1. A questão que este texto procura
esclarecer diz respeito ao lugar da tribo na aprendizagem, que é tratada
habitualmente como sendo uma função do aprendiz, como se conjuga o verbo ‘eu
aprendo, tu aprendes’, etc. No Para além do bem e do mal, § 17, Nietzsche escreveu que “um pensamento vem
quando ‘ele’ quer e não quando ‘eu’ quero’, de maneira que é falsificar os factos dizer que o sujeito ‘eu’ é a
determinação do verbo ‘penso’. Qualquer coisa pensa, mas que seja justamente
este velho e ilustre ‘eu’, não se trata, para dizer em tons moderados, senão
duma hipótese, duma alegação; sobretudo não é uma ‘certeza imediata’. [...]
Raciocina-se segundo a rotina gramatical: ‘pensar’ é uma acção, qualquer acção
supõe um sujeito activo, portanto...”. Ora bem, se aprender releva
essencialmente da tribo que dá o uso que é aprendido e que o aprendiz recebe como condição de vir a ser, num processo temporal
de maior ou menor duração, capaz de exercer espontaneamente esse uso que aprendeu,
se há assim uma fase em que predomina a ‘passividade’ antes da ‘actividade’ ter
vingado, como se articulam as duas fases? Tratando-se de usos mais ou menos
complexos e que se repetem ao longo da vida, esta repetição hábil e espontânea
não deixa com o passar do tempo de relevar da tribo que os ensinou e onde eles
se exercem como aspecto da socialização dos indígenas. Tratar-se-á de tentar
esclarecer o lugar do tribal na expressão ‘eu aprendo’ (recordo que chamo
‘tribo’ ao conjunto social constituído pelas famílias, aquela que aonde se
nasce e a(s) que se constitui, pelas escolas que se frequentou e pelas
instituições em que se trabalhou, pelas gentes que se vão conhecendo, a quem se
aperta a mão ou se dá beijinho, a quem se diz ‘bom dia’).
2. Esta questão, que tem a
particularidade de articular de maneira indissociável, como se verá, as
dimensões biológica e antropológica dos indígenas humanos, constituirá
porventura a questão mais candente em tudo o que vai desde a neurologia e as
correlativas psicologias até à antropologia e à economia: ela poria em questão
que haja uma distinção entre ciências sociais e ciências humanas.
3. Parto da palavra ‘parto’, que em
latim tanto diz o nascimento dos humanos como em português como as ninhadas de
animais e produtos de plantas, prestando-se a ser lida como o episódio em que
um feto humano deixa de ser ‘parte’ do corpo da sua mãe, se-para-se e a-par-ece como autónomo, apartado;
até aí, as suas células eram alimentadas pelo seu sangue mas este recebia
oxigénio e moléculas nutrientes do sangue da mãe, via cordão umbilical, agora,
os seus pulmões rasgam-se e começam a respirar o oxigénio por eles mesmos, o
seu aparelho digestivo fica capaz de uso – boca, esófago, estômago, intestino
delgado cujas paredes passarão ao sangue as moléculas nutrientes – mas, grande
‘mas’, como é que a comida chega à boca? Eis o limite da sua autonomia: sem
nenhuma capacidade de mobilidade – levará anos a aprendê-la, só lhe resta
(hormonalmente) chorar, isto é, pedir que cuidem dele sem saber que pede, só
volta ao ‘brincar’ (Winnicott) do tempo de feto feliz quando saciado pelo leite
materno. Em termos freudianos, ao chorar, o ‘princípio do prazer’ afronta-se
pela primeira vez (quiçá) ao ‘princípio da realidade’, o ‘biológico’ (autónomo)
ao ‘antropológico’. Claro que este já lá estava, como tribo justamente, desde a
concepção que o tinha em conta, senão antes. O cuidado como resposta ao choro é o início
tribal da aprendizagem: a
articulação do biológico e do antropológico é da ordem da alimentação e da
economia. Se a ciência económica soubesse deste seu principiar, perceberia que
o seu primeiro princípio deve
ser o de impedir que haja fome na sociedade de que ela se ocupa.
4. Este cuidado acompanha o
crescimento da criança como incitação à autonomia, isto é, à aprendizagem, ‘faz
isto’, ‘é assim que se faz’, trata-se da integração progressiva no paradigma
dos usos da família, como da escola, da lei de aliança da unidade social, em que entre alimentação, sono
e higiene se reparte a integração do biológico no social. Pode-se dizer que há
uma força tribal que comanda
assim as aprendizagens comuns
aos indígenas da tribo e depois uma força de trabalho que comanda as aprendizagens especializadas em termos de escolas superiores e de instituições
profissionais, em que se trabalha. São estas duas forças que têm a iniciativa
das aprendizagens, que as impõem ao bebé que nasce e à criança que anda, fala,
mexe, joga, ao adolescente e ao jovem que ‘quer ser’ isto ou aquilo, em
consequência do que vê e ouve da sociedade cosmopolita. Estas duas forças
relevam da dualidade famílias / instituições de trabalho, são ambas
atravessadas quer pela lei da aliança, que diz respeito às aprendizagens que têm a ver com os paradigmas dos
dois tipos de unidades sociais, como pela lei da guerra que incita a querer ser melhor do que os outros
indígenas, olhando-os como rivais. Ora bem, o que são estas
‘forças’, uma ‘tribal’, outra ‘de trabalho’? São a incidência dos respectivos
paradigmas, familiar e de emprego, sobre cada um dos indígenas, onde ele é
apanhado pela unidade social, desde os processos de aprendizagem que lhe prescrevem o seu lugar nela. O paradigma ‘atrai’, na
definição de Kuhn, mas também faz fazer. São estas forças que refere
habitualmente a expressão ‘tem que ser’, em francês ‘il faut!’: “o ter que ser
tem muita força”.
5. Porque
é que as pessoas voltam sempre para casa? Questão bizarra, de tal forma é algo
de óbvio nas rotinas. O que é que
as atrai? Ou será que são os
empregos que as repelem? Pode-se pensar que ambas as forças jogam, a tribal
atrai e a de trabalho cessa, num jogo entre biologia e economia (antropologia):
esta, quando atrai, inibe as precisões daquela, nem sexualidade nem alimentação
nem descanso ou distracção são admissíveis, a própria linguagem é disciplinada:
o sexo é claramente interditado, à maneira do interdito do incesto na família
(ainda que não conste dos regulamentos, o escândalo que seria mostra bem, o
próprio assédio é mal visto), as outras precisões são disciplinadas em intervalos
previstos; o fim do trabalho é a retomada da economia biológica que joga como
atracção pelo paradigma familiar ou por outras atracções de foro tribal, café,
clube, igreja, casa de amigos, cinema, ida a uma loja comprar qualquer coisa.
Estas ‘forças de atracção’, não são apenas ‘interacções’, já que são todos que
são assim atraídos, ainda quando os ambientes não sejam folgados, quando as
relações entre os vários indígenas do paradigma conheçam crispações, tensões de
ordem politica, clubista ou outras. Ou seja, a biologia reintegra-se na
antropologia, a diferença entre elas sendo sobretudo assinalável justamente
pela disciplinação imposta pelos paradigmas das unidades de trabalho. Esta
disciplina, por sua vez, é tolerada nomeadamente devido ao salário que financia
o ‘tempo livre’ da biologia, estabelece dentro da própria economia a relação
estrutural entre as duas esferas: se ele impede teoricamente o dualismo entre
elas, corre todavia sempre o risco de o trazer à tona sob forma de ‘luta de classes’.
6. Este panorama dual com riscos de
dualismo em torno do salário não cobre no entanto todas as situações de relação
pessoal com as duas forças que movem os indígenas: há casos em que não é apenas
a necessidade de salário que atrai para o emprego apesar da sua disciplinação,
quando a especialização que ele demanda torna o trabalho atractivo nele mesmo
pela criatividade pessoal que implica. Entre esses casos, o dum intelectual
universitário é-me mais próximo, quando a citação de Nietzsche por onde este texto
começou, quando “o pensamento que vem quando ele quer” anula a dualidade entre
ambas as esferas, ou traz a força de trabalho para dentro do tribal, ignorando
espaços e horários, tribo e trabalho. A questão que então se põe é: donde vem
esse pensamento que só vem quando ‘ele quer’ e que parece gratuito? Para tentar
encontrar resposta, há que retomar a questão dos sujeitos do ‘eu penso’ e do
‘eu aprendo’, que não relevam apenas do ‘eu’. O que chamei força tribal e força
de trabalho é de ordem pessoal, exercem atracção sobre o ‘eu’ de cada um, são
diversificadas segundo as respectivas idiossincrasias, relevam dos usos que
aprenderam, quer os tribais quer os especializados, podendo dar satisfações ou
incómodos, são pois indissociáveis do ‘eu’ mas não relevam apenas dele. Os dois
termos genéricos, força tribal e força de trabalho, reenviam em cada caso para
os antepassados com quem se
aprendeu, incitado nomeadamente por parentes e mestres: esses antepassados
retiraram-se, porventura morreram já, mas, incógnitos enquanto ‘passados’,
estão retirados no saber do
que ‘eu’ sabe em seu usar hábil e espontâneo, ausentes mas presentes em seus
efeitos constantemente repetidos, onde a memória não chega mas de que a psicanálise
pode ajudar a perceber os traços, os vestígios, por exemplo a partir da
interpretação dos sonhos. Mas é sempre num enigma estrutural que ela penetra,
através da técnica da associação de ideias em divã sem censuras lógicas, morais
ou ideológicas. Ora, “o pensamento que vem quando ele quer” vem sempre por via
de associações dessas, ao que se ouve ou lê ou divagando sem pensar nisso, sem
pensar em nada, trabalhando em associações que circulam no nosso cinema mental
a partir das antigas aprendizagens incessantemente repetidas, alterando-se nas
leituras de textos dos paradigmas ocidentais, vem “sem que se saiba como”, como
diz uma pequena parábola do cap. 4 do evangelho de Marcos que foi uma das
chaves da minha leitura dele. O que é impressionante é quando esse ‘vir’ do
pensamento – que normalmente, ainda que não se saiba como, responde a
preocupações, a buscas – se dá como desafio a qualquer fenomenologia, abre um
caminho que nunca fora vislumbrado, inventa o que não se sabia e virá talvez a
ser uma verdade da geração seguinte.
7. Terá aqui cabimento distinguir biologia e antropologia, se mesmo a tribo parece ultrapassada, quando por vezes poucos são capazes de entender a novidade?
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