segunda-feira, 17 de junho de 2013

A Física em Newton e Galileu


1. Foi no século XVII que foi inventado uma forma de instituição social de inscrição radicalmente nova (havia a igreja e a escola), o laboratório de física. Eis como Newton fala do que lá se passa. Os Antigos partilharam a Mecânica em duas classes : uma teórica, que procede por demonstrações exactas[1], a outra prática. Desta última fazem parte todas as Artes chamadas Mecânicas[2], donde esta ciência [a nova Física] tirou a sua denominação : mas como os artesão têm por costume operar pouco exactamente, veio daí que se distinguiu tanto a Mecânica da Geometria, que tudo o que é exacto é ligado a esta, e o que o é menos, à primeira. No entanto, os erros que comete aquele que exerce uma arte, são do artista e não da arte. […] A Geometria pertence em algo à Mecânica, já que é desta que depende a descrição das linhas rectas e dos círculos sobre as quais ela é fundada. É verdadeiramente necessário que aquele que se quer instruir em Geometria saiba descrever [desenhar] essas linhas antes de aprender as primeiras lições dessa ciência : depois é que se lhe ensina como é que os problemas se resolvem por meio dessas operações. Vai-se buscar à Mecânica a solução deles : a Geometria ensina o seu uso, e glorifica-se do magnífico edifício que ela eleva indo buscar tão pouco fora dela. A Geometria é no entanto fundada sobre uma prática mecânica, e ela não é mais nada senão um ramo da Mecânica universal que trata e demonstra a arte de medir. Mas como as artes usuais se ocupam principalmente de mover os corpos [cargas pesadas, nos estaleiros], resultou disso que se assignou à Geometria a grandeza [a extensão] por objecto e à Mecânica o movimento : assim, a Mecânica teórica [a sua nova Física] será a ciência demonstrativa dos movimentos que resultam de quaisquer forças, das forças necessárias para gerar quaisquer movimentos (Newton, 1966)[3]. O movimento, isto é, o tempo e as forças, eis o que há de novo, o que a Mecânica acrescentou à Geometria[4].
2. Quando nós hoje falamos de matemática, pensamos em cálculo e em equações, em aritmética e álgebra, não pensamos em geometria, que se tornou numa área afim. Mas, como antes Galileu, espantamo-nos de vê-los argumentarem o que para nós é física de maneira geométrica : na sua época, a do ‘more geométrico’ de Spinoza, geometria era matemática, e assim é no raciocínio de Newton ; o que no entanto ele mostra é que se trata de algo que é mais do que a nossa matemática – puras notações convencionadas que funcionam exactamente segundo uma lógica rigorosa imanente a essas convenções –, ela é uma matemática que mede, segundo a etimologia de geo-metria, medida da terra. Ou seja, métrica, ela é a matemática da física, que se faz adequadamente a instrumentos de medição. O que leva Newton a associá-la, ela que tem fama e proveito de exacta, à mecânica a quem essa fama falta. E o que é a mecânica ? O diálogo de Galileu sobre duas novas ciências, a que voltarei adiante, é contado ter-se passado em Veneza num arsenal de construção de barcos, que é justamente o reino da mecânica, do movimento de cargas pesadas com aparelhagem própria. Newton : a delicada e exacta geometria só se faz com movimentos e aparelhos de desenho que relevam da rude e inexacta mecânica. O que procura ele então ? Nada mais nada menos do que chamar Mecânica à (por nós chamada) Física que vai demonstrar longamente. Ele está a estabelecer uma aliança entre matemática, instrumentos de medida e movimentos mecânicos como sendo a nova física que se está a constituir então na Europa, ele não sendo mais do que um anão aos ombros de gigantes, disse algures citando um medieval. Mas, sabendo embora, como Galileu, que se trata duma ‘ciência’, ele não a trata pelo nome que vingou (aristotélico, aliás), diz em título : princípios matemáticos da filosofia natural. Este título acrescenta então um outro termo à tríade, cuja aliança constitui o laboratório : ‘labor’ implica justamente a introdução da mecânica na filosofia natural, no projecto do saber europeu (instituído de longa data pelos tais gigantes). O que é que a filosofia tem de pertinente para a nova ciência ? Newton não precisa de dizer que se trata da velhíssima definição herdada dos Gregos e dos termos definidos e a definir da filosofia natural, dotada agora de princípios matemáticos, isto é, geométricos e mecânicos. Nas nossas categorias, que vieram a distinguir fortemente filosofia de ciências justamente por estas terem laboratório no coração das suas operações ao contrário daquela, que só tem ‘escritório’, para nós hoje a filosofia naturalde Newton diz o lugar da teoria como essencial a esse laboratório.
3. Há todavia um problema nesta pretensão ‘filosófica’ da nova ciência : como é que o laboratório pode incidir no conhecimento, no saber ? É que a mecânica que Newton recupera e nobilita pertence aos usos sociais de habitação, usos de construção ou de transporte, tem funções empíricas bem definidas que não se adequam de forma evidente às escritas que são a linguagem duplamente articulada e a matemática. A própria geometria, que pede instrumentos de desenho para fazer as figuras das suas demonstrações, põe um problema que Husserl resolveu fazendo uma redução fenomenológica das circunferências empíricas das rodas ou dos pratos do mundo da habitação para reter apenas, como ‘geométrica’, a circunferência ideal que os geómetras conhecem, por exemplo, pela equação 
x2 + y2 = R2
 com raio R e centro no ponto de encontro das coordenadas OXY. O que é que há que reduzir da mecânica e dos instrumentos de medição laboratoriais para que a física de Galileu e de Newton possa caber cabalmente na cena de inscrição ? Para responder, teremos que fazer uma citação do tal diálogo de Galileu sobre as duas novas ciências, a primeira dizendo respeito ao movimento uniformemente acelerado que ele analisou fazendo correr uma bolinha bem alisada na calha duma prancha inclinada e medindo os espaços percorridos e os respectivos tempos ; depois de verificar que não há correlação linear entre eles, pôs a hipótese certa, a de haver correlação entre os espaços e os quadrados dos tempos (raciocínio provavelmente de indução geométrica do teorema de Tales), que os resultados verificam (mas, ‘filósofo’ ?, Galileu não deu nem as medidas nem os resultados, temos que lhe fazer confiança). Tinha porém um problema técnico, não havendo cronómetros na época, como medir os tempos de forma exacta ? Espante-se quem não conheça o truque. Para medir o tempo, tomávamos um grande balde cheio de água que atávamos bastante alto ; depois, por um orifício estreito praticado no fundo escapava-se um fio de água fininho que era recolhido num recipiente durante o tempo em que a bolinha rolava na calha. As quantidades de água assim recolhidas eram pesadas de cada vez numa balança muito sensível, e as diferenças e proporções entre os pesos davam-nos as diferenças e proporções entre os tempos[5]. O que há de engraçado nisto, é que Galileu, a quem Husserl atribuía os males da evolução da geometria, anticipa por assim dizer a redução fenomenológica nesta maneira extraordinária de medir o tempo pesando água : as diferenças e proporções entre os pesos e os tempos são as mesmas, as medidas da água dão para medir o tempo sem ser preciso um cronómetro. O tempo enquanto tal, o tempo empírico medido, é reduzido, a própria medida laboratorial é reduzida[6], isto é, a mecânica do movimento da bolinha e a dimensão mecânica da própria geometria, as medições com aparelhagem, tudo o que, empírico, releva do laboratório enquanto mecânica, enquanto cena da habitação, é reduzido como condição da ciência física se inscrever como saber,  como conhecimento[7]. O que tem como consequência que a Física, enquanto necessariamente laboratorial e redutora do seu empírico, não conhece nem o espaço nem o tempo, mas deles apenas as diferenças das respectivas medidas[8]. Ora, uma diferença não é ‘nada’, não é ‘substância’ : reter apenas as diferenças implica a redução das ‘substâncias’ e todo o carácter empírico do laboratório e da mecânica, dos instrumentos e do movimento experimental, de tudo o que releva da cena da habitação. Em resumo, a Física não conhece as substâncias com que lida, des-substancializa-as, anticipando Saussure[9], Husserl, Heidegger e Derrida, nenhum deles tendo sido possível sem a desconstrução operada pela Física.
4. E como é que estas medidas de espaço, tempo e outras dimensões, obtidas por aparelhos laboratoriais, mas necessariamente empíricas, experimentais, como é que elas contribuem para o saber científico ? Por via das equações físicas em que elas vão ocupar o lugar das chamadas variáveis e permitir calcular dimensões não mensuráceis directamente, no exemplo de Galileu, a aceleração da bolinha (em metros por segundo quadrado, em categorias actuais). Isto é, são as equações depois de verificadas experimen­talmente e podendo-o ser em qualquer outro laboratório em qualquer parte do mundo onde os haja, são elas que constituem saber físico universal. É claro que haverá bastantes dimensões novas (peso, temperatura, intensidade eléctrica, e por aí fora) com respectiva instrumentalidade, havendo como condição de universalidade que as unidades de medida convencionadas sejam aceites em todo o lado, bem como a álgebra matemática. Mas uma das lições da citação de Newton feita é que estas equações sejam, não apenas matemáticas, mas geométricas em sentido lato, isto é equações adequadas exclusivamente aos intrumentos de medição, sejam cronómetros sejam baldes de água. Do facto de Newton não ter referido a teoria (da filosofia natural), podemos induzir uma tese que não será pacífica : estas equações terão que ser interpretadas teoricamente, por conceitos definidos à maneira filosófica, com discussões entre os cientistas sobre essas interpretações, ou até com ignorância confessada, como o mesmo Newton quando, tendo calculado a aceleração da gravidade terrestre (9,8 m/s2), disse que não era capaz de ‘fingir hipótese’ sobre o que era essa força da gravidade, essa atracção a distância, Feynman acrescentando em 1961 que ainda hoje não se sabe em que é que esta consiste. Ora, esta ignorância teórica (ou filosófica) não impede que equações e mensurações relativas a essa aceleração continuem cientifica­mente correctas, ainda que a física da relatividade tenha questionado as noções newtonianas de espaço e tempo absolutos para velocidades perto da luz. Por exemplo que aqui importa, uma boa parte da engenharia clássica que ainda hoje se faz, funciona na base da correcção científica da Mecânica de Newton, Einstein não sendo para aí chamado : o núcleo duro da Física enquanto saber científico (distinto do saber filosófico) consiste nas equações ‘more geometrico’, é delas que boa parte da técnica moderna depende.
5. P.S. Parece-me intrigante que na Lua não haja gravidade, como testemunharam os que lá caminharam. A fórmula newtoniana da atracção dos corpos na proporção directa das massas e inversa do quadrado das distâncias terá que se lhe diga: não se aplica às coisas na lua? Nem na terra as pedras não são ímanes, parece que só a Terra, enquanto planeta com dada densidade, é capaz de gerar gravidade (e é o que a constitui, as coisas de que ela é feita. Será que os físicos deram por ela, têm explicação para essa não 'universalidade' da fórmula de Newton (ou fui eu que a entendi mal?). O que me parece é que esta questão torna ainda mais difícil de compreender como é que se formaram as estrelas: será que foi só com elas que surgiu a gravidade? Difícil de compreender como é que se foi do tal big Bang até elas!



[1] Ver-se-á que é a Geometria.
[2] Opostas às artes liberais, que se ensinavam nas universidades.
[3] Plutar­co, a propósito de Arquimedes, conta como foi Platão quem vituperou os primeiros ensaios de aplicação da geometria à mecânica. A citação termina assim: “a mecânica destituída foi assim separada da geometria e desprezada pela filosofia durante muito tempo; tornou-se um ramo da arte militar” (citado por Aldo Schiavone, 2003, L’histoire brisée. La Rome antique et l’Occident moderne, Bélin, p. 174).
[4] Que foram já o fulcro das duas novas ciências de Galileu, sobre o movimento uniformemente acelerado e a resistência dos sólidos a forças que os deformam.
[5] Galilée, 1970, p.144.
[6] Seria por ter a intuição disso que Galileu não deu os resultados ? era costume da época ?
[7] A redução é uma operação de pensamento que consiste em suspender a ‘substancialidade empírica’ do fenómeno a pensar como condição do conhecimento ‘ideal’ dele. Mas este ‘ideal’ é um diferencial de linguagem, seja matemático ou lógico (caso de Husserl), seja de linguagem, tipo definição ou comutação linguística. Há com efeito várias reduções, as de cada tipo de laboratório científico, por exemplo, da moeda em economia, a partir daquela que um nome (cão, casa, filho) faz das particularidades de cada coisa que assim nomeia, a da escrita, a de qualquer aprendizagem.
[8] É o que significa a afirmação bombástica de Heidegger de que “a ciência não pensa”, com os seus métodos. O que ele devia ter acrescentado: ela pensa enquanto elabora teoria para montar as experiências e entender os resultados, pensa como filósofo de laboratório.
[9] Derrida aplicou a redução à diferença significante de Saussure, reduzindo os sons empíricos para não reter senão a diferença entre eles (De la grammatologie, Minuit, 1967, pp. 65-94).

domingo, 9 de junho de 2013

O espanto da Terra




O que os biólogos parece não serem capazes de entender é que as leis ou regras que eles descobrem e nos mostram a incrível complexidade das inúmeras espécies biológicas, da formiga ao elefante e ao primata humano, que essas leis, não se aplicando tais quais a nenhum vivo singular, jogam-se segundo as condições essencialmente aleatórias da cena ecológica em que eles vivem, tal como um carro no aleatório duma estrada. E supõem por isso mesmo um constante aleatório em cada processo evolutivo, que os biólogos ‘explicam’ pelas mutações, sem se darem conta de que estas são arbitrárias, fruto de acaso, e introduzem um factor ilógico que viria de indivíduos da espécie, aonde justamente o aleatório corresponde a uma lógica, aporética é certo, mas dependente antes de mais das transformações da cena que vêem a ter efeitos nas espécies que são obrigadas a reagir a tais transformações. À ilógica do acaso das mutações, ao seu arbitrário contra toda a exigência de rigor cientí-fico, responde o espanto imenso perante o aleatório da história da evolução. Como já foi provavelmente assim com a formação do planeta Terra, o único entre os conhecidos dos astrónomos que se encontrou ter condições para que nele a vida surgisse.

sábado, 1 de junho de 2013

DA ECONOMIA COMO TERAPIA




1. Quando fazemos análises de sangue a vários parâmetros, é costume junto dos resultados virem entre parêntesis os limites máximos e mínimos que indicam o equilíbrio saudável de cada parâmetro, o chamado equilíbrio homeostático. A terapia que o médico seguirá é a de trazer o resultado a esses limites, subi-los ou descê-los consoante; ainda que se trate duma criança, cuja saúde é a de alguém em idade de crescer, não passa pela cabeça do médico fazer crescer todos os parâmetros. Uma ciência terapêutica trabalha entre limites que a investigação laboratorial testou como os adequados. Igualmente, o código penal que se aplica nos tribunais indica limites máximos e mínimos de penas para dado crime, a terapia ficando a cargo do juiz que estudará as circunstâncias para decidir a pena a aplicar. Que sentido tem pretender que a economia, ciência dos mercados, deve ser uma ciência terapêutica?
2. O que justifica fenomenologicamente a economia, como qualquer ciência social (meus textos no blogue filosofiamaisciências2), é o seu alvo no tratamento dos mercados ser o bem-estar da população de cidadãos. E o que a crise dos últimos anos mostra é que, não só ela não busca regular os mercados em vista do bem-estar, como parece incapaz de diagnosticar a doença e portanto a terapia para a debelar. Uma das aberrações mais óbvias aos olhos do leigo é a ‘crença’ generalizada, à direita e à esquerda, de que ‘o que é preciso é crescimento’ e portanto investimento de capitais nesse sentido, quando por outro lado todos reconhecem que esta crise veio directamente da especulação dos capitais e do remédio que se aplicou, a recapitalização do sistema bancário, ao mesmo tempo que apenas cresce o desemprego e a mal chamada austeridade, nome para disfarçar o empobrecimento generalizado.
3. Este desiderato geral mostra uma ciência económica cega para o que tem sido proposto de há 40 anos para cá pela sua prima ecologia, desde o Relatório do Clube de Roma intitulado Os Limites do crescimento (1972), que tem clamado para os limites dos recursos naturais e contra o crescimento descontrolado das maquinarias e químicas industriais que estão a dar cabo do clima, do ar e das águas. Esta urgência deve tornar-se um axioma da economia, que obrigue a lógica do mercado a ter em conta a homeostasia do planeta que habitamos. O desemprego crescente, correlativo da cibernética dos robots e computadores, obriga a outro axioma: a economia enquanto ciência social deve buscar o pleno emprego, bem-estar óbvio da população, continuar a boa tendência em dois séculos de industrialização de diminuir o horário de trabalho, que é outra variável homeostática (em vez de o aumentar e de despedir na função pública: lógica absurda! com tantos cidadãos desempregados).
4. O desafio será o de inverter o critério económico dominante, o crescimento dos números em dólares ou euros. Eis a perversão: aquilo que foi inventado como um excelente ‘meio’ de racionalizar as trocas, tornou-se o ‘fim’ das bolsas especulativas – caso único de disciplina universitária que se pretenda ciência ser tão profundamente errada (os Nobel em economia têm justamente 40 anos!) –, a que se junta o carácter sacrossanto da propriedade do capital em detrimento da economia real, do mercado que serve o bem-estar dos cidadãos. A propriedade é inerente ao dinheiro, cada um de nós que vive de salários sabe como a propriedade de algumas centenas de euros é vital para a liberdade de viver. A questão é o fascínio pelos grandes números como critério de ‘competitividade’, isto é, a guerra entre os capitais e a correlativa destruição das suas bases económicas (como fizeram as duas guerras mundiais, agora sem armas). É esta questão epistemológica que me parece estar no coração da crise actual, da sua incompatibilidade entre finanças e economia. Ora, a própria crise tem mostrado um exemplo de terapia reguladora desta guerra: taxar os grandes capitais, dividendos e salários, sim, mas para melhorar as condições do modelo social europeu, corresponde a ter em conta os limites da homeostasia social, manter os mínimos controlando os máximos, e foi o que fez a social-democracia escandinávia.
5. Desde o início que a figura de Vítor Gaspar me atrai, inspira seriedade, tem fama de competente nos meios financeiros: que ele esteja a empobrecer teimosamente a economia e nós todos com ela para pagar dívidas a juros usurários, eis o que me parece tornar evidente que o problema está no paradigma da economia, que é urgente alterar.
Público, 1/6/2013