segunda-feira, 28 de março de 2016

Ainda matemática e física, em diálogo





O meu velho Amigo Artur Mário respondeu assim a “A relação da Matemática à Física”
(http://filosofiamaisciencias2.blogspot.pt/2016/02/a-relacao-da-matematica-fisica.html)


“O que mais me enche de admiração é que o cérebro humano possa reproduzir o que se passa no mundo”. Tem particular importåncia o poder das grandes formulas matemáticas...
Heisenberg diria por outro lado: as pontes entre o psiquismo  e a matéria são os números.
Neste sentido, tudo se torna “informação”,o que é igualmente exemplificado ao nível biológico pelo ADN e em particular pelo ARN (planos), a tal ponto que se põe a questão da “anterioridade” destes em relação aos mecanismos gerados.
Estes “sistemas de representação” ao nível do cérebro e dos “embriões” são significativos duma quase “codificação” universal. As informáticas confirmam isso mesmo.
Ao nível do infinitamente grande e pequeno (quanta), só a estatística funciona como lógica científica.
Aí esbarramos com limites. O caminho para a fórmula universal está vedado, assim  como para um deus qualquer. Que se sabe dizer de noções como o vazio, a anti-matéria ou o infinito?
A “não harmonia” do mundo (como um bloco que resvala sem fim) aliada à consciência dos limites geram (em alguns) a exigência dum deus ou a crença dum “acaso absoluto”.”Só um deus nos pode salvar·” (Heidegger). Apesar das grandes convergências, estamos longe dum código universal...

Minha resposta

Muito gosto em ler-te, coisa rara !
Mas eu não ando por essas tuas andanças. Talvez pela minha formação de ‘engenheiro’, nunca dei muito para metafísicas, mesmo as dos físicos, cosmos e quantas. Tenho os pés na Terra, onde o que me causa admiração é a fecundidade dos vivos e dos humanos, as respectivas guerras também. A extrapolação para as físicas de estatísticas deixa-me justamente reticente sobre a ‘cientificidade’ dessas démarches, que se limitam a médias. Tu que és economista, sabes como a economia é pouco exacta, não é? Útil, mas arma de guerra. A anti-matéria, ignorância minha sem dúvida, também não me convence muito; choca-me a maneira como os físicos de hoje pensam, ou melhor, não pensam as forças atractivas e a energia. Se algum físico levasse a sério os duplos laços fenomenológicos que eu propus, talvez houvesse outras perspectivas, mas não creio que isso alguma vez suceda (ninguém me conhece), de qualquer forma os físicos hoje são uma muralha de aço, como soube o Jacques Benveniste.
 ‘Informação’ é uma palavra que eu detesto, ela supõe o dualismo: o que está fora informa o que está dentro. Ora, o cérebro não está dentro nem fora, está em ambos, ‘dentro’ (do crâneo) enquanto biológico e ‘fora’ enquanto social, olhos, ouvidos, pele, mãos, tudo isso faz de nós (com cérebro) ‘ser no mundo’. No cérebro só há química e electricidade, não há representações nem informações. A informática é uma má palavra, cibernética é muito melhor, diz o ‘trabalho’ do software, que não tem nada a ver com informações. Um número não é uma ‘informação’, é uma conta ou uma medida, que só vale em situação e em relação a outros números, ainda que implícitos. Donde que o infinito matemático seja como o zero, convenções matemáticas, sem relação com o divino ou o nada. Vazio, de ar, é giro: uma pena a cair ao mesmo tempo que uma bolinha de chumbo, num cilindro de vidro no Pavilhão do Conhecimento da Expo.

O enigma do cérebro : biológico e social



1. Porque é que um filósofo se mete a falar daquilo que aprendeu com os neurologistas? Por se ter apercebido de que, tal como em outras ciências, eles são vítimas duma tradição filosófica de 24 séculos que não lhes deixa ver senão o ‘biológico’ do órgão que o ‘opõe’ ao mundo, sendo todavia o neuronal irredutível à oposição interior (alma, sujeito, consciência) / exterior (corpo, mundo). Ou seja, um excelente argumento numa das principais questões filosóficas actuais: como é que os estudos de neurologia nos podem ajudar a compreender o que é a liberdade, fora dessa dicotomia platónico-cristã.
2. Dentre os cerca de 200 tipos de células especializadas dos vertebrados, ossos, músculos, adiposos, etc, qual é a especificidade das do cérebro e dos nervos? Não se juntando umas às outras em ‘colónias’ para formar tal tecido de tal órgão, os neurónios criam relações entre eles (sin-apses: agarrar-se com), cada um sendo afectado por milhares de outros numa imensa rede recíproca extremamente complexa (1014 sinapses num cérebro humano). A sua especialidade é pois serem afectados e afectarem-se, auto e hetero-afectação, esta com alguns circuitos importantes, já que são afectados pelo mundo (nervos dos olhos, ouvidos, pele) e vão intervir nele pelos que mobilizam os músculos da mobilidade, pés, mãos e voz nomeadamente. São os circuitos da aprendizagem.
3. Eric Kandel, Nobel de 2000, À la recherche de la mémoire. Une nouvelle théorie de l'esprit, descobriu como aprende uma lesma do mar: um choque recebido cria uma sinapse (que se relaciona com um gene do neurónio) que reagirá em defesa ao próximo choque. Assim se aprende com a repetição de experiências que geram grafos (Changeux, O homem neuronal), circuitos de sinapses que se inscrevem nos cérebros desde o feto. O que chamamos memória é este território de sinapses grafadas, aprendidas. O que há de prodigioso na aprendizagem dum uso social, da nossa tribo, é a passagem do não-saber fazer à habilidade espontânea de artista. Por exemplo, ao falarmos: todos nós usamos espontaneamente algumas centenas de regras linguísticas, as morfologias dos verbos, preposições e conjunções, etc., aprendidas em criança sem nunca termos tido consciência delas ao usá-las até hoje. Inacreditável! Isto é igualmente verdade para o que pensamos e não dizemos a ninguém: donde que o nosso jeito ou estilo mais pessoal e íntimo, que nos distingue de todos os outros, veio também da aprendizagem. O cérebro é um órgão social.
4. O que é a ‘mente’? Damásio explicou no Livro da consciência (p. 97) que é o que há nos neurónios (visual, auditivo ou outro), acessível só ao próprio, inobservável por terceiros. Isto é, a mente é o saber que o sujeito tem de si nos neurónios, con-saber (scire), consciência: não é nada de ‘mental’ oposto a ‘corporal’. Pelo contrário: o que a aprendizagem nos ensina é como os usos da tribo, diferentes dos dos estrangeiros, são os mesmos, iguais para todos, e ao mesmo tempo e indissociavelmente temos um estilo singular. Esta indissociabilidade implica um enigma estrutural. Somos ‘seres no mundo’: a neurologia dá assim um relevo maior à grande revolução filosófica de Heidegger, que vai além do que ele próprio pensou: o que vem do exterior estrutura-nos no interior. O seu motivo de possibilidade corresponde justamente a esta ‘liberdade’ de sermos capazes dos usos sociais segundo o que o nosso percurso foi fazendo como nosso estilo singular. A noção de aprendizagem exclui o determinismo genético que já muitos biólogos recusam mas que se tornou ‘dogma’ em leigos! Basta pensar na diferença de línguas entre povos!
5. Isto ajuda a compreender que a complexidade cerebral resista aos esforços dos neurologistas: esta dupla dimensão, biológica e social é tudo ‘mental’, inacessível aos instrumentos laboratoriais. Mas também nos é em grande parte inacessível: alguém consegue explicitar tudo aquilo que sabe em suas memórias? Do que propôs Damásio, conclui-se que é impossível que todos os nossos neurónios nos estejam simultaneamente acessíveis, mas que tenha que haver, como os neurologistas sabem, mecanismos de atenção, de prioridade neuronal à situação em que se está e ao que ela implica, calando todos os outros neurónios não necessários e chamando apenas os que convêm à compreensão dessa situação, o que os franceses chamam ‘souvenir’, o que nos subvém sem que saibamos como. Quando fazemos relaxação, por exemplo, podemos ao fim de alguns minutos sentir o sangue a correr nas principais veias, da cabeça aos pés e às mãos: normalmente, esses neurónios estão calados. Outro exemplo importante, a perca da memória da primeira infância foi interpretada por Freud como um ‘recalcamento’: dir-se-ia que a memória dos choques que então se tiveram (parto, desmame, perca do colo da mãe) foi apagada pelos choques da aprendizagem, antagónicos àqueles, voltando ao discurso do divã sob a forma de romance do Édipo.
6. É onde creio que reside o enigma da liberdade.

Público, 28/03/2016

quarta-feira, 9 de março de 2016

Um argumento de Antropologia sobre a questão da diferença sexual no mundo muçulmano


Testemunho dum homem argelino
Testemunho duma mulher argelina
O argumento de antropologia


1. A questão que se joga neste texto é a da possibilidade de argumentar sobre estruturas antropológicas e deduzir delas consequências estruturais ignoradas. Sucedeu que um texto meu, O sonho do Califado (Público, 3/12/2015), propunha uma dedução sobre o machismo muçulmano que confessava que sabia arriscada e que surgiu depois, ao longo do mês de fevereiro passado em Le Monde, um debate sobre justamente o que esse texto deduzira, afirmando um autor esse machismo, a propósito do fim de ano em Colónia na Alemanha, que outros negaram. Teresa Joaquim, especialista de questões relativas à diferença sexual, passou-me um livro de 2009 duma feminista argelina que confirmava a minha conclusão e que me levou a esta reflexão: é que ninguém, a favor ou contra, argumentava, fora duas alusões ao “harém”, a partir das estruturas antropológicas magrebinas que tinham sido o suporte da minha argumentação de ignorante da realidade muçulmana.

Testemunho dum homem argelino
2. O primeiro texto, Cologne, lieu de fantasmes, 5/2/16, do jornalista argelino Kamel Daoud, argumentava que os emigrantes muçulmanos que atacaram mulheres alemãs naquela noite vinham “desse vasto universo doloroso e horroroso que são a miséria sexual no mundo arabo-muçulmano, a relação doentia à mulher, ao corpo e ao desejo”. E mais adiante. “Uma mulher é mulher para todos, excepto para si própria. O seu corpo é um bem vago para todos e a sua ‘mal-vida’ só para ela. Ela erra como um bem de outrem, um mal só para ela. Ela não pode tocar-lhe sem tirar o véu, nem amá-lo sem passar por todos os outros do seu mundo, nem partilhá-lo sem o esmigalhar entre dez mil leis. Quando ela o despe,, expõe o resto do mundo e é atacada porque foi o mundo que mostrou nu e não o seu peito. Ela está em jogo, mas sem ela; sacralidade, mas sem respeito da sua pessoa, honra para todos, menos a sua; desejo de todos, mas sem desejo que seja dela. O lugar em que todos se encontram, mas excluindo-a. Passagem da vida que lhe interdita a sua vida, a dela”. E mais adiante. “O sexo é a maior miséria no ‘mundo ‘Allah’. Ao ponto de dar nascimento a este porno-islamismo de que discursam os pregadores islamistas para recrutarem os seus ‘fieis’: descrição dum paraíso mais perto do bordel do que da recompensa para gente piedosa, fantasma das virgens para os kamikazes,, caça aos corpos nos espaços públicos, puritanismo das ditaduras, véu e burka”.
3. O segundo texto, Os fantasmas de Kamel Daoud, 12/2/16, é assinado por 17 cientistas sociais (historiadores, antropólogos, sociólogos, ciência politica), um filósofo e um jornalista, os nomes sendo quer árabes quer franceses, masculinos e femininos. Trata-se sobretudo de uma acusação, a da islamofobia de Kamel Daoud: o seu essencialismo culturalista – a religião determinando “uma relação patológica à sexualidade” –, “psicologização das massas muçulmanas” com o “apagar as condições sociais, politicas e económicas que favorecem esses actos”, “projecto disciplinar [...] valores devem ser ‘impostos’ a esta massa doente, a começar pelo respeito das mulheres” [eu sublinho].
4. O terceiro texto,  Daoud ou la défaite du débat, 27/2718), do jornalista de Le Monde Michel Guerrin, diz de Kamel Daoud, “tratado de islamófobo”, que o escritor anunciou que parava o jornalismo, dedicando-se apenas à literatura. Tendo publicado textos no New York TImes, no Repubblica italiano e no Le Point francês, o seu Meursault, contre-enquête (Actes Sud, 2014) teve o Goncourt do primeiro romance e foi classificado pelo magazine americano Publishers Weekly entre os dez melhores romances do ano. Vive na Argélia,, está sob o golpe duma fatwa desde 2014, o que dá carne às suas convicções.A sua visão do Islão é apaixonante, fora das normas, já que divide a esquerda, as feministas, os intelectuais. Uma grande parte da sociologia está contra ele mas há intelectuais africanos que saúdam a sua coragem, Liberation defendeu-o, L’Obs também, onde Jean Daniel reencontra nele ‘todas as grandes vozes feministas históricas’”. Ou seja, Kamel Daoud é alguém, escritor argelino que vive na Argélia e arrisca a vida num testemunho de escrita.

Testemunho duma mulher argelina
5. Ao qual se acrescenta o da advogada argelina Wassyla Tamzali, Une femme en colère. Lettre d’Alger aux Européens désabusés (Gallimard, 2009), ensaista feminista, grande senhora da luta de libertação da Argélia, com 21 anos aquando desta conseguida em 1962, nomeada directora do Programa da Unesco para a Promoção da Condição das Mulheres no Mediterrâneo em 1996. Que o seu texto duma centena e meia de páginas, com a veemência que o título anuncia, seja publicado na porventura mais prestigiada editora francesa, atesta também da sua fidedignidade. A cólera vem do desencanto duma longa luta que se vê frustrada com a aceitação, face aos extremismos violentos reclamando-se do Islão, dum “islamismo moderado” na emigração europeia e com aproveitamento nos países muçulmanos: as feministas árabes perderam o lugar, a sua voz deixou de ser ouvida, abandonada inclusive por companheiros de esquerda e até por feministas europeias. Ora, este “islamismo moderado” representa a capitulação da emancipação das mulheres muçulmanas, que vão aceitando o véu que lhes fecha a liberdade, implicando a “adesão à cultura de harém, de que ele é a continuidade no espaço público” (p. 81). A historiadora das origens do Islão, Latifa Lakhdar [actual ministra da Cultura na Tunísia] escreve em Les femmes musulmanes, au miroir de l’orthodoxie islamique (éd. de  l’Aube, 2007) que “o véu não é um simples uso, é a parte visível duma visão do mundo baseada no corte em dois do universal, os homens e as mulheres. O véu é o sinal do encerramento teológico das mulheres [L. L. é leitora de Foucault] e a santificação do ascendente do eros muçulmano sobre o ethos muçulmano” (p. 97), [...] “mostrando através dos escritos que nos chegaram quanto os homens dos primeiros tempos do Islão faziam da virilidade e da libido dominanti o seu capital simbólico. Este eros teologizado excessivamente condicionou, e continua a fazê-lo, o ethos islâmico, isto é o hábito e os costumes que deveriam conduzir à definição do bem e do mal e comandar a conduta dos homens e a relação entre os sexos nas sociedades muçulmanas” (p. 98).
6. “Há territórios em que é impossível escapar ao efeito devastador da omnipresença do eros muçulmano, continua Tamzali, e onde as mulheres são cada vez mais veladas com um resultado desastroso e contrário aos valores de respeito e de reserva que pregam os prosélitos do véu. Cada dia, nas cidades árabes, nas actividades mais insignificantes da vida corrente, no olhar dos homens na rua, nas praias, nos cafés, pode-se medir os seus efeitos, e assistir à vitória sem limites do eros muçulmano. Todos os dias me dou conta da sua força crescente na rua árabe. Doravante é ela que determina a circulação das mulheres e dos homens nos lugares públicos. [...] Os tabus comandam subterraneamente os costumes e formam profundamente a relação dos sexos nos países ditos muçulmanos. Todos os dias no são contados actos de barbaridade em relação às mulheres” (p. 103). “Assim o véu que foi pensado como o último recurso para proteger as mulheres não é uma protecção, não é a barreira dos instintos sexuais. [...] Numa lógica implacável, quando cada vez mais mulheres, raparigas, meninas escondem os cabelos e certas partes da sua pele, cada vez mais as ruas árabes se erotizam. Quantas mais há mulheres veladas, mais o seu número aumenta. O véu dumas despe as outras. Em árabe argelino, para dizer que uma mulher não usa o véu, diz-se que ele está nua” (p. 108).

O argumento de antropologia
7. Trata-se de testemunhos, dum jornalista e romancista e duma advogada, militante e ensaísta, nenhum deles é cientista social. Mas estão do lado da paixão de viver, sofrem do que testemunham. Ambos percebem que a religião é uma ‘capa’ ideológica, que a questão é de fundo antropológico, “lei de harém”, diz Tamzali, e é o que parece escapar aos cientistas sociais que atacaram Daoud, fraca ciência que não vê o que um estranho à causa ‘deduziu’ a partir de análises de G. Tillon e E. Todd com algumas dezenas de anos. Devo dizer que estes testemunhos duma ‘verdade antropológica’ produzem em mim uma reacção contraditória: se me regozijo como intelectual que vê as suas leituras e elucubrações certificadas, fica-me uma dor pelo imenso sofrimento que essa ‘verdade’ testemunha. No texto sobre o califado, só tentava compreender os extremismos, estes testemunhos duma “miséria sexual” difusa são confrangedores, eles podem ao mesmo tempo esclarecer a estranha ‘estagnação’ de sociedades que vão até quase um bilião de pessoas, algumas com grandes riquezas petrolíferas, que parecem incapazes de aceder à modernidade.
8. O que parece estar em questão nestas duas manifestações ‘anti-modernas’ do mundo muçulmano – a violência mortífera e a progressão do véu das mulheres –, é ele encontrar-se empurrado pela globalização para a modernidade – comércio e médias libertinos – que exigiu às sociedades ocidentais a fractura das casas entre empresas económicas e famílias e provocou também reacções anti-modernas muito fortes, nomeadamente na geografia católica, cobrindo-se de religião contra a liberdade que escola, livros, jornais e comércio fomentavam. Serão as estruturas de parentesco muçulmanas que reagem assim à defesa. Devo dizer que fiquei sempre com uma dúvida em relação às análises de Todd, se elas incidiam apenas sobre o norte de África e a Arábia asiática, ou também se estendiam à Turquia, Irão, Indonésia. A ler Tamzali, é claramente o ‘muçulmano’ que ela questiona, as referências ao ‘árabe’ sendo diminutas. Mas a dificuldade de que falava Todd, que o parentesco endogâmico (que privilegia o casamento com primos e cria grandes comunidades patriarcais; sem cunhados, acrescento eu) manifesta em deixar erguer um Estado que, sem ditadores e partidos laicos, se imponha a esses patriarcas, ditaduras que vemos, após a infeliz invasão do Iraque, oscilarem para os islamistas, parece ser extensiva a todas as sociedades muçulmanas: não é a Turquia de Kemal Ataturk e Erdogan que parece obedecer a esta mesma lógica oscilante? Será também necessário saber como funciona a escola nestas sociedades, como se defende a ideologia muçulmana dos factores de secularização que ela veicula, que são inerentes à razão ocidental que a estrutura. Uma das ironias desta história foi no Afeganistão, os zeladores excessivos do Islão serem “estudantes de teologia” (talibans), uma espécie de ‘contra-escola’.
9. Segundo Tamzali em 2009 (p. 131ss), os políticos e intelectuais ocidentais olham as sociedades muçulmanas com o pavor do Irão encerrado pela religião e estariam dispostos a favorecer os “muçulmanos moderados” como capazes de democracia, crêem eles ver nos dirigentes que encontram nas emigrações nos seus países. É esta perspectiva que justifica que ela tenha perdido audiência, criticada pelo seu feminismo radical. Com efeito, ela percebe, em França como na Argélia, vivendo em ambas as capitais, como esses “moderados” não têm o princípio da liberdade de consciência (p. 114ss): não entendem a laicidade como respeito da liberdade religiosa, mas como possibilidade democrática de se ser muçulmano na Europa, em contraste com a impossibilidade do que chamam “apóstatas” (nascidos muçulmanos que se tornam ateus, ou pelo menos críticos do Corão a partir da razão) que o Corão condena à morte (fatwas). E o véu, proibido em França, acham que é um elemento da identidade muçulmana; o que significa que a moderação deles é a não emancipação das mulheres muçulmanas. “Toda a politica internacional tende para evitar a eventualidade de iranização dos países árabes, e os poderes actuais nos países de maioria muçulmana jogam com esse medo, quando os nossos países optaram, na maior parte e já desde vários anos, por um segundo cenário. Esse cenário foi imaginado para retomar e corrigir a politica dos seus predecessores que, aprendizes de feiticeiro, tinham favorecido nos anos 1970 a islamização da sociedade para abafar as veleidades democráticas dos seus povos. Os poderes actuais herdaram as sequelas dessas politicas, sob forma de movimentos violentos determinados a eliminá-los. Um cenário maquiavélico trabalhado a várias mãos que visa manter os poderes existentes, integrando os islamistas – os islamistas moderados. A sua realização seria tão nefasta para as mulheres como o cenário à iraniana” (p. 133).
10. No fundo, o que há de mau presságio nisto, é o véu estar a andar para trás, o que confirmaria a apreensão de Tamzali: é que a emancipação das mulheres muçulmanas seria a derrocada da ordem do parentesco e com ela da ideologia da religião, deixando esta apenas aos espirituais, como sucedeu na Europa (mas não nos Estados Unidos?). O que terá sucedido nas revoluções árabes da Tunísia à Síria, passando pelo Egipto, que tenha tido a ver com o parentesco endogâmico, com a sexualidade agressiva dos machos, com os entusiasmos e os medos das mulheres? Que im-possibilidade se jogou e se joga aí, a duma secularização como ameaça intolerável? Quantas gerações serão precisas para modernizar de forma democrática as sociedades muçulmanas, as únicas que, tendo uma longa história de civilização, parecem estagnadas, apesar da juventude que manifestou desejos de modernidade nas revoltas das ruas?