quarta-feira, 27 de julho de 2016

Já se sabe hoje como será AMANHÃ



1. Que economista que se preze não sonha encontrar solução teórica para alguma das principais questões que nos assolaram nas duas últimas dezenas de anos? Alguém será capaz de resolver duma só penada problemas como as monoculturas, os químicos e a fome de quase um bilião de humanos, as ameaças climáticas, a estrutura financeira quase autista que dá cabo das economias locais, a insuficiência democrática com o desprestígio crescente dos políticos e os populismos consequentes, sem falar das dificuldades dos sistemas de ensino? Mais: fazer isso num discurso em que as afirmações teóricas são argumentadas com exemplos práticos de várias zonas do globo. Pois bem, houve Alguém que o fez e nos é mostrado, são muitos milhares de pessoas empenhadas em soluções locais muito diversas, algumas com 20 e mais anos de experiências, a maior parte mais recentes, respostas imaginativas às crises globais, que vão além de todas as ‘alternativas’ do ‘não há alternativa’ ideológico. O filme que as conta, um milhão de espectadores em França, chama-se singelamente AMANHÃ.
2. Um dos exemplos, que se multiplica por muitas outras cidades, foi como a população pobre de Detroit, após o afundamento da indústria americana do automóvel e o êxodo da população qualificada, criou por tudo quanto era sítio agricultura diversificada e próxima, com inovações instrumentais de jardinagem manuais mais rendíveis do que tractores, aproximando-se duma alimentação auto-sustentada. As energias renováveis, que são da ordem do local justamente, são aproveitadas em muitas zonas que prescindem do petróleo e do gás. Uma fábrica de envelopes francesa tem 20 anos de experiência voltada para as condições de trabalho e de produção e não para o lucro, com um ciclo de reprodução que tende a dispensar matéria prima nova, recorrendo aos desperdícios do século XX e vendendo por sua vez os seus para reciclagem de agricultura (se bem me  lembro). Outro exemplo é a de cidades inglesas como Todmorden que criaram um circuito fechado de moeda local que só vale para as suas instituições e não no mercado da libra (mostram uma nota de 21 libras!), não dando para entesourar e enriquecer. Quando antes de começar, pediram opinião a um conselho consultivo de economistas, ninguém foi capaz de prever o que se passaria: experimentem! Mas há 80 anos, desde a crise dos anos 30, que o banco suíço WIR (Basileia), que a maior parte dos suíços não conhece, criou uma moeda que serve localmente entre elas umas dezenas de milhar de PME. Decisivo nestas moedas locais é a ‘confiança’ que as sustenta, os empréstimos, vendas e compras. Exemplos ainda de democracia, na Islândia contra a decisão do governo de ‘salvar’ os bancos (e os seus empréstimos a ingleses e holandeses, o filme não fala disso) forçaram a demissão dele e dos directores dos bancos, chegando a criar uma nova constituição, ou em aldeias da Índia pondo brâmanes pobres a conviverem com intocáveis também pobres; ou para certas tarefas a ideia de eleições por sorteio entre cidadãos, como se fazia na Grécia e na Roma antigas e nos júris de tribunais, com grandes vantagens em termos do seu empenho nas tarefas para que foram eleitos. Enfim, a escola finlandesa autónoma, sem exames nacionais nem ‘ranquingues’ de concorrência, cujos currículos são revistos de 6 em 6 anos, num processo que vem desde 1971.
3. O que este filme mostra é como que um retorno a Aristóteles, o primeiro grande filósofo-cientista: como se articula a polis, a cidade local, de forma parcialmente auto-sustentada e se a defende das agressões globais, roubando-lhe inclusive munições e deixando como global o que o merece. Dá para pensar que onde haja qualquer crise sentida localmente, sabendo-se das outras experiências e hoje isso é muito fácil, pode-se encontrar de forma relativamente rápida maneiras de reagir onde se está a ser atingido. Ao contrário duma revolução clássica, conduzida por cima e destruindo para revolucionar, é a gente debaixo que se levanta, deixando os de cima a terem de se dar conta do que lhes está escapando. Tenho buscado em livros, como é meu mister, resposta para estas crises sem rosto e sem responsáveis que não sejam burocratas e gente de finanças à solta, resposta que passe pela gente de carne e osso que vejo nas ruas e nos comboios; paradoxalmente foi um filme que me veio aliviar as angústias quanto ao futuro, tenho filhos e netas: há saídas para o apocalipse, garante o filme AMANHÃ.
4. A alusão a Aristóteles é à noção de polis autárcita, auto-suficiente, implicando a cidade propriamente dita e a região agrícola que a envolve (Politica). É o que os historiadores chamam “cidade Estado”, mas era de facto, em linguagem do antropólogo Pierre Clastres, a cidade contra o Estado, a impedir que houvesse um Estado grego dominando as várias cidades autónomas. Como aqui, estes acontecimentos locais defendendo-se dos circuitos globais, sem deixar de aproveitar deles tudo o que lhes seja proveitoso. Quando nas minhas tentativas fenomenológicas sobre ciências das sociedades, propus que as sociedades agrícolas têm como estrutura de base a região, uma cidade com artesanato e algum mercado e estrutura politica adequada (Lisboa e os saloios), pensei que as várias modernidades cosmopolitas, nomeadamente o helenismo e o império romano, criaram redes de super-estruturas inter-regionais, como as modernas nações. E foram essas regiões que sobraram do afundamento do império romano ocidental latino (e aliás também oriental, de língua grega), oferecendo a base do feudalismo medieval até que as regiões recomeçaram a mexer em comunas vivas e ao pé de algumas universidades se desenvolveram a recuperar os textos antigos e a estudá-los e discuti-los.
5. É esta estrutura que o filme mostra estar a ser criada em muitos lados, eles andaram por dez países mas dizem no final que há muitos mais a efervescerem, em defesa face às agressões do global, não necessariamente contra todo o global, mas contra as destruições que ele provoca por ignorância das bases cívicas e económicas que sustentam as redes globais, que são redes entre regiões que as ignoram. Mas sendo assim, esta ossatura de resistência local tendendo a autarcia pode também anunciar uma futura civilização pós imperialismo financeiro, quando este se for criando fendas que ele não saiba e possa remediar, pôr-lhe remendos duráveis. Então já provavelmente as novas realidades cívicas estarão relacionadas entre si por redes de comunicação mais ligeiras e diversificantes. Eis como o AMANHÃ me faz sonhar.
Público, 10/08/2016

quarta-feira, 20 de julho de 2016

As duas faces da moeda



1. Todos pasmámos perante esta lição de populismo que o Brexit acaba de nos dar e esperemos que seja mesmo lição para outras bandas, trumpistas ou lepenistas. Não será a ‘doença infantil’ do capitalismo, mas tem algo duma inocência infantil, da ilusão duma coisa muito simpática que se quer muito e só depois, ao se sentir as consequências adversas, que o que se queria como cura agravou a doença, se percebe que era uma ‘ideia louca’. Mas por se tratar de mal-estar de multidões, merece respeito por elas quando se repudiam as ideias, ainda mais quando se sabe que esse mal-estar é de muitas outras multidões por esse mundo fora e que os dirigentes políticos que temem e criticam com razão o populismo, não parecem ter resposta à altura, habituados a desculpar-se com ‘a crise’ que é de todos, portanto, nós...: relativa impotência dos Estados, mesmo unidos, europeus, reinos britânicos, talvez sem teoria de direito financeiro e/ou de economia que se imponha.
2. Quando se trabalha em filosofia e se pede aliança a algumas ciências, pode ter-se tendência a pensar que é pensamento que falta, ainda que não se saiba propô-lo. Olhe-se para a moeda. A tradição da esquerda tem dificuldade em aceitá-la, mas tal como a electricidade na dimensão técnica, é impensável a contemporaneidade na dimensão social sem ela, já que ela dá uma liberdade elementar, a de escolher o que se quer e precisa, dentro dos limites do orçamento familiar. Dos números ela recebe a razão de calcular, de estabelecer preços para as trocas diárias, segundo custos e tempos de trabalho. Esses números permitem uma ciência em que a moeda, a sua face monetarista, reduz tudo o que não é ela: de tudo o que seja mercadoria, só retém quantidades e preços, única maneira de encontrar regras no complexo mundo das trocas; enquanto tal, a economia não sabe nem de biologia nem de antropologia nem de politica, não sabe de fome, de doença, de escola, nem de bem e mal.
3. Mas a moeda tem outra face, que a torna diferente dos números e das letras e das palavras e das músicas, sistemas que se podem comparar com o seu. Estes sistemas não têm donos, embora tenham artistas que jogam melhor do que o comum das gentes, pertencem aos usos de todos, como queiram, são parte também da liberdade de sermos humanos em sociedade. Mas a moeda só pode funcionar como reguladora de trocas, uma das partes de cada troca, a outra sendo uma mercadoria, só o pode fazer por ser propriedade de quem a usa para comprar e tornar-se propriedade de quem cede a mercadoria que vende. Não há dinheiro sem dono, faz parte da lógica da moeda, da sua positividade, senão não serve para trocar, não é moeda. Aqui, os números têm um papel malicioso, que é o de dinamizarem a economia acicatando desejos de ter maiores quantidades, sempre mais, sempre mais do que o vizinho, o colega, o rival, o concorrente. E como ela funciona nos cálculos económicos reduzindo o que não é ela, pode neste acicatar desligar-se de ser preço, de ser meio de troca, tornar-se especulação, com o seu factor narcísico inerente ao desejo de posse.
4. É claro que muito poucos chegam perto de serem o mais rico do mundo, mas os campeonatos de milionários multiplicam-se por países e por especialidades de negócio, em guerras sem quartel que devastam economias, como se viu em 1929 e em 2008, de que padecem os milhões que votaram Brexit e os que querem trampa americana, vítimas dessa ‘ideia louca’ de que ser-se milionário é o melhor que há no mundo, que as lotarias entretêm nos que sacrificam perseverantes à deusa Sorte, boa consciência dada pelas “santas casas da misericórdia”!.
5. O problema desta loucura devastadora não é a falta de solução, esta existe, chama-se regulação, existe certamente no direito financeiro e em teorias económicas minoritárias: trata-se de prever a sua aplicação, uma espécie de ‘código da estrada’ da circulação da moeda para lhe evitar acidentes, as catástrofes que são as crises, as fomes, as epidemias dos pobres. O que falta é a força politica necessária para regular efectivamente: os off-shores são a prova de como se foge às regulações que há, a prova das cumplicidades que tecem a impotência politica: quando se escolhe para alto posto politico da regulação da União Europeia o simpático que fabricou um off-shore mesmo nas barbas dela. Os que governam as economias que a especulação está devastando não são cúmplices dela, ao crerem que o que mais precisam é de investimentos para fazerem crescer os números dos PIBs? Não se vê que o que cresce é o desemprego, é a precariedade, é a juventude que vai vivendo de sandes na incerteza do futuro?
6. É a ideologia do ‘querer ser rico’ que mata os ideais. Dinheiro? nem de menos nem de mais.

Público, 19/07/ 2016

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Uma regra curiosa do Euro 2016



1. É apenas uma curiosidade, mas tem alguma graça. Dei por ela quando a França venceu a Alemanha e apercebi-me de que, se essa regra valesse na final, isso significava a vitória de Portugal.
2. A regra tem a ver com as seis selecções consideradas cabeças de série, a saber a França, a Inglaterra, a Alemanha, a Espanha, a Itália e Portugal, cabeças de cada um dos seis grupos iniciais. A continuação destes grupos nos jogos a eliminar foi feita de forma a que três delas, se ganhassem o seu grupo, ficavam dum lado e as outras três do outro, nos três jogos entre os oitavos e as meias finais. Aconteceu que a Inglaterra e a Espanha não ganharam, ficaram em segundo lugar, e por isso ficaram do lado errado, isto é, com as três que ganharam, França, Alemanha e Itália, que era o que teria sucedido a Portugal se em vez de primeiro ou terceiro ficasse também em segundo.
3. A regra passou-se então apenas entre os 5 cabeças de série e enuncia-se assim: sempre que um deles foi eliminado, o seu vencedor foi eliminado no jogo seguinte. A Inglaterra foi eliminada pela Islândia, a qual foi eliminada a seguir pela França. A Espanha foi eliminada pela Itália, a qual foi eliminada a seguir pela Alemanha, a qual foi eliminada a seguir pela França. A regra é empírica e só se verificou depois do aleatório que há em cada jogo por definição. Ninguém tendo eliminado Portugal, se ela prevalecesse na final, a França seria eliminada por Portugal, campeão da Europa. E assim foi, para nosso grande gáudio!
4. Esta regra permite comparar a sorte/azar das diversas equipas. Quem teve azar, perdendo, foram a Espanha e a Inglaterra, segundas nos seus grupos e logo eliminadas no primeiro jogo. Enquanto que as outras três tiveram todas igual sorte, dois adversários cabeças de série, ganhando ao primeiro e perdendo com o segundo. Se a sorte de Portugal foi ter ficado em terceiro no seu grupo e portanto só poder encontrar um cabeça de série na final, essa sorte foi travada de azar ao perder logo o seu melhor jogador, daqueles raros que decidem desafios, além de jogar em casa da super favorita que acabara de vencer os campeões do mundo. Não foi só sorte ter ganho a final sem Ronaldo, foi também tripa!
Público, Cartas à Directora, 18/07/2016