segunda-feira, 4 de junho de 2018

Biologia e antropologia : articulação



1. A questão que este texto procura esclarecer diz respeito ao lugar da tribo na aprendizagem, que é tratada habitualmente como sendo uma função do aprendiz, como se conjuga o verbo ‘eu aprendo, tu aprendes’, etc. No Para além do bem e do mal, § 17, Nietzsche escreveu que “um pensamento vem quando ‘ele’ quer e não quando ‘eu’ quero’, de maneira que é falsificar os factos dizer que o sujeito ‘eu’ é a determinação do verbo ‘penso’. Qualquer coisa pensa, mas que seja justamente este velho e ilustre ‘eu’, não se trata, para dizer em tons moderados, senão duma hipótese, duma alegação; sobretudo não é uma ‘certeza imediata’. [...] Raciocina-se segundo a rotina gramatical: ‘pensar’ é uma acção, qualquer acção supõe um sujeito activo, portanto...”. Ora bem, se aprender releva essencialmente da tribo que o uso que é aprendido e que o aprendiz recebe como condição de vir a ser, num processo temporal de maior ou menor duração, capaz de exercer espontaneamente esse uso que aprendeu, se há assim uma fase em que predomina a ‘passividade’ antes da ‘actividade’ ter vingado, como se articulam as duas fases? Tratando-se de usos mais ou menos complexos e que se repetem ao longo da vida, esta repetição hábil e espontânea não deixa com o passar do tempo de relevar da tribo que os ensinou e onde eles se exercem como aspecto da socialização dos indígenas. Tratar-se-á de tentar esclarecer o lugar do tribal na expressão ‘eu aprendo’ (recordo que chamo ‘tribo’ ao conjunto social constituído pelas famílias, aquela que aonde se nasce e a(s) que se constitui, pelas escolas que se frequentou e pelas instituições em que se trabalhou, pelas gentes que se vão conhecendo, a quem se aperta a mão ou se dá beijinho, a quem se diz ‘bom dia’).
2. Esta questão, que tem a particularidade de articular de maneira indissociável, como se verá, as dimensões biológica e antropológica dos indígenas humanos, constituirá porventura a questão mais candente em tudo o que vai desde a neurologia e as correlativas psicologias até à antropologia e à economia: ela poria em questão que haja uma distinção entre ciências sociais e ciências humanas.
3. Parto da palavra ‘parto’, que em latim tanto diz o nascimento dos humanos como em português como as ninhadas de animais e produtos de plantas, prestando-se a ser lida como o episódio em que um feto humano deixa de ser ‘parte’ do corpo da sua mãe, se-para-se e a-par-ece como autónomo, apartado; até aí, as suas células eram alimentadas pelo seu sangue mas este recebia oxigénio e moléculas nutrientes do sangue da mãe, via cordão umbilical, agora, os seus pulmões rasgam-se e começam a respirar o oxigénio por eles mesmos, o seu aparelho digestivo fica capaz de uso – boca, esófago, estômago, intestino delgado cujas paredes passarão ao sangue as moléculas nutrientes – mas, grande ‘mas’, como é que a comida chega à boca? Eis o limite da sua autonomia: sem nenhuma capacidade de mobilidade – levará anos a aprendê-la, só lhe resta (hormonalmente) chorar, isto é, pedir que cuidem dele sem saber que pede, só volta ao ‘brincar’ (Winnicott) do tempo de feto feliz quando saciado pelo leite materno. Em termos freudianos, ao chorar, o ‘princípio do prazer’ afronta-se pela primeira vez (quiçá) ao ‘princípio da realidade’, o ‘biológico’ (autónomo) ao ‘antropológico’. Claro que este já lá estava, como tribo justamente, desde a concepção que o tinha em conta, senão antes. O cuidado  como resposta ao choro é o início tribal da aprendizagem: a articulação do biológico e do antropológico é da ordem da alimentação e da economia. Se a ciência económica soubesse deste seu principiar, perceberia que o seu primeiro princípio deve ser o de impedir que haja fome na sociedade de que ela se ocupa.
4. Este cuidado acompanha o crescimento da criança como incitação à autonomia, isto é, à aprendizagem, ‘faz isto’, ‘é assim que se faz’, trata-se da integração progressiva no paradigma dos usos da família, como da escola, da lei de aliança da unidade social, em que entre alimentação, sono e higiene se reparte a integração do biológico no social. Pode-se dizer que há uma força tribal que comanda assim as aprendizagens comuns aos indígenas da tribo e depois uma força de trabalho que comanda as aprendizagens especializadas em termos de escolas superiores e de instituições profissionais, em que se trabalha. São estas duas forças que têm a iniciativa das aprendizagens, que as impõem ao bebé que nasce e à criança que anda, fala, mexe, joga, ao adolescente e ao jovem que ‘quer ser’ isto ou aquilo, em consequência do que vê e ouve da sociedade cosmopolita. Estas duas forças relevam da dualidade famílias / instituições de trabalho, são ambas atravessadas quer pela lei da aliança, que diz respeito às aprendizagens que têm a ver com os paradigmas dos dois tipos de unidades sociais, como pela lei da guerra que incita a querer ser melhor do que os outros indígenas, olhando-os como rivais. Ora bem, o que são estas ‘forças’, uma ‘tribal’, outra ‘de trabalho’? São a incidência dos respectivos paradigmas, familiar e de emprego, sobre cada um dos indígenas, onde ele é apanhado pela unidade social, desde os processos de aprendizagem que lhe prescrevem o seu lugar nela. O paradigma ‘atrai’, na definição de Kuhn, mas também faz fazer. São estas forças que refere habitualmente a expressão ‘tem que ser’, em francês ‘il faut!’: “o ter que ser tem muita força”.
5. Porque é que as pessoas voltam sempre para casa? Questão bizarra, de tal forma é algo de óbvio nas rotinas. O que é que as atrai? Ou será que são os empregos que as repelem? Pode-se pensar que ambas as forças jogam, a tribal atrai e a de trabalho cessa, num jogo entre biologia e economia (antropologia): esta, quando atrai, inibe as precisões daquela, nem sexualidade nem alimentação nem descanso ou distracção são admissíveis, a própria linguagem é disciplinada: o sexo é claramente interditado, à maneira do interdito do incesto na família (ainda que não conste dos regulamentos, o escândalo que seria mostra bem, o próprio assédio é mal visto), as outras precisões são disciplinadas em intervalos previstos; o fim do trabalho é a retomada da economia biológica que joga como atracção pelo paradigma familiar ou por outras atracções de foro tribal, café, clube, igreja, casa de amigos, cinema, ida a uma loja comprar qualquer coisa. Estas ‘forças de atracção’, não são apenas ‘interacções’, já que são todos que são assim atraídos, ainda quando os ambientes não sejam folgados, quando as relações entre os vários indígenas do paradigma conheçam crispações, tensões de ordem politica, clubista ou outras. Ou seja, a biologia reintegra-se na antropologia, a diferença entre elas sendo sobretudo assinalável justamente pela disciplinação imposta pelos paradigmas das unidades de trabalho. Esta disciplina, por sua vez, é tolerada nomeadamente devido ao salário que financia o ‘tempo livre’ da biologia, estabelece dentro da própria economia a relação estrutural entre as duas esferas: se ele impede teoricamente o dualismo entre elas, corre todavia sempre o risco de o trazer à tona sob forma de ‘luta de classes’.
6. Este panorama dual com riscos de dualismo em torno do salário não cobre no entanto todas as situações de relação pessoal com as duas forças que movem os indígenas: há casos em que não é apenas a necessidade de salário que atrai para o emprego apesar da sua disciplinação, quando a especialização que ele demanda torna o trabalho atractivo nele mesmo pela criatividade pessoal que implica. Entre esses casos, o dum intelectual universitário é-me mais próximo, quando a citação de Nietzsche por onde este texto começou, quando “o pensamento que vem quando ele quer” anula a dualidade entre ambas as esferas, ou traz a força de trabalho para dentro do tribal, ignorando espaços e horários, tribo e trabalho. A questão que então se põe é: donde vem esse pensamento que só vem quando ‘ele quer’ e que parece gratuito? Para tentar encontrar resposta, há que retomar a questão dos sujeitos do ‘eu penso’ e do ‘eu aprendo’, que não relevam apenas do ‘eu’. O que chamei força tribal e força de trabalho é de ordem pessoal, exercem atracção sobre o ‘eu’ de cada um, são diversificadas segundo as respectivas idiossincrasias, relevam dos usos que aprenderam, quer os tribais quer os especializados, podendo dar satisfações ou incómodos, são pois indissociáveis do ‘eu’ mas não relevam apenas dele. Os dois termos genéricos, força tribal e força de trabalho, reenviam em cada caso para os antepassados com quem se aprendeu, incitado nomeadamente por parentes e mestres: esses antepassados retiraram-se, porventura morreram já, mas, incógnitos enquanto ‘passados’, estão retirados no saber do que ‘eu’ sabe em seu usar hábil e espontâneo, ausentes mas presentes em seus efeitos constantemente repetidos, onde a memória não chega mas de que a psicanálise pode ajudar a perceber os traços, os vestígios, por exemplo a partir da interpretação dos sonhos. Mas é sempre num enigma estrutural que ela penetra, através da técnica da associação de ideias em divã sem censuras lógicas, morais ou ideológicas. Ora, “o pensamento que vem quando ele quer” vem sempre por via de associações dessas, ao que se ouve ou lê ou divagando sem pensar nisso, sem pensar em nada, trabalhando em associações que circulam no nosso cinema mental a partir das antigas aprendizagens incessantemente repetidas, alterando-se nas leituras de textos dos paradigmas ocidentais, vem “sem que se saiba como”, como diz uma pequena parábola do cap. 4 do evangelho de Marcos que foi uma das chaves da minha leitura dele. O que é impressionante é quando esse ‘vir’ do pensamento – que normalmente, ainda que não se saiba como, responde a preocupações, a buscas – se dá como desafio a qualquer fenomenologia, abre um caminho que nunca fora vislumbrado, inventa o que não se sabia e virá talvez a ser uma verdade da geração seguinte. 
7. Terá aqui cabimento distinguir biologia e antropologia, se mesmo a tribo parece ultrapassada, quando por vezes poucos são capazes de entender a novidade?

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