domingo, 22 de janeiro de 2017

Não! não existe nenhuma Bíblia grega! (2)



em resposta a Luísa Borges, que comentou assim:
“1º comentário: Em que língua pensamos quando escrevemos, Luís de Barreiros Tavares ? Será que S. Paulo pensou em hebraico enquanto escrevia em grego? E será talvez por essa razão que Teixeira de Pascoaes escreveu no seu S. Paulo que “o mundo vai ser judeu”?
2º comentário: Creio que a tradução é espantosa e o comentário do Fernando Belo não põe isso em causa, o que ele discute é que se use a expressão bíblia grega, se bem entendi, e ai pode ter um ponto ... mas é uma discussão em aberto, como dizes...”


1. Aqui vai um desenvolvimento da minha crítica da ‘Bíblia grega’, que vale para praticamente todas as traduções ocidentais. Vale também para o israelita A. Chouraki, tradutor da Bíblia hebraica, que fez também uma tradução francesa dos 4 evangelhos que pode servir para compaginar a tradução do Frederico Lourenço (adiante, § 8) – por quem volto a dizer a minha grande estima pessoal e pelos seus romances –, o que ainda mais torna as coisas complicadas: toda a minha gente, crentes ou ateus, lê a Bíblia como um livro religioso, que foi aquilo em que ela se tornou, pelo menos para os cristãos, após a derrota de Israel por Roma no ano 70; mas antes era um livro tanto politico como espiritual e religioso (‘pelo menos’, já que o sionismo supõe uma leitura politica). A entrada no cosmopolitismo romano despolitizou a Bíblia (já o cosmopolita Paulo em Romanos 13,1-7) tal como a Filosofia grega se despolitizou após a derrota frente a Filipe e Alexandre da Macedónia.
2. Sem ter lido quase nada da tradução do F. L., só tenho duas criticas. Ele traduz sempre pneuma por ‘espírito’, sem sequer em nota lembrar que em grego a palavra significa ‘sopro’, respiração, tal como spiritus em latim e ruah em hebraico, o qual é claramente ‘sopro’ na Bíblia hebraica (“pela sua palavra os céus foram feitos, pelo sopro da sua boca todo o seu exército, Ps 33,6) e só terá ganho o estatuto ‘cristão’ do nosso “Espírito Santo, terceira pessoa da santíssima Trindade” com Orígenes, no Peri Archõn, início do século III, que o diz “hipóstase intelectual”, recusando que seja sopro ou fogo. A questão que eu ponho, sem conhecer bibliografia sobre o assunto, é: quando é que o “sopro santo” se tornou “espírito santo”? Não posso responder cabalmente, mas presumo que não haja nenhum passo do N. T. em que agion pneuma não seja ‘sopro santo’, o sopro que dá palavra aos apóstolos, como as línguas de fogo do Pentecostes, que têm obviamente mais a ver com o ‘sopro’, enquanto que a misteriosa pomba do baptismo de Jesus desafia os exegetas (uma hipótese, salvo em Lucas que lhe dá ‘corpo’, é ser a ‘descida’ do céu o traço da pomba mitológica, acompanhando a palavra).
3. A outra crítica é ao inenarrável “Filho da Humanidade” em vez do tradicional “Filho do Homem”; é certo que não me lembro de nenhum exegeta com certezas sobre a interpretação desta figura. Com ele, passo à questão que Luísa Borges me pôs entre hebraico e grego, mas antes cito o P. S. que juntei ao texto (1) do meu blogue. Na revista do Expresso de 17 de Dezembro, Tolentino de Mendonça conta um episódio contado pelo filósofo judeu alemão Jacob Taubes, autor nomeadamente de La théologie politique de Paul [1987], em que declarou no final das conferências desse livro: ‘sou pauliniano, não cristão’. “Certo dia, durante a guerra, passeava em Zurique com Emil Staiger, que era óptimo helenista. Caminhávamos ao longo da Ramistrass, quando Staiger confessa: ‘Sabe, Taubes, li ontem as cartas do apóstolo Paulo’. Depois acrescentou com profundo desgosto: ‘Aquilo não é grego, é hebraico! [ídiche, em versão inglesa na Web]’. Ao que eu retorqui: ‘Certamente, Professor, é exactamente por isso que eu o entendo’”. Ora, que Paulo, com educação helenista além da formação farisaica em Jerusalém, escreva ‘hebraico’ em grego segundo um grande especialista de grego, é a mais competente das confirmações que eu poderia esperar para a negação da existência de uma qualquer ‘bíblia grega’! É um argumento de autoridade que neste caso é derimente, já que vem duma autoridade que nenhum de nós tem, nem pelos vistos F. L.
4. Quanto ao “Filho do Humano”, cito um extracto inicial de outro texto do meu blogue que resume a minha leitura do cristianismo: “Que Cristianismo, quando não se pode crer num criador ? Argumentário dum ensaio de fenomenologia histórica e textual (inédito)”.
5. O argumento politico: a aliança e o apocalipse. Idade do Bronze recente, séculos 15 a 13 antes de Cristo, a região do Próximo Oriente conhece uma civilização que tem relações comerciais, diplomáticas e guerreiras entre as suas potências, Egipto, Grécia de Micenas, Hititas [Turquia], Assírios [Afeganistão], Babilónia, diz o historiador americano Eric Cline (1177 av. J.-C. Le jour où la civilisation s’est effondrée). Acrescento eu: a Idade do Ferro levou alguns séculos para relançar os impérios, a monarquia de David (conquista de Jerusalém cerca do ano 1000) aproveitou este vazio de imperialismo para se afirmar em Canaã com alguma autonomia, mas depois foi tornada vassala das diversas potências, primeiro os Assírios no sec. IX, depois Babilónia, Pérsia [Irão], sucessores de Alexandre, enfim os Romanos no sec I a.C.. O Deuteronómio foi escrito durante uma retomada de autonomia entre os Assírios e Babilónia, propondo o motivo da aliança em que o seu Deus é o soberano e Israel o vassalo (por exemplo, na história das 10 pragas do Egipto, é Yahvé contra o Faraó, não contra os Deuses dele), o primeiro assegurando bênção e protecção face às nações estrangeiras, se ele for fiel à ética do Decálogo e ao direito em torno do Templo de Salomão. Ficção colocada no deserto muitos anos antes da monarquia, esta – com todos os seus usos agrícolas e costumes – é reduzida fenomenologicamente para que a relação de soberania seja claramente manifesta na aliança politica. Deuteronómio 28 e Levítico 26, as bênçãos e as maldições da aliança, dizem esta doutrina profética que o livro de Job, alguns séculos mais tarde, criticará no que diz respeito ao destino do justo abandonado por Deus. Após a derrota dos Persas, os mais tolerantes dos seus suzeranos (foram eles que tornaram possível que a Torah seja a lei em Israel), a dominação dos sucessores de Alexandre e depois dos Romanos tornou-se de tal forma insuportável, excluindo qualquer revolta militar, que gerou uma literatura apocalíptica que esperava a intervenção escatológica do Deus soberano da aliança como única saída para esta opressão que, de facto, durou ainda alguns séculos. João Baptista e Jesus de Nazaré inscrevem-se nesta concepção apocalíptica anunciando o Reino de Deus, isto é a vinda do Criador tomar posse do seu vassalo aliado e fazer o Juízo final dos humanos: “os tempos cumpriram-se, o Reino de Deus está muito próximo”. Além da figura do Messias, uma outra figura escatológica dos evangelhos é a do Filho do Humano, citada de Daniel (7,13-14, 27) como uma ascensão colectiva dos justos para o Céu e evocada (sem o nome de F. H.) no primeiro de todos os textos cristãos: “nós, os vivos, que estaremos ainda à espera da vinda do Senhor […] seremos reunidos […] e levados sobre nuvens para  encontrar o Senhor Jesus nos ares” (1a carta aos Tessalonicenses 4, 15-17). Muito estranha aos nossos olhos de descendentes dos Gregos, trata-se da figuração da saída eterna dos justos da Terra para o Céu numa cultura que ignora a oposição platónica entre o corpo e a alma imortal. É este o contexto politico dos textos relativos às origens do cristianismo.
6. A utopia evangélica. Pode-se dizer assim a lógica destas duas figuras, do Filho do Humano colectivo subindo da Terra para o Céu para cumprir o Reino de Deus. a) ela é própria duma sociedade de economia agrícola e criação de gado que depende portanto essencialmente das fecundidades das suas sementeiras e dos seus rebanhos, das bênçãos que o duro trabalho dos campos não garante por si só. A aliança segundo os Profetas ligou a abundância das colheitas e do gado em cada casa à justiça do pai dela. É a mesa que resulta desse trabalho abençoado que faz das gentes da casa uma comunidade que partilha o que alimenta e constitui os seus corpos: em vez da individualidade da alma grega que deve ser virtuosa, aqui é o biológico trabalhado e comido para fazer biológico nos que comem (natureza depois cultura depois natureza indissociavelmente), é a mesa assim que está no coração do pensamento profético. b) o amor do vizinho, do próximo, ou até do estrangeiro vítima de ladrões, o amor do que tem fome, sede, está nu, sem tecto, doente, preso (diz o Filho do Humano em Mateus 25, 31ss), em suma do que não tem casa, esse amor é a mesa abençoada que dá do que ela recebeu com fecundidade aos que lhes falta, é ela que vai além das paredes das casas e das fronteiras étnicas e da segregação racial, para saciar a cem por um. c) a mesa do pão e do vinho partilhados por esses justos em memória da ceia de Jesus é o núcleo do paradigma dos textos do novo Testamento, da nova Aliança: pode-se dizer que é esta a utopia evangélica cuja figura é o Filho do Humano colectivo em ascensão para o Reino messiânico (mais fácil de desmitologizar depois da ascensão dos Americanos à Lua). O que é difícil de pensar nesta figura, é que ela resiste às nossas capacidades de especialistas: trata-se de biológico ou de económico, de religioso ou de político, que relação tem com a ‘dignidade humana’ e os seus ‘direitos’? Sem separação entre pensamento e acção, teoria e prática, também não se trata de metáforas (vegetais ou de pastores), de imagens pedagógicas, trata-se de como se via a ‘realidade’ da vida, a fome. É um desafio ao nosso pensamento greco-romano-cristão. A utopia actual: a fecundidade global dos vivos a alimentar e a curar, a justiça da partilha em redor de si do que se recebeu, o amor do próximo. Eu não consigo, é muito difícil.
7. O que se mostra nesta ilustração da noção de “Filho do Humano” (é igualmente a tradução de Chouraqui) como ascensão (Enoch e Elias no passado bíblico, depois Jesus[1]), é que uma língua não é apenas uma gramática e um dicionário (muito menos bilingue). É a língua duma cultura, duma antropologia, duma mitologia, é ela que ‘pensa’ nos que a falam desde o berço, em Paulo como em Marcos e nos outros. Mas justamente não se ‘traduz’ enquanto tal, já que só é possível traduzir com gramática e dicionário bilingue. É por isso que se pode traduzir razoavelmente bem, como espero que F. L. faça, mas o “Filho da Humanidade” (que é um abstracto europeu moderno!) mostra como ele ignora o fundo hebraico. Não creio que se possa dizer que Paulo ‘pensava’ em hebreu ou em grego, pensava em ambas segundo falava, já que ninguém pensa fora de uma língua, mas esta nos bilingues cria cumplicidades ou ocultações que demandam interpretação. Terá sido esta ‘ocultação’ no escrever que Emil Staiger percebeu vir do ‘tradutor’, como não sabia em que consistia o hebraico, era-lhe mais fácil saber que não era grego. O que eu receio em F. L. é o acento na ‘bíblia grega’ juntamente com a convicção de que vai fazer novidade, sem saber hebraico e ser exegeta, ofício de historiador que demanda muitos anos de especialização. Claro que desejo que faça o melhor possível, mas não há nenhuma ‘bíblia grega’, que ele insista nisso confrange-me.
8. O israelita André Chouraqui, Les quatre annonces, DDB, 1976, traduziu os quatro evangelhos (e o resto do N. T.) do grego mas tendo em conta a língua hebraica, como se desconfiasse da língua grega. O que ele fez dá-me um argumento suplementar: foi exactamente o contrário de F. L., exibir o hebraísmo também na Bíblia cristã. Só por curiosidade, ao acaso e sem servir para ilustrar a polémica aqui, eis uns bocadinhos da tradução francesa dele de Marcos e da de F. L., com diferenças e recobrimentos. 1,8 “moi, je vous ai immergés dans l’eau. Lui vous immergera dans le souffle de sainteté” / “eu baptizei-vos com água, mas ele vos baptizará num espírito santo”; 1,15 “il est accompli, le temps, Il est proche, le royaume de Elohim. Faites retour, adhérez à l’annonce” / “completou-se o tempo e ficou próximo o reino de Deus. Mudai de mentalidade e acreditai na boa-nova”; 1,25-6 “Yéshoua’ le rabroue: ‘sois muselé! Sors de lui!’ Le souffle, l’immonde, le convulse, crie d’une voix forte et sort de lui” / “E Jesus repreendeu-o dizendo: ‘cala-te e sai desse homem’. Então, o espírito impuro, depois de o sacudir com força, saíu dele dando um grande grito”; 3,5 “Et ils se taisent. Il les regarde à la ronde et iui brûle, blessé par la dureté de leur cœur” /  “Eles ficaram calados. Então, olhando com cólera e entristecido com a dureza dos seus corações”. Ao que chamamos "novo testamenteo" ou "nova aliança", chamou ele "um novo pacto".



[1] E Maria segundo Pio XII em 1950, a definir a Assunção de Nossa Senhora aos Céus, a vinte anos da ida à lua ! é o feriado de 15 de agosto.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

A velha questão do conhecimento, como quem brinca


 
1. Como quem brinca aos 83 anos com uma das primeiras grandes questões da filosofia tal como Platão a formulou, cuja resposta consiste no que habitualmente se chama platonismo, tal como o retratam os grandes diálogos da República e do Banquete e que Aristóteles criticou, tal critica tendo sido formulada pelo próprio Platão no Parménides, que fez a viragem para o Teeteto e seguintes, para a questão do conhecimento enquanto ciência das coisas terrestres, que Aristóteles desenvolverá de forma esplendorosa para os vinte séculos seguintes, até Galileu e Newton. O platonismo consistiu em colocar a origem das coisas em Formas ideais (Eidê, uns traduzem por Formas, outros por Ideias) celestes, imutáveis, que as almas humanas contemplaram antes de virem aos corpos: explicava-se assim que um pensador pudesse ter o que chamaríamos ‘experiências de pensamento’ acima do comum dos mortais, que não derivassem de aprendizagem vinda da tradição dos antepassados nem do ensino de mestres. O comum dos mortais não lhes tinha acesso, vivendo entre geração e corrupção do corpo, como os outros animais. Donde que no Fédon, o que muito me espantou quando dei por ela, a alma imortal fosse deduzida como, por assim dizer, irreversível após a morte apenas para os filósofos, gente de virtude e de saber (terá sido o cristianismo quem a ‘democratizou’, para escravos e mulheres e crianças também?). O primeiro passo do que se pode chamar a génese dessas Formas ideais foi feito no Crátilo, quando uma longa discussão das etimologias das palavras gregas levou a excluir estas e a língua da possibilidade de servirem para o conhecimento, o Ménon depois falando de reminiscência das Formas ideais. Ora, estas resultavam duma invenção de Sócrates, a definição, como meio de incentivar os seus jovens auditores interrogados a buscarem por eles mesmos o sentido de tal ou tal virtude para assim a praticarem, já que justamente o mestre, Sócrates, não podia ensinar esse sentido ‘ideal’, que não se aprende de fora: no Teeteto, que faz a teoria desta questão, a maiêutica substituindo a reminiscência (pelo menos sem recurso a ela), ele é o parteiro das almas dos homens, estéril, apenas capaz de discernir se o que os jovens pensam em seus ‘partos intelectuais’ é verdadeiro ou falso. Resumindo: o conhecimento por via das Formas ideais, nas almas sem aprendizagem, reservado aos filósofos e virtuosos, releva dum nível dito em filosofia inteligível, por oposição ao conhecimento vulgar que se aprende, dito sensível. Ora bem, a critica da teoria das Formas ideais por Aristóteles, da separação que ela opera entre a ‘essência’ definida das coisas e elas próprias, em sua ‘substância’, critica que provém da definição primeira da Physica, a da ousia, que nas Categorias tem duas acepções, a primária sendo a ‘substância’ e a secundária a ‘essência’ na tradução latina, essa critica ‘realista’ do ‘idealismo’ platónico não atentou contra a oposição entre os dois níveis de conhecimento, o do inteligível e o do sensível: no Da alma, tratado digamos bio-psicológico, em contraste claro com os textos da lógica, da poética (e da retórica, creio), o logos não intervém, como se Aristóteles não tivesse encontrado o seu lugar, entre o que a filosofia latina e europeia traduziu como duas instâncias, a razão e a linguagem, como se já para ele a linguagem fosse o obstáculo à oposição inteligível / sensível (Derrida), que perdurou na filosofia ocidental até pelo menos Husserl, com algumas excepções como Marx e Nietzsche; e foi esta oposição que Heidegger diagnosticou como constitutiva da metafísica.
2. Pode-se encontrar esta oposição nos dois filósofos, grego e europeu, que mais marcaram a relação da filosofia com as ciências, Aristóteles e Kant. No primeiro é a diferença entre a ousia (substância – essência), que a filosofia conhece pela definição, e as coisas que são conhecidas apenas nos seus acidentes, que as narrativas contam a partir do saber quotidiano, e a filosofia não conhece, já que ‘singulares’, ‘coisas em si’, ‘empíricos’ em Kant, que os dirá ‘númenos’ (referindo às ‘substâncias’ aristotélicas), de que se ocupa a razão prática, enquanto que a filosofia teórica trata de fenómenos da sensibilidade e de conceitos do entendimento e das ideias da razão. Ousia / acidentes, fenómenos / númenos (inversão das posições entre ambos, dum filósofo do logos a um filósofo do sujeito, da consciência). A questão que aqui procuro é a de saber se a fenomenologia que entendi com a gramatologia de Derrida pode e como desconstruir esta oposição entre dois conhecimentos, o vulgar e o das filosofias e ciências. Será no motivo dos usos e da linguagem, da sua aprendizagem a partir de outros como ‘inscrição’, que haverá que procurar a resposta; Derrida escrevia “da enigmática relação do vivo ao seu outro e dum dentro a um fora” (De la Grammatologie, p. 103).

O conhecimento tribal
3. É com efeito o uso tribal que se aprende que está no cerne do conhecimento e não a percepção husserliana de objectos, muito menos a predominante percepção visual, com as suas peculiaridades que enganaram os filósofos, a de parecer bastar-se a si mesma, aos olhos do sujeito, e de ser correlativa da luz, impalpável e inaudível; esta não pertence aos quatro elementos gregos, enquanto que na criação bíblica é o primeiro ‘bem’ (o que não as trevas, vindas em sua consequência) antes de tudo o resto, nomeadamente do sol. O filósofo francês empirista Étienne de Condillac, no seu Tratado das sensações, conta como um cego de nascença operado a cataratas em Londres em meados do século XVIII, “quando começou a ver, os objectos pareciam-lhe tocar a superfície exterior do seu olho. A razão é sensível. [...] O seu olho não tendo ainda comparado tamanho com tamanho, não podia ter sobre isso ideias relativas. Não sabia ainda portanto deslindar os limites dos objectos. [...] Também nos asseguram que ele precisou de algum tempo antes de conceber que houvesse algo além do que ele via. Percebia todos os objectos misturados e na maior confusão, e não os distinguia, por diferentes que fossem a forma e o tamanho. É que ele não tinha ainda aprendido a apanhar com a vista vários conjuntos. Como o teria ele aprendido? Os seus olhos, que nunca tinham analisado nada, não sabiam olhar, nem por consequência observar diferentes objectos, e fazer de cada um deles ideias distintas. Mas à medida que se acostumou a dar profundidade à luz, e a criar, por assim dizer, um espaço diante dos seus lhos, ele colocou cada objecto a distâncias diferentes, assinalou a cada um o lugar que ele devia ocupar, e começou a julgar com o olho a sua forma e o seu tamanho relativo. [...] Um objecto dum polegar, colocado diante do seu olho, parecia-lhe tão grande como a casa [aprendeu portanto a perspectiva; nesse momento só tinha um olho, o outro foi operado um ano mais tarde]. Sensações tão novas, e em que ele fazia descobertas a cada instante, não podiam deixar de lhe dar a curiosidade de ver tudo, e de estudar tudo com o olho. Também quando lhe mostravam objectos que ele reconhecia ao tocar, observava-os com cuidado para os reconhecer numa outra vez com a vista. Dava-lhes ainda mais atenção por não os ter reconhecido logo nem pela forma nem pelo tamanho. Mas havia tanta coisa a reter, que ele esquecia a maneira de ver alguns objectos, à medida que aprendia a ver outros. Aprendo mil coisas num dia, dizia, e esqueço outro tanto”[1]. Citação de grande espanto: não se vê só com os olhos, Husserl! Os bebés quando nascem não só não sabem mexer nem ouvir como não sabem ver, têm que aprender tudo e umas com as outras: aprender a ver com o aprender a ouvir e com o aprender a mexer. O que não nos devia espantar tanto assim, pois que, além dos pintores e dos amantes de pintura, há muitos misteres em que se tem que aprender a ver o que em geral não vemos, os cirurgiões, os mecânicos de automóveis, os agricultores, sei lá! Em todos os casos, não se trata só de ‘ver’, mas de ‘saber ver’, com o que o saber implica de linguagem e tantas vezes de mãos que fazem.
4. Outra coisa que engana nesta questão do conhecimento é a tradicional teoria dos cinco sentidos, que nos vem já de Aristóteles. Ora, dois deles são bastante distintos dos outros: o olfacto e o paladar são essencialmente de ordem química, são reguladores da qualidade da respiração um deles, da comida que se mete na boca o outro, os seus nervos vão directamente para o páleo-cortex do cérebro já nos peixes e répteis, secretor hormonal, enquanto que os nervos dos três outros visam o neo-cortex das aves e dos mamíferos, o que elabora estratégias; cada um tem a sua área de entrada até virem a encontrar-se em áreas comuns, depois de passarem no antigo córtice onde são acolhidos por outras redes neuronais. Enquanto que os nervos ópticos e auditivos se isolam bem anatomicamente, o chamado tacto não tem a ver apenas com as mãos, que sem dúvida têm um papel relevante nele, mas com a pele de todo o corpo e com os vários órgãos internos quando doridos por qualquer razão, a este conjunto se chamando someastesia (do grego o ‘sentido do corpo’). Nestes casos, creio que se pode dizer que a química joga menos do que a física: a óptica, a acústica e o contacto.
5. Como podemos perceber o jogo cerebral destes usos a aprender, que não tem nada ver com os tais cinco sentidos? São eles que nos fazem seres no mundo – para começar ser na tribo, a família e a escola nas nossas sociedades mas hoje já os médias também e cada vez mais – e mostram que são vários os comportamentos desses usos, como formas corporais mais ou menos globais, como diz o prefixo ‘com’ de comportamento que como que ‘liga’ as várias partes do corpo que são ‘portadas’ (como em ‘trans-portadas’, por exemplo), cabeça, tronco e membros, como se dizia na velha escola primária. Por outro lado, que se aprendam coisas que implicam comportamentos indica a criação da relação dum dentro e dum fora que citámos acima de Derrida, anulando-se a clássica oposição que no conhecimento diz respeito ao passivo (dos tais cinco sentidos) e activo: a injunção do outro, de quem se aprende, é recebida (passivamente) mas entendida como comportamento (activamente); em vez duma simples “percepção visual” à maneira de Husserl, teremos os grafos cerebrais (Changeux) dos eixos que tornam possíveis os vários comportamentos. Sejam exemplos de usos infantis banais: ‘vá lá, senta-te na cadeira’; ‘pega bem na colher’; ‘vamos para casa’, ‘bate-se à porta, alguém abre-a, entramos’; ‘que letra é esta?’; ‘pega no caderno e no lápis e faz esta conta, 33 vezes 33’; ‘então quando é que eu vou brincar com o Zé Maria para o jardim?’ Trata-se de nomes de coisas e de verbos, a pergunta sobre a letra só reclama a visão da criança, mas outras reclamam as mãos para pegarem, os pés para andarem, o corpo para se sentar ou entrar pela porta. E todos supõem a fala. No exemplo da colher, o eixo visão / mãos com a receita da fala que o diz, nomeando a colher e o ‘tu pegas’, eixo de tudo o que é mexer e trabalhar. Nos exemplos de caminhar, o eixo visão / pés (ou mãos com bengala / pés, quando falta a visão suprida pelo eixo respectivo) e o que a fala diz da meta desse comportamento. O exemplo final, da objecção da criança que quer ir brincar com o vizinho, ilustra o eixo da audição / fonação. E há sem dúvida outros eixos (audição / pés na dança, por exemplo), mas estes principais chegam para perceber como os dois termos de cada eixo dizem o primeiro aquilo que vem de fora e o segundo uma actividade respectiva comandada de dentro em sequência: dos órgãos perceptivos ao cérebro e depois aos músculos da mobilidade. Os cinco sentidos cortam a relação sujeito / mundo e não é por acaso que a linguagem não faz parte deles enquanto órgãos do conhecimento (sonoro, no caso), apesar da importância da audição ter sobretudo a ver com ela, sublimação humana fortíssima da audição mamífera que tinha sobretudo a ver com a caça e a defesa de se ser caçado. Duas outras sublimações humanas fortíssimas são a das mãos, deslocadas do caminhar para o trabalhar, e a da boca, deslocada de arma de predação para a fonação. Os eixos do conhecimento dos outros mamíferos também não são compatíveis com os cinco sentidos! Outra lacuna destes em relação ao conhecimento humano, tem a ver com o motivo do ‘saber’ que nele é crucial enquanto saber do mundo, que por eles vem mas sem que se saiba como, como se não passassem duma passagem como que servil, instrumental porque corporal, e houvesse que pôr as boas questões do conhecimento a seguir a eles. Ora, conhecemos as coisas com as mãos que mexem nelas, os olhos que as vêem e as palavras que as nomeiam, dizem, qualificam, contam, não há palavras que digam o mundo sem mãos nem olhos: “o olho e o mundo na fala (parole)”, na palavra, escrevia Derrida (La voix et le phénomène, p. 96). As nossas mentes neuronais é disto que estão pejadas.
6. Que a tradição filosófica medieval e europeia tenha ignorado a linguagem até ao século XX, com excepção de empiristas como Locke e Condillac, sendo gente de grande envergadura de pensamento, obriga a pôr a questão de saber aonde é que ela se lhes escondia: era justamente no pensamento! Desde o logos grego, como Platão explicitou claramente no Sofista, ele que tanto separou sensível e inteligível e subalternizou as palavras: “pensamento (dianoia) e discurso (logos) são a mesma coisa, só que o diálogo que a alma tem em silêncio consigo mesma recebeu o nome especial de pensamento” (263e). Pensando só numa língua e ignorando a tradução por desprezo pelas línguas ‘bárbaras’ (ba-ba, diziam dos sons que não entendiam), não tinham que distinguir pensamento e linguagem, como fizeram depois os Estóicos inventando o motivo de signo, que acrescenta à dualidade herdada da Atenas clássica, onoma e pragmata (os nomes e as coisas), o lekton, a significação que o estrangeiro não entende. Deste trio, encontra-se nos Medievais, que também só cultivavam o latim e não se preocuparam com a tradução, um trilátero, que corresponde ao do signo, respectivamente língua, realidade e pensamento, no qual o debate realismo / nominalismo discutirá os ‘nomes’ mas para privilegiar com Occam os “nomes mentais”, donde provirão as “ideias” cartesianas, o ‘pensamento’ oposto às coisas da ‘realidade’, secundarizadas as línguas, como foi manifesto quando as diferentes línguas vernáculas entraram na filosofia, com Descartes aliás nomeadamente. Com ele com efeito a dualidade pensamento / real, res cogitans / res extensa, depois sujeito / objecto, dominará as questões do conhecimento sem que a linguagem tenha algum relevo filosófico, reino dos gramáticos e dos lógicos pelo menos desde Alexandria. Aliás, já Cícero traduzira a mais célebre definição aristotélica, do humano como zôon echon logon, animal tendo discurso, por “animal racional”, o logos como ratio, perdendo para oratio ou verbum a sua dimensão de linguagem: o dualismo alma / corpo adequava-se melhor a esta tradução do que ao original grego, como ilustra a citação do Sofista, embora o próprio Aristóteles não tenha podido meter o logos que predomina em toda a sua teoria lógica e poética na sua bio-psicologia Da alma. Ou seja, já havia problemas na Academia e no Liceu, mas foi em latim, sobretudo medieval, que eles se agudizaram[2]: na tradição do conhecimento aristotelista, aos sensíveis e passivos cinco sentidos juntavam-se duas faculdades inteligíveis, a inteligência (passiva) e a vontade (activa), o que se veio a chamar psicologia racional. Tudo isto é dito a correr, apenas para se saber donde vêm as dificuldades da questão e o alcance do que se propõe.
7. Ora bem, introduzir a língua, os nomes e os verbos das frases nas receitas dos usos que se aprendem, nos eixos cerebrais, que consequência tem? A de não separar o que tem a ver com olhos e mãos – na manipulação de qualquer coisa, manifestamente sensível quer à luz (perde-se na escuridão), quer na resistência do material ao tacto – do que se ouve com os ouvidos mas não se vê nem se apalpa, não é por isso tão claramente ‘dado’: as vozes e os saberes são diferentes, a alteridade manifesta-se irredutível – suscita conflitos com frequência, contestação dos saberes que se ouvem – ao mesmo tempo que as palavras e as regras da língua são as mesmas na tribo e impedem que se fuja ao tribal, digamos como ‘autoridade’ social que se impõe ao ser no mundo que somos, fora do qual não podemos existir (no estrangeiro, usos e língua são outros, como sofrem os emigrantes). Em resumo, como as receitas são indissociáveis do que nomeiam, pessoas, coisas, fazeres, elas são condição para que os assim nomeados sejam do ‘nosso’ mundo. O que se chama inteligência ou razão começa por ser, a este nível de usos básicos, a maneira como falamos deles, como os podemos fazer, ainda que calados: fazer uma sopa, implica seguir a receita, ainda que se esteja a falar com outrem ou a pensar noutra coisa. Como se o que se chamou em filosofia o ‘inteligível’ fosse o que cobrisse o chamado ‘sensível’ de maneira social. Chamando texto a estas receitas sobre o que vemos, mexemos, fazemos, dá para entender a afirmação de Derrida, à primeira vista escandalosa: “não há fora de texto”. Tudo o que vemos, mexemos, fazemos, só é possível porque sabemos nomeá-lo, porque estamos no espaço em que o dizemos. Chegamos a Tóquio e estamos perdidos, embora vejamos coisas equivalentes às da nossa tribo. Em termos husserlianos, a intuição categorial é condição da intuição sensível, esta inversão fez parte da critica de Heidegger, em que o motivo de “pré-compreensão” (Ser e Tempo) implicita a aprendizagem e a linguagem.
8. Como se conhecem as coisas a este nível do quotidiano? Organizadas segundo a lógica dos paradigmas dos usos. Se esta argumentação colher, isso implica que ao nível das coisas de cada dia, os nomes delas fazem parte do conhecimento que temos delas, sem dúvida, mas também que quanto mais e melhor as usamos, mais e melhor as conhecemos: a aprendizagem e o treino são as rotinas do conhecimento, do que chamamos experiência e saber, ainda que errados, pois que o argumento não invocou a verdade, nem as essências. A este nível, a ‘verdade’ é relativa aos paradigmas, aos usos e costumes, e liga-se ao motivo de testemunho, que apela ao conhecimento de factos que impliquem diferendos e ao saber contar as narrativas desses factos de forma coerente. É a este nível de ‘verdade’ que se opõe a mentira e a ficção, não o erro (gnosiológico). É certo que pode haver ‘erros’ ou ‘enganos’ no quotidiano, deliberados ou não – coisas que façam mal à saúde, por exemplo, ou contra os costumes – que outros podem diagnosticar em função dos seus conhecimentos: a sua validação ou invalidação como conhecimento tem como referência a reprodução da unidade social – família, empresa, escola –, os seus paradigmas que esses enganos comprometam. Enquanto que a questão da verdade dum conhecimento além dos paradigmas das unidades locais implica um tipo especial de unidades sociais, como as igrejas o foram massivamente até ao grande cisma do século XVI, sujeitas a guerras e polémicas em seguida; na actual civilização de maneira predominante são as escolas e os laboratórios científicos, mas os médias, livros sobretudo, e os outros que hoje proliferam, têm implicações com a questão.

O conhecimento além da tribo
9. Os dois exemplos do § 5 referindo a aprendizagem das letras e dos números reenviam, em princípio, para além da família, como atestava o analfabetismo: o que se aprendia na escola não tinha pertinência para a reprodução quotidiana das famílias. Que tenha incluído a escola no ‘tribal’ significa que hoje já não é assim no que se refere aos estudos primários mas começa a ser quando se vai subindo na aprendizagem de disciplinas que se bifurcam entre ciências, humanidades, profissionais, artes, etc., onde se originam as especializações futuras. É certo que a especialização de ofícios é muito antiga mas fazia-se nas casas, a escola sendo marginal. Mas foi nela, na Grécia do alfabeto com vogais, que se inventou o que estrutura a escola moderna, a definição. Esta desenvolveu um novo tipo de texto dedicado exclusivamente ao conhecimento, o texto gnosiológico, com as suas essências (conceitos) e argumentos: em termos de Benveniste, nem narrativa nem discurso. Acrescente-se contudo que, como Heidegger algures observou, Platão e Aristóteles não pensavam com ‘conceitos’, já que no logos pensamento e língua não se dissociavam como sucedeu após a tradução em latim, como acima se disse: os nossos ‘conceitos’ pretendem ser apenas pensamento / conhecimento, fora das gramáticas das línguas vernáculas[3]. O que a definição opera é uma violência em relação ao paradigma das receitas dos usos das unidades locais, a violência da abstracção, como aliás já fazia a geometria, ou as simples contas, que jogam apenas com as regras imanentes da tabuada e da aritmética, os cálculos desligando-se das coisas que se contam: a essência do que é definido abstrai cada coisa do seu contexto de fenómeno, do que lhe deu origem e o condiciona na existência; essa essência, comum a todos os definidos numa mesma espécie, permite um conhecimento intemporal e incircunstancial, qualquer que seja o sujeito conhecedor desde que siga as regras da nova textualidade. Mas foi no interior dela que a tradução do grego para latim provocou as alterações que dissemos, o que significa que essências e argumentos gnosiológicos guardavam uma relação à língua, como os Gregos sabiam mas não souberam Latinos nem Europeus. E não só à língua, também ao contexto civilizacional acima dos paradigmas tribais das casas: por exemplo importante, a derrocada do império romano no Ocidente, o novo lugar assumido pelas igrejas cristãs e o recurso destas à filosofia platónica para forjar um discurso adequado alteraram substancialmente esse contexto civilizacional e por via de consequência a maneira de ler as essências e os argumentos. As universidades medievais exibem claramente essas alterações nas suas problemáticas de dominância teológica e na especulação filosófica que daí resultou. O aristotelismo que Alberto Magno e Tomás de Aquino fomentaram é razoavelmente diferente da textualidade de Aristóteles, levando por vezes ao engano os próprios especialistas[4]: uma boa parte do trabalho filosófico de Heidegger no século XX foi recuperar as questões aristotélicas submergidas.
10. Uma das maneiras de abordar a diferença entre este conhecimento geral por essências e o conhecimento tribal dos paradigmas caseiros, que o que se chama ‘especulação’ ignora deliberadamente, é sublinhar que a escrita que argumenta sobre essências recorre apenas à visão das coisas e esconde as mãos que as manipulam, esquecendo as que escrevem (quase sempre de escriturários a quem se dita), não se ocupa dos pés dos que viajam, em resumo as essências já não são do ‘movimento’ das coisas, como era a ousia aristotélica; nem tempo e lugar, portanto nem história, lhes interessam, mas justamente apenas o que lhe sobrevive, imutável (parece) de geração em geração. E que bem isso foi! Só a grande mutação que houve entre 1450 e 1520 – a impressão dos livros e o grande cisma cristão, a descoberta dos oceanos, do planeta e dos outros continentes, o humanismo das artes e as mecânicas – gerou um certo cepticismo em relação aos saberes universitários livrescos em prol da experiência de conhecimento do novo mundo que se abriu vertiginosamente; demorou ainda um século para se descobrir o que veio completar a velha definição e abrir uma nova maneira de conhecer, filha da geometria mas também da mecânica e em “retorno às próprias coisas”, se se pode dizer sem anacronismo, sabendo que Husserl não ia muito à bola com Galileu. Filha da geometria porque ‘mede’ as coisas, da mecânica que introduzirá a força e a massa, mas com uma invenção totalmente nova, a do tempo, como atesta que não tinham instrumentos para o medir, foi preciso inventar relógios depois de Galileu. Geometria e mecânica com tempo: tratava-se de medir o movimento e de calcular as forças. Foi também precisa uma nova matemática, álgebra, cálculo infinitesimal e integral (Descartes, Leibniz, Newton). O laboratório científico é uma unidade social nova cujo paradigma (Th. Kuhn) inclui o saber já transmitido, as experimentações e os respectivos instrumentos de medição, a matemática adequada a esta, do tipo de equações cujas variáveis são verificadas segundo os resultados das dimensões medidas, relacionando estas entre si (espaço, tempo, massa, aceleração...): é nestas equações verificadas experimentalmente que reside a novidade da física europeia, o discurso que é tido habitualmente como teoria científica é a interpretação delas em língua gnosiológico-filosófica. Com efeito, o que foi introduzido assim, na sequência da geometria e da astronomia, é claro, foi o trabalho, o labor sobre movimentos, a substituição do olho definitório que observa sem mãos pelo eixo visão / instrumentos de medida. Não é tanto a teoria que permanece – ela é refutável e será refutada por novas experimentações –, mas as equações verificadas experimentalmente em qualquer laboratório. São elas que servirão ao futuro engenheiro para decidir as dimensões do seu engenho: é porque os instrumentos de medida são constitutivos da física (como da química), esta já técnica (e não apenas mãos), que técnicas científicas foram possíveis a partir de Watt, de Volta, de Gramme e de tantos outros.
11. O que se ganhou em relação à definição filosófica de observação sem mãos, teve, é claro, uma ranção: o conhecimento das ciências é regional, introduz fronteiras de especialização irredutíveis entre elas, fragmenta o conhecimento que a filosofia parecia ter unificado. Dentro desses limites, como caracterizá-lo? Arriscar-me-ia a dizer que, assim como as definições filosóficas julgavam conhecer as coisas sob os ‘acidentes’ que recebiam do seu contexto (o que levou Kant a falar de fenómenos e deixar os númenos incognoscíveis) mas tinham o seu alcance na argumentação entre elas que permitiam, na rede gnosiológica de conceitos, também parece frequente que os cientistas olhem o que se passa no seu laboratório com os olhos do quotidiano, como filósofos sem mãos, tenham dificuldade em enxergar o fora do laboratório aonde estão as ‘coisas’, o que se diz ‘realidade’, impura da multiplicidade de efeitos não mensuráveis; olham fora do laboratório como se não houvesse diferença, ele pudesse ser apagado como um andaime após o prédio construído. Ao contrário do engenheiro, que tem o seu trabalho sempre em vista do fora dos vários laboratórios de que necessita, a ter que prever os movimentos que o seu engenho vai ter que fazer, para os quais é inventado. Será pois este que mais nos interessa considerar quanto ao que resulta deste tipo de conhecimento científico: não se trata de conhecer como as coisas ‘são’, mas como se ‘movem’, quais as suas possibilidades. Se uma pedra cair nesta situação, cai assim; tal força sobre tal móvel levá-lo-á a tal aceleração, e por aí fora, assim como ‘conhecer um carro’ é saber que percursos ele pode fazer.
12. Ora, avaliar possibilidades é igualmente o que permite o conhecimento de tipo tribal, como atesta o lugar que o motivo tem em Ser e Tempo de Heidegger. Conhecer um carro tem aqui outros cambiantes, a cor, o estilo, a cumplicidade dum longo tempo de uso, os defeitos a que há que obviar de vez em quando, sei lá, mas também a força que lhe vem dos seus cilindros, as velocidades a que pode chegar. Exemplo cómodo de como os dois tipos de conhecimento se unificam praticamente, numa época em que os aparelhos e as maquinetas se multiplicam nos usos quotidianos, em casa como nos empregos. Enquanto pelo conhecimento tribal dos usos e acontecimentos conhecemos os singulares e algumas generalidades, por exemplo de tipo proverbial, o conhecimento do geral pode adequar-se-lhe relativamente, enquanto que o seu alcance mais universal, ganho em livros e estudos, se esmalta também de acontecimentos que vamos recebendo dos médias. É certo que não prossegui para o conhecimento nas ciências que têm a ver com os vivos e os humanos, não seria fácil – as doenças e as crises sociais como desafios – mas não se poderá falar de ‘unificação’ dos dois tipos de conhecimento, tanto mais que o gnosiológico é cada vez mais especializado e menos universal, cada um ‘sabe’ como consegue, e como lhe falha por vezes, a relação entre ambos os seus ‘saberes’, os artistas tanto das artes como dos ofícios sendo quem melhor porventura se aproxima, não da impossível ‘unificação’ mas, digamos, duma harmonizaçãoPensando bem, um relógio de pulso é um pequeno laboratório de contar o tempo, que supõe a astronomia e a divisão das 24 horas em minutos e segundos, digamos, e faz intermitentemente, enquanto houver pilha, o seu ‘labor’ de contagem. O que nós conhecemos, ao nível quotidiano de quem quer saber a quantas anda, é apenas o lugar do ponteiro no ecrã que vemos e que harmonizamos com a próxima ocupação do nosso tempo, pensada em linearidade. Como aliás os técnicos de laboratório, que trabalham com aparelhos de experimentação complicados que lhes estão muitas vezes vedados, também os põem em andamento carregando com um dedo num botão e olhando umas luzes e depois recebem os resultados olhando números em ecrãs, riscos irregulares de hologramas e coisas assim, que se sabe ligar ao saber gnosiológico adequado. Estas aparelhagens exibem o corte irredutível entre ambos os conhecimentos, o da teoria do aparelho e o da percepção as inscrições que ele produz, mas é sempre no contexto dos usos quotidianos (doméstico ou emprego, onde se lê por exemplo) que se sabe ‘verdadeiramente’ o que quer que se saiba, porque o que nós somos, a nossa memória, é feita da lógica desses contextos. Um saber geral, como este que estou escrevendo, lê-se com os olhos e ‘compreende-se’ através das ligações de grafos cerebrais inscritos pelas lentas aprendizagens dos paradigmas das generalidades correlativas de filosofias e de ciências, os quais se ligam a outros paradigmas que, etc. Aprende-se sempre por fragmentos, os quais se enxertam, melhor ou pior, na rede de fragmentos anteriores, escolares, profissionais, domésticos; ‘melhor ou pior’, porque tais fragmentos misturam-se com outros que por vezes são contraditórios com eles, ninguém é inteiramente lógico, à maneira do tratado lógico-filosófico, que aliás Wittgenstein veio a renegar. Falando em memória: esta está na sua grande extensão, ‘esquecida’ quando pensamos, onde se percebe que é sempre também fragmentariamente que se pensa. É por isso que escrever não é fácil.

O conhecimento fenomenológico proposto
13. Falta um último e mais ousado passo para a universalidade do conhecimento, o que tem a ver com a pretensão desta fenomenologia dos fenómenos como duplamente enlaçados, doados por cenas que os alimentam e onde circulam, distinguindo quatro cenas principais diagnosticadas pelas descobertas das quatro ciências fundamentais no século XX. A sua pretensão é a de proporcionar um conhecimento no seio da tradição ocidental que se possa chamar ‘universal’ e ‘verdadeiro’, visto que os quatro grande tipos de fenómenos descobertos se deixam analisar em paradigmas das mesmas categorias fenomenológicas. Conhecimento universal das coisas como elas se movem, com autonomia indeterminada. É ‘ambição’ do texto, da fenomenologia, não do autor que se admirou muito de ter chegado tão longe com suas capacidades medianas, que é modesto ao ponto de achar uma certa graça à ideia de que, além de alguns alunos, é praticamente o único a conhecer a verdade global, fenomenológica, do universo. Como quem brinca aos 83 anos.





[1] Condillac, Traité des sensa­tions. Traité des animaux, Corpus des œuvres de Philo­sophie en Langue Française, Fayard, 1984, pp. 195-198.
[2] Tratei longamente esta questão no meu e.book Da Natureza à Técnica. Construção, descontrução e reconstrução.
[3] Já não sabemos ler os Gregos clássicos sem conceitos, ainda que sejamos gregos de língua materna.
[4] Como Alain de Libera, La querelle des universaux. De Platon à la fin du Moyen Age, Seuil, 1996, como discuto em Da Natureza à Técnica, Leya, e.book, 3. 21-27.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

O que é um fenómeno? e a Fenomenologia?



O deslocamento da Fenomenologia enquanto ‘retorno aos fenómenos’
1. A questão foi debatida em meados de dezembro de 2016 num Encontro na Faculdade de Letras de Lisboa, a que uma intervenção cirúrgica ocular me impediu de assistir. Mas o programa proposto, com a excepção do título de Pedro Alves que interroga a física quântica para abrir o questionamento e me deixa cheio de curiosidade, parece andar em roda de Husserl e da problemática lógico-filosófica de há um século, o que me não excita particularmente, embora os meus conhecimentos dela sejam limitados, porque justamente nunca me acicataram a sério, comparado com os seus dissidentes Heidegger e Derrida. Tomarei o fio da minha comunicação ao Congresso de Braga, Abril de 2016,  neste blogue, aonde esbocei as relações entre estes três pensadores donde resultou o que fui levado a chamar ‘fenomenologia’, não como projecto meu inicial mas ao cabo de vários anos de leitura e escrita que me fizeram perceber aonde tinha chegado, por assim dizer inadvertidamente (explica-se assim uma ‘ambição’ desmedida que não foi deliberada, medida).
2. Começava assim esse texto. “O aparecer do próprio objecto, [...] a vivência intencional em que o objecto aparece”, é o fenómeno, imanente à consciência, não o objecto que aparece, que transcende o que é dado à consciência. O fenómeno será a imanência na consciência do aparecer do que lhe é exterior, o motivo ‘imanência’ sublinhando a dupla pertença do fenómeno, ao ‘objecto e à consciência ou ‘sujeito’, a ultrapassagem da dualidade cartesiana entre duas ‘substâncias’, a res cogitans e a res extensa. Passo decisivo da fenomenologia de Husserl que, como se sabe, vivia obcecado pela “crise das ciências europeias”, embora privilegiando a matemática e a lógica entre elas, além da psicologia que abandonara. Os exemplos husserlianos de fenómenos andam sempre em volta da percepção, sobretudo visual: o fenómeno é um objecto visto pela consciência. Ora bem, de uma forma um tanto irreverente, perguntemos: qualquer coisa que eu veja é um ‘fenómeno’? A palavra no seu uso corrente diria justamente o contrário, um ‘fenómeno’ é algo fora do habitual, é algo que chama a atenção por alguma bizarria, por algo de excepcional, digno de ser visto e ponderado, provocando espanto e pedindo explicação. E tendo Husserl como lema “o retorno às próprias coisas” e se estas não são ‘inertes’ (à maneira de Newton), devemos considerar duas iniciativas para haver fenómeno: a da coisa, que chama a atenção do fenomenólogo, a deste, que retorna a sua atenção para ela.
3. Que a coisa chame a atenção, tome a iniciativa, é algo que relembra a tese aristotélica (dita realista) da sensação (a percepção) como faculdade ‘passiva’ do humano que a recebe: é ela, a coisa vista ou ouvida ou mexida, que age para que haja conhecimento (aliás não só sensível, também inteligível). Para que seja assim, foi necessário a Aristóteles pensar as coisas na sua Physica como capazes (dunamis) de movimento por elas mesmas; é sem dúvida algo que faltou a Husserl e que o seu discípulo Heidegger não deixou de lhe objectar: a percepção privilegia no tempo o ‘presente’, ignora-o como sucessão, como movimento entre passado e futuro (fotografia sem cinema, dir-se-ia). E tem dificuldade igualmente com o tempo do próprio fenomenólogo, que Heidegger problematiza como Dasein, ser no mundo doutros como ele, falantes e com os mesmos usos, ser no mundo de incessantes movimentos; acrescentemos, vivo como as coisas vivas que nascem, crescem e morrem, ou seja fenómeno também ele entre as coisas a que quer retornar. Mas então o motivo de ‘fenómeno’ torna-se muito mais complicado. Dizia nesse texto: “Dasein é um ser no mundo da tribo em que nasceu, afectado pelos seus usos e costumes. O motivo de Mitsein é igualmente parte essencial deste mundo social (como não são as ‘almas’ nem as ‘consciências’ que conhecem objectos), são todos seres com mãos que jogam sobre coisas do mundo, mãos que com elas usam e trabalham”. Ora, a noção de ‘trabalho’ com a de ‘linguagem’, enquanto inscrições que reproduzem, alteram, transformam, gravam tanto objectos como outros humanos, pode-se dizer que é a novidade que Derrida acrescenta ao par Husserl / Heidegger em cujas leituras a sua escrita se iniciou fenomenologicamente, introduzindo nomeadamente o motivo de texto (inter-textualidade), à diferença do ‘livro’ (fechado com o seu ‘autor’ e suas supostas ‘intenções’): não somos seres no mundo senão porque o trabalhamos e dizemos, não há (mundo) fora dos textos e discursos que nos trabalham e dizem incessantemente, sempre uns com os outros e as mãos nas coisas, nas máquinas.
4. Heidegger e Derrida não são fenomenólogos, objectaram-me por duas vezes aos meus dois volumes, Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida, o segundo com subtítulo La Phénoménologia reformulée, en vérité. Sem dúvida, no sentido em que se pense a fenomenologia como husserliana! Só que é esse sentido que estou deslocando, caminhando com eles e procurando trazer o trabalho deles até onde se possa reencontrar o desígnio do “retorno às próprias coisas”. Uma tal caminhada não se pode fazer só ao nosso nível filosófico, isto é sem atender a uma boa parte da bagagem da filosofia europeia que Kant (apoiado em Newton) a fez deixar pelo caminho: a chamada filosofia natural ou da natureza, mais a filosofia social, económica, politica, a psicologia racional, a filologia ou poética e por aí fora, trata-se de áreas do conhecimento filosófico, nomeadamente aristotélico, que na modernidade europeia foram ganhando metodologias laboratoriais e se autonomizarem relativamente das categorias filosóficas, virando ciências (umas mais, outras menos). Quando chegaram à maturidade e por aí andam em departamentos universitários e laboratórios variados, tecnológicos ou estatísticos, buscando interdisciplinaridades porque os fenómenos de que se ocupam lhes escapam aos limites, quando frequentemente se renovam porque algum seu agente tem formação filosófica suficiente, em resumo, quando a redução kantiana sobre a sua dimensão filosófica original deixou de ser necessário, pode o fenomenólogo armado dum motivo da gramatologia derridiana, o de duplo laço, perceber que algumas das principais ciências tornaram possível desenhar nas vizinhanças dos seus laboratórios os contornos dos fenómenos que analisaram neles de forma fragmentada, sem os conseguirem restituir de maneira suficientemente fenomenológica. Dito de outra maneira, uma fenomenologia que se queira à altura da grande tradição filosófica que nos veio dos Gregos e que tornou possível os laboratórios científicos não se pode ater à restrição da filosofia europeia em consequência das descobertas desses laboratórios. Tem que se alçar à altura da Physica de Aristóteles, da sua Filosofia com Ciências.

Caracterização do fenómeno
5. O que é então um fenómeno? Esta é a pergunta própria da definição e o fenómeno escapa-lhe, não se deixa definir, tais são as suas diferenças segundo os campos científicos que deles se ocupam e que nos permitem abordá-los fenomenologicamente na sua peugada; mas também não se deixa definir por outra razão, já que a definição valia para a ousia aristotélica, a qual foi até à modernidade científico-filosófica, até ao newtoniano Kant – é com ele que a palavra ‘fenómeno’ aparece no coração do vocabulário filosófico –, a predecessora bimilenária do que aqui buscamos caracterizar. Este verbo – caracterizar – é menos ambicioso no seu alcance do que ‘definir’, que retira o definido do seu contexto e lhe define uma essência comum a todos os definidos correlativos; nem sequer estou certo de que as várias ciências – as grandes, não as suas inúmeras especializações: a física-química, a biologia, a linguística estrutural e textual, a antropologia (história e sociologia), a psicanálise – possam ‘definir’ o que dos seus campos aqui se caracteriza como fenómeno, possam fazer mais do que, digamos, reconhecê-lo. A vantagem do termo ‘carácter’ que me veio inopinadamente à escrita – é uma das bênçãos desta! – é que ele implica uma fixação de caracteres que dizem ‘inscrição’, ‘gravação’ em singulares, isto é, uma repetição vinda de fora como força, pressão, trabalho, mas que não se repete igualmente nos outros singulares. Assim é cada fenómeno, resulta de acontecimentos singulares por definição e não se deixa separar deles: permanece-lhes ligado como condição do seu ser fenómeno, do seu agir enquanto fenómeno. O que implica que esses acontecimentos formam algo que fez/faz/fará doação do fenómeno e ao qual ele pertence, algo que fui levado a chamar cena e que não é senão um vastíssimo conjunto de fenómenos do mesmo tipo. Eis a primeira caracterização.
6. Com a cena que faz doação introduz-se assim o motivo de ‘tipo’ de fenómenos, que releva das ciências que deles se ocupam e que só o podem fazer na medida em que esses fenómenos conheçam alguma mobilidade, alguma variação com o tempo (com o espaço obviamente também). As possibilidades de movimento delimitam as diversas ciências e portanto as diversas cenas, elas implicam uma dualidade de ligações de cada fenómeno à cena doadora respectiva onde circula, se reproduz (consoante justamente essas possibilidades, são verbos da mobilidade). As duplas ligações (ou laços) deixam-se caracterizar por uma delas se referir ao motor do movimento do fenómeno, e se encontrar retirada estritamente da cena, que todavia a alimenta, e por a outra ser reguladora do movimento na cena, em função dos outros fenómenos dela[1]. Há obviamente grandes diferenças entre fenómenos da mesma cena, nomeadamente de dimensão e com ela em geral de complexidade da composição. Não é aí pois que reside a tipologia que distingue as cenas, mas o retiro do motor tal que em todos os casos as várias ciências se renovaram fortemente no século XX com a sua descoberta, a que nos primeiros parágrafos do meu Le Jeu des Sciences chamei não-fenómenos, pois que em todos os casos dos cinco tipos de ciências aduzidas acima se verificou que se tratava de zonas não manifestas. Eis a lista: o núcleo de protões e neutrões que as forças nucleares retêm; o programa genético, retido no núcleo das células eucariótidas que rege o metabolismo sem intervir directamente nele e se reproduz sempre o mesmo em todas as células dos organismos; o sistema fonético (das letras nos alfabetos) das línguas que articula palavras e frases nas vozes e é desconhecido por estrangeiros (Saussure, Troubetzkoy); o interdito do incesto articulando o paradigma do sistema dos usos (Kuhn) das unidades locais de habitação de todas as sociedades como condição da exogamia que as constitui (Lévi-Strauss); o recalcamento da sexualidade como dinamismo inconsciente sublimador do psiquismo humano (Freud). Estes duplos laços, motor e regulador, não se manifestam apenas nestes exemplos: por exemplo maior, eles ilustram a primeira grande invenção tecnológica da modernidade, a máquina a vapor, e depois qualquer outro tipo de máquina, mormente com motor eléctrico ou de explosão, mas manifesta-se igualmente em análises parcelares de fenómenos mais complexos de instituições sociais (de que tenho um estudo inédito relativo à fenomenologia histórica e textual das igrejas cristãs, com argumentário também neste blogue). No blogue aqui ao lado Filosofia com Ciências um longo texto expõe estas análises.
7. Estas duas componentes de cada fenómeno, uma retirada estritamente e devendo ser alimentada como motor de movimento[2] e a outra reguladora desse movimento com um retiro de que releva a sua autonomia, são ambas doadas pela cena que, por sua vez, retira essa doação da heteronomia geral da cena, dissimula-se de maneira a deixa ser a autonomia regulada (este ‘deixar ser’ é um ponto fulcral do pensamento de Heidegger). Pode-se assim formular uma espécie de tese fenomenológica dos retiros: o retido doador é condição do retiro estrito do motor e do retiro regulador, a heteronomia doada retira-se para deixar ser a autonomia do fenómeno. Mas este ‘retiro’ doador heideggeriano não é abandono, não é nem presença nem ausência; ele tem a condição do rasto gramatológico de Derrida, não ‘presente’, não ‘fenoménico’ pois que retirado, não está ausente porque mantém no fenómeno os seus efeitos doados. Um exemplo óbvio é o dos Antepassados, quer nos genes da sua descendência biológica, quer nos usos de língua e de residência e trabalho dos descendentes que deles os aprenderam em sua juventude, para os exercerem tais quais, heteronomia privilegiada pelos indígenas (Lévi-Strauss e Clastres) e por todos os receituários tradicionais, mas segundo a respectiva habilidade de cada um, autonomia essa que dará lugar às sempre lentas invenções do futuro. A aprendizagem faz-se da heteronomia ancestral à autonomia de cada um e implica assim um conflito, correcções com castigos e prémios, o qual conflito ilustra uma outra tese fenomenológica, explicitada por Derrida: as duas leis dum duplo laço são indissociáveis e inconciliáveis. O filósofo francês pensou estes motivos na sua gramatologia sem todavia ‘aplicar’ a esta o duplo laço, mantendo este nas questões urgentes de ética e politica dos anos 80 e 90 da sua actividade de escritor pensador empenhado (faltar-lhe-ia também algumas competências científicas). As leis que regem o motor e o regulador de qualquer fenómeno são indissociáveis: não existiam antes separadamente e em seguida ajuntadas, mas a sua ‘invenção’ pela constituição dos astros e pela evolução da vida e da história dos humanos foi das duplas sempre-já, na respectiva indissociabilidade. Mas também sempre-já na sua inconciliabilidade, sem a qual não seria possível que houvesse movimento, com o que este implica de autonomia continuada, perseverante[3]. O retiro estrito do motor implica que ele seja ‘cego e surdo’ em relação à cena e ao regulador (assim os genes e as hormonas nos vertebrados, o cilindro de explosão dos carros), este justamente tem como função adequar-se à singularidade da cena em cada momento do seu movimento: tem que ser ‘empurrado’ para o movimento mas de forma a manter a autonomia de regulação, como faz a embraiagem entre o motor e o restante aparelho do automóvel, que aqui nos serve de metáfora, embora seguindo uma ‘lei’ que lhe era prévia e que foi condição da sua invenção: mas este termo não o foi Aristóteles buscar ao ‘transporte’ para a sua Poética?[4] Estas coisas são engraçadas, mais ainda quando vêm à escrita assim. Vê-se bem, em todo o caso, como a explosão no motor do automóvel tem que ser muito estritamente retirada num cilindro hermeticamente fechado para não danificar o resto do carro, com que é inconciliável.
8. Uma outra caracterização desta dupla ligação fenomenal é a diferença entre as respectivas temporalidades. O motor, retirado estritamente e indiferente às complexidades da circulação para onde envia o fenómeno, rege-se como uma repetição, cuja cadência pouco se altera devido aos acontecimentos da cena, ao invés da ‘atenção’ permanente a todos os incidentes destas por parte da instância reguladora, cujas regras (de autonomia relativa) são recebidas da própria cena, consoante a dimensão e complexidade do fenómeno. Claro que o termo ‘atenção’ é antropomórfico, já que todas as minúsculas regras fisiológicas dos vivos descobertas pelos biólogos ou as imperceptíveis erosões que produziram as areias das praias fazem parte desta regulação, que tanto acontece ao fenómeno como lhe acontece a ele, investigador: com grande frequência esta nossa simpática dualidade activo / passivo não tem pertinência neste jogo ínfimo. E que por isso mesmo é de estarrecer.
9. O fenómeno escapa portanto à definição como à causalidade clássica, de tipo substancial, causa / efeito: foi sempre aliás o obstáculo ao pensamento filosófico e científico (os ‘acidentes’), no que se chama ‘realidade’, o que fica de fora dos limites, quer da essência definida, quer do laboratório científico, obstáculo ao pensamento e conhecimento que generaliza e argumenta sobre essências. Ou seja, o fenómeno é imotivado, releva de acontecimentos que o dão, o alimentam, a tal ‘realidade’, a do contexto, a da respectiva cena que doa os fenómenos. O duplo laço enlaça os diversos elementos de que ele é composto, estruturando a sua mobilidade e ligando essa dupla estrutura à cena e suas grandes leis e regras reguladoras. É o que faz a grande dificuldade da fenomenologia que queira estudar, analisar, diagnosticar um fenómeno na sua singularidade, no seu contexto. Às ciências é impossível em razão do laboratório que serve para generalizar mas impede de conhecer o singular em seus acidentes, já o velho Aristóteles dizia que a este não alcança a ciência. Mas não às técnicas, que estudam os seus mecanismos em função do trabalho que se espera deles na respectiva cena, deitando mão a várias regiões científicas, como politécnicas que são. Por exemplo, biologia e farmacologia são ciências, medicina é técnica de biologia humana que trata tal doente: a grande dificuldade hoje em dia é a sua especialização, com especialistas que sabem pouco das outras especialidades vizinhas, donde a necessidade de generalistas, médicos de clínica geral, como se diz, ou nos hospitais, médicos de medicina interna.

10. Outra dificuldade desta abordagem fenomenológica consiste na sua dependência das diferenças entre as grandes cenas, diferenças essas que relevam das grandes ciências. Ora os fenómenos jogam-se fenomenologicamente em todas as cenas, como qualquer acontecimento, os romances e os filmes, e cada ciência só se efectua reduzindo todas as outras, excluindo-as do seu laboratório. Este é um limite intrínseco da fenomenologia aqui reformulada, provavelmente insuportável para filósofos, a rançao da sua assumpção das cenas científicas. É da cena da gravitação que relevam, em última instância, como se diz, todas as outras, incluindo as máquinas e diversas tecnologias e suas poluições, que são o retorno moderno das cenas da habitação e da inscrição, dos usos sociais e dos textos de conhecimento, à cena da gravitação, que fora deste caso – hoje preponderante – fica quase em silêncio no que diz respeito às ciências da alimentação, dos vivos, e às outras duas. É pelo contrário entre estas que as dificuldades são múltiplas: da biologia às antropologias (fome e sexo, por exemplo) ou às psicologias, nomeadamente à psicanálise, ou ainda à economia e suas crises. Ou ainda, questão que me ocupou desde a leitura “materialista” do evangelho de Marcos e que justifica o inusitado do adjectivo nesse tipo de leituras, a relação do texto com a sociedade que o produziu ou aquela em que foi / é lido. A gramatologia de Derrida, tão difícil e irrepetível, mormente quando se trata dos numerosos textos literários a que se dedicou, joga fortemente nesta inextricável articulação entre o que chamo ‘cenas’. A célebre afirmação de que “não há fora de texto” é disso que trata também, como a distinção entre livro e texto, aquele fechado entre duas capas, um princípio e um fim, este aberto aos muitos textos donde provém e a outros a que esses se ligarão posteriormente, colocação duma espécie de princípio de inter-textualidade, de escrita, que se esclarece lendo textos e não querendo saber de algo ‘fora deles’, referentes de que eles falariam. Só lendo textos – ouvindo e falando desde bebés aprendemos a ver, a mexer, a fazer – temos acesso a fenómenos, que os textos não se fecham em livros mas abrem-se sempre a outros discursos / textos como condição da nossa leitura dos fenómenos, também estes são derivados de outros e abrindo outros ainda, sem uma Causa inicial, fosse a dum big Bang, nem final: a dupla ligação como imotivação dos fenómenos é o que provoca espanto em cada caso e coisa que se trate.
11. Com efeito, ser esta dupla lei o segredo de todas as coisas, de todos os fenómenos, eis o que é por sua vez um Fenómeno ao nível do pensamento, coisa de enorme espanto, quer se se pensa que tudo se constituiu assim, pedras, mares e ares, vivos e sociedades e textos de humanos, de forma inverosímil dois indissociados inconciliados, dois inimigos que são amigos de peito – em substancialidades (ousiai) muito diversas, quer se se pensa que esse inverosímil sucede permanentemente no nosso mais anódino quotidiano, que tudo, absolutamente tudo, merece ser qualificado como um fenómeno extraordinário de que nunca até hoje ninguém se deu conta, tantos e tão extraordinários pensadores que houve desde Platão e Aristóteles pelo menos. Foram Husserl, Heidegger e Derrida, os pensadores intrépidos que abriram um caminho novo, impensável – holzwege, senda de floresta aberta pelos pés de caminheiros – que os duplos laços derridianos fizeram desembocar no “retorno às próprias coisas” que Husserl tinha reclamado, retorno aos fenómenos. Caminho pois talvez sem saída, já que a necessidade de conhecer um pouco as principais ciências nesta época de especialistas, impiedosa para as carreiras dos curiosos que se atreverem a ir espreitar outras paragens, ajudará ao silêncio em torno de Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida publicado numa editora de fraca fama. E então não haverá Fenomenologia deslocada, o que também não deixaria de ser um fenómeno, embora sem haver alguém para se espantar dele, excepto o seu autor, que teve a lata de identificar, com critérios fenomenológicos, as cinco principais descobertas científicas do século XX! (as do § 6). E a lata de falar de Fenomenologia reformulada em verdade! E ainda, contra o relativismo, de propor um sistema global onde em cada fenómeno acaso e necessidade têm a unidade dum jogo, como queria Derrida.
12. Eis a simplicidade do primeiro parágrafo desse texto em dois volumes. “A Ciência não existe, só há ciências. Estas são actualmente, tanto quanto o não especialista pode julgar, irredutíveis entre elas, fechadas nas suas fronteiras, que as diversas tentativas de interdisciplinaridade de alguns anos a esta parte não parece terem desbloqueado. A incomensurabilidade que Kuhn atribuiu aos seus paradigmas teve como efeito acentuar a sua insularidade, ou melhor, se se tem em conta as inumeráveis especialidades que dividem cada domínio científico, encontramo-nos diante de imensos arquipélagos, do impossível enciclopedismo caótico de centenas de disciplinas que escapam a qualquer tentativa de as reunir (ver cap. 13, § 26). Em face do caos, a tarefa do pensamento é, foi sempre, de lhe encontrar razão. Eis aqui um ensaio”.



[1] Com duas excepções (parece-me), as relativas aos fenómenos elementares das duas grandes Cenas do universo, os átomos da cena da gravitação astral e as células da cena da alimentação terrestre, provavelmente devido a essa condição elementar, ligada aos dois problemas maiores de origem, a da matéria / energia e a da vida.
[2] No caso dos átomos de inertes, sem alimentação, necessita ou de uma força externa que a mova na cena da gravitação ou de proximidade suficiente para transformações químicas.
[3] Estou a pensar nas dificuldades que esta questão põe à pré-história do big Bang até às estrelas: partículas ou núcleos atómicos não me parecem susceptíveis de ‘movimento’, apenas de ‘explosão’, e depois que lhes sucede? Mas não sei que chegue nesta questão, que me parece fenomenologicamente impossível.
[4] Na Atenas de hoje podem-se ver autocarros com a designação Metáfora.