segunda-feira, 26 de setembro de 2016

A. Guerreiro, F. Lourenço e a Bíblia



Em ordem ao texto que publicou no Ipsilon de 30 de setembro, o A. Guerreiro fez-me as seguintes perguntas.


1) Você fez estudos teológicos (já agora, não se importa de especificar esta minha afirmação demasiado vaga e generalista?) e passou para a Filosofia, enquanto professor universitário e investigador. Como se deu essa passagem? Continuou a ler a Bíblia ao longo da sua vida e recorreu a ela com frequência? O seu interesse pela própria história do cristianismo compreende também o estudo da recepção e das leituras da Bíblia?
2) Curiosamente, os domínios e os autores da filosofia contemporânea que mais presentes estão na seu trabalho filosófico são aqueles que mais solicitam a "suspeita" e a "crítica" (por exemplo, Derrida). Como lê hoje a Bíblia, olhando-a por trás dos ombros desses filósofos?
3) O seu particular interesse pela linguística e pela filosofia da linguagem deve-se também, e em que medida, à sua formação teológica?

Respondi-lhe assim:

1) Faz 60 anos que acabei uma licenciatura em engenharia civil e entrei para um seminário, onde tive um extraordinário professor de filosofia, o P. Honorato Rosa (que veio a ser professor na Faculdade de Letras sem nenhum diploma universitário). Fui padre 7 anos (capelão da Base Aérea da Ota, professor de moral do Liceu Camões, corrido no fim do ano, prior da Baixa da Banheira), em 68 acabei teologia em Paris e desliguei-me publicamente da Igreja. Em 74 publiquei Lecture matérialiste de l’évangile de Marc. Récit, pratique, idéologie, Cerf, 3ª ed. em 76, trad. espanhola, alemã e americana. Foi o que me deu currículo para Filosofia em Letras, em tempos de revolução. A tese de doutoramento (em Linguística!, não tinha diplomas para ser em Filosofia) foi sobre a epistemologia da semântica saussuriana e já com influência dominante de Derrida (editada pela Gulbenkian).
A minha leitura de Marcos teve duas originalidades. O texto foi lido à maneira do S/Z de R. Barthes, uma leitura dum texto singular, que descobriu uma contradição entre a narrativa sobre Jesus e um discurso teológico que ‘justificava’ o desastre final, a crucifixão, anunciando-a de antemão, mas a narrativa era duma estratégia para evitar tal destino. Jesus não queria morrer, a sua última palavra é dum abandonado por Deus. Ora, a noção teológica posterior, duma redenção como plano de Deus, resulta dessa contradição: toda a teologia ‘explica’ este abandono divino. A outra originalidade foi althusseriana, estudar o modo de produção da Palestina da época, para interpretar politicamente o que estava em jogo na narrativa. A anteceder um ensaio de teoria formal do conceito de modo de produção (donde o ‘materialismo’), com a inclusão de G. Bataille para perceber as questões em torno do parentesco (Lévi-Strauss e Freud), que o marxismo negligenciou.
Esta leitura de Marcos foi retida por exegetas de língua alemã entre as principais 50 obras de leitura bíblica desde o século XIX, poucas aliás não sendo em alemão.
Thomas Staubli, Wer knackt den Code? Meilensteine der Bibelforschung 50 Porträts, Patmos, 2009, Dusseldorf e
01_archive.html http://ppt/2014_11_01_archive.hl
A filosofia e o cristianismo têm uma história comum a partir da obra do filósofo platónico cristão Orígenes de Alexandria (185-254), o criador da teologia cristã. As universidades medievais são o ponto mais alto desse encontro. Ora, a filosofia de Platão é redutora de tudo o que é histórico e corporal, portanto de tudo o que as Bíblias contam, a hebraica e a cristã. O desafio que enfrenta Frederico Lourenço, autor que me é muito simpático, é o de elas serem antropologicamente hebraicas como os seus autores, mas as suas versões gregas terem sido depois relidas teologicamente, mesmo na liturgia, segundo essa redução ignorante das categorias hebraicas: ora, foram estas que suscitaram frequentemente heresias, o que levou a Cristandade a fechá-la em latim, quando as populações deixaram de conhecer a língua. O protestantismo foi o rebentar dessa clausura quando a invenção da imprensa permitiu a divulgação de traduções vernáculas, a primeira sendo a de Lutero. O catecismo que a Igreja católica fez para os leigos era anti-protestante, anti-bíblico por omissão. Foi na 2ª metade do século XX, após a guerra, que ela teve uma renovação bíblica de que fui testemunha na minha juventude.
Um exemplo que o tradutor deve ter presente: no novo Testamento aparece por vezes o termo psuchê (alma) que nunca é oposto a sôma (corpo), o destino após a morte é a ressurreição dos corpos; com Platão vingou a imortalidade das almas e assim se lê comummente a Bíblia muitas vezes ainda hoje. Outro: evitar a noção errada de que a moral sexual do Ocidente foi herdada do judeo-cristianismo, foi do greco-cristianismo platónico (e maniqueu).

2) como já ultrapassei largamente os 2000 caracteres, encontrará um vislumbre de resposta a esta imensa questão num texto do meu blogue Questions au christianisme, “Argumentaire” dum manuscrito sobre o cristianismo, quando não se pode crer num Criador.

3) A Linguística era a ciência farol do estruturalismo em Paris (67-74), ele dominou a minha escrita sobre o texto de Marcos, uma aventura de grande paixão intelectual, solitária, mas tive a sorte de encontrar cúmplices, a certa altura, um deles, M. Clévenot, foi meu editor e orquestrador dum movimento internacional em torno das leituras materialistas da Bíblia, que durou uma dezena de anos.
A Filosofia da Linguagem que eu ensinei tive que a fazer (a que existia, anglo-saxónica em torno de Frege e Wittgenstein, não me interessou) e veio com as leituras de Derrida que me levou a contar também com as novas ciências da linguagem, a linguística, Barthes, Freud, Lévi-Strauss, neurologia. Da Filosofia da Linguagem cheguei à Filosofia com Ciências (Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida, 2 vol, 2007, e La Philosophie avec Sciences au XXe siècle, 2009, ambos no L’Harmattan).

Alguns textos do blogue
[mas há que dizer que provavelmente o que o Frederico Lourenço está a fazer é o contrário do que deve ser feito: não há nenhuma Bíblia grega, que ele diz traduzir, o que há é a versão grega duma Bíblia antropologicamente hebraica, com alguns autores da Bíblia cristã judeus helenizados, nomeadamente Paulo de Tarso, mas antropologicamente judeus] 

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Desconstrução : o que tem a ver com a ‘crise’ ?



1. O jornalista António Guerreiro, cujos textos no Ípsilon, revista cultural do jornal Público, todas as sextas feiras são da melhor intervenção filosófica que se faz entre nós a nível de jornais – ele que não cursou filosofia mas literatura, ombreia com a gente da literatura como Silvina Rodrigues Lopes, Manuel Gusmão, Fernando Guerreiro e outros, com quem me entendo melhor em filosofia do que com os filósofos profissionais – na sua “Estação meteorológica” (de 16/09), onde costuma diagnosticar o estado do tempo no que ao pensamento mediático diz respeito, divertiu-se a glosar o uso que se tornou habitual do termo ‘desconstrução’ por qualquer comentador, embora a leste das terminologias filosóficas actuais, que até nem saberá quem é Jacques Derrida, o filósofo que criou o termo em francês na peugada doutro alemão de Heidegger. A dizer verdade, A. Guerreiro não foi tão feliz em retirar pensamento da sua análise como costuma, nem seria fácil em espaço tão reduzido, e foi o que me estimulou aqui: o porquê do motivo da desconstrução, que pode ele elucidar sobre a crise de civilização que manifestamente atravessamos, sem que ninguém saiba para onde se caminha.
2. A origem heideggeriana, Abau, Destruktion da ontologia ocidental, versou ‘destruir’ o substancialismo aristotélico desta, propondo o motivo de diferença ontológica – entre o Ser (não ente, substituído mais tarde pelo Ereignis) e os entes substanciais – como chave de interpretação da história vinda dos Gregos e dos Europeus do século XVII a gerar a modernidade que hoje se globalizou. Derrida prolongou esse pensamento propondo uma diferença gramatológica, uma différance, prévia à diferença ontológica heideggeriana que ainda terá ficado em parte sujeita ao que denunciou. Tenho escrito sobre isso neste blogue. Aqui limitar-me-ei a definir este motivo gramatológico da différance como o que permite entender todo o movimento do que quer que seja, a) como jogo que espacializa-temporaliza, b) relacionado estruturalmente a Outrem donde ele recebe tanto as regras diferenciais, económicas, que o especificam enquanto movimento (e por aí susceptível de ciência) como o seu excesso singular, o que o distingue dos outros indivíduos da sua espécie, c) e nomeadamente dando conta da escritura (instituição diferencial social) como origem do logos, isto é da linguagem oral e do pensamento.
3. De a), resulta que não há espaço-tempo, como julgam os físicos, exterior ou separado das coisas que se movem, que espaço é distância entre lugares e tempo medida do movimento segundo o antes e o depois, como definiu luminosamente Aristóteles, tendo os físicos deixado de compreender o ‘antes e o depois’, o sentido histórico do tempo irreversível, como sublinhou Prigogine fortemente (embora sem ligar ao velho mestre do Liceu). De b), resulta que nada é isolado do seu contexto, o que dá para já uma orientação para o motivo da desconstrução: ela opõe-se à definição que Sócrates, Platão e Aristóteles inventaram, retirando o definido do seu contexto singular para o generalizar como essência; contextualizar, algo que hoje em dia se faz com alguma frequência, faz parte do gesto desconstrutivo, em rigor infindável, já que todo o contexto tem contexto também, nunca se ‘acaba’ a desconstrução, ela é indefinida. De c), resulta algo que nos leva ao âmago dela, que tem a ver com o que, ‘construído’ segundo uma oposição, é des-feito: é a contradição que se joga no movimento e tem incidências no ‘sentido’ que damos a esse movimento. O que quer dizer que a desconstrução joga-se segundo um aforismo derridiano, “não há fora de texto” (De la Grammatologie, p. 227)[1], joga-se nos textos enquanto nossa maneira de sabermos os movimentos do que quer que seja, joga-se no que os textos transportam de uns para os outros, nas leituras, nas pedagogias, nas aprendizagens, mas também, lá iremos, nas variadas técnicas. O que se desconstroi afecta-nos a todos, saibamo-lo ou não.
4. O que chamei ‘incidências no sentido’ ilustra-se na maneira como privilegiamos espontaneamente o nosso pensamento interior, como se pensa frequentemente que esse pensamento tem que buscar palavras para se dizer e comunicar a outros, como enfim um texto escrito, que se afasta daquele que o escreveu e perdura além da sua morte, é menos íntimo, mais artificial, sei lá, desde Platão no Fedro que essa condenação da escrita pelo logos foi exarada e retida pela tradição, até por aquela que se reclamava de textos inspirados pela divindade: essa ‘inspiração’ era desconfiança da escrita, da ‘letra’, em favor do ‘espírito’. É a ‘letra’ que é sujeita no sentido pelo ‘espírito’, achamos que o pensamento do autor domina aquilo que escreveu. Eis uma maneira de dizer um alvo da desconstrução, que se dirigirá sistematicamente na tradição ocidental a todas as oposições conceptuais – inteligível / sensível, alma / corpo ou mundo, sujeito / objecto, interior / exterior, e por aí fora, em que o primeiro termo é privilegiado como fundamento do outro e o exclui de si. Derrida sistematiza a sua estratégia desconstrutiva num duplo gesto: primeiro, inverter o par de opostos, privilegiando provisoriamente o termo subordinado, em seguida deslocar o conjunto de maneira a encontrar uma fonte comum aos dois termos e verificando a sua indecidibilidade, sobre a qual o pensamento ocidental teria de-cidido por de-finição filosófica. Todos os movimentos em que estes termos opostos têm um lugar interpretativo decisivo, são a repensar, no Ocidente; tudo é a repensar, até em biologia. Mas não se trata apenas de ‘pensar’: como justamente está a suceder, as crises são resultado das desconstruções do que foi construído ao longo dos séculos, da Grécia e Roma, Cristandade e Europa; “as quatro se vão para onde vai toda a idade” (dizia Fernando Pessoa algures na Mensagem), justamente não sabemos para onde vai, se ainda haverá outra ‘idade’.
5. O que foi privilegiado como inteligível foi o logos, discurso ou pensamento como capacidade humana acima da corporalidade animal, capacidade que torna os humanos cúmplices das divindades, logos do homem, senhor (da casa) sobre animais, escravos, crianças e mulheres, e também logos de regulação da cidade por via das leis. Dito a correr, nas sociedades de dominação económica agrícola, o discurso politico-religioso coordenava o social e quando falhava a ordem política era o recurso às armas da casta dominante, nobres guerreiros, que resolvia em última instância os conflitos; o predomínio optimista da razão proposto pelo Iluminismo deveria substituir as armas no papel politico (da aristocracia), a razão devendo ser capaz de dominar a natureza, incluindo a natureza humana a educar pela escola obrigatória, substituta da ordem religiosa. Este optimismo relevava do logos, que se reclamava da ciência e do progresso vindo com a industrialização pela máquina e outras técnicas, mormente de ordem química e minorava o papel do laboratório (técnica e matemática, isto é, escrita) nessa ciência, que se julgava triunfo do pensamento humano. Como tenho escrito neste blogue, a exactidão das ciências físicas e químicas vem do papel  da álgebra e das técnicas de medição em unidades convencionais, mantém-se aquém das disputas teóricas interpretativas do labor do laboratório e por aí escapa em parte ao controlo que cientistas e engenheiros têm sobre o que descobrem e inventam. Uma parte das crises vem daí: a poluição, as alterações climáticas, os acidentes da viação, por exemplos que vão fora da vontade humana, sem contar pois com as armas atómicas, que dão conta de outra parte das crises, a que tem a ver com economia e finanças.
6. Estas ‘ciências’ têm-se revelado impotentes face às crises, pela mesma razão pela qual a invenção da pólvora deu para fabricar espingardas e canhões e a da cisão atómica para as bombas que destruíram Hiroshima e Nagasaki: a ética elementar que manda “não matar” e deveria impedir guerras em tempos cosmopolitas ficou muda diante da vontade de domínio politico sobre outros humanos. Também economia e finanças albergam nos seus mecanismos sociais elementares essa vontade de domínio económico e financeiro: por exemplo, o imperativo de financiamento das economias, resultante de necessidades de ordem técnica, é colocado como relevando dos desejos humanos de enriquecer, julgados ‘inatos’, e da respectiva competição (não se trata de moral mas de epistemologia, não sei como pode ser de outra maneira; face ao crescimento do desemprego devido aos automatismos electrónicos, julgo que serão as próprias crises que obrigarão a rever esta questão em sentido fortemente regulador). Já a grande crise dos anos 1930 se manifestou como incontrolável e gerando nacionalismos que se exacerbaram além do impossível, mas a dos anos 1980 em diante, que explodiu em 2008, teve um motor técnico muito mais forte, o da aceleração electrónica das especulações.
7. As crises relevam de quê? Da técnica ser uma ‘escrita’, uma inscrição que por ela mesma altera o contexto onde é inserida vinda de fora, subverte as condições de equilíbrio social instável que aí predominavam. Máquinas, químicas, engenharias genéticas, medicamentos, são obviamente coisas boas enquanto produzem progresso, o que não só é indiscutível como opondo-se a qualquer opção de voltar atrás das máquinas e da electricidade. O problema é a força dessas escritas técnicas que não são sempre controláveis pela razão humana, ainda que científica e filosófica. Se é certo que a desconstrução é uma operação de pensamento filosófico, que pode fazer alguns diagnósticos, digamos, o que se passa com as crises (como foram as guerras de religião, as revoluções democráticas, as lutas pela escola laica e tantas outras), é elas serem desconstrução das super-estruturas politico-ideológicas que opera por si mesma, a partir de certos limiares de transformação do contexto social, provocando movimentos fortes desestabilizadores, sem que ninguém saiba como (assim os sismos e os vulcões numa ordem que escapa à incidência dos humanos) reestruturar o que está falhando sem recuos possíveis.
8. Diz-se com frequência e uma certa petulância de hiper-modernos, que vivemos e trabalhamos em “sociedades de conhecimento”. Não se sabe, em geral, que isso vem de Platão e Aristóteles, da tal de-finição que de-cide retirar o definido, como essência inteligível, do seu contexto sensível, corporal, sujeito à geração e à corrupção, como diz com frequência Platão com um certo desdém que comunicou ao cristianismo, anulando o amor das coisas singulares que este trazia do judaísmo. Anti-aristotélica, a modernidade é muito mais platónica do que se crê: os nossos argumentos científicos são sobre ‘essências’, pelo que as respectivas técnicas, inventadas integralmente em ‘matéria sensível’, empírica, variada, segundo as medidas ditadas pelos laboratórios científicos, abrem contextos inéditos que, dele mesmo, o nosso ‘conhecimento’ (logos) desconhece. As crises não são senão o testemunho excessivo desse não-conhecimento: já Aristóteles teorizara que lógica e ciência não conhecem o singular, o individual; e os laboratórios europeus também não, que os movimentos que eles experimentam para retirar medidas que validem as equações teóricas são movimentos de singulares quaisquer, condição da chamada universalidade dessa ciência. A desconstrução opera aquém da oposição inteligível / sensível, não opera nos laboratórios, mas nos contextos, por via das técnicas. A sociedade do conhecimento só torna as crise mais graves, não são apenas “a fome, a peste e a guerra” dos Medievais, ou melhor, são fomes, epidemias e guerras muito mais graves.
9. No mesmo número do Público, o professor americano de Ciência Politica, Ian Shapiro, argumenta sobre a grande dificuldade de “exportar democracia”, chamando aliás a atenção para esta ter tido na Europa épocas em que desapareceu e depois voltou, não é pois um dado adquirido entre os que seriam os seus ‘exportadores’, como indicia o triunfo do Brexit e a ameaça de Trump nos dois países em que claramente ela melhor vingou (mas do outro lado do Atlântico com longo apartheid). Aqui não creio que seja a técnica desconstructiva a razão predominante, mas mais o que ela destrói das antigas estruturas antropológicas. Não conheço nada dessas coisas, mas creio que a ausência duma longa tradição de ‘almas’ dando lugar ao sujeito e indivíduo europeu torna a questão mais complicada. O Japão parece mostrar a possibilidade da importação da técnica ser solidária com a da democracia, num estilo que parece respeitar as tradições nipónicas, enquanto que a Índia independente mantém a democracia com a enorme resistência do regime de castas em muitas zonas rurais e a China parece guardar a tradição imperial do mandarinato apesar da resistência de elites para-ocidentais. O Islão. que pareceria o mais próximo da tradição ocidental, tem estruturas antropológicas que resistem fortemente, como infelizmente se tem visto na sua oscilação entre regimes despóticos e islamistas. A África e muitas outras ex-colónias asiáticas e do Pacífico conhecem regimes vindos de estruturas tribais e coloniais muito recentes, não há, creio, experiência suficiente para se saber quantas gerações serão necessárias, se for esse o caminho. Pois que também é muito certo o que Ian Shapiro diz na sua primeira frase: “não acredito que a história se mova numa direcção particular”. E a desconstrução nesta questão? O que eu sei dela releva da história da ‘construção’ ocidental, não sei se as grandes culturas indiana, chinesa e islâmica se prestam a esse tipo de diagnóstico fenomenológico.


[1] http://filosofiamaisciencias2.blogspot.pt/2014/08/o-exorbitante-questao-de-metodo-de.html, extracto derridiano onde se encontra a frase
“[...] Pode-se chamar ‘contexto’ toda a ‘história-real-do-mundo’, na qual este valor de objectividade, e mais geralmente ainda o de verdade, adquiriram sentido e se impuseram. [...] Uma das definições do que se chama desconstrução seria a tomada em conta deste contexto sem bordo, a atenção mais viva  e mais larga possível ao contexto e portanto um momento incessante de recontextualização. A frase, que para alguns se tornou uma espécie de slogan, em geral tão mal compreendido, da desconstrução (“não há fora-de-texto”), não significa senão que não há fora-de-contexto. Sob esta forma, que diz exactamente a mesma coisa, a fórmula teria sem dúvida chocado menos” (Limited Inc., Galilée, 1990, p. 252.)

domingo, 18 de setembro de 2016

A origem da vida, na teoria de Marcello Barbieri




1. A propósito do texto colocado no último dia de agosto, merece revisitar a questão da origem da vida terrestre, tal como Marcello Barbieri – biólogo italiano que trabalhou longamente na Alemanha antes de regressar a Itália, para liderar um laboratório de biologia teórica – a tornou possível, como deu conta no livro de biologia mais bonito que alguma vez li, Teoria semântica da evolução (Fragmentos, 1987): lê-se como um romance, escreveu René Thom no prefácio à versão francesa, infelizmente esgotado, mas sei de quem conseguiu um exemplar pela Net em livros de ocasião. Seria urgente reeditá-lo, nestes tempos de censura ortodoxa dos pensamentos únicos, com as suas revistas oficiais e o sistema de leitura prévia pelos ‘pares’ (que detestam ímpares), já que 30 anos depois ele parece ignorado como na véspera de ser publicado.
2. Voltei a ler os §§ 2-13 do capítulo 11 do meu Le Jeu des Sciences em que tratei desta questão e, sabendo já que era um texto que não teria quase nenhum leitor capaz de o ler, de tal forma é variada e relativamente complexa a bibliografia utilizada, entre fenomenologia e as cinco ciências analisadas, percebi agora que eu próprio já tenho alguma dificuldade, passados os anos de leitura próxima que me permitiu ir escrevendo. Fica pois um texto sem leitores se o seu próprio autor, embora ainda vivo, deixa de o ser com o tempo. De qualquer forma, a hipótese de traduzir aqui esse extracto revelou-se sem jeito, terei apenas que resumir alguns aspectos. Em relação ao texto anterior, o que afasta o criador é o facto de não ter havido uma ‘criação’ duma célula a partir da qual outras viriam, as células demoraram muitos milhões de anos a serem ‘inventadas’ no início do que chamamos evolução da vida. Aliás, o mesmo se poderá dizer de muitas outras invenções humanas, das cadeiras e das mesas, das camas ou das rodas, ou da agricultura, que levaram séculos de invenções transformações.
3. A primeira consideração a fazer no que aos unicelulares diz respeito implica uma comparação com os ninhos das aves, que utilizam pedaços de vários tipos de materiais de vegetais, pedrinhas, lamas, que já têm de antemão as propriedades que são necessárias para as suas funções no ninho. Igualmente, as moléculas de que as células são compostas têm já de antemão as propriedades de que elas precisam, as células não tiveram que as inventar: elas encontraram-se e depois de muitos encontros e desencontros encaixaram. F. Gros (Les secrets du gène, Odile Jacob, 19912) conta como S. Miller em 1953 mostrou “que descarregando ultravioletas numa mistura de gases cuja composição é próxima da que deveria prevalecer no início da existência do nosso planeta [...] são essencialmente bases nucleicas e ácidos aminados que se formam (p. 184), moléculas à base de carbono que são a matriz estrutural de todas as células, das bactérias aos organismos vegetais e animais. Houve assim nos mares primitivos condições para o que se chama uma sopa de moléculas, para uma “bricolagem molecular incessante” de “jogos selectivos sabedores” (Gros, p. 207), ao sabor das forças electromagnéticas dessas moléculas, atraindo-se ou repelindo-se, criando ligações entre micro-moléculas de carbono (metabolitos) em macro-moléculas que podem desfazer-se ou atrair outros metabolitos.
4. A estrutura química duma molécula é a sua função na célula: uma, é uma fibra capaz de funções estruturais de sustento e protecção, outra um lípido capaz de tornar-se elemento de membrana, outra um ATP reservatório de energia, outra uma molécula de ácido ribonucleico que sabe auto-replicar-se, ou sintetizar metabolitos para fazer tal proteína, ou uma enzima que cataliza tal proteína, e por aí fora. As moléculas que se fazem e desfazem têm funções celulares possíveis, como o ferro e o granito cujos átomos tornam possíveis materiais de construção ou os restos com que as aves fazem os ninhos devido às propriedades deles. Barbieri propõe uma teoria ribotípica ou semântica da evolução. Chama ribosoïdes “os sistemas moleculares contendo o açúcsr ribos: ATP, nucléotidos, transferts, mensageiros e ri­bosomas, por exemplo, são todos ribosoïdes. Além disso chamei ribotipo ao sistema formado por todos os ribo­soïdes da célula e propus a ‘teorie ribotípica’, a partir de dois conceitos: a célu­la não é uma dualidade de genótipo e fenótipo, mas uma trindade de genótipo, ribótipo e fe­nótipo, e a vida, na superfície da Terre, tem origem nos antepassados dos ribótipos” (p. 113). Os ribótipos sendo o mecanismo específico da célula, o que ‘fabrica’ as protéinas; ele propõe a an­teriori­dade filogenética numa primeira fase da evo­lução dos proto-ribosomas (entre há 4.6 e 3.6 bil­iões de an­os da Terra): tratava-se de moléculas-mecanismos polimorfos, compostas de ARNs diversos, capazes de se auto-agregarem e de polimerisarem aminoácidos ao acaso, que produziram portanto durante um bilião de anos proteínas muito diversas (feitas e desfeitas a seguir) no que ele chama quase-replicação (quase porque sem regularidade, sem cópias).
5. Em vez de se pensar que as macro-moléculas celulares se formaram algures e depois juntaram-se, esta teoria em que há ribótipos com a propriedade de sintetizarem, o jogo entre moléculas dos proto-ribosomas durante um bilião de anos de evolução précelular, antes de surgirem os primeiros procarioatas e eurocariotas, é concebido como um verdadeiro jogo de acaso jogando a fabricar todas as macromoléculas possíveis até um certo grau de complexidade mas sem replicação garantida, feitas e desfeitas, refeitas talvez depois, até que algumas encaixem e a selecção natural tenha algo para seleccionar. Na “bricolagem molecular incessante” de Gros há um mecanismo pré-celular decisivo, uma ‘máquina’ que fabrica peças inutilmente, há já um trabalho antes da invenção da replicação e do retiro do ADN. A este imenso bilião de anos até se formarem unicelulares, muitos sem dúvida, acrescentaram-se mais três biliões de anos para estes se desenvolverem o suficiente para poderem aparecer os primeiros organismos, pluricelulares, cuja evolução no sentido da complexidade – pode dizer-se que foi então que começou a haver verdadeira evolução – ‘só’ precisou de 600 milhões de anos para chegar aonde chegou, um quinto do tempo dos unicelulares, pouco mais de metade do tempo do jogo primordial.
6. Neste jogo de acaso e estruturação de biliões de anos, não se vê maneira de colocar uma Causa demiúrgica, não há pura e simplesmente lugar para um tal antropomorfismo, mais compreensível quando se tratava de ‘criar’ árvores e galinhas, ‘entes’, sobretudo almas humanas.
7. A primazia temporal dos ARN ribótipos sobre os ADN desoxy-ribótipos põe a questão de saber porquê e como foram eles necessários; a terminologia bioquímica sugere ao leigo que houve uma perca de moléculas de oxigénio (desoxy) a partir de ribosomas, o que confirma Barbieri, mas este, se não põe a questão, permite responder-lhe. Parece que haverá necessidade de ‘guardar’ o que se tornará o ADN para pôr cobro ao desperdício de moléculas de carbono fabricadas pelos proto-ribosomas para nada (o que explicará as ‘mutações’ dos genéticos?), isto é, o ARN não poderá continuar a sintetizar ao acaso das moléculas que encontra, ele tem que ser regulado no sentido dos interesses da célula e do seu metabolismo, tornando-se o ‘mensageiro’ do gene do ADN que é expressado (por mecanismos variados). A perca de molécula(s) de oxigénio deste implicaria uma inibição do potencial de variação de sínteses de proteínas, cada gene se especializando na sua e inibindo o seu ‘mensageiro’ de fazer quaisquer outras, e portanto a degradar-se quimicamente após a sua ‘mensagem’ cumprida. Obviamente que me arrisquei, sapateiro a pretender falar do joelho, mas este enigma deslumbrante dum ninho auto-construído foi mais forte do que a contenção que incombe ao fenomenólogo.
8. Peguemos na tríade proposta por Barbieri (não sabendo do meu exemplar do livro, não posso verificar se a frase que segue releva dele, como creio). Os genes (o genótipo) especificam a espécie e as protéi­nas (o fe­nó­tipo) os diversos tecidos, os ribótipos sendo o mecanismo específico da célula, o que ‘fabrica’ as protéinas. O ADN dum organismo só abre uma parte dele para cada tipo de células especializadas, segundo os diversos tecidos da sua fisiologia e as proteínas que eles requerem, que definem a especialização do tecido, o que será do nível do fenótipo de cada tecido; enquanto que o total do ADN, compreendendo todos os tecidos e órgãos, será o seu genótipo, igual globalmente em todos os indivíduos da espécie. Se bem entendi a vantagem de Barbieri propondo os ribótipos, que eles têm a ver com o metabolismo que reproduzem na célula, o metabolismo que é a célula, a tríade permite jogar com os três níveis de análise molecular da anatomia do organismo: o do metabolismo de cada célula, pelos ARNm após transcrição do respectivo gene do ADN, nível ribotípico ; o dos tecidos especializados, o fenotípico; o do conjunto da anatomia, o genotípico. Enquanto que a díade genótipo e fenótipo, este entendido como o indivíduo, presta-se ao dualismo determinista que pretende(u) que os genes determinam o indivíduo, ignorando justamente que eles trabalham só na célula, mediante o ribótipo, e que são os diversos fenótipos especializados que colaboram entre si para o funcionamento anatómico do organismo individual na cena ecológica, em que busca a sua reprodução (caça) e da espécie (cópula) e evitar ser presa de outrem.