sexta-feira, 30 de novembro de 2018

A verdade das ciências



Ciências físicas, químicas e zoológicas
Ciências da linguagem (exemplo do evangelho de Marcos)
Ciências das sociedades
A vagarosa crise climática

             
 1. A verdade na perspectiva da fenomenologia geral, é bem de ver, que há outras perspectivas em filosofia que eu não pratico: se as ciências trabalham (laboram) sobre determinado tipo de fenómenos, é no que dão a conhecer do movimento deles que consistirá a sua verdade, a qual é também a verdade da respectiva cena de reprodução, de circulação. A dificuldade consiste em que a experimentação laboratorial é sempre de fragmentos que se acrescentam uns aos outros, sem que o fenómeno inteiro (e ainda menos a sua cena de reprodução) venha ao laboratório. Para se chegar à descrição teórica dele e da cena há que voltar ao exterior do laboratório, donde ele foi colhido, para compreender o seu movimento nessa cena, deduzindo como é esta que dá as regras procuradas desse movimento, que é sempre reprodutivo, tanto nas repetições quotidianas dos vivos, como nas alterações, incluindo gerações e fabricos, mortes e lixo ou reciclagem. Será nesta relação entre experimentação laboratorial e teoria do fenómeno reproduzindo-se na cena dos seus congéneres que estará a verdade de tal ou tal ciência, das cinco grandes ciências com as quais se elaborou a fenomenologia geral aqui praticada, na esteira da fileira Husserl, Heidegger e Derrida. É certo que neste blogue me repito muito, não sei se há leitores que o frequentam suficientemente para se impacientarem com essas repetições, mais provável sendo que o carácter estruturalmente fragmentário dum blogue assim torne difícil a sua compreensão para quem vem apenas uma ou duas vezes. Quando se chega a uma idade provecta como a minha com um problema bastante amplo e complexo, sem se ter já pachorra para ler muita coisa que se publique, é natural que as variadas questões deste grande problema venham à inquietação de quem busca ainda compreender o que sempre falta. Certo é, por exemplo, que o motivo dos duplos laços responde a esta questão da verdade de cada ciência, segundo os duplos laços dos seus fenómenos que só ela permitiu compreender, no conjunto com as outras e com a fenomenologia da desconstrução de Derrida. (Tanto ele como Heidegger passaram essencialmente pela fenomenologia de Husserl, mas se nenhum deles se quedou nela, ambos permitem o retorno aos fenómenos fora do par sujeito / objecto que era ainda o âmago da fenomenologia segundo Husserl. É a possibilidade desse retorno, que nenhum deles praticou, que aqui se chama fenomenologia geral).
2. Retomando o fio. Toda a experiência, como qualquer experimentação científica, é fragmentária por definição, retirada que é do grande caos das coisas ; pede por isso para ser integrada num conjunto de mais experiências, numa teoria coerente de experimentações que forme um sentido: de reprodução. Quer daquele que experimente e vai integrando, melhor ou pior, no que aprendeu doutras experiências que foi tendo, quer das unidades a que pertence, quer ainda com a razão que de leituras lhe vem, enquanto experiências também de sentidos das coisas, do mundo. No que diz respeito às ciências, a teoria a partir da composição dos fragmentos diz respeito ao que se retitui fora do laboratório, na cena de reprodução dos fenómenos em estudo: a verdade dessa ciência consiste na descoberta da lei de reprodução desses fenómenos, que é a lei da própria cena que os dá lei do tráfego das viaturas automóveis, lei da gravitação (Newton) e das alianças químicas feitas de duplas de electrões e fotões (Feynman), lei da selva (Darwin com bioquímica), da aliança e da guerra (Lévi-Strauss e Clastres), lei da verdade da linguagem. Verdade no sentido em que estas leis determinam as anatomias dos entes, os paradigmas das unidades sociais.

Ciências físicas, químicas e zoológicas
3. No que diz respeito às ciências físicas e químicas, a verdade delas consiste teoricamente nos três campos de forças atractivas – nucleares, electromagnéticas e da gravidade – que estruturam os graves do nosso planeta e todos os outros astros. Bastará considerar que uma explosão nuclear tem como consequência que as partículas dos núcleos atómicos se livram não apenas das forças nucleares mas também das outras duas, para se ter uma ideia de centralidade delas. Quanto à cena de reprodução, a verdade destas duas ciências manifesta-se claramente na eficácia das técnicas a que, de forma polivalente em relação às suas várias regiões científicas com alguma autonomia entre elas, elas têm dado origem desde a invenção da máquina a vapor de Watt, ainda que esta como o dínamo eléctrico de Gramme tenham sido prévias à respectiva teoria, mas no contexto aberto pela física desde Galileu e Newton.
4. Em relação às ciências zoológicas, também posso ser abreviado, já que o que terei que dizer tem sido frequentemente aqui exposto. A verdade que a bioquímica trouxe à biologia anterior consistiu na descoberta do ciclo biológico do carbono, desde a maneira como na fotossíntese o CO2 transmite glicose às plantas, com moléculas preciosas de carbono, decisivas em todas as moléculas de que se faz a vida (excepto água e oxigénio), como algumas dessas moléculas, chamadas proteínas, são sintetizadas nas células (pois que não existem senão no próprio metabolismo celular desde a sua invenção, deduz-se da teoria semântica da evolução de Marcello Barbieri) a partir de aminoácidos que os animais vão ter que comer noutros vivos, plantas ou animais: donde que a anatomia de qualquer espécie animal, vertebrada ou invertebrada, tão diferentes umas das outras, tem que ser fabricada de forma a permitir esta caça e a fuga a ela. Quanto à verdade da cena que assim fica esclarecida, o seu desenho ficou esplendorosamente feito por Charles Darwin, apesar do (confessado várias vezes) vazio bioquímico da sua demonstração e apesar de os bioquímicos serem cépticos em relação à sua “luta pela existência”, isto é, apesar de os bioquímicos parecerem não ser capazes de aliarem a sua teoria com o darwinismo. E no entanto a “selecção” das variedades e formas de raças por criadores de animais e de plantas mantém-se um laboratório, crê o leigo, de verificação possível de como nessa selecção haverá dois tempos, o da variedade ser escolhida e cultivada e só depois ela se tornar hereditária, ganhar genes adequados a ela. É que nessa selecção, que deu a ideia de “selecção natural” ao mestre inglês, praticamente desaparece a “luta pela existência” própria da lei da selva.

Ciências da linguagem (exemplo do evangelho de Marcos)
5. As ciências da linguagem e da sociedade põem problemas mais delicados, no que à verdade diz respeito. Mais do que na Linguística estrutural originada em Ferdinand de Saussure, que é um pouco como a Aritmética e as quatro operações da tabuada, uma análise da lógica interna duma língua com verdade por assim dizer imanente que é a da construção dos seus vários paradigmas (fonológico, sintáctico, morfológico e sintáctico-semântico) que podem servir para aferir a correcção dos discursos ou textos, os seus erros, é nas chamadas Semióticas – leitura de textos – que a questão da verdade se porá. Nos áureos anos 60 do estruturalismo francês, quando a semiótica foi relançada, buscavam-se homogeneidades estruturais em que o se­miota-leitor não se imiscuiria, munido de modelos que se quereriam universali­zar, ciências humanas enfim. Era o que estava subjacente ao pro­jecto de R. Barthes em 66, no texto “Introdução à análise estrutural das narrativas” (Communications 8): criar um mode­lo capaz de convir às “inumeráveis narrativas do mundo”. Nesse modelo figurava Greimas que no mesmo ano publicava Sémanti­que structurale onde, com clareza meridiana de louvar, se deslinguistici­zava a par e passo o texto de tudo o que nele fosse ‘significante’, em sentido saussuriano, para se poder então traba­lhar com “semas”[1], mais tarde enquadrados em “quadrados semióti­cos”, duma maneira que permitiria que tais análises pudes­sem fa­zer-se sobre uma qualquer versão dum texto em qualquer língua. Como foi o ideal europeu da filosofia e das ciências ditas naturais : sujeito fora/acima das línguas e dos textos. Como a definição, operação elementar do texto gnosiológico (filosofia, ciências, lógica), isola um só senti­do ou significado no polissémico significante para po­der ‘pensar’ (uma coisa de cada vez, Aristóteles) e argumentar. Esta maneira de fazer, sem a qual não estaríamos aqui, seus des­cendentes ainda que suspeitosos porventura, era uma arma con­tra a polis­semia literária, a metáfora poética, e foi obviamente fe­cunda, desde que não se tratasse de semiótica de textos lite­rários. A Escola Semiótica de Paris produziu sem dúvida muitos bons textos de leitura, quero crer mais pela astúcia dos leitores do que por virtude do método. O campo fôra semeado fora do texto e não faço injúria ao meu mestre Barthes ao pô-lo nesta vizinhança com Greimas, com cujo projecto ele mesmo rompeu nos anos se­guintes e publicou o fruto dessa ruptura, a fabulosa e singular leitura da novela Sarrasine de Balzac, cujo título S/Z assinalava como o trabalhar minucioso da língua do texto balzaciano fôra até ao eco do conflito da novela nas iniciais efeminizantes do mascu­lino e masculinizantes do feminino. Ora, tal leitura minuciosa do texto e da sua língua só se revelava possível na singularidade do texto lido, nos antípodas da semiótica universalizante antes delineada. Que Barthes não renunciara totalmente a algo como uma ligeira metodologia, capaz de leitura de textos variados, provam-no alguns outros exercícios de leitura, sobre as versões francesas duma novela de E. Poe e de dois textos bíblicos, do antigo como do novo Testamentos[2]. Mas foram tentativas qu não chegaram a nenhuma cientificidade no campo da semiótica. mas por essa porta que prossegui por minha conta e risco : o primeiro texto com que me confrontei, Lecture matérialiste de l’évangile de Marc. Récit, pratique, idéologie (Cerf, 1974), também depois com textos filosóficos [3].
6. Trata-se de textos singulares, o que permite inclui-los numa abordagem fenomenológica de retorno às coisas, à ‘coisa’ que é um texto singular. O que implica, é óbvio, que se trate de textos fortes, que inovam e buscam eleger leitores, seja em que domínio fôr. A primeira con­dição: autor e leitor lêem o mesmo texto, o mesmo no sentido da estrutura significante tal como ela é dada na impressão tipográfi­ca. Palavras, regras da língua, códigos textuais de corpus perten­cem à sociedade (ou ao paradigma da instituição), são de todos, sem o quê nenhuma leitura seria possível. O que assinala a força dum texto (mesmo que não recente) é, apesar de tal mesmi­dade (e sem ter em conta a descontextualização que as traduções e a his­tória vão produzindo ao substituir gerações de leitores), o modo como ele re­siste à leitura, nomeadamente à primeira abordagem, assim como não se deixa ler da mesma maneira pelos dife­ren­tes leitores. É essa força que cria alguma história, abre paradigmas: é aonde se pode buscar a sua verdade como fecundidade. Mas há-de se poder encontrar a fonte dessa verdade no próprio texto. Seja então o caso do evangelho de Marcos, resumidíssimamente. A primeira consideração a fazer tem a ver com o facto de ser tido como um “livro religioso”, como os outros textos bíblicos, mas as narrativas dão-se num contexto claramente politico: o da ocupação da Palestina pelos Romanos (uma ocupação que, antes deles, já tinha mais de 8 séculos por reinos diversos) e de resistência a essa ocupação, sobretudo na Galileia onde, segundo o texto, se passou o essencial da narrativa (9 em 15 capítulos). Ora, a religião de Israel foi fundada pelos Profetas numa aliança com o seu Deus, que prometia liberdade e grandeza ao povo aliado desde que fiel à Lei de Moisés. Uma literatura apocalíptica de havia dois séculos a essa parte anunciava a vinda de Deus ou do seu Messias para os salvar, os que fossem encontrados justos. A primeira e a última palavra atribuída ao protagonista, Jesus, são elucidativas. “Os tempos cumpriram-se e o Reino de Deus está próximo; mudai de vida e acreditai na Boa Notícia” / “meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”. Um apocalipse de fim do mundo é anunciado mas a narrativa acabou no abandono do anunciador. Num texto de 15 capítulos, 13 são de sucesso aparente da promessa, e os 2 últimos terminam em tragédia, com anúncio posterior da ressurreição do executado. Toda a naarrativa entretém o suspense a um leitor desprevenido, com Jesus a escolher um grupo de discípulos e a atrair multidões a quem ensina algo de novo e a curar os doentes que se lhe apresentam, mas também aparecem precocemente adversários ligados ao poder de Jerusalém que se concertam para o perder. Tendo em conta este perigo, Jesus recorre à estratégia de evitar as cidades e em Jerusalém de clandestinidade durante as noites, de dia pregando abertamente no Templo apoiado pelo favor da multidão, que os chefes temem. Além deste código estratégico, um outro propõe a questão de saber quem é este profeta, de que autoridade se reclama (solução: é o Messias esperado); ora, o próprio Jesus por três vezes se retira para rezar, em tempo de procurar esclarecer a escolha estratégica face ao agudizar da narrativa. Isto é, ele não sabe de avanço o que vai se passar (confirmação: este tipo de passagens será atenuado ou apagado pelos evangelhos seguintes). Leituras para compreender e estratégias de clandestinidade para se proteger dos adversários mostram bem que ele não quer morrer mas cumprir a sua missão numa narrativa de incerteza da qual faz parte, a dado momento, a decisão de subir a Jerusalém e enfrentar a sua proclamação do Reino de Deus com os guardiães do Templo e governantes do pais sob a vigilância dum procurador romano. Ora bem, essa subida a Jerusalém (cap. 10) é pautada por um triplo discurso de predição por Jesus do desfecho que será contado nos dois últimos capítulos. Estas predições jogam claramente em contradição com a lógica de incerteza da narrativa, com o não saber e a necessidade de avaliar o que se vai passando e de elaborar estratégias para evitar justamente o que sucederá após essas predições: estas não têm pois sentido narrativo, relevam do discurso do narrador, que já sabe o desfecho do que está a contar e corrige de antemão a execução na cruz com o anúncio duma futura ressurreição. Mas ao fazer assim, dá um estatuto ‘sobre-humano’ ao protagonista (que os ‘milagres coadjuvam) e coloca esse desfecho trágico não apenas como ‘não trágico’ mas como plano de Deus, em contraste abissal com a narrativa: com a agonia de Gethsemani, com o espanto dos discípulos diante do túmulo vazio onde o crucificado fora sepultado e sobretudo com o “meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”, dito em aramaico e traduzido em seguida para grego, o que sublinha a sua historicidade.
7. Qual a razão próxima desta tripla predição, confirmada pelo final da narrativa? É de garantir ao leitor confiança numa outra predição do protagonista no cap. 13, sobre o fim do mundo que fora o anúncio inicial da narrativa, o qual é anunciado – “leitor, compreende” – com alusões nítidas ao desastre do Templo de Jerusalém, o ‘adversário simbólico do Messias’, pode-se dizer. A verdade da escrita do texto consiste neste anúncio escatológico que interpreta a derrota de Israel face aos Romanos no ano 70 como o início do fim do mundo. Mas essa verdade da redacção do texto e da sua contradição narrativa / predição foi negada pelos acontecimentos: todos os que conheceram Jesus morreram e ele não voltou, a olhos judaicos não era portanto o Messias. Donde que os textos tenham passado para mãos gregas, segundo um processo de que escrevi a “génese, do dogma da incarnação”, neste blogue (23/02/2018). A verdade dos textos bíblicos no mundo cristão passou a ser lida pelos olhos dogmáticos e mitológicos, com “redenções”, almas salvas do Diabo para Deus, etc. No caso de Marcos é “Nosso Senhor” que, filho de Deus, faz milagres e ressuscita, ressuscita-se enquanto Deus ou é ressuscitado? O que se tira das leituras litúrgicas, nos melhores casos, são lições de moral mais ou menos metafóricas.
8. A verdade do texto perdeu-se completamente, a própria noção de texto é inexistente, mesmo na exegese histórico-crítica até há 40 anos. Foi por essa razão que foi possível a um simples licenciado em teologia, leitor de R. Barthes e doutros estruturalistas que revelaram o jogo das diferenças linguísticas e textuais, recuperar como pioneiro dezanove séculos mais tarde a verdade desse velho texto, que fazia fraca figura ao pé dos outros três e dos seus belos discursos que ele ignorava, adstrito que estava a que aqueles que transcrevesse fossem bem inseridos na sua trama narrativa, nomeadamente a sua peça das parábolas das sementes (cap. 4), que jogam uma viragem estratégica do protagonista. A astúcia foi a de relacionar o texto com a sociedade que o produziu, através do motivo barthesiano de códigos, que são os mesmos na narrativa e na sociedade contexto dela, sendo a dimensão politica e de confronto social dela que a dogmática cristã ignorou. A verdade dum texto singular, forte, é a fecundidade de paradigmas textuais que ele abre: Marcos abriu a narrativa de Jesus (que Paulo ignorou) e a sua forte verdade foi recoberta porque o que ele anunciou se revelou um fracasso; redescoberta nestes tempos de crise do cristianismo, essa verdade permite elucidar as razões civilizacionais dessa crise, que é do ter chegado ao fim a sua fecundidade histórica, para o bem como para o mal.
9. Este exemplo duma verdade semiótica é sem dúvida bastante complexo, mas noutros textos filosóficos, como a Poética de Aristóteles ou os de Descartes e de Nietzsche, a verdade é menos complexa, mais delimitada pelo contexto escolar que os reproduziu. Em princípio, uma leitura textual singular será suficiente para chegar à verdade dum texto, mas essa leitura pede muita energia, que os tempos actuais apressados não facilitam. O que Marcos permite é justamente a percepção de como as ‘verdades’ se transformam na história das interpretações. Acrescento aqui a questão da psicanálise, que é uma semiótica dum texto oral, que vem periodicamente ao divã laboratório prestar-se a transgredir as regras do bom senso e da moral em associações de ideias que, sob a vigilância do psicanalista, conduzem a rememorações perdidas e desse passar por um passado que nunca foi presente chegará a um alivio dos sintomas de sofrimento que trouxe o paciente ao divã, uma cura talvez que será a verdade da psicanálise.

Ciências das sociedades
10. Pretender dizer qual é a verdade destas ciências é ainda mais complicado como tarefa fenomenológica: é que o que se dá como ‘fenómeno’ observável são as unidades locais e as suas ligações em ordem à reprodução, quer as familiares, quer as de trabalho, divisão moderna das antigas casas pela difusão das máquinas a vapor e depois eléctricas que tornaram as unidades de trabalho absorventes dos seus trabalhadores e os arrancou por períodos diários regulados às unidades familiares. Ora, a análise dessas unidades é da ordem da antropologia, que forjou os seus inquéritos e motivos de análise nas sociedades mais simples, sem escrita histórica nem Estado, ou mesmo, no título feliz de P. Clastres, sociedades contra o Estado, que lhes permitiu sobreviver ao longo dos séculos nas lutas das selvas e dumas contra as outras, mas que lhes ditou a morte perante ‘sociedades armadas com Estado’. Ora, a descrição dos paradigmas das unidades supõe outras ciências, quer a biologia aquém, quer a tecnologia e a semiótica além. A base biológica impõe os limites infraestruturais das unidades, que têm que garantir a alimentação, o repouso e a saúde dos seus indígenas; ao que se poderia chamar super-estrutura da unidade corresponde a tudo o que se aprende para conseguir a boa reprodução da unidade, donde a preocupação permanente com a iniciação das crianças e jovens. Então dir-se-á que a verdade de cada unidade consiste justamente nessa sua reprodução, quer no quotidiano quer ao longo das gerações. Só que essa reprodução sõ se consegue em aliança com outras unidades, o conjunto de todas reproduzindo-se também, a sua verdade sendo a das suas crises como da sua reprodução conseguida, a qual por sua vez se articula com as outras sociedades vizinhas em alianças, ainda que implícitas, sabendo-se que a guerra é a lei mais geral dessas relações de vizinhança.
11. Esta lei da guerra, desde as rivalidades intra-familiares e adentro das alianças da ordem do parentesco até à formação de castas guerreiras nas sociedades agrícolas introduz contradições sociais que tanto produzem escolhos na boa reprodução como promoveram frequentemente invenções de usos e de costumes que se reproduziram, enxertadas nas reproduções das unidades: a escrita nas escolas assim como o mercado de produtos de luxo e de armamentos são dos exemplos mais óbvios, que são deles mesmos índices de comparação entre unidades sociais, quer contemporâneas da mesma sincronia, quer na longa diacronia histórica. Os casos mais flagrantes são um negativo, a quebra do cosmopolitismo romano no Ocidente que gerou uma longuíssima ‘crise histórica’ única, a chamada Idade Média, e outro positivo que, após um processo de recuperação das comunas e universidades medievais e do (re)nascimento da Europa, veio a eclodir no século XIX como revolução industrial – o que chamei super-estrutura das unidades conheceu um desenvolvimento tal que exigiu unidades específicas só para elas, com exclusão da dimensão da reprodução biológica dos indígenas, deixada às famílias – com a renovação adequada das universidades e a generalização da escola a toda a população. A formação consequente de duas redes de unidades sociais, famílias e empregos, torna as análises científicas muito mais difíceis, tendo de recorrer a estatísticas que subsumem aspectos diversos duma ou doutra rede ou de ambas, mas sempre parcialmente: as estatísticas não são fenomenológicas, procuram suprir o impasse das fenomenologias[4]. Se se quisesse buscar uma maneira fenomenológica ou antropológica de fazer estas ciências, ter-se-ia de reconhecer para começar que a ordem do parentesco, que Levi-Strauss colocou como estrutura global das tribos e assim terá continuado entre as castas nobres e populares, perdeu esse papel de aglutinador social, que acabou por vir à super-estrutura económica e financeira do capital, dominando as unidades de emprego (mesmo as políticas dos Estados) [5]. A maneira fenomenológica seria de partir dum dado nó de rede de unidades sociais susceptível de alguma delimitação – uma zona em crise particular talvez, as crises são boas ocasiões para análises de laços – e analisar as relações de aliança e de rivalidade entre elas e os fios que ficam abertos de relações a outras zonas (de aldeia ou bairro a cidade, região, pais, redes várias – de produção e comercio, de relações politicas e administrativas, de escolas e médias, etc. Impossível fenomenologia! Sobretudo se tudo ‘correr bem’, são as crises que poderão revelar algumas ‘verdades’, negativas, por assim dizer. de escolas e médias. Será sem dúvida a relação entre as duas redes, as unidades familiares e as de emprego que será mais difícil, fora das relações económicas dos salários nos mercados. Mas é provavelmente onde se situa uma das questões actuais mais tratadas, a da corrupção, como se pode deduzir das sociedades africanas que ainda têm fortes traços tribais e onde se contam histórias de políticos de estatuto elevado serem assediados pela sua tribo de que ele se sente um dever de responsabilidade: a ordem do parentesco é ainda dominante. Ora bem, acontece que há dois exemplos históricos de sociedades actuais que poderíamos caracterizar com a maneira de P. Clastres pensar as sociedades tribais: Grécia e Israel seriam dois casos de sociedades contra o Estado. No texto acima citado de 23/02/2018, §§ 13-14, faço uma referencia à maneira como estas duas sociedades que vêm desde a Antiguidade e guardam ainda hoje as suas línguas respectivas, apesar das grandes perturbações das suas histórias, eram claramente sociedades endogâmicas em relação aos povos estrangeiros, opondo-se (ou dificultando ao máximo) ao casamento com mulheres estrangeiras, de gentios num caso, de bárbaros no outro. No caso grego, costuma-se falar de “cidades-estado”, mas de facto eram cidades com a mesma língua, religião e literatura mas que eram fortemente rivais umas das outras, não eram expansionistas, as colónias que fundaram eram uma nova cidade à maneira das outras; pelo contrario, elas opunham-se a um Estado grego, o que provavelmente lhes foi fatal diante de Filipe da Macedónia, que as venceu até virem a ser uns e outros vencidos pelos Romanos. Foi Bizâncio, antes chamada Constantinopla e depois Istambul, que foi a capital do poder na Grécia até à dderrota de 1453, quando o império otomano a integrou até 1832, na sequência da guerra de independência (1821-29). Ora, ainda hoje o Estado grego é muito fraco diante da sociedade civil, como se a ordem do parentesco ainda predominasse. Mais significativo porventura é o caso de Israel, que se formou na viragem do 2º milénio aC para o 1º pelo rei David, aproveitando o fim da Idade do Bronze e a crise dos impérios do Médio Oriente (século XII aC), que durou até ao alvor do século VIII aC, quando se reforça a série histórica de vassalagens – a Assírios, Babilónios, Iranianos, sucessores de Alexandre, Romanos – que terminou aquando da Guerra Judaica (66-70 dC) com o incêndio do Templo de Jerusalém e a expulsão dos Judeus. Ora, a monarquia em Israel tinha acabado com a derrota face à Babilónia, no início do séc. VI aC, substituídos com o domínio do Irão por um conselho de sacerdotes do Templo. Mas foi sobretudo a sobrevivência do povo judaico, em diáspora de mais de vinte séculos, de reprodução em múltiplos lugares e línguas, conhecendo perseguições sem fim, ao longo de toda a história da Europa como dos impérios otomano e russo, história sem Estado, em torno do Livro e respeitando a sua endogamia, que é inegavelmente a verdade dum povo, um exemplo vibrante de sociedade contra o Estado. Foi o que o sionismo quis reverter, bem ou mal (dos palestinianos).

A vagarosa crise climática
12. O problema com as ciências das sociedades actuais é o de não haver nenhuma ciência que não tenha senão objectos parciais – sociologia da educação, da família, do mercado, da saúde, dos médias, da cultura, e por aí fora – sem sociologia global. Como a economia, ciência dos mercados, tem como mecanismo fundamental a moeda, que reduz todas as outras componentes ao seu valor monetário, e como a moeda intervém em praticamente todas as outras estruturas sociais que a economia reduz mas onde não é o factor dominante – é a educação, o bem estar familiar, a saúde, etc – ela apropriou-se dessa função global, que é indispensável tendo embora um discurso aproximativo que tem muitos limites.
13. É o que se está a passar com a crise das alterações climáticas, em que a economia, embora indispensável, é um dos principais obstáculos, que terá que conhecer viragens decisivas. Sejam as dez catástrofes climáticas principais, segundo os dois estudos mais recentes[6]: “secas, incêndios, inundações, vagas de calor, modificação da cobertura vegetal, precipitações, subida do nível dos mares, tempestades, reaquecimento, esgotsmento dos lençóis e dos cursos de água, modificação da composição química dos oceanos” com seis efeitos principais sobre a vida humana, “a saúde, a alimentação, a água, a economia, as infra-estruturas e a segurança, temas desdobrados em 89 sub-rubricas”. “Assim, mortes e doenças provocadas por inundações ou incêncios ou as vagas de calor, estragos na agricultura, gado ou pescas após precipitações ou secas, ; efeitos nefastos sobre a qualidade e a quantidade da água não salgada, destruições de infra-estruturas em consequência de tempestades e da subida das águas,; percas económicas e de emprego, da diminuição da produtividade e da crise do turismo causada pela acidificação dos oceanos e e a deflorestação. Tudo isto sobre fundo de violências crescentes e de migrações multiplicadas”.
14. As crises são sinais de dificuldades de reprodução das sociedades que as sofrem, que frequentemente dependem das desigualdades económicas mas podem resultar de outros factores, como as famosas manifestações de 1968, com especial relevo no Maio da França inteiramente ocupada, fábricas e escolas; por outro lado, somos informados frequentemente como as crises de guerra ou guerrilha em países periféricos, como se diz, são por vezes tais que não se percebe como é que as funções alimentares, por exemplo, são exercidas. Fora dessas crises mais visíveis, dá para causar espanto que as sociedades ocidentais funcionem muito razoavelmente, havendo sempre, é certo, aqui e ali mini-crises de tipo variado e a constância das desigualdades. Esse espanto vem de se saber da imensa especialização de actividades que elas exigem e de como milhões de pessoas trabalham de molde a, em geral, se poder ter confiança no seu trabalho, no que comemos e em geral no que compramos. Ora, um tal espanto parece ser um obstáculo às necessárias politicas contra a grande ameaça das alterações climáticas, politicas de constrangimento de certos tipos de consumos que favorecem os famosos efeitos de estufa; vê-se bem na maneira como a propaganda dos partidos políticos da direita à esquerda, e portanto dos governos populistas ou democráticos, continua a ser imperturbavelmente a proposta de crescimento económico, sabendo eles que não podem propor retornos devidos às ameaças climáticas. A questão é que estas ameaças não são de um apocalipse total que se avizinhe com sinais inegáveis: os cientistas dizem que a crise climática já começou, por exemplo na Califórnia são seus efeitos “os incêndios florestais, uma das mais longas secas, além das vagas de calor extremas no verão”. Como convencer as populações eleitorais de que é assim, de que a ameaça diz respeito às vidas, agricultura e gado, água potável, segurança, inundações com a subida do nível dos oceanos, sobretudo nos países em desenvolvimento, mas também a Holanda ou Países Baixos, a actividade económica dos países desenvolvidos? Quando se vê os protestos em França quase paralisada com o aumento dos impostos, que turbulência social e politica não despertarão os governos que propuserem politicas preventivas para uma crise vagarosa e ocasional, em zonas muitas vezes longínquas (tem que ver com os outros...), uma crise que não se vê com os nossos olhos nem nos nossos ecrãs, apenas em discursos que pedem crença nos especialistas que a anunciam. Enquanto as unidades sociais, famílias, empresas e politicas, não sentirem a crise, tudo se passar como maus acontecimentos isolados aqui e ali mas lá longe, se só acordarem tarde demais para promover a consciência da crise a tempo de precaver os limites da temperatura até ao ano previsto de 2100. É possível todavia que os efeitos das catástrofes lá longe tenham efeitos aonde elas não ocorrem. Portugal não participou na guerra de 1939-45, não sofreu o que sofreram a maior parte das populações europeias, mas sentiram-se cá consequências, nomeadamente racionamento na alimentação, consoante o número de pessoas de cada família, devendo-se fazer longas filas para obter manteiga no Campo Grande, morando nós perto do Largo do Rato.





[1] F. Belo, Epistemologia do Sentido. Entre Filosofia e Poesia, a questão semântica, F. Gulbenkian, 1991, §§ Q92-Q119.
[2] S/Z, 1970, Seuil; “Analyse textuelle d'un conte d'Edgar Poe”, in Sémiotique narrative et textuelle, 1973, Larousse; “L'analyse structurale du récit. À propos d'Actes 10-11”, in Exégèse et herméneutique, 1971, Seuil; “La lutte avec l'ange: analyse textuelle de Genèse 32, 23-33, in Analyse structurale et exégèse biblique, 1971, Delachaux et Niestlé.
[3] o 4º capítulo do Discurso do Método de Descartes (anexo a Linguagem e Filosofia. Algumas questões para hoje, INCM, 1987), a Poética de Aristóteles e Sobre a Verdade e a Mentira de Nietzsche (Leituras de Aristóteles e de Nietzsche, F. Gulbenkian, 1994), com um balanço dessas tentativas em “Semiótica e Ciências Sociais” (Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, nº 10, retomado em anexo a A Conversa, linguagem do quotidiano. Ensaio de Filosofia e Pragmática, Presença, 1991) e nos §§ Q168-Q205 de Epistemologia do Sentido.
[4] É por isso que uma fenomenologia geral de sociedades actuais é muito difícil, ainda mais quando se é leigo no assunto. Provavelmente as sociedades de regime monárquico e predominância agrícola serão mais fáceis, com as suas casas de tendência à autarcia, com relações meramente locais, ou algumas regionais.
[5] A proposta de infra e superestrutura parece contrariar o marxismo, mas há que ver que os conteúdos não são os mesmos. Os dois motivos enxertam-se um no outro, tudo o que sendo trabalho aprendido relevando da super-estrutura. Como Marx não faz intervir a biologia na sua análise do infra-estrutural, mas ela está lá com todas as actividades quotidianas das famílias, que ele considera ‘infra’ para dar ênfase à novidade económica da revolução industrial, a super-estrutura capitalista.
[6] Nature Climate Change (19/11/2018, citado pelo Le Monde datado de 21.

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

A filosofia perene e os seus gestos históricos



1. Eis uma maneira de dizer a diferença de paradigmas entre a filosofia tradicional e a sua desconstrução por Derrida: enquanto que, desde Platão, se argumenta sobre ‘categorias’, ‘essências’, ‘conceitos’, temas resultantes da definição, a gramatologia tem antes demais em conta o gesto de escrita que isolou esses temas, retirando-os do respectivo contexto, a saber, a operação de definição filosófica e o laboratório científico, gestos históricos de escrita dos textos que impõem fronteiras aos temas filosóficos e científicos que eles tratam, sobre os quais argumentam. No comentário que fiz à recusa da R. P. Filosofia em publicar o texto “Filosofia com Ciências, recuperar a dimensão filosófica das ciências, suspensa por Kant” no blogue Filosofia com Ciências (18/04/2018), dei uma lista ad hoc de exemplos de ‘gestos’ em filosofia, que tratarei agora de detalhar um pouco, procurando mostrar em cada caso como é que o gesto altera o curso dos temas que constituem o paradigma da filosofia escolar, que se vê a si própria como uma “philosophia perennis”, quase anhistórica: embora estudando a “história da filosofia”, ao pensar como que se esquecia dos pensadores, das suas épocas e circunstâncias, das mãos que escrevem ou operam laboratorialmente, do que relativizaria os seus argumentos, manifestaria a sua busca da verdade. Trata-se não apenas da historicidade da discussão filosófica, mas também de procurar situar esta na história da civilização.
2. Eis a lista que dei: o ‘sei que nada sei’ socrático e a dúvida metódica cartesiana; com a definição, a instituição da Academia e do Liceu; a Physica como filosofia com ciências; o plurilinguismo helenista, donde o motivo do ‘signo’, abrindo uma brecha no ‘mesmo’ de Parménides, que tinha continuado em Platão e Aristóteles; a maneira como o platonismo se apoderou do discurso cristão em Orígenes; a teologia cristã levando no seu bojo a filosofia para a Europa; a recepção dela pelas universidades medievais; Aristóteles substitui Platão no tomismo; transformação nominalista deste; papel de Newton na critica de Kant; a redução husserliana e a doação com retiro heideggeriana; a questão da escrita posta à filosofia por um herdeiro de ambos, permitindo entender não apenas o que os pensadores ‘pensam’ (logocentrismo), mas também o que eles ‘fazem’ escrevendo historicamente (desconstrução).
3. O propósito é ambicioso demais para o meu saber, por certo. Haverá que começar pela própria escrita como invenção em sociedades agrícolas e guerreiras, garantindo uma casta de nobres alimentados pelo excesso de comida que camponeses cultivam, casta que nas guerras fazia escravos que os dispensavam dos trabalhos de mãos, deixados a servidores e a artesãos. Foi este ócio (scholê) que proporcionou a alguns nobres e dedicarem-se a reflectir sobre as coisas do mundo e as maneiras de governar as sociedades, a ler as literaturas literárias e filosóficas, a escreverem por sua vez o que discutiam entre eles (assim como as Descobertas e a escravatura, também os filósofos gregos eram guerreiros que filosofavam assentes na escravatura). Pode-se situar as duas épocas principais do pensamento filosófico ocidental: os séculos V-IV a. C. dos sofistas vindos a Atenas, onde entre outros Sócrates, Platão e Aristóteles fizeram ‘escola’; os séculos XVII-XVIII europeus de Galileu e Descartes, Hobbes, Newton, Locke e Leibniz entre outros até Hume, Rousseau e Kant. Tratou-se de duas épocas de explosão de publicação de escrita. Na época do helenismo, a publicação dum manuscrito fazia-se depositando-o num templo, biblioteca ou arquivo oficial, onde se podiam fazer cópias. Para uma difusão rápida, havia oficinas especializadas, onde escreviam numerosos copistas a quem o texto era ditado[1]. Durante a Idade Média, eram monges que copiavam os manuscritos da Antiguidade e asseguraram que uma parte dela chegasse às universidades medievais, onde voltou a haver, agora não nobres guerreiros, mas clérigos, a dedicarem-se ao ócio de ler, discutir, pensar, escrever. Os Modernos europeus serão muito críticos das universidades por se limitarem a ler e transmitir textos, mas só foram capazes de tirar novos conhecimentos das suas experiências, marítimas ou laboratoriais, por terem tido esse passado de vários séculos de ensino textual. Foi só o desenvolvimento das comunas, artesanatos e comércios com as respectivas populações que veio a permitir a invenção da tipografia, a explosão dos livros produzidos industrialmente e a existência de numerosos  leitores, estudantes.
4. Paradoxo de Sócrates : desdenhou todo o saber que aprendera de seus mestres e da tradição, desdém de critica radical que é o seu famoso “só sei que nada sei” – “aquele homem acredita saber alguma coisa, sem sabê-la, enquanto eu, como não sei nada, também estou certo de não saber”, Apologia de Sócrates, 21d, será a formulação que se encontra em Platão mais perto do aforismo tradicional , mas também não quis contribuir para o saber futuro dos seus discípulos, desdenhando de escrever aquando da explosão dos manuscritos e das escolas sofistas do seu tempo. Ora, o paradoxo é esse desdém ser parte da sua invenção da definição e portanto, por via das escritas de Platão e de Aristóteles, da invenção daquilo a que chamamos filosofia: mesmo se se a desconstrói, é por grande respeito pela construção que ela foi, que o maior critico de Sócrates não desdenhou:  “há que admirar o homem por ser um pujante génio da arquitectura que conseguiu erigir sobre água corrente um edifício conceptual indefinidamente complicado”, espanta-se Nietzsche em Sobre a verdade e a mentira em senti­do extra-moral, de 1873. O paradoxo da recusa da escrita na fundação da nossa filosofia estende-se a Platão (Fedro) e pelas mesmas razões: é que o alvo da definição era a maiêutica de Sócrates, que o jovem que ele interrogava chegasse ele próprio a definir a virtude que se discutia e por aí a pô-la em prática. A definição deveria ser o fruto do diálogo, da dialéctica, como dois exemplos modernos poderão ajudar a entender: a psicologia não directiva de Carl Rogers busca que o cliente da relação psicológica chegue à sua própria verdade, o psicólogo – anti-socraticamente – abstendo-se de acrescentar algo do seu saber científico (o que bate certo com o ‘não saber’ socrático! paradoxo, não é?); também a psicanálise freudiana se recusa a meter a sua teoria no trabalho de rememoração analítica, já que é esta que, reconhecida pelo paciente como uma verdade estranha saída de si, o libertará (foi por isso que Freud abandonou precocemente a hipnótese, apesar do que permitia saber dessa verdade ao psicanalista, mas não ao paciente). O paradoxo é que a definição, mecanismo violento de escrita filosófica como já é manifesto nos textos aristotélicos, tenha sido inventada ao serviço do que Derrida chamou logocentrismo, do primado da interioridade na filosofia (e depois no cristianismo) que rasurou essa sua violência escriturária no seio do seu próprio operar, como se pode ver na leitura ‘mental’ de meditação.
5. Há um paralelo à escola da filosofia ocidental, a ideografia chinesa que forneceu o braço da administração mandarim dum império que, tal como a filosofia, durou uns 23 séculos. Creio que é possível argumentar que também foi a definição filosófica quem sustentou a escola ocidental: foi a ela a que Platão atribuiu a eternidade das suas Formas ideais, à maneira da intemporalidade da geometria. Uma maneira de argumentar sobre a definição como operação de escrita violenta é correlacioná-la com a instituição da Academia para ensinar jovens sobre coisas além do que toda a gente aprendia como suficiente, ensinar coisas difíceis relevando do efeito da definição, a chamada abstracção que produz conhecimentos prescindindo dos tradicionais cinco sentidos; dificilmente adquiridos, esses conhecimentos também não se prestam ao diálogo nem à aplicação óbvia no social: é que este é suspenso enquanto tal, enquanto contexto deixado fora das fronteiras (fines) do definido, aquilo que Aristóteles chamará ‘acidentes’, dado ao conhecimento sensível comum, o tal que não sabe dos definidos aprendidos na Academia. Ora, esta instituição durou cerca de dez séculos, até ser fechada no sec. VI pelo imperador Justiniano por relevar da sabedoria pagã. Mas a definição e a abstracção voltaram alguns séculos depois como a coisa própria das universidades
6. Em relação à obra de Aristóteles, a questão que me interessa é a do papel central da Physica (o ente enquanto movimentando-se, preponderância portanto dos vivos, do seu crescer, phuô), onde se fazem as definições centrais da sua obra – ousia, aitia (causa), etc – e que articulam as várias ciências sobre as quais ele escreveu, sendo o eixo a definição de ousia no respectivo domínio, a começar pelo zoológico, mas que se manifesta também no cap. 6 da Poética, definindo a ousia da tragédia (texto no blogue Filosofia com ciências, 15/06/2012). Ora, a Idade Média introduziu a obra filosófica de Aristóteles na teologia mas privilegiando a Metaphysica (o ente enquanto ser, o movimento reduzido ao estatuto de acidente), deixando a Physica e as suas questões a cientistas como Roger Bacon e mais tarde Galileu. É a Heidegger que se deve a redescoberta da Physica, de que disse: “a Physica de Aristóteles é, em retiro, e por essa razão nunca suficientemente atravessado pelo pensamento, o livro de fundo da filosofia ocidental”.
7. Outro gesto histórico decisivo para a futura Europa : a tradução de Aristóteles para latim, com dois motivos filosóficos de fundo : logos, traduzido por ‘razão’ (Cícero : o ‘animal tendo discurso’ vira ‘animal racional’), deixando de fora o discurso e a língua (verbum, oratio), ousia traduzida por ‘substância’ (a ousia primária das Categorias) e por ‘essência’ (a secundária), relevando esta também do pensamento em língua; por outro lado, o bilinguismo helenista introduziu na díade grega clássica nome / coisa um terceiro termo, o lekton, como ‘significado’, aquilo  que se mantém na tradução com a coisa, quando o nome muda de língua (os Gregos clássicos não traduziam para línguas bárbaras !). Estes gestos baralharam completamente a herança grega, vindo a ser o ponto cego, se se pode dizer, do debate realismo / nominalismo. A tríade do signo helenista nome / coisa / significado veio a ser a base de linguagem / realidade (res) / pensamento, a primeira que com o terceiro fazia a ‘essência’ da segunda, a ‘substância’ da coisa ; o nominalismo negou que essa essência pertencesse à substância dela, dissociou-as uma da outra, colocando a essência na noção occamiana de ‘nome mental’ da coisa, de que os nomes das línguas virão a ser os instrumentos na Europa clássica : a oposição pensamento (res cogitans) / coisa (res extensa) é uma herança nominalista sem lugar (primacial) para os nomes, para a linguagem. E o ‘eu’ que pensa é uma coisa pensante, coadjuvada pela alma imortal. É esta que tem ideias inatas, as ideias cartesianas, que foram um enorme sucesso filosófico, rdtão para as palavras e para os discursos como as almas para os corpos, também podem ser imortais.
8. A alma imortal veio com outro gesto importante para a futura Europa ocorrido nos tempos do helenismo: foi a maneira como o platonismo, com os seus seis séculos de escola e de obra filosófica, se apoderou do jovem discurso que lhe apareceu no cristão Orígenes de Alexandria e o platonizou, como era seu hábito face ao que lhe chegava vindo do Médio Oriente, como diz o filósofo platónico Celso, anunciando Orígenes com uns 50 anos de antecedência. Foi este platonismo adaptado que venceu os concílios, contra os teólogos de Antioquia, donde vinham os hereges face aos de Alexandria. Ora, não se trata apenas de uma questão da teologia cristã, que terá o seu patrão em Agostinho de Hipona: foi com estas vestes platónicas que a filosofia foi transmitida às universidades medievais. Se é certo que Alberto Magno e Tomás de Aquino substituíram Platão por Aristóteles, gesto que valeu a citação de Heidegger no final do § 6, há que sublinhar que não o fizeram integralmente. Platão havia introduzido uma oposição entre alma e corpo, mas essa alma era imortal, isto é, susceptível de viver sem o corpo, com uma substancialidade inteligível, o que Aristóteles criticou no seu hilemorfismo, a alma como forma do corpo material: ora o Aquino, dependendo da sua condição de teólogo cristão, manteve a imortalidade da alma (ignorada pela Bíblia, que anunciava a ressurreição dos corpos, que era justamente o que desagrava a Celso, citado acima), dando um peso filosófico (teológico coberto filosoficamente) enorme à res que cogita, ao pensamento. É nestes diversos gestos que a filosofia europeia se constituiu, como muitos filósofos sabem, é claro.
9. Outro gesto pouco conhecido de que falou Isabelle Stengers em A Nova Aliança, que muito me intrigou e que Jules Vuillemin tinha esclarecido, foi a maneira como a critica kantiana da razão pura se moldou na física de Newton, buscando aí a resposta ao cepticismo de Hume que o acordou do “dogma” leibniziano: como é possível a verdade de Newton? Para a ciência, os conceitos do entendimento construídos sobre os fenómenos vindos da sensibilidade pelas formas a priori do espaço e do tempo, e as ideias puras, isto é sem sensibilidade (abstractas?), para a filosofia (e para a teoria?); trata-se da física de Newton, que desprezou as “qualidades”. A maior parte destes exemplos têm sido abordados neste blogue. Um deles, particularmente significativo que virá num próximo livro meu, é o de relevar o mesmo gesto critico de Aristóteles em relação a Platão e o de Kant em relação a Leibniz, em civilizações fortemente contrastadas, algo de impensável para uma philosophia perennis.
10. De que se trata nestes casos variados de implementação do pensamento filosófico ? Digamos duma forma simples, que são transformações de civilização que abrem novos horizontes às sociedades onde alguns pensadores se revelam capazes de filosofar, e cada um deles é sempre uma singularidade, um enigma, um leitor de pensadores anteriores em que a escrita se funda, fecunda. Nas duas emergências mais óbvias, a grega e a europeia, é a multiplicidade de manuscritos e de livros que aparece claramente como ocasião de pensamento, mas essa explosão de publicações é já índice de mais tempo livre (o tal ócio, que deu o nome à escola) que alicia gente nova para querer compreender quem são, para onde vão os humanos que assim desabrocham colectivamente, mormente com o Renascimento, navegação e artes humanistas, mãos que desenham, perspectivam, escrevem, se aliam com os olhos que até aí predominavam no pensamento. A derrota dos Gregos dá origem ao helenismo, a sua cultura tornando-se coisa dos Romanos mas também de outros cultos orientais, como o cristianismo, que por sua vez ganhou preponderância com a exaustão do império romano: a época que se seguiu, os longos séculos bem chamados ‘medievais’, atestam no seu vazio de pensamento, os seus monges intelectuais tendo-se dedicado à cópia de manuscritos, tarefa obscura e formidável que tornou possível um fenómeno que creio único na história dos humanos, a formação das universidades dos seculos XII e XIII que pegaram nesses manuscritos e em outros recebidos dos árabes e lendo e discutindo textos (sem experiêmcia, criticaram os renascentistas) que deram bases a uma nova civilização que (re) nasceu com uma bagagem cultural da Antiguidade. Foi esse sistema – que deu os pejorativos ‘escolástico’ e ‘académico’ – que tornou possível que a filosofia chegasse como berço de pensamento duma civilização (que logo soube de si como renascimento), fenómeno inédito na história humana, sem o qual não teria havido a modernidade europeia. Berço de acento cristão, é certo, a própria filosofia sendo a ‘serva’ (ancilla) da teologia, levada como foi no bojo da Igreja, bagagem que os Europeus completaram redescobrindo os grandes autores pagãos de Roma e o próprio Platão, traduzido para latim na segunda metade do século XV. Ora, são as novas comunas dos últimos séculos medievais que necessitaram dessas universidades, de se ultrapassar a teologia agostiniana para monges, camponeses e guerreiros para uma que tivesse a ver com as novas tarefas bem difíceis do urbanismo renascente. Depois, as mãos renascentistas inventaram o laboratório científico e com ele a filosofia reformulou-se, Bacon, Descartes e Hobbes. Kant e Hegel são já a transição para a civilização que se anuncia com o desabrochar formidável das ciências do século XIX: a revolução das próprias sociedades leva à importância ganha pelo tempo e as novas ciências serão da história: da terra e da vida, do trabalho ou economia, das línguas, dos textos.
11. O século XIX foi dominado pelas ciências que forneceram os grandes debates, a economia com Marx, a biologia com Darwin, a psicologia com Freud, deixando espaços, na margem do positivismo, para tentativas de tipo existencial, de Kierkegaard a Nietzsche, enquanto que no século XX a palavra de ordem de Husserl, de retorno às próprias coisas, teve dois surtos, um existencial (Heidegger, Sartre, Levinas...), outro de aliança da filosofia com as ciências sociais e humanas que estavam a impor-se atrás da linguística saussuriana no chamado estruturalismo – sem sujeito nem objecto – segundo o linguista Roman Jakobson. Em paralelo, o lógico contemporâneo de Husserl, Gottlob Frege, deu origem às filosofias ditas analíticas que mal conheço, mas em que as ciências puras e duras, como se diz, física, química e biologia, têm um lugar destacado que o estruturalismo ignorou.
12. Como dizer a relação das correntes fenomenológicas com este século XX, com uma metade disparatada e outra de reconstrução sobre as ruínas desses disparates, com uma pujança científica e tecnológica imensa, esta inclusive nas guerras? Do ponto de vista da fenomenologia geral em que me situo, esta pujança como que apagou o lugar tradicional da filosofia europeia, substituída pelas ciências sociais como fonte de conhecimento novo e de saber-fazer, mormente a economia[2]. Modestamente, como é timbre do pensamento que inova não ser entendido maioritariamente, colocou-se a essa pujança científica a questão heideggeriana do ser no mundo, a sua doação retirada como aberto às inscrições bio-sociais (desconstrução derridiana), à estruturação ‘interior’ dos ex-sujeitos e das ex-consciências pela ‘exterioridade tribal’ que a gera. E disso as várias ciências, se e quando o souberem, estremecerão na teorização dos seus paradigmas, além dos efeitos práticos de poluição (que estão inviabilizando a vida na Terra) resultarem dos eufemísticamente chamados “efeitos secundários” da experimentação laboratorial, que são de facto os efeitos imprevistos – o laboratório busca efeitos ‘primários’ na sua experimentação – que surgem fora do laboratório pelas aplicações tecnológicas (mas Hiroshima e Nagasaki foram efeitos primários como tal buscados, imensa nódoa da física quântica). É que a engenharia, desde Watt e Volta (a corrente eléctrica), é os gestos históricos do pensamento e do conhecimento terem-se tornado um imenso gesto que revolucionou a história, revolucionou as cenas que os laboratórios científicos deixavam fora dos seus muros, as técnicas apoderando-se de usos e quebrando as casas de antanho, criando usos novos e novas especializações e portanto unidades sociais como instituições de trabalho predominando sobre as famílias, alterando inacreditavelmente a paisagem da civilização. Mas há que acrescentar que a ganância capitalista é cúmplice desta poluição, sem que se perceba que a ciência económica cumpra a sua cientificidade nesta questão: pelo contrário, as correntes monetaristas que dominaram as últimas décadas e fomentaram as recentes crises parece continuarem a predominar, porque também produzem efeitos secundários no bolso dos economistas financeiros tornados gestores, numa ‘nova aliança’ da engenharia electrónica com a ciência económica nobelizada, de que são índice os grandes patrões multibilionários da Microsoft, Google e quejandos.
13. Para quem trabalha em filosofia, perceber que essa ‘nova aliança’ se apresenta como o resultado a jusante da fabulosa corrente de pensamento feita de descobertas e invenções filosóficas e científicas, o desaguar destas grandes paixões de vidas totalmente entregues ao pensamento, ao conhecimento e à compreensão das coisas e dos humanos, como se se tratasse do telos de dois milénios e meio da sua história, do seu alvo final. E as chamadas redes sociais, com as suas vantagens, é bem de ver, substituem os livros que impacientam os jovens apressados. Panorama desolador, uma catástrofe na expectativa do pensamento, da razão que Kant anunciou como estádio adulto da modernidade europeia. Mas a história conheceu épocas de desolação afins e é delas que ressurge o florescimento duma nova geração que não conheceu bons tempos e por isso teve que os buscar, que os fazer vir: entre os que nasceram já com a electrónica e se fartaram dos dislates que a habitam, que os seus predecessores não reconhecem como pares, como uma nova música estará já brotando a esperança que acolherá os vindouros.


[1] Nodet e Taylor, Essai sur les origines du christianisme. Une secte éclatée, Cerf, 1998, p. 23.
[2] Assim como novas artes cinemáticas: o movimento da luz permite um conhecimento que parte da ordem do sensível e que é fortemente atractivo; ora, o movimento foi a base quer da physica quer da física.

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Viagem no tempo ?




1. Um Monde des livres recente faz uma breve recensão Breves réponses aux grandes questions de notre temps, dum livro póstumo de Stephen Hawking, dizendo entre outras coisas que fala da possibilidade de “viagens no tempo” [1]. Claro que não o li, não sei se é a favor ou contra essa possibilidade, como também não li a sua história do tempo, publicada há uns vinte anos. A dizer verdade, o que me incitou a este pequeno texto foi a simples possibilidade de a questão ser posta, ainda que se responda negativamente: ela ilustra a concepção vigente na Física contemporânea de considerar o tempo (e o espaço, e o que Einstein chamou “espaço-tempo”) como algo de existente em si, quase como paralelo ao universo material, embora esse tempo não seja ele próprio ‘material’, julgava eu, mas diz-se na dita recensão que Hawking “explica que o tempo não é o inexorável absoluto dos pêndulos, mas um material maleável[2] que pode inclusivammente parar num buraco negro”, onde não há movimento, acrescento eu. De qualquer forma, o tempo, ainda mais se ‘material’, provoca nos físicos graves questões, como dava conta uma conferência do físico francês Étienne Klein (“Le temps existe-t-il?”, 12/06/2006), glosada neste blogue (5/5/2015). Ora, foi o filósofo Aristóteles que introduziu o motivo de ‘substância’ (material informado, com motor e finalidade), que os Europeus desfizeram (no sentido da desconstrução, encetada por Galileu e Newton), quem paradoxalmente definiu o tempo de forma não substancial ou material, existente por si, e ainda por cima antecipando cerca de dois milénios na mesma definição a descoberta do tempo tal como Galileu o colocou na sua célebre experiência de medir [a água que tombava durante] o tempo do movimento em análise, tornando imperativa a invenção de relógios como instrumento essencial dos laboratórios[3]. O paradoxo tem uma explicação: a “substância” que Aristóteles definiu (a ousia) era uma substância que se movia e a definição aristotélica do tempo na Physica “o tempo é o número [a medida] do movimento segundo o anterior e o posterior” (IV, 219 b 1) – subordinava-o ao movimento, como a sua medida, acrescentando-lhe aliás uma dimensão que a Física ignorou e só um químico do século XX, Ilya Prigogine, pôs em relevo: a sua irreversibildade, contida no “segundo o anterior e o posterior” da definição. Pode-se dizer aliás que a alegada expressão de Galileu diante da Inquisição “e no entanto ela move-se” dá conta implicitamente de que é esse movimento de rotação que nos permite medir o dia, embora sob a aparência do movimento do sol.
2. Eu não sei que chegue para aclarar a questão de saber aonde e quando é que os físicos foram buscar esta separação entre o tempo e o movimento que permite àquele dar a possibilidade eventual de viajar no tempo, já que essa separação é o oposto da sua prática laboratorial, em que o tempo é sempre e exclusivamente a medida dos movimentos da experimentação; é aliás donde vem a inacreditável noção de reversibilidade que supõe a viagem no tempo (ao passado, sem dúvida, já iremos ao futuro), que o próprio Prigogine interpretou como resultante do uso de fórmulas de tipo matemático, de equações reversíveis, isto é, que podem sempre desenvolver-se para uma solução como voltar atrás, ao ponto de partida.
3. Como é que o tempo se punha na filosofia / teologia medieval? A conhecida resposta de Agostinho de Hipona sobre a sua dificuldade em definir o tempo, sabendo bem o que ele era na ordem prática, é porventura resultante do seu neoplatonismo, privilegiando a eternidade desde as Formas ideais de Platão; será do lado do aristotelismo de Tomás de Aquino que há que vasculhar, a partir de memórias antigas. Ora, o que importa ao teólogo dominicano, a quem devemos a argumentação filosófica do conjunto das questões teológicas na sua Summa, é a metaphysica de Aristóteles e menos a sua physica, o que parece corresponder à maneira como o movimento é secundarizado como acidente[4], reino dos temporais singulares. Mas essa metaphysica é teológica, o tempo dos movimentos segundo Aristóteles não se aplica ao Deus imutável – sem movimento, alteração nenhuma – e eterno, portanto sem tempo. Também é imenso, sem medida nem espaço. Uma questão que se discutiu nessa época era a de saber se Deus conhecia os “futuríveis”, as coisas que poderiam suceder a alguém se ele não tivesse tomado tal opção, por exemplo se tivesse casado em vez de ser frade. É uma espécie de viagem de Deus no futuro – sem tempo, passado, presente e futuro são igualmente presentes para o Ser eterno – que obviamente se complicaria bastante com os futuríveis que seriam os futuros dos filhos, netos, etc. Ora bem, Tomás de Aquino deu uma resposta muito interessante: Deus só conhece quer o passado quer o futuro como presente, nas acções e nos acontecimentos, e os futuríveis não são presentes, portanto Deus não os conhece. Resposta que não diminui a omnipotência de Deus, note-se, mas como que a liga à terra, no caso aos movimentos e ao tempo deles.
4. Parece-me que esta bela resposta significa que ainda no século XIII não havia o tempo e o espaço dos físicos do século XVII. Meto aqui o espaço que, como se sabe, é um motivo ignorado pelos Gregos, que tinham apenas o de lugar (topos), mas obviamente que também mediam distâncias entre lugares, como se deduz da própria palavra geometria, medição da terra. E o motivo físico de espaço põe uma questão semelhante à de tempo, só que é a dimensão própria para viajar, justamente na ‘terra’ que os Gregos mediam, que é dela mesma reversível, como todos experimentamos em viagens de ida e volta, mesmo os astronautas vão e voltam. Ora, aqui há uma inovação nos séculos XV e XVI, que foram as famosas descobertas, nomeadamente a da esfericidade da Terra e os meridianos e longitudes, estas a cruzarem-se em dois pólos e a tornar indefinidas as possibilidades de viagens, como indefinido é o tempo enquanto horizonte das nossas vidas que poucas chegam aos 100 anos, horizonte do nosso futuro.
5. É extremamente tentador pensar que o tempo e o espaço do século XVII foram inventados pelos físicos enquanto laborando em laboratórios que eles próprios, Galileu e Newton nomeadamente, fizeram com as suas próprias mãos hábeis: foi este labor histórico que gerou o motivo newtoniano de “absoluto” do espaço e do tempo que Einstein veio a criticar sob o tema da relatividade (aliás galilaico): “o espaço absoluto permanece, por sua própria natureza e sem relação a qualquer coisa externa, sempre similar e imóvel” e “o  tempo absoluto, matemático e verdadeiro flui, por si só e por sua própria natureza, de forma homogênea e sem relação com qualquer coisa externa” (Newton)[5]. O espaço é imóvel, o tempo sem relação com qualquer coisa externa, isto é, com o movimento: foi assim que filosofou anti-aristotelicamente Newton, mas também anti-experimentalmente, já que é na experiência de movimentos que ele mede os (seus) tempos. Pode-se supor, e é como supor que argumento aqui, que o génio que prescindiu das qualidades, e portanto das substâncias, e que propôs “princípios matemáticos”, foi levado a interpretar matematicamente o espaço e o tempo cruciais na nova ciência, opondo-os às coisas que serviam para as suas experiências, que eram quaisquer e relativas (“qualquer coisa externa”, escreveu). Donde talvez o “absoluto”, digno da nova ciência como da “filosofia natural”. O que suponho é consonante com o motivo gramatológico de desconstrução operado pela Física que mede e reduz as coisas empíricas cujo movimento é medido, retendo apenas equações e medidas matemáticas, “as diferenças e proporções” de Galileu. Os “absolutos” reflectem o mal-estar logocêntrico do desconstrutor que se ignora enquanto tal. Acrescente-se que o facto de Einstein ter relativizado o absolutismo, não impede os físicos de serem mais newtonianos do que pensam, ao guardarem esta dupla “sem relação” que sublinhei, que lhes permitiria viajar no tempo. É que se não tivessem relação, não haveria Física como ciência do mundo material.
6. Não significa isto que não façamos viagens no tempo, mas doutra maneira, atenuando tanto quanto possível o nosso tempo e espaço, o agora e aqui dos nossos movimentos quotidianos, fechando-nos no silêncio da leitura dum livro de Platão ou de Marcos, de Dante ou de Galileu, encontrando a estranheza de outros códigos de viver que os textos reproduzem e se aprendem com vagar, sem nunca sermos capazes de nos esquecer do que sabemos depois desse passado visitado. Ou com iguais cuidados de atenuação, fecharmo-nos na sala escura dum cinema que nos dê um filme histórico de qualidade, nomeadamente na atenção aos códigos, como o inesquecível Pasolini sobre o evangelho de Mateus, que devo ter visto algumas cinco vezes. São experiências em que somos raptados ao nosso aqui e agora, levados pelo que lemos ou vemos, num tempo ficcionado que nunca foi presente. E o que assim se aprende dá-nos cultura histórica que se acrescenta como experiência cultural à memória de experiências de vida, sem a qual o nosso ‘aqui e agora’, sem passado, seria também incapaz de futuro. Estes dois tempos de antes e depois que Aristóteles colocou na sua fabulosa definição de tempo, ‘passado’ e ‘futuro’, só têm sentido no ‘presente’, como revisto o primeiro e antecipado (mais ou menos vagamente, consoante a distância) o segundo. Esta noção de ‘distância’ entre períodos de tempo e a de ‘linha temporal’ mostram bem como o tempo e o espaço são indissociáveis e como este é o único que se dá à medida directamente, sem relógios[6]; é que os relógios são justamente a impossibilidade de viajar no tempo para o medir: quando se chega ao termo do período a medir, já se está neste tempo final, sem se poder voltar ao inicial, o tempo vai connosco, não podemos sair dele! Trata-se justamente da irreversibilidade que Prigogine apontou como lacuna do tempo dos físicos, que podem repetir os percursos e inclusivamente por vezes fazê-los em sentido inverso. A relatividade restrita de Einstein implica que, para velocidades perto da da luz, tem que se ter em conta também o percurso da luz do olhar que mede que se junta ao tempo do percurso a medir: é engraçado, ele trabalhava no registo de patentes de Zurich e na época procurava-se encontrar maneira de sintonizar os vários relógios nas grandes cidades, relativamente distantes, tendo ele que apreciar várias propostas que foram submetidas. Físico teórico, sem dúvida, mas com problemas práticos que pediam soluções teóricas, à maneira dos puzzles de Kuhn.


[1] São dados três exemplos dessas questões : Deus existe ?Como é que o universo começou ? Pode-se prever o futuro ou viajar no tempo ?
[2] Materiau’ é um termo que em francês se usa no plural para materiais de construção, com usos técnicos excepcionais no singular, o adjectivo ‘maleável’ atenuando esse caracter constructivo.
[3] Há um texto de Alexandre Koyré que mostra como os laboratórios da nova ciência obrigaram à invenção de relógios permitindo ‘medir’ o tempo, os pêndulos que refere Hawking.
[4] E. Gilson, Le Thomisme, Vrin, 1947, p. 47 n.
[5] Afinal estavam na Web estas duas definições.
[6] No relógio medimos ‘espaços’ do movimento dos ponteiros; nos digitais, o tempo é dado directamente pelo tempo que há entre os números.