quarta-feira, 31 de maio de 2017

Porquê há crises financeiras ?


 
um teste de fenomenologia sociológica

Algumas teses de fenomenologia das sociedades contemporâneas
O motivo de duplo laço da cena do mercado
A propriedade do dinheiro
Se as finanças perdem o ‘motor’ económico


1. Quando escrevi, em 2007, sobre a economia como ciência terapêutica, ignorei as finanças e quando escrevi, para o Expresso, sobre a especulação financeira, ignorei a minha fenomenologia dos duplos laços. Aliás, no Jeu des Sciences, os duplos laços da economia eram entre as técnicas do engenheiro e o mercado do economista, também sem isolar as finanças; desde novo eu sabia que havia um instituto de ciências económicas e financeiras (hoje ISEG, das finanças à gestão), sem entender bem a diferença: entre duas ciências? não são a mesma? A crise incita-me a tratar da questão, nos limites simplistas duma abordagem geral de leigo, é claro.
2. A questão – porque é que há crises financeiras? – vale, a meus olhos, como um teste ao interesse que pode ter a minha proposta duma fenomenologia geral em termos de duplos laços aplicada à complexidade sociológica inextricável das sociedades contemporâneas, de que a economia é apenas uma componente; pode esta fenomenologia ensinar algo que de outra maneira seja só a confusão de argumentos que se sabe, cada um puxando a brasa à sua especialização e ninguém tendo possibilidade de a globalizar suficientemente, justamente por ser especialista? Por ora não sei a resposta (mas peneiras não me faltam): este ‘suspense’ faz parte do gozo intelectual de escrever para compreender. Creio justificado o interesse duma fenomenologia dos duplos laços nos outros campos de conhecimentos, tanto em física e química (mormente a questão do laboratório e da centralidade das equações / medidas das suas variáveis), biologia, linguística, antropologia e psicanálise, como aliás na maneira de estabelecer correlações entre eles, o que também não é evidente hoje em dia: os cientistas por estarem em geral bloqueados pelo respectivo paradigma em relação aos de disciplinas vizinhas, os filósofos por dependerem do que os cientistas acham e não terem recebido a liberdade de pensar as ciências além dos paradigmas laboratoriais, liberdade essa que me veio, por um lado, de ter uma formação de base científica (engenheiro civil) sem ter uma formação de base filosófica e, por outro, de ter descoberto – através da problemática estruturalista da linguística saussuriana[1] – Derrida e Heidegger como permitindo abordar estas questões gerais suscitadas pelas grandes descobertas científicas do século XX. Mas há que dizer que esta fenomenologia com ciências deixa estas na autonomia dos respectivos paradigmas, não sobrepõe argumentos mas coloca-os aonde as ciências não vão, além dos paradigmas laboratoriais, onde se quedam porque é onde sabem. Vamos então à questão, começando por três ou quatro prolegómenos recapitulativos de fenomenologia sociológica.

Algumas teses de fenomenologia das sociedades contemporâneas
3. Uma tese sobre as sociedades contemporâneas consiste em dizer que elas deixaram de ter a sua coesão enquanto sociedade em lógicas dependentes das estruturas de parentesco, na Europa com uma classe dominante aristocrática que transmite a propriedade e o respectivo poder genealogicamente com as alianças matrimoniais e com um laço religioso englobando-a com as classes produtivas, já que uma lenta revolução estabeleceu três laços transversais aos vários sectores de cada sociedade: o do mercado, o da regulação pelo Estado e o da escola e da língua e dos médias de massa, desde os livros e os jornais até aos de sons e imagens. Quando há crise, é nestes três laços que ela se manifesta.
4. Consequente desta, outra tese consiste em dizer que acabaram as casas, unidades sociais (mormente agrícolas e artesanais) em que os paradigmas dos usos dizem respeito tanto à ordem do parentesco como à da actividade económica, esta tendencialmente em autarcia, tal como as regiões em torno duma cidade (Lisboa alimentada pelos “saloios”), havendo escola e mercado apenas em sectores marginais urbanos. A revolução industrial, suscitada essencialmente pela invenção da máquina a vapor durante o seu primeiro século e depois pela da electricidade e máquinas com motor eléctrico (bem como do betão armado), criou dois (relativamente) novos tipos de unidades sociais cindindo as antigas casas, as instituições, em que se tem um ‘emprego’ de trabalho especializado, e as famílias, multiplicando os prédios de apartamentos das ditas classes médias. É nesta pertença a mais duma unidade social – família, escola, emprego – contra a clausura das casas de antanho, multiplicação de laços quotidianos com autoridades diferentes, que consiste a liberdade específica do indivíduo moderno.
5. É também tese aqui, contra o hábito das ciências das sociedades, que uma sociedade é composta, não de populações nem de indivíduos as modernas, é composta das unidades em que estes são socializados como indígenas pelos paradigmas dos respectivos usos que aprenderam. As instituições organizam-se por regra em sectores diversos com laços entre si (alimentação, saúde, alojamento, construção, transportes, e por aí fora), mas as que dizem respeito aos três laços transversais – escolas e médias; repartições de Estado administrativas, judiciais e de segurança; bancos e seguros – criam laços que tendencialmente atingem todos os sectores. O que aconteceu nos anos 60 e 70 do século passado, como libertação de mulheres e jovens e de sexualidades proscritas, foi o ultimar da quebra das ‘casas’, do domínio do ‘parentesco’ sobre o ‘económico’, do patriarcado do ‘pai’ como ‘patrão’, a individualização que a escola e o salário tinham trazido aos homens generalizou-se às mulheres[2]. Ao nível dos usos quotidianos deu-se uma ruptura entre os saberes de duas gerações, a dos pais e a dos filhos: automóveis, electrodomésticos, televisão, pílula feminina, todos com efeitos de libertação individual. Mas também, se dantes enriquecer resultava ou de herança no parentesco ou de trabalho empresarial na economia, agora esta dirige-se directamente aos indígenas, suscitando o desejo de ser rico: à generosidade dos hippies da primeira geração libertada de jovens sucedeu a dos yuppies dos anos 80.
6. Foi no início dos anos 70, se bem me lembro, que se começou a falar de ‘multinacionais’, fenómeno que cresceu fortemente depois, com o laço de mercado e em parte o dos médias (em inglês ou com tradução) a ultrapassarem as fronteiras, o que as emigrações faziam havia séculos (escravatura e criação das Américas), mas agora enlaçando também e sobretudo as populações que não emigraram: cosmopolitismo – fim do domínio dos antepassados de parentesco e do sagrado correlativo, substituído este pela cultura histórica (autores, invenções) e mediática – implica ambas as coisas, quer as culturas dos que emigram, quer as dominâncias dos capitais e das mensagens multinacionais sobre os nacionais, ou ‘sobrenacionais’ (‘sobre’ mais do que ‘inter’), que a reacção em geral dos que são invadidos em suas fronteiras é por regra reacção de neo-colonizados: basta ver como todo o mundo asiático adoptou a gravata europeia que ignoravam. Também este cosmopolitismo tem como consequência a multiplicação de alianças entre Estados, nomeadamente a União Europeia, a minorar a sua impotência sobre o além fronteiras, mas consequência também que as guerras entre grandes potências se tornaram improváveis, elas fazem-se “aos bocados”, regionais, como diz com humor lúcido Francisco de Roma.

O motivo de duplo laço da cena do mercado
7. Lembremos o motivo de duplo laço: trata-se duma unidade dupla que se move, altera, composta de elementos diversos ligados entre si de maneira a ser capaz de movimento numa cena de circulação aleatória, a qual determina a ‘anatomia’ da unidade em duplo laço; por um lado, laço motor repetitivo que dá a energia do movimento, por outro, laço aparelho, com regras recebidas da cena, guiando os movimentos da unidade face às outras que também circulam. O tráfego da estrada com automóveis, motos e camiões, dá para visualizar. ‘Unidade dupla’ implica que se trata de laços cuja anatomia é regida por duas leis indissociáveis (nem ‘motor’ nem ‘aparelho’ pré-existem por si só, separados, apenas um com o outro) que são também inconciliáveis (no caso dum automóvel, o ‘motor’, os cilindros regidos por uma lei termodinâmica dos gases em explosão, são hermeticamente fechados para evitar danos no tráfego). Os três laços transversais das sociedades contemporâneas regulam as três lógicas mais gerais da circulação social: o mercado a dos bens, a escola e médias a dos discursos e o Estado a da ordem e segurança do conjunto (tanto unidades sociais como indígenas).
8. Trata-se agora de tentar caracterizar a cena do mercado como laço que regula a circulação dos bens: produzidos numa fábrica, por exemplo. As oficinas de produção e os escritórios de planificação são um laço interno à fábrica, com autonomia relativa ao mercado: a sua lei de produção de coisas úteis é de ordem técnica, depende da figura do engenheiro. Mas a montante e a jusante este laço enlaça com o do mercado, quer nas compras de máquinas e matérias primas, quer na venda dos produtos enquanto mercadorias, segundo preços dependentes dos custos envolvidos na produção, dos salários dos trabalhadores e dos lucros esperados (além dos empréstimos à banca, impostos, etc.). Antes e depois do laço da produção (repetitiva: cadeias de montagem, por exemplo) que é o ‘motor’ da empresa, o laço empresarial do mercado regido pelo economista, está atento às oscilações da procura (joga com a publicidade) e possibilidades de extensão da oferta a novas regiões, exportações quiçá, e por aí fora. Que são indissociáveis, não dois laços mas um e duplo, salta à vista; a sua inconciliabilidade é menos visível, mas sente-a o engenheiro nas exigências constantes do economista de baixar custos e nas ameaças que elas representam para a qualidade que ele, engenheiro, deve assegurar. Sentem-na também os trabalhadores, já que os seus salários, que são a contrapartida do seu papel imprescindível na produção, são vistos pelo economista como ‘custos’ a baixar. Foi aqui que Ford percebeu que os seus trabalhadores também fazem parte do mercado pelo lado das famílias e por isso da procura de carros: aumentar-lhes os salários era aumentar também as vendas, desde que se enxergue mais o mercado, além dos muros da fábrica: a inconciliabilidade jogando com a indissociabilidade, questão de imaginação.
9. É o que temos que fazer também aqui, olhar a cena do mercado como circulação das mercadorias produzidas aquém dele, em ordem a serem compradas e saírem do mercado, para serem usadas. Também o mercado é um duplo laço entre vendedores e compradores, moedas em troca de mercadorias, as quais, uma vez compradas, saem do mercado, vão aos usos para que foram fabricadas, quer em famílias, quer em outras instituições, que tanto podem ser de duração mais ou menos longa, roupa ou máquina, como de consumir logo, se for comida, por exemplo, enquanto que as moedas tornam o vendedor por sua vez comprador de outra mercadoria, nunca saem do mercado, ainda quando depositadas em bancos só valem como potencialidade de compra. As mercadorias são pois passageiras enquanto tais, entram no mercado e saem, enquanto que a moeda permanece no mercado, repete-se como o seu ‘motor’, já que sem ela não há movimento de troca: ela só vale em relação ao mercado, constitui o laço que dá o movimento com a energia dos desejos de compra e de venda. Este laço é indissociável do outro, o das mercadorias e seus preços, que são elas que são movidas, dumas mãos fabricantes para outras que as usam em suas unidades locais: laço que é ‘aparelho’ que, com a troca de moedas, liga compradores e vendedores o tempo duma dada venda, fornecendo uma língua que ambos têm que conhecer, a língua (económica) dos preços correntes, este termo indicando que há uma oscilação maior ou menor destes e que a necessidade de os conhecer é inerente aos interesses de ambos os lados da venda / compra, que têm uma relação antagónica em relação ao preço (que depende, é claro, da qualidade), isto é, à quantidade de moeda que o comprador deixa de ter e que o vendedor passa a ter. Ainda quando se trate de uma pechincha, a relação de ambos com a moeda (com o preço) é sempre inconciliável, poderia ser mais barato, acha o comprador, e mais caro para o vendedor, mas só porque o mercado os interessa a ambos indissociavelmente: ninguém pode viver em autarcia numa sociedade de grande especialização de trabalhos, tem sempre que comprar quase tudo aquilo que usa e para isso tem que ter uma especialização do lado das vendas que lhe garanta um salário.

A propriedade do dinheiro
10. [cito “As duas faces da moeda”] A tradição da esquerda tem dificuldade em aceitar o dinheiro, mas tal como a electricidade na dimensão técnica, é impensável a contemporaneidade na dimensão social sem ele, já que dá uma liberdade elementar, a de escolher o que se quer e precisa, dentro dos limites do orçamento familiar. Dos números a moeda recebe a razão de calcular, de estabelecer preços para as trocas diárias, segundo custos e tempos de trabalho. Esses números permitem uma ciência em que a moeda, a sua face monetarista, reduz tudo o que não é ela: de tudo o que seja mercadoria, só retém quantidades e preços, única maneira de encontrar regras no complexo mundo das trocas; enquanto tal, a economia não sabe nem de biologia nem de antropologia nem de politica, não sabe de fome, de doença, de escola, nem de bem e mal. Mas a moeda tem outra face, que a torna diferente dos números e das letras e das palavras e das músicas, sistemas que se podem comparar com o seu. Estes sistemas, embora tenham artistas que jogam melhor do que o comum das gentes, não têm donos, pertencem aos usos de todos como queiram, são parte da liberdade de sermos humanos em sociedade. Mas a moeda só pode funcionar como reguladora de trocas, uma das partes de cada troca, a outra sendo uma mercadoria, só o pode fazer por ser propriedade de quem a usa para comprar e tornar-se propriedade de quem cede a mercadoria que vende. Não há dinheiro sem dono, faz parte da lógica da moeda, da sua positividade, senão não serve para trocar, não é moeda.
11. A propriedade do dinheiro, logicamente, é como a de qualquer coisa ou edifício, é inerente a toda a unidade social que se estabeleça, família ou empresa, mas só vale em relação ao mercado, a uma ida possível a comprar algo para seu uso: numa ilha deserta ninguém é rico (mas pode ler se tiver livros, cantar música ou fazer cálculos). Faz todavia parte da lógica da tabuada que os números sejam sempre maiores do que os precedentes, o que dá à moeda um papel malicioso, que é o de dinamizar a economia acicatando desejos de ter maiores quantidades, sempre mais, sempre mais do que o vizinho, o colega, o rival, o concorrente. E como ela funciona nos cálculos económicos reduzindo o que não é ela, pode neste acicatar desligar-se de ser preço, de ser meio de troca, tornar-se especulação, com o seu factor narcísico inerente ao desejo de posse, sem o qual não há moeda, como se disse. É aqui que a esquerda tem razão no diagnóstico, o problema é que o remédio radical contra a propriedade, aonde a revolução o levou a cabo, além das censuras ditatoriais, estancou o dinamismo das economias. Ora, a lógica dum duplo laço, dum aparelho inconciliável com um motor donde recebe o movimento, não pode ser a de cortar com ele, mas a da regulação do movimento, no caso a regulação do mercado.
12. O que se chama pejorativamente ‘ganância’ é pois uma componente intrínseca dos mercados, aquém da moral[3], que encontra terreno fértil na respectiva componente financeira, necessária nomeadamente para empréstimos de unidades sociais que não disponham de capital para investimento da produção, edifícios, maquinaria, matéria prima, salários e outras despesas antes da rotina de produção poder financiar-se com as vendas feitas. Esta é a função elementar e essencial da banca, alugar dinheiro durante um certo prazo, emprestá-lo para tornar possível a produção. Carecendo de produção e portanto de mercadorias, em vez de vender (coisas), a banca aluga (dinheiro): é uma outra lógica, bem antiga aliás[4], que se sobrepõe à do mercado, e que, pressupondo dinheiro já acumulado previamente, permite ganhar dinheiro sem passar pelo trabalho de produção (nem de distribuição comercial). Resultando da produção e dos lucros desta, as finanças são por assim dizer subsidiárias do duplo laço técnica / economia, embora, é claro, do lado desta. Mas sem produção! Essa é a diferença: sendo parte essencial do mercado enquanto factor da economia, a banca (e as bolsas, etc., aqui limito-me à banca pelo pouco que sei), as finanças não têm produção, são relativamente autónomas em relação a esta, como a economia não é. E por aí oferecem às economias tentações financeiras, que incidem justamente na relação inconciliável entre lucros e salários, entre accionistas e trabalhadores, contra estes, obviamente. Porque o que é menos óbvio mas mais democrático, é que não há nunca ‘salários justos’ a não ser, como na fábrica francesa de envelopes Pocheco do filme Amanhã, ‘justamente’ quando todo o lucro é investido, após ajustados os salários[5]. Isto é, quando a empresa é justa, salários solidários como solidário é o seu funcionamento.         

Se as finanças perdem o ‘motor’ económico
13. Ora bem, aqui o leigo chega aos limites do seu saber e arrisca: se for verdade que o que está em questão na crise financeira recente é a falta de relação dos capitais financeiros com o mercado propriamente dito, o da economia de produção e consumo. Esta tem sempre limites, os da procura que pode estabilizar-se ou baixar, a que se obvia estendendo as suas redes a outras zonas e a outras produções; também as bolsas de acções jogam em função da saúde económica das empresas respectivas, podendo sem dúvida enganarem-se os jogadores e perderem por causa disso. As agências de ranking foram criadas, parece, para obviarem bem ou mal (parece que se enganaram redondamente no que esteve na vertigem da crise) à falta nas bolsas dum referencial económico dos mercados, de línguas de preços. Mas a história das “subprimes” parece ser típica duma ‘produção financeira’ sem relação com a economia, apenas com dívidas mal paradas de trabalhadores de fracos salários. Estes, por sua vez, futuros votantes em Trump por certo, eram já vítimas do desacerto decisivo da teoria económica da escola de Chicago que convenceu Reagan e Thatcher a seguirem politicas favorecendo a retribuição dos accionistas em detrimento dos salários, isto é, a financeirizarem as economias, perdendo o fito do mercado e, cúmulo das coisas, chegou-se a um ponto em que toda a minha gente fala em “mercados” para designar esta bolha deles que, sem mercadorias, não é nenhum mercado, basta que não tem a ver com nenhuma língua económica de preços. É a esta ausência de relação ao verdadeiro mercado em que se fazem trocas, à produção como seu motor nas empresas, que se chama especulação. [Esta palavra, de ‘espelho’ (speculum), significou o alvo duma crítica da filosofia medieval, do seu jogo conceptual interno sem reenvio para as coisas, para a dita realidade, jogo que se alimentava de si mesmo. Um aforismo crítico célebre, que ilustra a posição nominalista dita “navalha de Occam”, dizia que “os entes não devem ser multiplicados além do necessário”, esses ‘entes’ sendo abstracções supostas reais; tal aforismo poderá ter alguma utilidade no que diz respeito à tal engenharia financeira inventada, como as “subprimes” de má memória]. A moeda do mercado só é motor deste porque desejada em termos de preços, compras e vendas. Há dois outros sectores das economias modernas, as terras e os trabalhadores, que são igualmente especulativos neste sentido, como foram diagnosticados por Karl Polanyi no seu livro notável A grande transformação. Nas origens politicas e económicas do nosso tempo (1944) de forma desconcertante à primeira vista. O seu argumento é que nem as terras nem os humanos são feitos para serem mercadorias, têm existência fundada e consistente previamente ao mercado. Assim como a moeda também não foi feita para ser mercadoria de outras moedas nas guerras de câmbio, nas especulações exclusivamente financeiras (os engenheiros devem ter vergonha de ouvirem chamar a estas ‘engenharia financeira’!), também não há critérios de mercado em relação a terras, sejam ou não de agricultura: sabe-se bem como os terrenos favoráveis em meios urbanos ou turísticos sofrem especulações desenfreadas, sem critérios de regulação que haveriam de ser políticos, como o são as decisões dos salários: ou poder patronal tirano em tempos de desemprego, ou greves, ou concertação de contratos; aqui, o especulativo assinala-se nos salários milionários dos ‘bons’ gestores. Mas como se justifica o argumento de Polanyi em relação à moeda, já que ela não é prévia ao mercado? Justifica-se pelo lugar que ela tem neste: ligada à lista dos preços, ela tem, no duplo laço que é o mercado, o papel de motor regulador das trocas: é isso que a impede de ser mercadoria. Na especulação financeira, ela é jogada arbitrariamente (quero crer) sem relação ao ‘real’ da economia: sem língua de preços, quer-se sempre mais, como era nos saques (que a troca monetária substituiu). O que especulação aqui significa, poderá ser dito assim: trate-se da terra, cuja fecundidade nos dá aquilo que nos alimenta e das ameaças sobre o ambiente climático poluído, trate-se dos trabalhadores assalariados, que são antes demais cidadãos, trate-se da moeda como mecanismo de regulação dos mercados, da racionalidade possível das trocas, nenhum destes três domínios, segundo Polanyi, deve ficar entregue ao que se chama “leis do mercado”, mas ser submetidos a regulação política, pelos Estados ou suas alianças nesse sentido.


[1] Na minha tese de doutoramento (1989), com Luís Lindley Cintra, Mª Alzira Seixas, Vítor Aguiar e Silva, Fernando Gil, António Marques e Malaca Casteleiro. Apadrinhada pelos dois primeiros, doutorei-me em Linguística, porque não consegui arranjar um professor de filosofia para a dirigir, como aliás F. Gil e A. Marques, os dois filósofos do júri, não conseguiram arguir, a problemática pós-estruturalista era então desconhecida em Portugal.
[2] Começou-se a falar de ‘género’ para as relações sociais entre masculino e feminino, que o termo ‘geral’, ‘género’ diferente de ‘espécie’, ‘general’, era até aí feudo patriarcal, sem ‘generosidade’.
[3] Os espirituais preferem o ‘espírito de pobreza’; conceberam-se historicamente economias comunitárias nessa base, em regra não duraram o teste das gerações sem se abastardarem (frades pobres em ordens ricas): ela não é adequada às sociedades humanas, em que os santos são excepção.
[4] Já no século VII antes da nossa era, o livro bíblico do Deuteronómio (cap. 15) propunha medidas de regulação jurídica dos empréstimos, protegendo os que não conseguiam saldar as suas dívidas.
[5] 114 pessoas, dois terços operários, fazem dois biliões de envelopes por ano, 22 milhões de euros por ano de volume de negócios, crescimento de 3% por ano desde há 10 anos, salários de 1 a 4, a partir do salário mínimo aumentado de 15%, uma economia fortemente ecológica.


Ser e movimento: o verbo for




1. Conhece o verbo for em português? À primeira vista parece que não existe, a gramática de Cândido de Figueiredo diz que há quatro conjugações, em –ar, –er, –ir e –or, e nesta só existe o verbo pôr e seus derivados, como propor, compor, etc. Mas se eu digo, ‘se eu for...’ ou ‘eu fui...’, que verbo é esse? Depende do resto da frase, dirão: ‘se eu for a Lisboa’ ou ‘fui a Coimbra’, é o verbo ir, ‘se eu for casado’ ou ‘eu fui aluno do Pedro Nunes’, é o verbo ser. Estes dois verbos são de morfologia irregular, com radicais diferentes, ‘for’ pertence a um deles. Não é só em português, também em francês e castelhano, herdeiros igualmente do latim. Só em certo tipo de tempos e modos, pretéritos perfeitos simples e mais que perfeitos e alguns conjuntivos, mas que nem sempre coincidem. Em qualquer dos casos, trata-se de formas diferentes de dois verbos, ‘ser’ e ‘ir’, que aparentemente não têm nada a ver um com o outro, tanto mais estranho quanto em latim só o verbo esse é que o tem, não o ire (verbo que por sua vez não existe em italiano, apenas andare). Seria curioso, mas acima das minhas capacidades, saber se houve em tempos um verbo ‘fore’ em latim (não há verbos em ‘–ore’ em latim!) que depois tenha sido acolhido por certas morfologias do esse.
2. O que permanece de curioso, é que estas línguas vindas do latim tenham incorporado o ‘for’ não apenas no ‘ser’ e ‘être’, mas igualmente no ‘ir’ e ‘aller’, curioso além da gramática, para o filósofo justamente: dizem uma enigmática relação, não entre ser e tempo, como quereria Heidegger se não desprezasse as línguas latinas do ponto de vista filosófico, mas entre ser e movimento de andar, de mudar de lugar. Mas esta ‘mudança’ não parece comparável com ‘ser’, nem com ‘estar’, com a estabilidade, como quem pergunta: ‘como estás?’, respondendo-se muitas vezes ‘vou andando’, como quem diz que enquanto posso mudar de um lugar para o outro, tenho estabilidade que chegue para ‘estar’ vivo. O que não deixa de ser engraçado, porque andar é extremamente instável, enquanto um pé está no chão o outro está no ar. Mas estar vivo é a minha condição para ‘ser’, o ‘meu cadáver’ não serei eu, expressão que nunca poderei dizer no presente, num presente como aquele em que se pudesse dizer ‘estou morto’ (como tentou um conto de Edgar Allan Poe que Barthes analisou, O caso do sr. Valdemar).
3. O verbo ‘for’ é mais forte do que esta relação entre ‘ir’ e ‘estar’, que ele se tenha imposto em várias línguas latinas (e no romeno?) sem que pareça haver para tal uma fonte latina. O que é espantoso é esta relação forte entre ‘ser’ e ‘ir’, entre ser e mover-se, manifestar-se num enigmático fenómeno de criação de morfologia verbal, relacionando dois dos verbos mais usados das respectivas línguas – do verbo ser para o verbo ir – e em várias línguas independentes entre elas (uma das quais nem tem o verbo ir), é esta questão que dá que pensar. Assim a modos como a relação do tempo com os passos, com o andar, que me veio em Os passos que o tempo dá, neste blogue. É que ‘ser’ e ‘movimento’ foram relacionados no motivo mais forte da filosofia aristotélica, o de ousia, que diz o ‘ser’ (substância e essência) para explicar o ‘movimento’, a alteração das coisas, dos vivos nomeadamente. Que as línguas sejam imotivadas implica que não haja resposta a esta questão? Então, e os ‘passos’ dando o verbo do ‘tempo’, aí a língua não é imotivada? Ou também aí não se ‘explica’?

sábado, 20 de maio de 2017

Heresia e ideologia



           1. É uma curiosidade: são duas palavras que, uma na Antiguidade helenística, a outra nos inícios do capitalismo, tiveram um destino equivalente.
2. Heresia, do termo grego hairesis – que indica “preferência por uma doutrina, escola filosófica, médica, religiosa, seita politica” (Magnien / Lacroix) –, designava as escolas de pensamento espiritual no império romano, na vertente grega culturalmente dominante; assim as escolas de filosofia platónica ou estóica ou epicurista, bem como outros cultos vindos do Médio Oriente, Síria, Pérsia, incluindo o novel movimento cristão, que num dos seus textos da viragem do 1º para o 2º século, chamado Actos dos Apóstolos, várias vezes utiliza o termo, referindo grupos de opinião como fariseus e saduceus e, inclusive, no cap. 24, vers. 5, a si mesmo se chama ‘heresia’ (traduzido por ‘parti’ na Bíblia de Jerusalém), embora em designação de adversário. Em meados desse 2º século, já intelectuais cristãos, como Justino e Ireneu de Lião, em polémica com outros intelectuais cristãos, usam ‘heresia’ e ‘herético’ dando-lhe um sentido de erro doutrinal que, tornado pejorativo, veio a reforçar-se quando o cristianismo tomou o poder religioso.
3. Ideologia, ciência das ideias, foi um termo inventado por Destutt de Tracy, para designar a sua escola de filósofos franceses revolucionários e materialistas (1796), substituindo na palavra psicologia o grego psyché, alma, por ‘ideia’, termo filosófico europeu que Descartes fizera vingar (como se o pensamento deste e o próprio termo ‘ideia’ fossem materialistas!). Mas os Ideólogos criticaram Napoleão Bonaparte que proibiu o ensino da cadeira deles “ciências morais e politicas” no Instituto de França, contribuindo para tornar na opinião pública pejorativa a designação da escola filosófica sua adversária. Foi o uso que Marx deu ao termo ‘ideologia’, como sistema de ideias seguindo os interesses das classes sociais, que lhe deu vida até hoje.
4. Trata-se portanto nos dois casos de um termo que veicula uma noção de corrente de pensamento ou de opinião e se vê subjugado no seu sentido anterior por uma corrente adversa que veio a tomar o poder intelectual: a heresia e a ideologia são as margens de opinião excluídas por ortodoxias poderosas, não tolerantes da liberdade de expressão. 

domingo, 7 de maio de 2017

A mãe esquecida pela língua materna



1. Em dia da Mãe, um paradoxo. Fomo parte dela, dentro dela, e soubemos disso. Muitas células nossas então, as dos pulmões ou do tubo digestivo, por exemplo, não funcionavam ainda, estavam à espera do parto, de deixarem de ser ‘parte’, se apartarem. Mas não assim os neurónios que já havia, não eram muitos mas as sinapses que tinham já os relacionava e recebiam nervos da pele e dos ouvidos, entre outros, o que lhes permitia sentir, saber o seu envólucro materno. O parto foi lancinante, os alvéolos dos pulmões rasgaram-se para respirarem pela primeira vez e gritaram, depois a falta da alimentação directa, de sangue a sangue na placenta, fez-se sentir como fome, e tudo isto o bebé soube, como o gosto de mamar como mamífero. E por aí fora, durante meses e meses, a aprender a olhar, a mexer e gatinhar, a fazer tem-tem, a dar passos agarrado e depois andar solto, as primeiras palavras, em tudo isso ele foi ser no seio da mãe, ainda não ser no mundo.
2. Mas isso nós esquecemos, todos nós, salva loucura profunda, de corpo ainda em pedaços. Ninguém se lembra, que as memórias mais antigas são de coisas capazes de serem ditas, precisam da língua dita materna, e eis o paradoxo: foi ela quem fez o corte da memória. Ouvir uma criancinha de 4 ou 5 anos, ou mesmo mais, a falar na sua maneira de dizer, espantarmo-nos do rigor conseguido de tantas e tantas regras, fonológicas a fazerem as palavras, morfológicas a conjugarem verbos, plurais e femininos, sintácticas com verbos, substantivos e preposições e conjunções, quantas regras certas que ninguém nunca lhes ensinou, esta admirável língua materna, igual nas regras à de toda a tribo. Deveríamos nos comover, de tal forma é espantoso. Como é que se aprendeu, como é que este ‘de fora’ tão complexo se tornou ‘dentro’? Agora, seres no mundo, dizendo ‘eu’ nessa língua materna, mas pagando o preço do esquecimento do que foi ser no seio da mãe, ainda não ‘eu’, que a língua ainda não havia e por isso, muito provavelmente, não podemos lá chegar, a não ser talvez em sonhos, que então serão pesadelos.
3. Se a língua é materna, ela é também o fim da maternidade estrita.