segunda-feira, 26 de março de 2018

Um buraco na história da humanidade




1. O livro chama-se Sapiens. Une briève histoire de l’humanité, versão francesa da versão inglesa do original hebreu do historiador israelita Yuval Noah Harari (2012) e tem quase 500 páginas que se lêem muito bem, com bons exemplos em seus contextos muitos dos quais ignorados do grande público, bons contastes entre épocas diferentes para sublinhar parecenças ou diferenças entre épocas largas de história, ou seja, aprende-se muito e mesmo as irritações filosóficas que tive aqui e ali acabaram por me agradar, como direi a propósito do ‘buraco’ anunciado pelo título. A linguagem é clara, apesar do empirismo radical e das lacunas devidas à ‘brevidade’ duma história da humanidade, que me lembre o nome de Platão nunca aparece, e na parte final da ‘crendice’ nos projectos dos biólogos e informáticos igualmente empiristas radicais, que só sabem, uns de bioquímica e outros de sílica e digitalização. O livro consta de quatro partes: a revolução cognitiva, a revolução agrícola, a unificação da humanidade e a revolução científica.
2. A revolução cognitiva conta como as várias outras espécies homo, neandertal, erecto e outros, se extinguiram há cerca de 30000 anos, com a possibilidade de que o nosso sapiens tenha contribuído para isso. Entre os anos 70000 e 30000, já com fogo e utensílios vários bem anteriores, a revolução cognitiva é atribuída à invenção das línguas, de que Harari destaca três vantagens: poder falar de coisas que aconteceram longe, no espaço e no tempo; permitir conversar de tudo e de nada, isto é, ser um laço social, tribal; capacidade de ficção, de poder falar de coisas que não existem, lendas, mitos, religiões. É nesta terceira que o empirismo radical se anuncia: porquê decide o historiador que essas coisas não existem? A partir do seu ateísmo? Este faz parte da metodologia do historiador? Não creio que historiadores ou antropólogos encontrem alguma vez indígenas que digam que aquilo em que acreditam existe ou não à maneira dos ocidentais; se vasculharem bem, o que encontrarão provavelmente sempre é que eles acreditam nessas narrativas e nesses rituais porque os aprenderam dos seus antepassados, os quais também aprenderam de outros que aprenderam, sem se encontrar nunca nenhuma ‘origem’ de mitos; tal como nós aprendemos a falar sem saber gramática ou aprendemos na escola que a terra é que gira em torno de si mesma e o sol está como que parado num dos focos das elipses das trajectórias dos planetas, a grande maioria de nós não sabendo demonstrar essa crença aprendida; além disso, encontrarão que, quer a língua em que conversam, quer os rituais e mitos que jogam em festas, guerras, nascimentos e funerais, são laços que integram todos os que são da tribo e excluem os que não são. Ou seja, a aprendizagem como mecanismo de reprodução social é totalmente ignorada nas cinco centenas de páginas de descrição histórica. Com uma consequência impressionante, à vista da imensa bibliografia, livros e artigos de investigação, quase sempre anglo-saxónica, é certo: o capítulo que segue esta tripla caracterização da linguagem, intitulado “a lenda de Peugeot”, explica que ‘Peugeot’ não existe, é uma lenda, como o Estado moderno, a Igreja medieval, a cidade antiga, a tribo arcaica ou o sistema judiciário não existem, nada disso se vê, apalpa ou cheira: tratando-se de aglomerados acima de 150 indivíduos, são produtos imaginários, só ‘existem’ sob forma de mitos contados de boca em boca. “Nenhuma destas coisas existe fora das histórias que pessoas inventam e contam umas às outras; não há deuses no universo, nem nações, dinheiro, direitos humanos, nem leis nem justiça fora da imaginação comum dos seres humanos”. “Peugeot é uma criação da nossa imaginação colectiva. Não se a pode mostrar apontando com o dedo; não é um objecto material; [...] existe como ficção jurídica do tipo ‘sociedades anónimas de responsabilidade limitada’. Empirismo nominalista, à maneira de Occam – “só existem os singulares”, a relação de ‘pai’ só existe como ‘nome mental’[1] – ou de Margaret Thatcher, “a sociedade não existe, só existem homens e mulheres”. O que é surpreendente é que os nomes das línguas não sejam suficientes para  que algo que liga humanos possa ‘existir’ sem ser ficção; o imaginário é uma noção alheia ao ‘colectivo’, releva da subjectividade individual, ao invés das palavras, que são iguais para todos os falantes e também estruturam o psiquismo de cada um deles.
3. A revolução agrícola é introduzida com o seguinte título: “a maior fraude da história”. Ao espanto inicial, sobrevem a explicação: a vida dos colectores caçadores na selva era muito melhor do que a dos camponeses, o que lembra o que contava Pierre Clastres algures em La société contre l’État, de indígenas do Brasil que receberam machados metálicos, dez vezes mais eficazes do que os seus de pedra, e que em vez de cortarem dez vezes mais no mesmo tempo, cortaram a quantidade habitual em dez vezes menos tempo, ganhando tempo para se enfeitarem e divertirem, ou a caracterização por Marshall Sahlins das sociedades arcaicas como sociedades de abundância. Nesta lógica, Harari dará sempre lugar na sua síntese histórica aos seus aspectos mais terríficos: as escravaturas, quer as antigas quer sobretudo as de africanos na Europa e nas Américas, a dizimação (literal, reduzidos a 10%) dos indígenas americanos nos primeiros 100 anos, o proletariado inglês dos começos da industrialização do século XIX, mas também os animais que são hoje em dia tratados de forma crudelíssima em vista da nossa alimentação. Aqui, não posso senão tirar-lhe o chapéu! Terá direito a um capítulo final inédito: enquanto historiador, interroga-se sobre a felicidade dos humanos e o sentido da vida nesta época da história.
4. A unificação da humanidade tem uma tese que me pareceu original: a de que foram os impérios que conduziram a história para a unificação actual, além da moeda e do mercado (com um excelente resumo do mecanismo da moeda e da confiança bancária) e das religiões. O “papel histórico crucial da religião foi o de dar uma legitimidade sobre-humana às frágeis estruturas sociais”, quando se tratou de crenças universais e missionárias. Além do que se chama habitualmente ‘religião’, Harari prolonga a noção às grandes ideologias modernas: liberalismo, comunismo, capitalismo, nacionalismo, nazismo, distinguindo religiões teístas e religiões humanistas e nestas incluindo o budismo (sem deuses).
5. A revolução científica leva-nos ao extraordinário buraco deste empirismo de sociedades à base de “imaginários comuns”, que foi o que me atraiu para escrever este texto. O autor começa por contrastar a ciência moderna (com um belo capítulo sobre a invenção das estatísticas) que começa pela ignorância de que os humanos não conhecem, as respostas às questões mais importantes, enquanto que, segundo ele, “as tradições pré-modernas do saber como o Islão, o cristianismo, o budismo e o confucionismo [que] afirmavam que já se sabia tudo o que era importante saber sobre o mundo”. Esta frase, com um conteúdo que aparece outras vezes, diz a ignorância do historiador: a filosofia não aparece nestas “tradições pré-modernas do saber”, como se vê quando algumas páginas adiante se põe a questão “porquê a Europa?”. A questão está longe de ser nova. Por exemplo, o historiador Eric Jones, O milagre europeu, Gradiva, compara a China, a Índia, o Islão otomano e a Europa, que terão um equivalente estádio de civilização em 1400, com alguns argumentos comparativos interessantes – a não existência de impérios na Europa como os outros, os quais limitavam os ganhos dos seus mercadores, as cidades livres que estiveram na origem do comércio intra-europeu, a planície que vai da França aos Urais coberta de floresta – mas termina por não encontrar argumento histórico que explique que, 400 anos mais tarde, a Europa irrompa como civilização tecnológica e capitalista, e por resignar-se ao ‘milagre’. Aqui esta ‘ignorância’ que desembocou em ciência, como que ‘inventada’ pelos cientistas sem antecessores, explica-se pela aliança com os ‘impérios’ marítimos em que se ‘conquistam’ territórios e saberes geográficos, zoológicos e botânicos sobre eles. Mas quando chega a 1800, aos comboios a vapor e a tecnologia que vem com eles, à questão de saber porque é que a China e a Índia não foram capazes de construir logo máquinas a vapor como as europeias, encontra a seguinte explicação: “nem Chineses nem Persas tinham falta de invenções técnicas como as máquinas a vapor (que podiam ser livremente copiadas ou compradas); o que lhes faltava, eram os valores, os mitos, o aparelho judiciário e as estruturas sócio-políticas, cuja formação e maturação levaram séculos no Ocidente e que era impossível de copiar e de interiorizar rapidamente. [...] desde os alvores dos tempos modernos que a Europa desenvolvera a ciência moderna e o capitalismo, que os Europeus tinham ganho o hábito de pensar e de se conduzir de maneira científica e capitalista antes mesmo de gozarem duma vantagem técnica significativa”. O texto dá a ver que Harari manifestamente só conhece a ‘ciência’ de longe, caracterizando-a pelo “lugar central da observação e da matemática”: ora, esta disciplina de cálculo exacto só ganhou este nome no século XIX, nos clássicos era chamada geometria, que já Platão considerava aliada da filosofia na Academia; quanto à ‘observação’ é o método próprio das ciências aristotélicas, que o que ignoravam era a experimentação e a sua mensuração laboratorial, a ciência inventada no século XVII. A grande diferença entre a Europa que renasceu entre 1450 e 1520 e todas as outras grandes civilizações, foi que só ela teve antes de se formular como civilização, recebeu um berço cultural vindo da Antiguidade e da discussão medieval de textos filosóficos, lógicos, jurídicos, de medicina, além de teologia.
6. Eis o buraco: para Harari, por certo que a metafísica releva do imaginário, do que não existe, mas também coloca “os valores e os mitos” com “o aparelho judiciário” sem mencionar o direito romano. O que ele ignora, tal como Eric Jones e provavelmente a historiografia anglo-saxónica que ele cita abundantemente em notas de pé de página, não é apenas a filosofia, misturada ao cristianismo medieval: ignora as universidades medievais, a invenção da imprensa e o comércio dos livros, a Enciclopédia e as universidades e colégios! Nada disto faz parte da história que ele conta, muito menos históricas  do que os livros e as escolas são as palavras que se ensinam e aprendem, veja-se ou não o que elas dizem! Ora é neste buraco que tenho trabalhado, como mostro sobretudo no e.livro Da Natureza à Técnica (construção, desconstrução e reconstrução), edição de autor na Leya. Não lhe passa pela cabeça que a escrita alfabética, a invenção socrática da definição de essências [que claro que não ‘existem’ à mão de semear] (e da ‘ignorância’: “sei que nada sei” é o que lança a filosofia que tornou possível os laboratórios científicos!) e da argumentação lógica por Aristóteles, em seguida a da geometria por Euclides, que tudo isso – e também a alma imortal que também não ‘existe’, mas foi extremamente  eficaz para induzir o individualismo ocidental, ignorado pelas outras civilizações – fizesse parte do que Newton, citando um medieval, chamava os gigantes aos ombros dos quais ele se sentava. Ou seja, a sua concepção da ficção de coisas que não existem como o mais importante da “revolução cognitiva”, e provavelmente o papel do “imaginário comum” a sobrepor-se à existência da companhia Peugeot – de quem todos os que nela trabalham e lhe compram carros falam constantemente, sem necessidade de nenhum impossível, por definição, imaginário comum a milhões de pessoas – é que o impede de ‘ver’ o buraco da escrita que existe transmitindo-se por aprendizagem através de escolas e de livros. Apetece pensar que se trata dum exemplo (inesperado para mim) do que Heidegger chamou ontoteologia: este senhor lê ‘vendo e mexendo’ nas coisas lidas, discernindo nesse referente real o que existe e o que não existe, como um ‘sujeito’ diante de objectos. Para um ‘ateu’, deveria ser terrível ganhar consciência dessa sua posição herdeira da teologia.
7. Mas que esta brincadeira não afaste leitores: vale muito a pena lê-lo, aprende-se imenso.





[1] O nominalismo é a única corrente filosófica que refere a linguagem no título.

sábado, 10 de março de 2018

Céu de estrelas e acelerador de partículas



1. Escrevi isto no meu último texto deste blogue. “A meu ver, a grande crítica que as ciências em geral merecem, sobretudo a concepção que os cientistas delas têm, tem a ver com o ‘fora do laboratório’: teoricamente, os resultados científicos só são válidos nas condições de determinação criadas pelos laboratórios, os quais são necessários porque justamente na realidade quotidiana reina a indeterminação, vários tipos de efeitos jogando de forma casual ou pelo menos aleatória. Há, que eu saiba, duas grandes excepções, bastante opostas: a astronomia, cujo laboratório de telescópios enfrenta directamente a cena astral e pode calcular com exactidão as suas causalidades sem interferências terrestres significativas, e os aceleradores de partículas, em que o laboratório não se distingue da cena em que elas explodem, o que provocará provavelmente os limites da mecânica quântica (não sei que chegue para garantir esta afirmação). Escrevi, e só depois de o ter publicado é que me dei conta de que estas duas excepções correspondem, nada mais nada menos, do que aos dois novos domínios da Física, a da relatividade e da velocidade astral da luz (que só se pode medir / calcular nos astros não terrestres) e a mecânica quântica. O que merece uma pequena reflexão.
2. Que a astronomia, decana das ciências antigas como da física europeia, tenha como campo de compreensão um mundo ‘determinado’ é o que corresponderá à perspectiva dos astrónomos gregos, Aristóteles, por exemplo, considerando o movimento dos astros como perfeito, em contraste com os movimentos terrestres, o que porventura conduziu à noção astrológica de que o ‘movimento perfeito influía nos dos humanos’ (a palavra medieval influir foi criada para dizer essa relação astrológica). Mas também a lógica da demonstração do heliocentrismo de Newton (resumida num texto deste blogue) supõe as órbitas dos planetas como determinadas, repetindo-se periodicamente; creio que isso ainda é assim. Por outro lado, os cometas como o de Halley também têm algo como uma trajectória que é conhecida, prevendo-se as passagens dele à vista da Terra. Dito isto, haverá nos céus movimentos erráticos? Se for o caso, isso não se opõe a esta característica da astronomia de o seu laboratório coincidir, se dizer se pode, com a cena dos fenómenos astrais, sendo certo todavia que a Terra é uma grande excepção em relação aos outros astros: é dela que partem todas as medidas astronómicas, é do ponto de vista dela que se fazem todas as cartas celestes, ainda quando tenham contributos de sondas espaciais, uma vez que essas cartas são lidas na Terra, ou com ‘olhos terrestres’ de astronautas no espaço.
3. Quanto à Mecânica quântica, sem dúvida que, desde a teoria do átomo nos começos do século XX, foi em laboratório que ela foi sendo construída, Niels Bohr dizendo que “o átomo é um ser de laboratório”, com a célebre indeterminação de Heisenberg sobre a medida simultânea da posição e da velocidade duma partícula. Aqui, ao contrário da astronomia, é a cena fora de laboratório que como que falta: presumo que ela existe de duas maneiras. A primeira é sob a forma de bombas atómicas, o filósofo greco-francês Cornelius Castoriadis tendo dito, ironicamente mas com inteira razão, que a verdade da teoria física dos átomos foi validada pelas mortes dos cidadãos de Hiroshima e de Nagasaki, ou ainda sob a forma de centrais nucleares; a segunda, sob a forma de grandes aceleradores de partículas por desintegração de certo tipo de núcleos atómicos. Tanto quanto sei, e é certo que não sei muito, em todos estes casos o que se passa na cena, fora do laboratório no primeiro caso e na cena-laboratório no segundo, são explosões de partículas, onde as causalidades são incontroláveis cientificamente e os procedimentos de medida da ordem da estatística, a qual é sempre um recurso, uma confissão de não-saber no sentido tradicional da física de Galileu e Newton. Apesar disso, há um (inacreditável) estigma dessa física clássica como “errada” pelos físicos modernos, que têm a mecânica quântica como “o infinitamente pequeno no qual se apoia a física actual”, como diz a contracapa dum belo livro de Étienne Klein (Einstein +6. A revolução). No entanto, já Castoriadis falava “da antinomia epistemológica formulada por Heisenberg desde 1935 entre a constatação da não validade das categorias e das leis da física ordinária no domínio microfísico e a demonstração dessa não validade por meio de aparelhos construídos segundo as leis dessa física ordinária e interpretadas segunda as categorias usuais” [1].
4. A que vêm estas reflexões ? Provavelmente não são senão mais um ponto do meu desconforto fenomenológico (ignorante) diante, não destas duas novas físicas, é claro, mas duma consequência da junção das duas na especulação sobre os primeiros tempos do universo, uns 180 milhões de anos até à formação das primeiras estrelas. Como é pensável tantos milhões de anos sem astros dignos desse nome, apenas multidões de poeiras de átomos e de partículas? É a noção de ‘evolução’, a que é difícil de escaparmos, creio, como fazemos em relação à formação da Terra e à epopeia da vida, que me parece que falta nesta especulação, algo que se possa compreender. Ora, não se tratará aqui apenas de Física mas também, e talvez antes de mais, da construção da Química: do núcleo atómico, dos átomos mais simples (H e He) juntando um e dois electrões a esses núcleos, depois dos outros átomos da fabulosa Tabela Periódica de Mendeleiev, em seguida como átomos se juntaram para formar moléculas simples e mais complexas. Questões que põem decisivamente a de saber como é que se fizeram as ligações das forças nucleares e dos vários patamares de forças electromagnéticas (que juntam electrões ao átomo, juntam átomos em moléculas, depois juntam estas em graves), donde vieram, quando aparentemente, pensa o leigo, quanto mais a multidão de poeiras se expandir mais as partículas estruturais (protões, neutrões e electrões) se afastam umas das outras, quando a regra das transformações químicas que geram moléculas é a da proximidade entre elas, que nesta noção de expansão parece se desfazer: em vez de se aproximarem, afastam-se.
5. Estas teorias do big Bang e da sua sequência até às primeiras estrelas (a partir das quais julgo que uma lógica se apresenta), além de cálculos matemáticos que ignoro, serão apenas ‘especulativas’ ou haverá experimentação laboratorial adequada, inversão da que existe nas explosões atómicas de bombas e centrais nucleares como de aceleradores de partículas? Nestes casos, sabe-se experimentalmente como é que moléculas, átomos e núcleos atómicos se desagregam; mas há também experiências de protões e neutrões se agregarem para formarem núcleos atómicos, de se lhes juntarem electrões e se produzir um átomo? Em mais complicado, François Jacob, na Logique du vivant (1970) dizia, se bem me lembro, que se era capaz de sintetizar todas as moléculas duma célula mas não se sabia com elas construir uma célula, as que temos vêm sempre de outras anteriores (tanto quanto sei, as bio-tecnologias acrescentam moléculas a células, não fazem o que F. Jacob dizia não se saber então fazer). A única experimentação retroactiva, por assim dizer, que eu saiba é a famosa de Stanley Miller em 1953, que reconstituiu a atmosfera primitiva e conseguiu que hidrogénio, amónio, metano, vapor de água, sob descargas eléctricas, tivessem originado moléculas orgânicas. Nem sequer o estimado M. Barbieri, com uma excelente teoria sobre as moléculas ribóticas na génese das células, fala em ter feito experimentações sobre essas moléculas que justificassem a sua teoria. Voltando à física, seria talvez mais fácil conseguir experimentalmente ‘construir’ átomos, que são bem mais simples do que células. Talvez que o problema dos físicos seja justamente este, o da simplicidade que resiste a ser ‘pensada’; talvez que, em épocas de “complexidade” (Edgar Morin), o método cartesiano da redução das questões ao mais simples seja a esparrela filosófica em que caiu a especulação física, a de imaginar uma poeira de partículas em procissão no céu das estrelas ainda por virem, quando nos aceleradores de partículas não se constroem átomos nenhuns.
6. Seria preciso um/a novo/a Einstein, um/a físico/a que tenha – como ele teve com o seu emprego em Zurich de leitor de relatórios de “patentes nas quais se trata incessantemente de electromagnetismo” (Klein, p. 54) – uma espécie de ‘laboratório de ideias’ que lhe permita repensar o paradigma, repensar a antinomia epistemológica de Heisenberg (§ 3), a relação entre a mecânica quântica e os instrumentos laboratoriais da física ordinária. Mas se o/a houver – talvez que já o/a haja, sabe-se lá, longe das universidades de topo – far-se-á ouvir de maneira a ser levado/a a sério?
7. Devaneios meus, porventura.


[1] “Science moderne et interrrogation philosophique”, Encyclopædia Universalis, vol. Organon, 1975, p. 48.

segunda-feira, 5 de março de 2018

Ciência, pós-materialismo e espiritualidade



1. Pela primeira vez vi referida uma corrente de pensamento de cientistas e filósofos que escrevem sobre “ciência pós-materialista”, denunciando a ciência europeia ocidental a partir dos séculos XIX e XX como materialista. Foi um texto no Público de 3/2/2018 de Leonor Nazaré que cita, além de dois livros, um em francês e outro em inglês, um “manifesto para uma ciência pós-materialista” de 2014, que se encontra na Web tanto em francês como em inglês. A autora reclama-se desse movimento para criticar o dogmatismo de David Marçal (não fala do seu comparsa Fiolhais) contra tudo o que não seja medicina ocidental da segunda metade do século XX, no caso a medicina tradicional chinesa, cuja licenciatura foi aprovada recentemente pelo Ministério da Ciência, sem que no texto dos inquisidores se perceba se alguma vez tentaram saber em que é que consiste essa ‘medicina’ que não é ‘ciência’. Nem se os vê preocupados, com o que Leonor Nazaré lembra de passagem: “não me alongarei em relação à componente financeira avassaladora associada às indústrias agro-química e farmacêutica mundiais, na dependência da qual 25.000 lobbyistas trabalham diariamente em Bruxelas, no sentido de inverter, impedir, ludibriar, adiar qualquer esforço legislativo que vise proibir, por exemplo, os perturbadores endócrinos e, de forma geral, os mais de 1500 produtos tóxicos e cancerígenos cuja utilização é LEGAL no que comemos, respiramos, habitamos, cultivamos, medicamos, etc. (cf. Stéphane Horel, Intoxication. Perturbateurs endocriniens, lobbyistes et eurocrates: une bataille d’influence contre la santé, 2015)”.
2. Se há pois boas razões para se argumentar contra o dogmatismo de muitos cientistas, da física à bioquímica e neurologia (o resto não é costume achar-se ser científico, a linguística estrutural, por exemplo), a critica de que essas ciências seriam ‘materialistas’ e de que se possa querer uma ciência pós-materialista (quando se trata de neurologia e psicologia face a fenómenos paranormais e espirituais) é algo que merece reflexão, já que se baseia na oposição entre material e espiritual, típica do século XIX positivista, como se o interesse pela dita ‘espiritualidade’ implicasse anti-materialidade.
3. A primeira questão é esta: a física é ‘materialista’? O argumento é aduzido a partir da mecânica quântica, da necessidade de ter em conta a interacção do observador para decidir da mensuração das partículas. Ora, no que diz respeito à física clássica dos engenheiros, à química e à bioquímica, a questão não se põe dessa maneira, nunca soube de cientistas destas áreas que reclamassem esta característica quântica para as suas questões laboratoriais. Por um lado, o motivo de ‘medida’ e de ‘dimensões’ susceptíveis de medidas só tem sentido em relação a coisas que chamamos habitualmente ‘matéria’, dimensões a que se pode atribuir convenções de sistemas de medida a partir duma unidade (centímetro, grama, segundo, no que no meu tempo de liceu e IST se chamava o sistema CGS). Mas por outro lado, como ilustra extraordinariamente bem o balde de água  com que Galileu media o tempo em “diferenças e proporções” de peso de água, são os resultados dessas medidas que se prestam às equações físicas de tipo algébrico, seja qual for o exemplo material da experimentação laboratorial: não é a matéria – enquanto realidade substancial, bolinha de pedra ou de ferro que desliza pelo plano inclinado de madeira – que é conhecida cientificamente, mas as regras de movimento, tipo lei da gravidade, que as equações e as suas variáveis preenchidas com os resultados da experimentação permitem conhecer de forma universal, científica. Aqui, o que faz o observador enquanto medidor não é relevante, a não ser a exigência de que não erre, foi por isso que o problema da mecânica quântica provocou um alvoroço tão grande, mas sem reflexos retroactivos sobre a física de dimensões macroscópicas: o critério nesta, que está na base da maioria da engenharia e tecnologia actuais, é ‘universal’ para qualquer laboratório, independentemente da subjectividade dos cientistas. Isto não é ‘materialismo’, é exactidão científica, que não joga da mesma maneira noutras ciências como a linguística estrutural ou outras ciências sociais, nem sequer na economia. Foi esta exactidão que levou Heidegger a dizer que “a ciência não pensa”, indo ao encontro de a ciência ser estruturalmente laboratorial, mensuração e matemática algébrica adequada. Onde o cientista pensa – usando linguagem de palavras articuladas em frases – é quando propõe novas maneiras de experimentação ou de medir, ou novas hipóteses teóricas, ou quando discute paradigmas. Nada disso é ‘materialista’ no sentido pejorativo da palavra: a intervenção da matemática – que mede e conta, isto é faz operações com coisas materiais, não soma ‘ideias’ nem sequer ‘imagens’ – joga com “diferenças e proporções”, as quais também não são coisas materiais, nem os números, nem sequer as palavras, diferenças entre sons ou riscos que referem ‘coisas’, aliás tanto materiais como ideais. Já o marxismo teve dificuldade em caracterizar a ciência e as línguas como ‘materialistas’ e não como ‘ideologia’ (Estaline decidiu no debate soviético que a língua não pertence à super-estrutura).
4. Não é pois por aí que o gato vai às filhozes, as ciências, laborando com coisas materiais, não são materialistas. A meu ver, a grande crítica que as ciências em geral merecem e sobretudo a concepção que os cientistas delas têm, tem a ver com o ‘fora do laboratório’: teoricamente, os resultados científicos só são válidos nas condições de determinação criadas pelos laboratórios, os quais são necessários porque justamente na realidade quotidiana reina a indeterminação, vários tipos de efeitos jogando de forma casual ou pelo menos aleatória. Há, que eu saiba, duas grandes excepções, bastante opostas: a astronomia, cujo laboratório de telescópios enfrenta directamente a cena astral e pode calcular com exactidão as suas causalidades sem interferências terrestres significativas, e os aceleradores de partículas em que o laboratório não se distingue da cena em que elas explodem, o que provocará provavelmente os limites da mecânica quântica (não sei que chegue para garantir esta afirmação). Ora, é fora do laboratório que se situam as poluições todas e os efeitos secundários, tudo resultante de lacunas laboratoriais inevitáveis, isto é, de experimentações não feitas além das que foram feitas, das que as técnicas confirmam a exactidão científica. Que os gases dos automóveis provoquem doenças respiratórias ou efeitos climáticos nocivos, que o que cura certo tipo de células tenha efeitos catastróficos noutros tipos, etc. Fora do laboratório e de certas rotinas, os efeitos de factores com causas diversas congregam-se em acontecimentos, que são possíveis, isto é, não determinados, imotivados, desconhecidos pelas ciências fora dos seus laboratórios. Ora, o dogmatismo dos cientistas vem de não terem em conta a importância do laboratório para as verdades que eles descobrem e de transporem indevidamente essas ‘verdades’, uma concepção determinista para a realidade em geral, o que é mil vezes pior do que um pretenso ‘materialismo’.
5. Do tal manifesto para uma ciência pós-materialista[1] (do seu § 15) retiro alguns pontos que merecem consideração. A afirmação de que as ciências reduzem o ‘espírito’, que um pouco adiante é exemplificado pela dupla vinda da psicologia racional clássica “vontade / intenção”, é perfeitamente correcta. Qualquer ciência só tem um mínimo de cientificidade se reduzir a subjectividade do cientista, mas mais além, a necessidade estrutural do laboratório implica a redução de tudo o que não corresponde às dimensões retidas para serem medidas do fenómeno. Para dar um exemplo fora da física e das químicas, a linguística estrutural reduz a Acústica e a Fonação fisiológica nas operações de comutação com as quais constrói os seus paradigmas científicos (fonológicos, morfológicos, sintácticos, lexicais). Nenhuma ciência pode ser retida, na tradição ocidental, sem esta redução, o que significa que os ensaios de conhecimento das realidades espirituais ou criam uma ciência própria (teológica ou agnóstica, não vejo o que possa ser) ou procedem apenas a argumentação filosófica, não científica.
6. Dito isto, há uma série de “fenómenos psi” que merecem todo o interesse, nomeadamente a telepatia, fenómeno que muito me intriga, claramente atestado frequentemente e de difícil explicação em termos das ciências vigentes, ou ainda as “experiências de morte iminente” com experiências fora do corpo durante uma paragem do coração, ou experiências espirituais profundas durante essas paragens, donde se conclui que o espírito é separado do cérebro, manifesta-se através dele mas não é produzido por ele; ainda se citam, sem que se possa duvidar, casos de “médiums que comunicam mentalmente com pessoas falecidas e obtêm informações muito precisas delas”, sugerindo sobrevida da consciência após a morte e a existência de realidades que não são de ordem física; acrescenta-se que “espíritos individuais podem aparentemente unir-se” o que “sugere a existência dum Espírito envolvendo-os”. Os dois casos obviamente ‘metafísicos’, a imortalidade do espírito e a existência dum Espírito divino, são denunciados enquanto tais pelo verbo ‘sugerir’, que parece afastar qualquer hipótese de ‘ciência’. Mas a telepatia e os médiums põem uma questão muito interessante, a de saber se eles exigem a autonomia duma instância ‘espiritual’ relativamente ao cérebro. O que  é difícil é que nos laboratórios de neurologia põe-se também a questão da relação entre a análise estritamente bioquímica-biológica das  redes neuronais e o ‘conteúdo’ dos neurónios a que só o próprio tem acesso, o que Damásio chamou ‘mente’: entre análise neurológica laboratorial e o discurso subjectivo da mente, contado pelo próprio, há um salto metodológico que julgo intransponível, o que deixará lugar para uma concepção filosófica espiritualista, mas não vejo como ‘científica’.
7. Argumentarei por isso duma forma indirecta. Há um caso extraordinário, mencionado noutro sítio da Web[2], dum tsunami na Indonésia em 2005 em que morreram 150 mil pessoas e em que não se encontraram praticamente carcaças de animais – elefantes, javalis, búfalos, leopardos – que pressentiram a vinda do mar e fugiram para as serras. Um biólogo, especialista em ecologia e comportamento animal, explica que não se trata dum “sexto sentido”, mas que “os animais teriam sentidos mais desenvolvidos do que os nossos para detectar certos sinais premonitórios: uns ouvirão uma gama maior de sons, outros perceberão melhor as modificações da pressão atmosférica ou do campo magnético; em tudo o que é vibratório, tremores de terra ou ondas sonoras, os animais têm aptidões que nós não temos ou já não temos” (Hervé Fritz, CNRS). Ora, o ‘já não temos’ sugere que tinham os nossos antepassados vivendo na selva e devendo defender-se dos perigos desta mas que se foram perdendo com as novas tarefas trazidas pela agricultura e sobretudo pela vida citadina. Então, os tais fenómenos psi, telepatia e médiums (para não falar de levitação), corresponderiam a gente que guarda, sabe-se lá porquê ou como, algumas possibilidades arquétipas, se dizer se pode, prévias à aprendizagem da linguagem provavelmente; isto seria o caso dos “espíritos individuais [que] podem aparentemente unir-se”, o que me lembra uma proposta de José Gil em As metamorfoses do corpo, a do “corpo comunitário” das tribos vivendo na selva, procurando alertar-nos para comunidades muito diferentes do individualismo exacerbado da contemporaneidade. “O corpo de que falam os selvagens não é o ‘corpo’ individual, porque este é em cada instante investido dos outros corpos da comunidade – seja pela fala, pelos gestos, pela expressividade afectiva, pelos jogos, por toques, carícias [...] Em cada comunidade primitiva o laço que une todos os membros funda-se neste corpo comunitário [...] É onde se jogam partilhas profundas: as funções mais imediatas, mais vitais – como a nutrição, a reprodução, as excreções, as percepções – canalizam e reproduzem o Mesmo em que cada corpo individual, fragmento e transmissão do corpo comunitário, compõe e analisa os seus ritmos deixando-se atravessar pelos ritmos de todos os outros [...] É ele que, oferecendo à comunidade a sua coesão, abre o espaço em que se elabora cada singularidade, o espaço da individuação dos corpos, quer dizer dos ritmos singulares. [...] As formas de educação que se encontram nas sociedades primitivas mostram como desde muito pequenos as crianças entram em relação com uma multidão de outros corpos, são manipulados por múltiplas mãos, balançados por dez mulheres, confrontados com mil imagens parentais, identificados a mil outras crianças e adultos. [...] A criança aprende os seus próprios ritmos, aprendendo a modelar em si os dos outros. [...] em vez de implicar uma atomização como nas sociedades ocidentais, o efeito de singularização supõe uma coesão social extremamente potente”[3].
8. A hipótese muito geral a tirar seria a de que médiums e gente capaz de telepatia seriam pessoas que guardam algo desta potência comunitária, desta intuição de outros, da capacidade de uma certa ‘comum unidade’ que poderá parecer-se com ‘relação espiritual’, sem ter implicações metafísicas nem ser ‘materialista’, esta oposição não tendo aqui lugar. Como dizer esta espiritualidade?[4] O motivo releva no Ocidente da tradição cristã, em que predominou a perspectiva platónica, opondo-a à matéria, como é o caso no manifesto em questão. Só vejo como alternativa o sopro judaico que em Orígenes aparece platonizado como ‘espírito’ (“hipóstase intelectual”), tenha sido ele como creio provável a fazê-lo, ou já antes Clemente de Alexandria ou outro filósofo cristão anterior. Seria digno dessa perspectiva o que releve de acontecimentos que escapem ao domínio dos outros humanos, ao poder do dinheiro, ou ao poder social em instituições ou ao poder politico ou ao poder dos saberes estabelecidos, mediáticos, científicos, eclesiásticos, académicos ou que sejam. É fácil dar exemplos, além dos espirituais anónimos, mulheres e homens que possamos conhecer, os clássicos Mahatma Gandhi, Martinho Lutero King, o nosso Aristides Sousa Mendes, Francisco, que está a renovar espiritualmente aos nossos olhos um lugar de poder.




[2] Google: Tsunami - Incroyable : les animaux ont échappé à la menace !
[3] J. Gil, Métamorphoses du corps, La Différen­ce, 1985, pp. 155-6.
[4] Ver texto de 15/10/17 neste blogue, os §§ 1-2