procura e de que se recorda ter contemplado antes do corpo nascer. A arma que Sócrates inventou e Platão aguçou para a busca desse saber foi a definição, que permite justamente despojar as coisas para se lhes encontrar a essência intemporal: digamos, embora com algum anacronismo, que buscar os conceitos das realidades que estudamos, reduzindo-lhes as empiricidades e os contextos para construir estruturas teóricas, é um gesto que herdámos de Platão (e de Aristóteles). E sendo certo que na República (509a-b) a Forma ideal do Bem em sua pureza, está além de toda a essência, é a primeira de todas as Formas ideais, a sua oposição e separação do mal[11] é radical. O Deus demiurgo do Timeu, formador do universo umas boas duas dezenas de anos mais tarde, será o herdeiro dessa Forma ideal do Bem.
11. Somos hoje, por regra, bastante críticos deste dualismo platónico: mas convirá saber que ele foi o motor da elevação do nível intellectual do debate europeu, mormente nos dois séculos clássicos, fortemente críticos do aristotelismo medieval e apoiados na sombra tutelar de Platão. Foi do debate entre os dois grandes Gregos – um, propondo um sistema de saber escolar que fôra prodigiosamente fecundo mas se tornara uma rêde-prisão das inteligências, o outro, fornecendo a liberdade de pensar ideias livremente dos contextos (tanto da chamada realidade, como dos saberes herdados) – que foi feita a matriz da modernidade.

O pecado de Adão e de Eva

12. Na Diáspora helenística e romana, os Judeus, conservando-se endogamicamente em torno do seu Livro e da Sinagoga, foram por vezes percebidos como um povo ateu, devido à ausência de imagens divinas e à sua abstenção de sacrifícios. Desde o livro instaurador da sua Bíblia, o Deuteronómio, conduzindo a uma destruição de todos os templos, altares e imagens do país para não deixar senão o Templo de Salomão em Jerusalém e preconizando uma aliança ética para a justiça como condição de vitória sobre os povos vizinhos e de independência, que a separação entre o seu único Deus e as várias doações da Terra e do Céu, as fecundidades, as chuvas, o calor e a luz, foram concentrando no poder criador daquele – digamos em termos gregos - a única causalidade, quer das coisas da natureza, quer dos acontecimentos aleatórios: dele vinham as bênçãos como as maldições. Bênção diz-se em hebraico ‘barak’ e há razões que me levam a pensar que, antes de o termo se ter vindo a tornar exclusivo do ‘bem’, ele também tenha significado a maldição[12]. Como o nosso termo ‘sorte’ ou ‘fortuna’, que ganharam o sentido geral de ‘coisas boas’, apesar da ‘má fortuna’ do soneto de Camões e do proverbial ‘antes a morte que tal sorte’. Como a Moïra grega ou o Fatum latino (ao invés, tornaram-se mais funestos do que benéficos) ou o nosso Destino. A diferença que os profetas redactores da Bíblia hebraica introduziram em relação a estas outras concepções mediterrânicas foi a de a sua partilha, segundo os dois capítulos que citei no final do § 1, ser devida à ética de quem as recebia, quer as casas de cada um, quer o conjunto do povo e o seu rei. Bendito o justo, maldito o pecador. O que Job, uns séculos mais tarde, contestará amargamente.
13. Antes de se vir à oposição clara entre Deus e Satã, os três primeiros capítulos do Génesis – de redacção tardia, aliás – mostram claramente como esta separação monoteísta por razões éticas se concretizou na separação do bem e do mal em geral (e não apenas ético). Se se lerem às avessas os 11 primeiros capítulos desse livro, antes da eleição de Abraão, antepassado do povo hebraico, a narrativa de Babel diz como o mal se alastrou entre os povos (como se a guerra assim se explicasse, com a divisão das línguas) e a do Dilúvio conta como o mal inicialmente foi tal que Deus decidiu destruir tudo o que fizera e recomeçar de novo com Noé. Antes foi a inveja e o crime dum irmão contra o outro logo na primeira geração de humanos[13]. Às avessas, é como se o texto avançasse na busca de compreender porquê todo este mal que corroi a humanidade, como é possível tanto mal na obra dum Deus único, sem dualismo divino como entre os Persas.
14. Ora, os três capítulos iniciais parecem responder de antemão a essa inquietação: contam duas vezes a criação, a primeira delas numa composição original (1.1-2.4a), da mão do último redactor destes textos veneráveis, enquanto que a história de Adão e Eva (2.4b-3.24), a partir de mitos ancestrais, conheceu por sua vez três redacções sucessivas. Na primeira, o essencial do cap. 2, só haveria criação: do jardim e dos rios, do homem feito de solo (adama) e do sôpro divino, os animais e os seus nomes, a mulher dum costado do homem, os dois uma só carne. A segunda enxertou à primeira uma narrativa de queda e de expulsão do Eden, inserindo-lhe os versículos 9b e 16-7 sobre as duas árvores (da vida e do conhecimento do bem e do mal) e o 25 sobre a falta de vergonha da nudez, e acrescentando depois 3.1-13,22-24. Introduz-se assim no paraíso uma lei, um interdito, que diz respeito ao conhecimento do bem e do mal, cuja transgressão trará a morte. Vem a Astúcia, a serpente: não é a morte, pelo contrário, os vossos olhos é que se abrem e sereis como deuses que conhecem o bem e o mal; trata-se dum fruto bom para entender. Os olhos abriram-se e viram que estavam nus, fizeram umas tangas, esconderam-se ao ouvirem os passos de Deus, desculpam-se uns nos outros, ele nela, ela na serpente. O conhecimento do bem e do mal consiste assim, quer no entendimento e na inteligência das coisas, quer na astúcia e dissimulação: vergonha da nudez e da transgressão, desculpa com os outros[14]. A terceira redacção juntou-lhe a lição das consequências da transgressão (3,14-19): além da enigmática maldição sobre a serpente, há uma sobre a mulher (as dores da gravidez e do parto, a sua concupiscência para o marido[15] que a dominará), outra sobre o solo e o custo do trabalho agrícola do homem, a terceira enfim sendo o retorno deste ao solo (adama) de que foi feito. O solo é assim o horizonte desta narrativa, em oposição, parece, ao desejo de se ser como deuses: terrestres, mortais, penando, curiosos, astuciosos, capazes do bem e do mal.
15. Retomemos o motivo do ‘barak’. Em que é que consistia a bênção para um hebreu? Antes de mais, em ter um herdeiro da sua casa e do seu nome (ver o lamento de Abraão em Gn 15.2 e a promessa de bênção que lhe é feita en Gn 12.2-3): em sociedades que não tinham a noção de sobrevivência feliz num céu (nem alma immortal nem ressurreição dos mortos, tudo crenças da segunda metade do primeiro milénio antes de Cristo), o nome numa casa próspera de sua descendência era a imortalidade possível (como modernamente Sartre, Renault ou Gulbenkian). Em seguida, sociedade de agricultores e cultivadores de gado, a riqueza deles era essencialmente a da terra, a da abundância das ceifas e das vindimas, dos rebanhos e suas crias. O que dependia do trabalho humano, donde também a vantagem em terem filhos numerosos e com saúde. A bênção duma casa é assim a fecundidade das suas mulheres, dos seus campos e fêmeas, a abundância, a riqueza: ela prolongar-se-á como sua reprodução ao longo das gerações. Com uma dificuldade porém: ela traz consigo, de forma a priori indissociável, a possibilidade também da maldição. É o que parece significar a lógica dos sacrifícios dos animais. Primitivamente, qualquer animal abatido para ser comido deveria sê-lo no santuário, sem se lhe comer o sangue, “porque o sangue é a vida da carne” (Lv 17.14, Dt 12.23, Gn 9.4). Por que 'lógica'? Tudo se passa como se matar um animal nascido na casa como bênção fosse negar esta, verter o sangue é sempre sinal de morte, uma maldição. Oferecido no altar, ele torna-se sagrado, reverte-se em bênção que o sacerdote derrama sobre o oferente, aliança entre o Deus e a casa (ver Ex 24.6-8), como que retornando à fonte da bênção que ele foi à nascença, numa espécie de ciclo sagrado[16] da bênção. Quer dizer que é o facto mesmo de nos alimentarmos de cadáveres (a lei da selva: a vida reproduz-se pela morte) que implica uma ‘maldição’ no coração da ‘bênção’ que não pode ser totalmente impedida: a vida implica a morte na sua essência. Foi o que descrevi noutros tempos como sistema da mácula (souillure)[17]. Basta ler a lista das impurezas legais em vários livros do Levítico: quer o sangue das mulheres, por exemplo maior o dos partos, que as torna impuras (intocáveis) durante 40 ou 80 dias consoante o sexo do bébé, quer os cadáveres (que tornam impuros por 7 dias quem neles tocar), coisas inevitáveis na mais pura das casas. Mais: o parto, sobretudo se fôr de rapaz, e ainda mais se do primogénito, é a maior das bênçãos, aquela que vai permitir a continuação da casa, mas faz-se com fortes dores da mãe; por outro lado, o sangue em que ele banha ao nascer anuncia em certo sentido a sua morte um dia, por muito abençoado que ele seja no seu trabalho. Por sua vez, este, sendo condição sine qua non da bênção dos campos e do gado, implicará da sua parte muita pena e suor.
16. É aqui que voltamos à terceira redacção da narrativa do Génesis: os versículos 3.16-19 tentam resolver esta contradição, isto é, decidir neste indecidível entre vida-morte, entre bênção-maldição, no que grafei ben(mal)dição. O 3º redactor interpreta o mito recebido, do Eden, da lei e da sua primeira transgressão, separando e opondo o bem e o mal, a vida e a morte. As dores da mulher no parto, a mortalidade do homem (correlato do seu nascimento) e o suor do trabalho dos campos são com efeito as maldições mais significativas, se dizer se pode, que estão no coração das casas, simultaneamente unidades de parentesco e de actividade económica. A separação consistiu em fazer dessas maldições algo que resultou do castigo duma transgressão, culpa humana, e não dum dado original da criação divina. “No princípio criou Deus o céu e a terra”, assim começa o admirável cap. 1[18] que ultima esta separação: por seis vezes o Demiurgo da palavra aprecia o seu trabalho com um “viu que era bom”, da última vez “muito bom”. Isto é, sem mal[19].
17. Em seguida Deus descansou: sendo o seu ‘trabalho’ de palavra, calou-se. É a clausura da Tora, do livro da Lei dos judeus. Curiosamente, há um paralelo no Timeu de Platão: o demiurgo “era bom e, naquele que é bom, não nasce nunca ‘envie’ pelo que seja. Isento de ‘envie’, ele quis que todas as coisas fossem, tanto quanto possível, semelhantes a si mesmo” (29e). “Quando o Deus lhes fez conhecer todos estes decretos, para que não o tivessem como responsável pela futura maldade deles, semeou-os, uns na terra, outros na lua, outros em todos os outros instrumentos do tempo. Após estas sementeiras, confiou aos deuses jovens [que tinha criado] o cuidado de formar corpos mortais, de completar a obra dele juntando tudo o que fosse necessário juntar à alma humana e todos os acessórios que ela exigia, e em seguida de comandar e governar tão ajuizadamente e tão bem quanto pudessem este ser mortal, a menos que fosse ele próprio a causa da sua infelicidade. Depois de ter regulado tudo isto, o Deus retomou o curso da sua existência habitual. Enquanto guardava o repouso, os seus filhos […]” (42b-c, da trad. francesa de Chambry).

Relatividade sem relativismo
18. Este motivo de ben(mal)dição – barak, moïra, fado, sorte, fortuna, destino –, que podemos despojar de qualquer divindade benéfica ou maléfica, ou aponta ao que se deseja, ou que se teme, ou conta o que sucedeu: releva pois do acontecimento. O qual é feito dum jogo de multiplicidades, de doações que, entre necessidades e aleatórios, se cruzam; o acontecimento é pois rebelde a definições e essências, difícil de ser aceite em discursos de filosofia, menos ainda de ciências, confinado assim às literaturas que dele fizeram o seu mel. Rebelde a definições, é-o também a dominações por qualquer um dos seus actores empenhados, mais fortes ou astutos: à maneira das fecundidades que evoquei. No que nele há de mais relevante para cada um que nele se joga, o que faz o seu preço e apreço mas também o que se teme, é doação múltipla sem doador, destinação sem nenhum ‘pré’ a fixá-la, antes ou depois, sem fatalismos.
19. Embora uma das ambições míticas dos humanos, com a da imortalidade, seja a de se prever o futuro, é muito provável que a vida prevista de certezas se tornasse impossível. O aleatório é constitutivo das existências todas. ‘Se eu tivesse nascido noutro país, noutra época’, sonha-se por vezes: não seria ‘eu’, foram outros que aí nasceram. Aonde espermatozóide não encontra óvulo não há ninguém, aonde encontra, é tal, filho ou filha de tal e tal, neto ou neta de tais quatro, etc., com hereditariedades e heranças precisas juntamente com muito aleatório (o espermatozóide ao lado daria uma rapariga aonde eu fui rapaz). Se é assim o nascimento, tão improvável, também cada vida é cheia de encontros e desencontros de toda a espécie, até à sempre (in)certa morte, e é por isso que há aqueles temas do ‘barak’ ou destino, que há as infindáveis literaturas. Também a leoa e a gazela, a mosca e o caracol, têm destinos aleatórios. Tudo é acontecimento, em geral com consequências minúsculas, mas por vezes, sabe-se mais tarde, transformadores de destinos. O aleatório, como em qualquer jogo, é indiscernível das regras que as ciências descobrem: por exemplo banal, quando guiamos um carro, as regras com que ele foi fabricado e que aprendemos para conduzir, servem para derimir aleatórios, aonde quero ir, o trânsito que encontro a cada passo, as curvas a fazer, etc. É aliás esta correlação entre regras e aleatório (que define o motivo de jogo em Derrida) que obriga as ciências a experimentarem em laboratórios, fora da cena aleatória dos fenómenos, isto é, obriga-as a criarem condições de determinação. Contra a ideologia determinista de muitos cientistas, a única coisa que eles descobrem é sempre do tipo: ‘se se derem tais condições, acontece isto ou aquilo’, mas o ‘se’ hipotético não está nas mãos deles.
20. Os contextos em que as coisas acontecem são sempre relativos, mas isso não impede que tenhamos muitas certezas sobre muita coisa (mas não sobre o futuro). Como também não implica relativismo moral: bem pelo contrário, é o facto de haver tanto aleatório e de ele poder ser tão gravoso para terceiros, que sempre obrigou as sociedades humanas a terem critérios de bem e de mal, como acima exemplifiquei com quatro interditos fundamentais (§ 7). O direito, histórico e portanto relativo, não é relativista: ele impôs-se historicamente para defender os fracos da prepotência dos fortes, o relativismo consiste na manipulação que estes conseguem fazer dele as mais das vezes. Este motivo da ben(mal)dição como acontecimento levou os profetas autores da Bíblia judaica, além daquela moral que receberam dos seus antepassados, a pensarem uma ética que se poderia formular assim: tudo o que tens como abundância e riqueza foi doação, mais do que resultado da tua força e da tua mão (Dt 8.17), portanto ama o teu vizinho como a ti mesmo (Lv 19.18), dá-lhe do que lhe falta e a ti sobra, dá do que recebeste como dom. Esta ética, que os evangelhos cristãos retomarão, é válida para além de se acreditar ou não esses textos, um pouco como a definição de Platão nos vale ainda, embora não aceitemos o seu dualismo.
21. Termino com um parágrafo com ‘bola branca’, como nos filmes de televisão com cenas chocantes. Trata-se duma espécie de prenda ao leitor, que só há uma dúzia de anos, quando voltei a ler a Bíblia, dei por ela e não me lembro de alguma vez ter visto citado por quemquer que seja. Creio ser a pior narrativa de mal que terei alguma vez lido, ela está no termo da lista das maldições que evoquei no início: o reverso absoluto de ética do dom que acabo de evocar, a lei da selva que ganha sobre a da reprodução sexual. “A mais delica­da e mole das mulheres do teu povo deitará olhares pérfidos so­bre o homem que ela abraça, e mesmo sobre o seu filho ou filha, esconder-se-á deles para co­mer a criança que ela dá à luz, na pri­vação de tudo, por causa do cerco e da des­graça a que o teu ini­migo te reduzirá em todas as tuas ci­da­des” (Dt 28.56-7).
Fernando Belo
[1] Escrita no seu essencial, segundo a exegese desde meados dos anos 1970, entre 640-630 (Deuteronómio) e o primeiro quartel do século V o mais tardar (a chamada redacção sacerdotal), durante um século e meio assim.
[2] Primeira metade século IV.
[3] A qual, dela mesma, ao contrário do que se diz habitualmente, não é um ‘mecanismo’.
[4] “Em todo o caso nada no biológico indica a proeminência da sexualidade sobre outras funções”, diz em polémica com a psicanálise um dos melhores livros de biologia que eu li, de J.-D. Vincent (Biologia das paixões, Europa-América, p. 148). Ele próprio fornece material que permite pensar o contrário. Acrescente-se que as reflexões que estou fazendo não as aprendi lendo biólogos, deduzi-as do que com eles aprendi.
[5] Dobras dos intestinos, alvéolos dos pulmões, circunvoluções do cérebro: maneiras económicas de aumentar superfície num volume fechado.
[6] Aqui falo um pouco de cor, como se os mamíferos fossem a regra.
[7] P. Clastres, “Arqueologia da violência: a guerra nas sociedades primitivas”, in P. Clastres e outros, Guerra, Religião, Poder, ed. 70, 1980, pp. 11-45.
[8] Deuteronónio, cap. 5. ‘Não cometer adultério’, em sociedades patriarcais, em que a mulher era ‘parte’ da casa, como os filhos, os servos e os rebanhos, como se vê pelo último interdito, a seguir a estes quatro.
[9] Também a ‘santa’ Bíblia, no seu livro porventura mais afirmativo porque ainda não marcado pela experiência do fracasso, o Deuteronómio, sanciona no seu cap. 20 a guerra dos Hebreus contra os povos vizinhos de forma extremamente ‘pouco santa’.
[10] Dependentes da oposição mitológica entre o Céu dos Deuses e a Terrra dos Humanos, que - após a Terra se ter tornado, com Copérnico e Galileu, um astro do Céu - veio a deslocar-se, a partir de Descartes, para a oposição entre o sujeito e o objecto.
[11] Que é discutível que para Platão tivesse uma Forma ideal.
[12] Com efeito, há algumas passagens bíblicas (1 Reis 21.10,13, Job 1.5,11 e 2.5,9, Salmos 10.3) em que os tradutores franceses da Bíblia de Jerusalem e da Tradução Ecuménica dita TOB, talvez por dificulda­des de ordem teológica, propõem que se trate de eufemismos (sic) ou de antifrase as utilizações de ‘barak’ com claro sentido, no contexto, de ‘maldição’.
[13] A que Freud se faz eco na Traumdeutung, se dizer se pode: a primeira referência que ele faz aos irmãos é sob o signo da rivalidade. Foi algo que me chocou muito, a primeira vez que o li, por ser duma família muito católica de 9 irmãos.
[14] Há uma muito curiosa tese do exegeta Armindo dos Santos Vaz, A visão das origens em Génesis 2,4b-3,24. Coerência temática e unidade literária, ed. Didaskalia e Carmelo, 1996, que segue o texto hebraico frase a frase, palavra a palavra, para mostrar que a perspectiva desse texto é ‘positiva’ sobre a condição humana, sendo as traduções correntes ditadas por uma teologia negativista, com origem provável na Patrística cristã do século IV e mormente em S. Agostinho.
[15] Eco talvez à compreeensão de que as mulheres não tinham cio como as fêmeas dos seus rebanhos, corresponde provavelmente ao medo patriarcal do desejo das mulheres, ao espanto perante aquele sangue menstrual que delas escorria (quando o sangue corre, é sinal de morte).
[16] Como Is 55.10-11 fala do ciclo da água.
[17] Ver Belo, Lecture matérialiste de l'évangile de Marc, récit, pratique, idéologie, Cerf, Paris, 1974, p. 67.
[18] Na sua estrutura em dez palavras e seis dias, texto de razão que pede meças ao Timeu de Platão e que faz pena ver tão maltratado pelos fundamentalistas que se apoiam nele contra a ciência da evolução
[19] Tanto animais como humanos são vegetarianos: a lei da selva é atenuada (a licença para comer carne, mas não sangue, virá mais tarde, em Gn 9.3).