quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

A primeira verdade das ciências europeias


1. Será que se pode dizer que existe uma, embora não de ordem cronológica? Julgo que é a tabela periódica de Mendleeiev. O raciocínio é simples, é o seguinte. Onde quer que haja pensamento, condição de ciência, em qualquer língua, a ordem dos números, ainda que não ‘exista’ formulada, é inegável: uma coisa, mais outra são duas, e outra três, e por aí fora, adição e subtracção, multiplicação e divisão, são logicamente imanentes, qualquer que seja a maneira das línguas o dizerem ou nem sequer.
2. Não creio que isto seja uma ‘verdade científica’, mas é condição delas. Ora, a tabela periódica de Mendleeiev (1869) constrói-se segundo esta ordem natural dos números em termos de protões e de neutrões, ainda que haja complicações com os isótopos além desta lista dos átomos que começa no hidrogénio e segue uma ou duas dezenas além do número 100, sem que nenhum falte. Mas o sábio russo não sabia dos átomos, que só vieram no século seguinte, usou o critério do 'peso atómico'. Com uma outra surpresa: de 8 e 8 colunas (7 para ele, os gases raros, 8ª coluna, também não eram conhecidos) os elementos químicos da tabela tinham o mesmo tipo de propriedades, o que tornava 'científica' a tabela, não apenas uma sequência dos números inteiros a ordenarem-nos (mas já se andava à procura da coisa desde o início do século).
3. Que as moléculas compostas destes átomos ‘naturais’ sejam de possibilidades indefinidas, além das quantidades de cada uma – sílica das rochas, água dos oceanos, gases vários de atmosferas – dá para surpresas quanto à composição de astros, mas não para que haja outros átomos do que aqueles que a tabela descreve.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Hannah Arendt, crítica de Heidegger sobre o ‘mundo’ do ser no mundo




1. Descobri que lia o I Heidegger com os óculos que emprestava ao II Heidegger, lia o ser no mundo à luz do retiro do ser, que foi o que me galvanizou em 1989, ao escrever o Heidegger, pensador da Terra (para o centenário dele, por encomenda duma editora que faliu, por isso só foi editado em 91).
2. Não se trata aqui duma auto-crítica, mas duma reavaliação. No texto anterior sobre Os ‘deuses’ de Heidegger, disse como ler especialistas me permitia perceber melhor a distância entre os textos dele e as minhas leituras interessadas, marcadas por outras leituras e questões, como este blogue atesta suficientemente. Ora, o que sucedeu nessa escrita aonde se ‘depositou’ o meu Heidegger, como se diz dos vinhos velhos, foi que Ser e Tempo foi abordado por um pouco cima, lendo certos capítulos e fiando-me em leituras doutros, em geral pouco preocupados com os textos do Heidegger do pós guerra, ficando por isso um tanto vago, já que não era então o meu interesse maior. Ora, nos 8 ou 9 anos que vieram com a escrita de Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida, foi emergindo o motivo do ser no mundo como uma forte ruptura com a oposição sujeito / objecto da filosofia europeia, que relacionei com a aliança dela com o laboratório da física, mormente na maneira como Kant introduziu Newton na sua Critica da razão pura[1]. A questão é: qual a força dessa ruptura em Ser e Tempo? Qual é a relação que o Dasein guarda com o ‘sujeito’, sendo certo que desaparece o motivo de ‘objecto’? Nos seminários dos anos 60 (Questions IV) parece haver um cordão umbilical do Dasein ao ‘sujeito’ que resiste à minha leitura (a comparação irónica com o ‘sem janelas’ de Leibniz é significativa!). À luz da diferença ontológica, entre o Ser ontológico e qualquer ôntico ente humano, como situar o Dasein? Se é um motivo ontológico, que diferença tem com qualquer ente humano? E com as ciências que se ocupam de humanos, biologia, antropologia, linguística? Por exemplo, as duas definições de humano na Política de Aristóteles, ‘animal politico’ e ‘animal com discurso’ (logos), referem-se aos domínios essas três ciências, enquanto que o ‘sujeito’ europeu não se refere a nenhuma: o ‘sujeito’ não é biológico nem social nem tem língua duma tribo. Ora, sabe-se que Heidegger é muito cauteloso em relação nomeadamente à introdução de antropologia nas suas análises (e com razão: seria inevitavelmente uma antropologia moderna, pelo menos de sociedades cosmopolitas, dado que ainda hoje as ciências das sociedades não têm confessadamente um conceito de sociedade que valha tanto para as tribos da etnologia como para as sociedades das várias civilizações históricas até às actuais). Então qual é o alcance do ser no mundo? Tratei-o alegremente, sem estas preocupações. Até que um destes dias li um texto tratando das diferenças entre Hannah Arendt e Heidegger que me fez saltar a questão: qual é o ‘mundo’ do ser no mundo?.
3. Trata-se duma conferência em Espanha de Seyla Benhabib (Harvard), El reluctante modernismo de Hannah Arendt. El dialogo con Martin Heidegger[2] que compara o texto de Arendt, Vida Activa, com Ser e Tempo, partindo duma carta a Jaspers em que ela conta como Heidegger levou o livro muito a mal, já que ela lhe apareceu pela primeira vez como pensadora e em desacordo com ele. Benhabib busca compreender em que é que consiste a desavença. Ora, do pouco que conhecia dela, sobretudo uma biografia, eu suspeitava que ela ficara aquém do ser no mundo mas verifico agora que ela escreveu que “é quase impossível oferecer uma explicação do pensamento de Heidegger que possa ter relevância politica sem um estudo elaborado do seu conceito e análise do mundo”. Mostra Benhabib como justamente o que ela propõe é outra interpretação do ser no mundo, achando insuficiente a proposta de Ser e Tempo, e é isso mesmo que provoca o desconforto do Mestre, a rebeldia da discípula sobre os seus próprios motivos. Os conhecidos motivos de Arendt relativos à actividade dos humanos são esclarecedores. O labor diz respeito aos cuidados do corpo, seu sustento e alimentação assim como higiene, ou seja diz respeito à condição biológica dos humanos que Heidegger ignora: nem o nascimento nem a alimentação são tidos em conta, nem em rigor a morte biológica, já que é a antecipação da morte que permite ao Dasein chegar à autenticidade (há assim um critério ético a jogar aqui), enquanto que perecer é próprio de todos os animais. O trabalho é a actividade que cria o ‘mundo’ em sentido heideggeriano, constrói-lhe uma habitação, edifícios e culturas, sendo a única dimensão dos humanos que Heidegger (quase) retém para substituir os ‘objectos’ de Husserl, os que lhe estão à mão e não apenas à percepção. Finalmente a acção é a actividade entre humanos em sua pluralidade, onde se situa a politica nomeadamente; bizarramente o Ser-o-aí-com (Mitsein) de Ser e Tempo é assinalado mas como um actor sem papel atribuído, o Ser-o-aí é descrito de forma solipsista, tal como a ‘alma’ de outrora ou o ‘sujeito’ europeu, acrescente-se. Lembrando-nos que Heidegger dizia que qualquer animal tem pouco mundo em comparação com o humano, é caso para dizer que o mundo do Dasein em Ser e Tempo também é poucochinho: do social que poderia corresponder ao mundo em que ele é lançado só tem a língua (supostamente no discurso, para antecipar a morte) e a utilização instrumental de coisas, Derrida ironizando algures que ele nunca é definido como vivo. Pode-se pensar que o cuidado é a categoria ontológica, existenciária, que cobre todas as suas actividades, que estas são ônticas, objecto de ciências, enquanto que Heidegger não sai da filosofia. A minha questão é saber se estas “actividades” de Arendt não pressupõem aspectos ontológicos interessantes para abordar os humanos como seres no mundo, sem ter necessariamente que fazer intervir condicionantes antropológicas das diferentes sociedades históricas.
4. Numa biografia publicada no centenário do nascimento de Heidegger, Thomas Rentsch diz que ele desenvolveu uma “teologia sem Deus”: “a prostração dos humanos num mundo inautêntico, cita Benhabib, a finitude da existência humana enquanto criatura destinada a uma vida de preocupação e finalmente o pensamento da própria finitude fundamental”. Enquanto que, deslocando o ser-para-a-morte para a natalidade, Arendt “ressuscita o quotidiano-ser-no-mundo com os outros como condição básica do ser humano [...] natalidade, pluralidade e acção revelam-se categorias que se opõem profundamente a Ser e Tempo”. Mundo negativo nele, positivo nela? Talvez, mas o que significa aqui ‘positivo’ e ‘negativo’? A dificuldade destas coisas é saber dos contextos da época, é a dificuldade de saber ler um texto de Galileu, por exemplo, sem deixar intervir a física posterior a ele que o leitor conhece e ele não. Romancistas católicos da primeira metade do século XX como François Mauriac, Georges Bernanos e Graham Greene testemunham dum mundo fortemente negativo que faz ressaltar a ‘graça divina’, pode-se pensar que Heidegger foi também educado nesse mundo. Mas quando ele pretende romper com o ‘sujeito’ (título a evitar, diz-se no § 10 de Ser e Tempo, como também ‘alma’, ‘consciência’, ‘espírito’, ‘pessoa’, ‘vida’, ‘homem’: tentativa de ter em conta a corporalidade humana sem o motivo do 'corpo', tradicional oposto da 'alma' e do 'sujeito'), situando o Dasein como existindo temporalmente no mundo, Sartre e Levinas testemunham da novidade que aí encontraram, a figura da ‘náusea’ nomeadamente no primeiro bem diversa da ‘positividade’ de Arendt. Pode-se aliás pensar que o ‘mundo do pecado original’ não seria totalmente descabido, com as leis da selva e da guerra a que se virá mais adiante que elas ilustram a negatividade do mundo heideggeriano), do ‘-se’ do diz-se, do ‘man’ (em alemão), do ‘on’ (em francês), assim como o Dasein autêntico deixa espaço para os ‘espirituais’ (que se convertem).
5. A questão é a de saber como testar essa ‘ruptura’ de 1927 quase 90 anos depois, tendo em conta o II Heidegger, o retiro do ser. Este motivo veio a afectar o Dasein? E as três formas de ‘actividade’ de Arendt, avançando em relação a Ser e Tempo, não ficarão aquém de Tempo e Ser, se o Dasein for doado pelo  Ereignis (que ocupa em 62 o lugar que até aí fora o do Ser)? Com efeito, se este motivo ontológico contém no seu sentido os motivos de ‘ser’ e de ‘tempo’, que são doados aos entes ônticos, como pode o ente humano ser excluído? Creio que o Heidegger dos anos 60 não o ‘excluía’ propriamente, mas que também não o ‘incluía’, deixando ver como o ‘sujeito’ ainda espreitava em sua ‘oposição’ ao mundo (como a ‘alma’ de outrora). Ora bem, o que é que significa onticamente a inclusão do ente humano na doação pelo Acontecimento (ontológico)? Significa duas coisas: que ele é gerado, parido, aleitado, por uma mulher que um homem fecundou, e alimentado em seguida constantemente, que ele é instituído como humano pela aprendizagem dos usos da tribo desse casal que o deu à luz. Estas duas coisas dizem que ele é instituído como ser no mundo dessa tribo (família, depois escola também, nas nossas sociedades). Mas então a tal ‘positividade’ de Arendt é também afectada: labor, trabalho e acção são motivos que resultam de se tomar o “ser no mundo com os outros como condição básica do humano”, ultrapassando o solipsismo do Dasein; por exemplo, o motivo da natalidade, da “iniciativa” do que nasce, resulta da doação de possibilildades pelo mundo (só terá iniciativa por aprender os usos dos outros: um bebé que nasce, nu e banhado de sangue, é uma ‘ruína’ a construir “com os outros”). Mas não conheço suficientemente a sua obra para avaliar o que a filósofa de Harvard chama o “relutante modernismo” de Hannah Arendt, para saber que lugar tem no seu pensamento o sintoma crucial do ser no mundo que é a aprendizagem – corolário ôntico, por assim dizer, do retiro da doação que ‘deixa ser’ a autonomia temporal de cada humano em suas possibilidades, abertas pelo seu mundo – ou se deixa aos filósofos esse tipo de questões para se dedicar às que têm a ver com a política e as suas catástrofes.
6. Mostrei nomeadamente no Manifesto (blogue Filosofia.com.ciências) como a lógica da biologia implica que, só havendo as moléculas de carbono de que são feitas todas as complexas moléculas das células (excepto a água) noutros vivos, plantas ou animais, todos os animais não apenas precisam de comer vivos para viverem como também as suas anatomias são estruturadas para isso, segundo a lei da selva, a mais geral de todas as leis biológicas que rege a alimentação. Igualmente, a aprendizagem, dependente da necessária aliança entre gerações que se sucedem, implica rivalidades que se sobrepõem com grande frequência às relações de aliança, tornando as sociedades, internamente e ainda mais face às estrangeiras, submetidas à lei da guerra. Estas duas leis, a segunda sendo sequência reelaborada da primeira, dão ao motivo de mundo um aspecto como que negativo, aquele que é muitas vezes colocado como ‘problema do mal’ ou ‘da violência’. A ética não lhe é prévia mas consequência: leis e razão são maneiras de se conjurarem esta negatividade do ‘mundo’, que é prévia à tal ‘teologia católica’ sem Deus que seria a de Ser e Tempo. Mas tanto a alimentação como a aprendizagem como imperativos sociais pré-políticos, digamos, são na ordem fenomenológica prévios à diferença entre concepções do mundo que seriam ‘positivas’ ou ‘negativas’, ardentianas ou heideggerianas. E que ilustram eles do Dasein de Ser e Tempo ? São ambos imperativos que, em vez de 'anteciprem' a morte, a diferem: a alimentação é o cuidado que adia quotidianamente a morte individual, a aprendizagem das novas gerações adia morte da sociedade; tais diferanças são mais 'antecipadoras' da morte, pois que têm efeito sobre ela, do que a que leva alguns à autenticidade, privilegiada por Heidegger em vista da diferença que se mostra ser ética. 
7. Quanto à questão da “teologia sem Deus” de Ser e Tempo”, não sei se e como ela perdurou como tal no II Heidegger, já que o motivo ontoteológico põe-na radicalmente em questão. Poderia pôr-se a hipótese de o nazismo ter aparecido a Heidegger, conservador pouco politizado, como resposta ôntica pagã inesperada duma superação da negatividade do ‘mundo inautêntico’ cristão, mas de que rapidamente se terá desencantado, tendo-se tornado o seu espantalho filosófico dos anos 30, para o que recorreu a Nietzsche, Hölderlin, outras artes, mas também a Heraclito, Parménides, Junger, Aristóteles, o que justificaria a minha pretensão em Heidegger, pensador da Terra (§§ 44-48) de que terá sido a adesão e posterior repúdio do nazismo o que o provocou à enorme viragem, dum Dasein solipsista, temporal mas não historicizado, para a História do Ser. Mas como as viragens nunca são integrais, acontecem a estruturações antigas que lhes resistem, a força do desafio da técnica nos anos 50 e 60 veio a revelar como tinha ficado um ‘buraco divino’ dessa primeira teologia que teve: se ele não tivesse providenciado para que a sua entrevista ao Spiegel não fosse publicada antes da morte de Hannah Arendt, esta teria ficado boquiaberta diante do “só um deus nos pode ainda salvar”.



[1] J. Vuillemin, Physique et méthaphysique kantiennes, P.U.F., 1955, demonstrou de maneira muito convin­cente a existência dum paralelo rigoroso entre a Analítica transcen­dental da Crítica da razão pura (1781) e os Princípios metafísicos da ciência da natureza (1786): a sua tese é a de que “pensamento físico e teoria do conhecimento não são senão um em Kant”: é um livro de argu­mentação muito cerrada, difícil de ler por supor um conhecimento aprofundado da história da física desde Galileu a Kant e das suas relações estruturais às filosofias de Descartes e Leibniz, pelo menos.
[2] ed. Episteme, S. L., 1996: trata-se de um dos capítulos dum livro com o mesmo nome.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Os ‘deuses’ de Heidegger


1. Foi uma quinta-feira de dilúvio e alegria, a da apresentação do livro Arte e Técnica em Heidegger, da especialista e tradutora reconhecida Irene Borges-Duarte (ed. Documenta), na livraria Assírio e Alvim, no Chiado de Siza. A leitura desse livro forneceu-me uma visão de conjunto do pensamento heideggeriano na sua elucidação da maneira do pensador as abordar às duas na sua comum technê (que em grego diz arte e técnica), para tentar entender algo que nele permanece equívoco. É certo que não posso saber as possíveis objecções que a leitura que ela faz de Heidegger levantará entre os seus pares especialistas, mas faço-lhe confiança, aquela de que necessito para aquilatar do que eu acrescento ao pensamento do pensador alemão, ao que o forço além dele por via de leituras de outros autores, nomeadamente Derrida e as ciências que tenho abordado, na esperança aliás de que se abram possibilidades novas em tempos urgentes. A certa altura, a autora cita de passagem uma minha afirmação sobre o ateísmo radical de Heidegger (lembro-me de, jovem estudante ignorante, ouvir dizer que então existiam dois existencialistas ateus, Sartre e Heidegger, e dois cristãos, Jaspers e Gabriel Marcel); mas por outro lado ela não deixa de referir com alguma frequência a maneira como Heidegger invoca os ‘deuses’, nomeadamente na entrevista ao Spiegel de 1966 em que disse o célebre “já só um deus nos pode ainda salvar”, mas também na figura do Geviert – o céu e os divinos, a terra e os mortais – que Loparic traduz lindamente por quadrindade, que em textos dos anos 50 vêm dizer a sua maneira de pensar o ciclo do ‘mundo’, anel e ronda, mundo esse que, vinte anos antes, se ligava à ‘terra’ (a phusis) e a combatia. Como se pode conjugar este recurso ao ‘sagrado’ com a afirmação de ateísmo? Esta questão tem vários aspectos que convém distinguir.
2. O que significa o seu ateísmo? Ele resulta inapelável do motivo de ontoteologia que, tanto quanto entendo e porventura forçando um tanto, estabelecia, tal como o motivo de ser no mundo de 1927, uma ruptura profunda com o pensamento europeu e o seu par sujeito / objecto. A ontoteologia foi inaugurada por Platão e liga-se fortemente ao motivo da definição que, tenho-o lembrado várias vezes aqui, deu o motivo das Ideias formais (eidê) celestes e eternas, que as coisas terrestres que relevam dessa definição reproduzem melhor ou pior: esta relação entre o Ser do definido e os entes gerados e mortais é a primeira forma de ontoteologia, a eternidade celeste sendo parte da relação ontológica entre Ser e entes. Quando o platónico Origenes, no iníco do século III, inventou a teologia cristã que vingou até aos seminários eclesiásticos do século XX, o Deus bíblico, que é dito velar pelos lírios do campo e pelas aves do céu, foi introduzido nessa relação ontoteológica como ‘criação’: relação entre o Criador, o seu pensamento, e cada criatura criada (coisa impensável para Platão, Aristóteles ou Plotino, que o Deus deles, imutável, conhecesse o mundo, o que mudava!). Esse mesmo Deus virá caucionar o Cogito cartesiano até ser afastado por Kant, mas a relação ontoteológica transformou-se, agora entre o ‘sujeito’ que conhece e o ‘objecto’ que provoca objecções a esse conhecimento, e que ainda vigora por aí constantemente como o núcleo dos filosofares.
3. O que é que desaparece na filosofia que se estabelece ontoteologicamente? Aquilo que a definição negligenceia, esquece, o que o ente definido mas fica fora dos limites definidos, o que releva do que hoje chamamos contexto, diferente para cada singular e que dele é despojado para que caiba na mesma definição que os da mesma essência, mesmidade essa que a definição assim cria. É assim conhecido nele mesmo como ousia, substância cuja essência pensada pela filosofia se presta à argumentação com outras essências de maneira a esclarecerem-se mutuamente, mas sempre esquecido o contexto de doação. Ora, quando Heidegger rompe com o seu mestre Husserl, foi a tese excelente de João Paisana quem mo ensinou, ele objecta-lhe justamente o ‘objecto’: a fundamentação do conhecimento partir da percepção, sendo feita a partir da intuição sensível do ente já definido como objecto, isto é, fora de contexto, coisa sem mundo (limite do ‘retorno às coisas’). É essa objecção que lhe permite tomar o ‘ser’ que em Husserl aparece na intuição categorial (o ‘é’ que levará à definição da intuição eidética) sem provir da sensibilidade, permite a Heidegger preocupar-se doravante com esse ser anterior que dá o ente e que, acrescente-se, a definição eliminara, limitando-o ao ‘ser do ente’, a ousia, esquecendo a doação. Por isso virá a privilegiar os ditos ‘pré-socráticos’, designação que ele detestava; digamos, os que pensaram antes da definição. Nietzsche e Colli estão com ele nessa denúncia do platonismo, mas o pensamento heideggeriano baseia-se claramente nesta reversão da definição: o que é retido por esta releva do ‘ente’, o que ela excluiu com o contexto indicia o ‘ser’ que faz doação do ente e se dissimula, retiro do ser que deixa ser o ente em sua autonomia relativa (pela qual ele se presta a ser definido). Numa bela leitura do primeiro capítulo do segundo livro da Physica de Aristóteles, este ser doador será dito ser a própria phusis, acrescentando-se de Heraclito que ela “gosta de se esconder” (fragmento 123). Na Origem da obra de arte, Heidegger propõe traduzir phusis por ‘terra’ e foi o que me inspirou a ousar dizer que ele é um pensador da Terra e das suas doações, pensador da ecologia 20 ou 30 anos antes de esta entrar no campo da acção e do pensamento público.
4. O Ser foi pois esquecido pela filosofia desde Platão, insistiu ele, deixando os ouvintes ou leitores perplexos com esta nova categoria da operação de pensar. Foi a Terra, o lugar dos gerados e perecíveis de Platão, foi a grande doadora a grande esquecida em favor da alma (donde o ‘sujeito’ europeu) e do ente (donde o ‘objecto’ do laboratório científico). E foi à Terra que Heidegger retornou, nomeadamente com o motivo do ser no mundo que rompe com sujeitos que vêem e conhecem objectos num isolador (como os laboratórios, não é pejorativo). Ora, o Deus cristão é o que na teologia e filosofia ocidentais é criador, doador de cada criatura, cada ente, sem atenção ao contexto, apenas à essência substância. Ele não tem pois lugar nenhum no pensamento heideggeriano. O que fazem então os ‘deuses’ nesse mesmo pensamento?
5. Que “já só um deus nos pode ainda salvar”, trata-se claramente dum lamento de impotência, como se ele – que em 54 em A pergunta sobre a técnica, como traduz Irene Borges-Duarte, citava Hölderlin de “onde há o perigo, cresce o que salva” – não tivesse encontrado uma interpretação plausível para o seu tão caro poeta, chegasse a “um beco sem saída”, sugere algures IBD, beco que seria também o da ecologia. Presumo que o lamento foi ecoar na ontoteologia que denunciara e em que ele, como todos nós, fora instituído, que já o verbo ‘salvar’ lhe andava perto. Salvar do Gestell, que não será sair dele para diante e muito menos para trás, sair do sistema técnico financeiro, definamo-lo assim: capitalismo industrial em sua fase electrónica de globalidade intensa, que domina sobre tudo o que é produção e trabalho assalariado e invade os desejos ligados ao dinheiro. Esse ‘salvar’ é pensar como “preparar uma relação livre com a essência da técnica” (IBD, p. 21 e 164), “descobrir novas possibilidades de ser” (p. 202). Com deuses? Donde provieram estes, as religiões antes da definição e com que esta rompeu, para vir depois apoiar o monoteísmo? No texto sobre a phusis em Aristóteles onde descobri o motivo decisivo do retiro do ser, a saber a phusis, esta por duas vezes é dita Gestellung, assinala-o o tradutor, F. Fédier, o que ecoa ao futuro Gestell como se ele dissesse o que era o ‘sistema’ do mundo das sociedades anteriores à industrialização: era a própria ‘natureza’ que as sustentava, lhes fornecia a fonte energética que era de ordem biológica, a das plantas, animais e músculos humanos, não global mas local, algo perto do que Aristóteles pensou entre kinoun (causa motriz) e dunamis / energeia (capacidade potencial / efectivada), como as causas do que tanto o fascinou, o ‘movimento’ dos que por si mesmos se movem como auto-móveis vivos. O Gestell inventou automóveis com energia produzida, a do vapor primeiro, do petróleo e da electricidade depois. Mas Heidegger não pensou o ‘movimento’ que é o coração da Physica aristotélica – o qual, ao contrário do ‘tempo’, contém a energia e a força (da Física de Newton) –, preferiu-lhe o ‘tempo’ que para o pensador grego é apenas o número do movimento com o antes e o depois, e é porventura o que, pertencendo à sua descrição do Gestell, não é o seu coração; nem podia, dado donde ele vinha e a tarefa de resgatar o espaço e o tempo dos físicos para o pensamento fenomenológico do século XX: sendo ficção do metro e do relógio dos laboratórios, e pensados como realidades (apesar de Kant, mas que também não foi ao ‘movimento’, que estava entregue à nova Física de Newton), teve que devolver o tempo ao ente como doação do Ser (o que supõe o movimento, tal como o espaço, mas ficou como pressuposto) para pensar quer o tempo dos humanos em Ser e Tempo, quer o de qualquer ente em Tempo e Ser, quer a história do Ser. Não podia ser de outra maneira, muito provavelmente, mas ajuda a compreender um limite importante do pensamento heideggeriano.
6. O que eram então os deuses nas sociedades sustentadas pela phusis? Os que davam os humanos e aquilo de que eles viviam, davam de forma localizada as colheitas e os rebanhos, a fecundidade das plantas, dos animais e dos humanos, a energia social que os humanos não dominavam. Tal como Heidegger inclui no Gestell o não ser dominado pelos humanos, como as suas crises manifestam. Que Heidegger não tenha encontrado o que pode salvar-nos do perigo, segundo a palavra de Hölderlin, significa que ficou com um pé nas sociedades de phusis, as da casas agrícolas que produziam quase tudo de que necessitavam, cuja tendência autárcita, isto é, a sua autonomia social diante dos outros, Aristóteles tanto apreciava e foi até Kant, mas sempre de forma ontoteológica. O privilégio do heimat como exemplo de morada humana mostra como o seu pensamento se situa no contexto das sociedades de phusis, como aliás quase todos os grandes filósofos europeus (Marx é a grande excepção): isso assinala a sua dificuldade em enfrentar o Gestell, mas também a acuidade com que o pensou muito antes de este se ter tornado evidente para nós como factor não controlável das nossas crises. Com efeito, o Gestell é o reverso da autarcia de antanho, é heterarcia radical em sua tendência global, o que põe cada um à mercê dos outros, do sistema, falências geram desemprego e outras falências, e joga-se entre capitais em guerra de números uns do maiores do que os dos outros, a comprar barato e embaratecer mais para vender mais caro, e assim sucessivamente, aquém e além fronteiras, sem nunca se poder prever donde vem o perigo, que crise, de que alcance. E portanto não há quem domine, que o poder que deveria ser democrático, se tornou plutocrático, mas os seus ‘detentores’ (se os houvesse!) estando tanto ou mais sujeitos às falências das crises do que os outros, em sua impotência democrática.
7. Eis a questão que Heidegger poderia ter posto: e onde pára a phusis? Desapareceu? Só há Gestell e as suas ameaças globais sobre o localizado? Voltemos à sua definição sumária proposta acima (§ 5): capitalismo industrial em sua fase electrónica de globalidade intensa, que domina sobre tudo o que é produção e trabalho assalariado e invade os desejos ligados ao dinheiro. O que é que aqui releva da phusis? As fontes de energia em suas explosões, bela exibição da falta de dominação dos humanos: sobre o que explode, as matérias primas... e os vivos humanos em seus músculos de trabalho, os quais justamente estão hoje a ser progressivamente espoliados pela invasão das máquinas e da cibernética. Ou seja, a phusis dos vivos tem sido progressivamente expulsa do Gestell, assim como tendencialmente das cidades que hoje procuram recuperar espaços verdes, como se diz, cães e gatos de estimação, à míngua de filhos. Ou seja, o essencial do Gestell corresponde à esfera do trabalho, aos seus tempos e templos, o que sobra de phusis viva foi remetida para os ‘tempos livres’ e seus outros templos de consumo e divertimento. Sem se saber adiantar um único número, que a fenomenologia ignora-os, percebe-se claramente onde ‘cresce o que salva’: nas máquinas cibernéticas que se guiam quase sozinhas e fazem diminuir os tempos de trabalho, de Gestell, reenviam os humanos para tempos livres, mais ou menos comunitários nas solidariedades locais que tornem esses tempos fecundos para uns e outros, consoante as capacidades respectivas, “descobrindo novas possibilidades de ser” que retomem a perspectiva da polis do nosso amigo Aristóteles, que Heidegger tanto prezou, nos ensinou a ler.

https://www.youtube.com/user/Luis88571  
(vídeo do lançamento do livro da Irene)

domingo, 16 de novembro de 2014

Medicinas em confronto


 1. Boa coisa é que as diferentes medicinas sejam chamadas a confrontarem-se. Não vem à cabeça de ninguém com bom senso pôr em questão a cientificidade da medicina bioquímica que se desenvolveu na segunda metade do século passado, a partir da biologia molecular. Mas é inegável a existência dum certo mal estar difuso em relação a ela, que se manifesta na queixa frequente de haver especialização a mais, médicos que só sabem deste ou daquele órgão, de não haver mais os clínicos de diagnóstico apurado que dantes eram capazes de atentar em sintomas mais generalizados e de os tratar; fossem raros talvez, que se os reclame é sintoma de carência duma medicina que multiplicou os métodos de diagnóstico mas nem sempre parece saber usá-los adequadamente. Igual manifestação deste mal estar é a proliferação das medicinas ditas alternativas, minoritárias é certo, mas disputando clientela à medicina oficial. É entre estas várias opções que há no terreno da clínica um confronto crescente, sem que haja contudo, em questões de saúde, um critério de discernimento entre as várias terapias que não seja o que passa de boca em ouvido, o da eficácia conseguida em tal ou tal situação com tal ou tal terapeuta.
2. Que antes destas medicinas vindas de outros horizontes do que o da medicina que se conhece como a da ‘ciência’ ocidental, tenha evocado os clínicos ocidentais de antanho, significa que também a medicina anterior à da especialização molecular pode fazer parte do confronto a evocar aqui, no sentido de ela depender de um outro paradigma que pode ajudar à compreensão. Creio que não é necessário ser historiador da medicina para se pensar que esse paradigma se estruturava em torno da consideração mais ou menos minuciosa da anatomia humana e que não se focava em tal ou tal órgão de maneira a isolá-lo do conjunto, ou pelo menos dos órgãos afins, mais conectados com o que pudesse parecer a fonte principal do sintoma.
3. Se é certo que não sou leitor de livros de medicina, acontece todavia que utilizei uma bibliografia de alguns volumes de biologia e neurologia moleculares com outros textos doutras ciências (antropologia, linguística, psicanálise, física e química), na tentativa de cumular as lacunas científicas e filosóficas da tradição fenomenológica, as carências do sujeito e da consciência em termos de corpo biológico, sociedade, linguagem, sexualidade e sua restrição pela lei tribal. Ora, para meu grande espanto, os vários livros de biologia e neurologia que li e em que tanto aprendi ignoravam, todos, qualquer referência à anatomia, incorrendo no que diagnostiquei como um preconceito filosófico – também encontrado nas outras ciências, excepto na linguística estrutural (que foi a minha ciência base de abordagem, aliás) – que consiste no privilégio da ‘substancialidade’ interna sobre a cena exterior donde todavia procede a ‘substância’[1]. Ou seja, o raciocínio predominante nesses textos de biologia passava da determinação dos genes para o conjunto do organismo sem a mediação da anatomia, feita em todos os animais para comerem, caçarem sem serem caçados. Ora, julgo ter compreendido nesses livros que o alcance dos genes, retirados no núcleo da célula, se limita, com as que vêm do sangue, à síntese das moléculas estruturais da célula, mais complexas, havendo aí razões para doenças específicas por mutações.
4. Remetendo-me à minha ignorância de leigo, a questão que ponho aos médicos é a de saber se não poderá haver factores determinantes de muitas doenças que não sejam apenas do foro das moléculas celulares, mas relevem também de correlações anatómicas variadas. Com efeito, é o que sugere a medicina chinesa que há muitos séculos determinou os meridianos que as agulhas da acupunctura seguem, assinalando correspondências energéticas que os nossos laboratórios não parecem saber confirmar, assim como não sabem verificar as razões das curas que assim se realizam. A terapia de Bowen, seguindo aparentemente as indicações desses meridianos, prescinde das agulhas para conseguir curas com gestos das mãos em vários lugares da anatomia. Quanto à homeopatia, que desafia a bioquímica ao usar diluições ínfimas de substâncias, com o sucesso que Paulo Varela Gomes testemunhou no Público (08/11) – que bom ele estar vivo! não termos ficado mais pobres –, pode-se perguntar se o seu segredo, que os laboratórios parecem impotentes para compreender (controvérsia de J. Benveniste nos anos 80), não relevará do princípio mesmo das vacinas de Pasteur, descoberto antes deste, já que pretendem os seus cultores que "o tratamento se dá a partir da diluição e dinamização da mesma substância que produz o sintoma num indivíduo saudável" (web). Igualmente a questão do placebo incita no sentido de indagar das correlações entre o sistema neuronal que controla uma parte do jogo hormonal que equilibra o sangue e a anatomia dos vários órgãos que este alimenta, desde que se tenha em conta o motivo de mente tal como A. Damásio o expõe em O livro da consciência, a saber a face por assim dizer interna dos neurónios a que só o próprio tem acesso: pensar que passe por aí a razão do que se chamam doenças psico-somáticas, o jogo electroquímico dos neurónios sendo ‘saber mental’ que, do ponto de vista dos médicos, seria ignorância, placebo, sugestão.
5. Antes de qualquer discussão sobre virtudes curativas, o confronto é entre uma medicina de tendência localizada (com riscos por vezes de efeitos secundários noutros locais não testados em laboratório) e medicinas globalizadas anatomicamente.

Publicado pelo Público em 16 de Novembro 2014
Em eco ao texto dum físico sobre “a ciência diluída” que seria a homeopatia (6 / 11), com resposta digníssima de Paulo Varela Gomes a 8, contrapondo a um diagnóstico de cancro com 4 meses de vida os 2 anos e meio fecundos que desde então viveu com tratamento homeopático



[1] http://filosofiamaisciencias2.blogspot.pt/2012/12/no-paradigma-da-biologia-falta-o-ser-no.htm

sábado, 15 de novembro de 2014

O tempo (Zé Maria)


[o texto O tempo existencial foi despoletado por uma conversa sobre a noção de 'presente' com o Zé Maria, meu filho, que por sua vez escreveu o que segue]
Conversa comum deu dois textos muito diferentes. Não fosse o interlocutor dotado de arte filosófica, vejam: http://filosofiamaisciencias2.blogspot.pt/2014/11/o-tempo-existencial.html
Durante muito tempo pensei / pensava que o presente era instantâneo: era rápido e o tempo presente já tinha passado.
 No entanto, ontem um sábio explicou que ‘esse’ é um defeito atual, vê inovar como um escape do novo ao antigo, que não faz sentido pensar só neste momento, só no agora, neste segundo só, como presente.
 Há um passado a preservar, não pensemos que chegamos agora, hoje e mudamos todo o passado, TUDO, para futuro melhor; conservador? Talvez pós moderno…
Ele muda de pessoa para pessoa e às vezes a mesma pessoa tem vários presentes, mais rápidos e mais lentos. Lá vai o meu presente número um em velocidade ultrapassando o meu presente actual, vrumm… O meu presente actual começou quando comecei este texto. Não passou à medida que fui escrevendo. Temos vários presentes, alguns passados e um único futuro.
O meu presente, não é isto, o meu tempo foi invadido de comida pelo almoço. Esta questão já vem sendo pensada mas não escrita desde ontem (em 12.11) na conversa com o sábio que também vai escrever sobre este assunto.
Enquanto se escreve um mesmo texto estamos sempre num mesmo tempo, num presente!? Não, um texto pode demorar anos a ser escrito e as ideias mudam.
As ideias mudam consoante são escritas, escrever ajuda a pensar melhor. Por isso encontras por vezes, escritores que adoras e ao vivo são só isto? Pensava que eu eras feito doutra massa qualquer, tipo oiro ou assim, mas não, és banal como todos nós.
Fazer durar o tempo é uma virtude, o tempo sempre a mudar com pessoas e ideias novas não me parece grande qualidade, ‘estamos a inovar!’, diz-se / escreve–se por aí como se fosse uma grande qualidade do ser moderno: se se mantém, é porque agrada. Mudar / inovar é porque não se está contente.
A moda estar sempre a mudar em todas as estações não me parece muito sustentável, nunca se chega a uma roupa que continue a ser elegante, bonita, que ultrapasse os tempos.
Vários tempos, vários espaços, espaço e tempo vivem associados: mudas de espaço, mudas de tempo: a história de vida muda; o contrário não é obrigatório: passamos a maior parte do tempo no mesmo espaço. O espaço pode mudar muito ao longo do tempo: gente

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

O Tempo existencial




1. Desde Ser e Tempo (1927) até Tempo e Ser (1962) que Heidegger se bateu para compreender o tempo do Da-sein existencial, do ser no mundo em seus cuidados que responde ao apelo do Ser, antecipando a morte para melhor se entender como finitude e aos seus afins em 27, em 62 indagando do nascimento que o Ereignis dá como ser e tempo, fazê-lo vir à presença para deixá-lo ser o seu tempo. Batia-se assim contra a concepção linear de tempo, sucessão de instantes – os já passados e os por passar –, deixando ao ‘presente’ o que etimologicamente é ‘sem estância’ entre o que passou e o que ainda não. É esta a concepção dos relógios e parece ser a de toda a gente: assim um ‘instantâneo’ é dito na gíria cinematográfica um paralítico, sem tempo já que sem movimento.
2. ‘Se este instante agora já passou entre passado e presente’, onde está o presente? Vários instantes são necessários para dizer esta frase no presente dum locutor, o sentido dela, de qualquer das suas palavras, só se atinge entre o seu começo e o seu final, sem coincidir nem com o primeiro nem com o último instante nem com nenhum outro intermédio: o seu tempo é o do breve ‘acontecimento’ que é o da sua enunciação, não apenas a linearidade espacial do seu dizer sucessivo dos fonemas (ou letras) mas a complexidade das retenções dos fonemas e palavras já ditas e dos adiamentos dos ainda por dizer, como sugere a lição de Derrida; só sei o sentido da primeira palavra depois de ouvir a última, já que só o jogo integral das diferenças entre elas  – diferenças fonológicas como sintácticas e semânticas, descoberta prodigiosa de Saussure –, só esse jogo diz o sentido da frase, o de cada palavra não se dissociando do da frase, este não estando em nenhuma das suas palavras mas em todas. Se o presente não é o instante, é o quê?
3. Se pegarmos na palavra ‘passado’, ela diz o caminhado dos passos, um passo implica um pé retido atrás enquanto outro avança, o qual é retido por sua vez quando por ele passa o outro, há assim uma oscilação entre retido e diferido que diz respeito a ambos os pés, cada um em vez do outro. Ora, ‘vez’ significa ‘acontecimento’, ambos os termos são temporais, podendo aliás substituírem-se (‘uma vez, aconteceu-me que...’) ou, no caso dos passos, a sucessão de vezes retidas – diferidas de ambos os pés fazer um acontecimento, mas que não é linear, embora pareça.
4. Outras palavras que usamos para dizer os tempos existenciais, ‘agora’ como presente do que fala (Benveniste), ‘momento’ como relato desse ‘agora’ num tempo posterior, também têm esta elasticidade de dizerem partes dum tempo maior, os vários ‘momentos’ duma festa ou duma conversa, dum amor ou dum acidente, do que se recordará como um bom ou mau momento, os seus ‘agoras’ adentro do ‘agora’ maior que se prolonga enquanto se está num presente que se sabe como unidade temporal (‘devias ter falado nisso ainda agora, enquanto estávamos todos presentes’). Será a esta maneira de juntar sucessos temporais numa unidade temporal adequada que corresponde o motivo de ‘acontecimento’, que se conta justamente como ‘um’, cortado melhor ou pior do que o antecedeu e lhe sucedeu.
5. Os gestos que aprendemos, variados e apropriados a tal ou tal uso da nossa tribo, que se repetem e interrompem numa refeição ... colherada de sopa de pedra, garfada de peixe assado, beber um golo de vinho, prato posto para o lado .. mais a conversa que flui ao mesmo tempo – retém-se o já dito para lhe responder e pedir assim outra resposta que faça avançar as coisas, banais ou vivas – entre retenções e avanços, tudo sendo repetições (aprendidas) e suas variações que fazem o sentido do que, em torno da mesa, entre vários acontece, unidade antropológica que se prolonga na digestão de cada um de forma autónoma, a esta ou àquele podendo suceder uma maleita que aos outros não. Repetir e alternar, reter e avançar sem voltar atrás, será assim o tempo do acontecimento que nos relaciona uns com os outros, próximos e rivais.
6. Não sou exegeta de Heidegger, até porque nunca consegui entender o que no texto de 1962, Tempo e Ser, ele analisou em relação à porreção do tempo dado pelo Ereignis. Antes, ele propusera que o Ser (nada, não ente) dá o ente à presença, retendo a doação. Agora, este termo alemão, significando habitualmente ‘acontecimento’, substitui o Ser e é ele que dá ser e tempo ao ente, o que implica que o que ele dá retendo a doação é justamente acontecimentos ônticos! O acontecimento é a maneira do tempo existencial. E então é o único tempo que existe: só há acontecimentos. Repetir é fazer outra vez: oscilação entre o grau zero do acontecimento que é a rotina pura e o acontecimento mais ou menos complexo. Com efeito, acontecimento implica mais do que um, ainda que seja uma inspiração que se tem mentalmente, nas associações de ideias nenhum de nós é só: tudo quanto é dado – nascer, comer, aprender, amar – vem sempre de outrem e é sempre com outrem que somos, mesmo se eremitas de feitio.
7. E o instante não-estante? Um segundo, um minuto, e por aí fora? Não se trata de paradoxos, mas de confusão de coisas diferentes. O tempo existencial, que não é apenas dos humanos, também o dos cães que conseguem escapar ao canil e dos gatos que são operados a um fémur atropelado, é o tempo do movimento, é a este que chamamos acontecimento para o fazer ressaltar de outros que não merecem  que se fale deles na altura (falar é sempre escolher o que dizer e deixar o resto de fora, o ‘tudo’ é indizível, somos sempre elípticos). Os segundos e minutos são o tempo da medida dos tempos. Mas medir um tempo – oito horas, é tempo de jantar – é também um acontecimento, um entre dois tempos, um em que se está e outro em que já não ou ainda não, ‘já’ e ‘ainda’ também são temporais. Mas não se pode medir directamente, não se pode sair do tempo, um relógio é muito útil para essas medições, tal como o nascer e o pôr do sol: a alternância dia e noite é o mais antigo relógio dos terrestres.
8. Mas porquê ser e tempo e não movimento ? Para Aristóteles parece claro que as duas grandes facetas do pensamento, a da Physica e a da Metaphysica, são o movimento como primeira abordagem (onde trata do tempo) e o ser como abordagem seguinte, meta-. Então Heidegger ter-se-á enganado com Ser e Tempo até Tempo e Ser? Ou era o caminho necessário, antes de chegar à grande questão da viragem do pensamento, aquele que resultou da história de sociedades em que a energia dominante é da ordem da biologia, da phusis, para aquele em que está a ser da ordem da technê? Ora, o motivo do movimento (da Physica), ao contrário do do tempo, contém os da energia e da força (da Física). Foi aonde Heidegger chegou, ao contraste entre as sociedades em que a phusis era Gestellung e as do Ge-stell, entre as sociedades da fecundidade e as da produtividade.

domingo, 2 de novembro de 2014

A leitura da Bíblia como parte de uma praxis política


Thomas Staubli (org.), Wer knackt den Code ? Meilensteine der Bibelforschung. 50 Porträts, Patmos, 2009, Dusseldorf
[Quem é capaz de decifrar o código ? Grandes marcos da investigação bíblica. 50 retratos)
[Qui peut déchiffrer le code? Grandes pierres de la recherche biblique]

O título deve ser uma alusão ao Código Da Vinci, trata-se duma maneira de exegetas universitários alemães e suiços tomarem posição sobre como ler a Bíblia num texto de divulgação para o grande público. Abre com um texto de Thomas Staubli de 30 páginas que recapitula 2 séculos de investigação bíblica, o qual, coadjuvado por mais 6 investigadores, apresenta em seguida, em duas páginas cada, 50 obras significativas desse percurso, na esmagadora maioria de língua alemã. É claro que se encontram lá todos os grandes, Wellhausen, Gunkel, Buber, Bultmann, Barth, von Rad, de Vaux, Aland, etc.
Ora, entre eles, nas pp. 106-7, figura a minha Lecture matérialiste de l’évangile de Marc, Récit, pratique, idéologie, Cerf, 1974, traduzida em espanhol, alemão e inglês (NY), o que, 35 anos após a sua publicação, me dá mais contentamento do que qualquer prémio ou medalha, já que se trata de exegetas alemães actuais (todos nascidos, excepto um, entre 1958 e 1977) que avaliam as inovações surgidas na sua disciplina no século XX. É uma honra incrível aparecer o meu livro publicado 35 anos antes entre estes grandes exegeta, a maioria de língua alemã, Wellhausen, Buber, Bultmann, K. Barth, von Rad…


TRADUZINDO:

Fernando Belo (n. 1933) “C/X – A leitura da Bíblia como parte de uma praxis política

Será que a crença cristã, tal como resulta da Bíblia, é uma ideologia que contraria uma prática política libertadora? Que textos é que nos impedem a descoberta do Evangelho dos Pobres?

“C by X" – foi este o programa provocador de Fernando Belo: o Evangelho de Marcos (francês Marc) pode ser lido conforme Marx! Abrem-se, desta forma e completamente, novos horizontes e interrogações!

Uma leitura da bíblia baseada em Karl Marx parece, à primeira vista, bastante paradoxal.
Só que Belo apoia a sua abordagem não só em Marx, mas também no estruturalismo francês e na psicanálise. O seu livro reflecte a singular situação de uma Europa em novo começo, determinado pelas transformações fundamentais do Concílio Vaticano II, do advento da Teologia da  Libertação, da Conferência Mundial sobre Igreja e Sociedade (Genebra 1966), da decisão do Concelho Mundial das Igrejas de lançar, em 1969, um programa contra o racismo, ao mesmo tempo que acontece a rebelião estudantil de 1968, com o aparecimento das suas esperanças utópicas e sociais.

Os anos 60 foram, na Europa, uma década de desenvolvimento tenso, que conduziu a que as injustiças sociais, económicas, políticas e as do racismo fossem empurradas para a agenda das igrejas. Neste contexto, e na Europa Ocidental, desenvolveram-se novas formas de ler a Bíblia, que se designaram por “concretismo”, “política”, “sócio-histórica”, “não-idealista” ou “materialista”.

Belo adoptou a designação “leitura materialista”, que significa, em primeira linha, o contrário de “idealista” ou seja: uma leitura  não individualista, não abstracta, não transcendente, mas que resulta da interpretação compreensiva resultante da realidade vivida através das estruturas económicas, políticas e sociais e das lutas contra a opressão, exploração, discriminação, etc.

Enquanto que a sua leitura encontrou grande aceitação na Europa, praticamente não deu passos no espaço dos EUA: “no geral, o estudo bíblico ficou prisioneiro das preocupações privadas e medos dos cristãos – enquanto que o nosso mundo pende de uma cruz imperialista, de violência e de exploração” (Ched Myers, 1988).

Fernando Belo nasceu em Lisboa, em 1933. O seu grande interesse por questões sociais, levou-o a licenciar-se em engenharia civil e à leitura de Karl Marx. Em 1968 concluiu os seus estudos de Teologia Católica numa Paris abalada pela luta estudantil. O seu interesse pela reforma social, pelo marxismo, pelas utopias sociais e pela renovação teológica fez com que os combinasse através dos métodos estruturalistas da análise dos códigos de linguagem, desenvolvendo, assim, uma nova abordagem dos textos bíblicos. O seu importante comentário ao evangelho de Marcos, “Leitura materialista do Evangelho de  Marcos” foi publicado em 1974. A obra foi traduzida em espanhol, alemão e inglês. Em 1977, Belo recebeu o doutoramento “honoris causa” pelo “Instituto Protestante”, em Paris.

Depois do golpe de esquerda (a “Revolução dos Cravos”), que propiciou, após os tempos da ditadura, a lenta abertura do país, o ex-padre, já casado, regressou a Portugal, vindo do seu exílio francês. Até se jubilar, ensinou, como professor, Filosofia da linguagem na Universidade de Lisboa.


Fernando Belo, Leitura materialista do Evangelho de S. Marcos, Stutgart 1980
Ched Myers, Binding the Strong Man. A Political Reading of Mark’s Story of Jesus. New York 1988

Thomas Staubli (Herausgeber), Wer knackt den Code? Meilensteine der Bibelforschung 50 Porträts, Patmos, 2009, Dusseldorf eilen

[Quem é capaz de decifrar o código ? Grandes marcos da investigação bíblica. 50 retratos]ste

(Qui (())ine der Bibelforschung

Inholt

Vorwort 9
Einleitung 11
Meilensteine der Bibelforschung - 50 Porträts 41
1 Wilhelm Martin Leberecht de Wette
Ahnvater der historischen Bibelforschung 43
2 Julius Wellhausen
Der Bahnbrecher 45
3 Bernhard Duhm
Vom Beginn der geistigen Weltgeschichte 47
4 Gustaf Dahnan
Pionier der biblischen Ethnoarchäologie 49
5 Hermann Gunkel
Mitgründer der Religionsgeschichtlichen Schule 51
6 Leonhard Ragaz
Pionier der kontextuellen Bibeldeutung 54
7 Martin Buber
Religionsphilosoph, Linkszionist und genialer Bibelübersetzer 56
8 Hedwig Jahnow
Frauenpionierin in der alttestamentlichen Wissenschaft 58
9 Albrecht Alt
Der Gott der Väter 60
10 Rudolf Bultmann
Entmythologisierung des Neuen Testaments
und Christusverkündigung 62
11 Sigmund Mowinckel
Altorientalischer Kult als Sinnhorizont für biblische Texte 65
12 Karl Barth
Römerbrief-Kommentar und dialektische
Theologie 67
Bibliografische Informationen
http://d-nb.info/991116208 digitalisiert durch
13 Yehezkel Kaufmann
Der erste jüdische, historisch-kritische Bibelwissenschaftler 69
14 William Foxwell Albright
Prägende Gestalt der Bibelarchäologie 71
15 Gerhard von Rad
Theologisches Reden vom Alten Testament
als Nacherzählung 73
16 Martin Noth
Amphiktyonie und Deuteronomistisches Geschichtswerk 76
17 Roland Guérin de Vaux
Der Entdecker von Qumran 78
18 Hans Walter Wolff
Prophétie und Protest 80
19 Kurt Aland
Wie lautet der ursprüngliche Text des Neuen Testaments? 82
20 Herbert Haag
Mit der Bibel den Katholizismus reformieren 84
21 David Flusser
Bedeutendster jüdischer Jesusforscher und
unentbehrlicher Vermittler zwischen den Religionen 87
22 Dominique Barthélémy
Revolutionär der Textkritik 89
23 Krister Stendahl
Paulus und das gute Gewissen 91
24 Brevard S. Childs
Der Kanon als Schlüssel zum Verständnis der Bibel 93
25 Jacob Milgrom
Virtuoser Deuter der biblischen Ritualgesetze 95
26 James Barr
Intelligent glauben 98
27 Martin Hengel
Judentum und Hellenismus 100
28 Oswald Loretz
Ugarit und die Bibel 102
29 Carlos Mesters
Das Leben und die Bibel 104
30 Fernando Belo
»C/X« - Bibellektüre als Teil einer politischen Praxis
31 Luise Schottroff
Sozialgeschichte im Dienst der Befreiung
32 OthmarKeel
Bildforscher unter Textforschern
33 Hans Heinrich Schmid
Weisheit, Gerechtigkeit,
Pentateuch und - die Zürcher Universität
34 David J. A. Clines
Von rechts nach links und von links nach
rechts lesen
35 Frank Crüsemann
Sensibilität für gesellschaftliche Prozesse
36 Ulrich Luz
Das Matthäusevangelium und
seine Wirkungsgeschichte
37 Elisabeth Schüssler Fiorenza
Die Macht des Wortes erforschen
38 Adrian Schenker
Geist und Buchstabe
39 Erich Zenger
Pentateuch- und Psalmenforscher, Advokat des
jüdisch-christlichen Dialogs
40 Eugen Drewermann
Tiefenpsychologie und Exegese
41 Helen Schüngel-Straumann
Feministische Exegetin der ersten Stunde
AI Athalya Brenner
Ohren für weibliche Stimmen in der Bibel
43 Gerd Theißen
Jesusbewegung und Sozialgeschichte
44 Max Küchler
Religion und Politik in der Landschaft
45 Erhard Blum
Kompositionen statt Quellen
46 Bernadette Brooten
Junia — hervorragend unter den Aposteln 142
47 Marie-Theres Wacker
Lehrerin der Unterscheidung von Geistern 144
48 Adele Reinhartz
Jüdische Neutestamentlerin im Dienste der eigenen Tradition 146
49 Renita Weems
Afrikanisch-amerikanische Bibelauslegung 148
50 Martti Nissinen
Prophétie als Phänomen der ostmediterranen Kultur 150
Personenverzeichnis 153
Literaturhinweis 156
Autorinnen und Autoren 157
Bildnachweis 158







Sutter Rehmann, Luzia: Beitag zu Fernando Belo, in: Staubli, Thomas (Hg.): Wer knackt den Code? Meilensteine der Bibelforschung, Düsseldorf 2009, S. 106-107.W

Fernando Belo (geboren 1933): „C/X“ – Bibellektüre als Teil einer politischen Praxis




Ist christlicher Glaube, wie er in der Bibel ausgedrückt ist, eine Ideologie, die der befreienden politischen Praxis widerspricht? Welche Lesegewohnheiten hindern uns daran, das Evangelium der Armen zu entdecken? 

„C durch X“– so lautete  das provozierende Programm von Fernando Belo:  das Evangelium des Markus (franz. Marc) konnte nach Marx gelesen werden! Damit eröffneten sich völlig neue Horizonte und Fragestellungen. 

Eine auf Karl Marx basierende Bibellektüre scheint auf den ersten Blick ziemlich paradox. 
Doch Belo schulte seinen Blick nicht nur bei Marx, sondern auch am französischen Strukturalismus und an der Psychoanalyse. Sein Buch reflektiert die einzigartige Situation in einem Europa des Aufbruchs, als fundamentale Transformationen mit dem zweiten vatikanischen Konzil, dem Auftauchen der Befreiungstheologien, der Weltkonferenz von Kirche und Gesellschaft in Genf 1966, der Entscheidung des Weltkirchenrates, ein Programm gegen den Rassismus 1969 zu lancieren, neben den Studentenrebellionen der 68er und ihren utopischen und sozialen Hoffnungen nahe schienen. 

Die 60er Jahre waren in Europa eine Dekade von spannenden Entwicklungen, die dazu geführt hatten, dass soziale, ökonomische, politische und rassistische Ungerechtigkeit auf die theologische Agenda der Kirchen gerückt waren. In diesem Kontext entwickelten sich neue Arten der Bibellektüre in Westeuropa. Sie nannten sich, ‚konkret’, ‚politisch’, ‚sozialgeschichtlich’, ‚nicht-idealistisch’ oder ‚materialistisch’. 

Die Bezeichnung ‚materialistische Lektüre’ wurde von Belo eingeführt und bedeutete in erster Linie das Gegenteil von ‚idealistisch’, also eine nicht-individualistische, nicht-abstrakte, nicht-jenseitige Lektüre, die die Lebenswirklichkeit, wie sie von ökonomischen, politischen Strukturen, von sozialen Kämpfen gegen Unterdrückung, Ausbeutung, Diskriminierung etc. geprägt ist, in eine Interpretation miteinbezieht.

Während seine ‚Lektüre’ weite Akzeptanz in Europa fand, fasste sie in US-amerikanischem Raum kaum Fuss: „Insgesamt bleibt das Bibelstudium unter Christen privaten Sorgen und Ängsten verhaftet – während unsere Welt an einem imperialistischen Kreuz von Gewalt und Ausbeutung hängt.“ (Ched Myers, 1988)

Fernando Belo wurde 1933 in Lissabon geboren. Sein grosses Interesse an gesellschaftlichen Fragen führte ihn zum licence d’ingénieur civil und zur Lektüre von Karl Marx. 1968 schloss er sein Studium der katholischen Theologie in einem von Studentenunruhen geschüttelten Paris ab. Sein Interesse an Gesellschaftsumbau, Marxismus, Sozialutopien und Erneuerung der Theologie verknüpfte er mit strukturalistischen Methoden der Textcodierung und entwickelte so einen neuen Zugang zu biblischen Texte. Seinen gewichtigen Kommentar zum Markusevangelium: „Lecture matérialiste de l’ évangile de Marc“ piblizierte er 1974. Das Werk wurde in Spanisch, Deutsch und Englisch übersetzt. 1977 erhielt Belo die Ehrendoktorwürde vom Institut de Théologie Protestante in Paris. 

Nach dem Linksputsch (der „Karnations-Revolution“) kehrte der verheiratete Ex-Priester aus seinem französischen Exil in seine Heimat nach Portugal zurück, als das Land sich nach der Diktatorenzeit langsam zu öffnen begann. Bis zu seiner Emeritierung (2003) lehrte er an der Universität Lissabon als Professor für Sprachphilosophie.