terça-feira, 15 de novembro de 2011

Recensão por Gonçalo Zagalo de Philosophie avec Sciences au XXème siècle

Nota de leitura: Fernando Belo, La philosophie avec sciences ao XXe siècle, L’Harmattan, Paris, 2009.

Integrado na colecção Pour comprendre da editora parisiense L’Harmattan, La philosophie avec sciences ao XXe siècle (2009), do filósofo português Fernando Belo, retoma algumas das teses fortes propostas anteriormente nos dois volumes publicados com o título Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida (L’Harmattan, 2007), servindo assim como mais um complemento ao projecto filosófico já então apresentado. E que projecto é esse? Tal como o próprio título indica, não se trata de uma análise epistemológica, mas sim de fazer uma filosofia com ciências, entendida como uma composição de saberes heterogéneos que permita encontrar no trabalho científico recursos para pensar filosoficamente (isto é, de um modo integrado) o funcionamento efectivo da pluralidade dos contextos que são objecto de investigação dos diversos saberes especializados das ciências regionais. Neste sentido, a filosofia com ciências recupera o problema husserliano da especialização dos saberes e consequente crise das ciências europeias (bem como o seu mote de «regresso às coisas mesmas»), mas segundo uma abordagem fenomenológica que se deixa contaminar pelos efeitos de composição que engendra com as diversas disciplinas sobre as quais se debruça, o que faz com que os motivos e as teses que o autor herda de Husserl, Heidegger e Derrida («os três grandes filósofos do século XX» [§ 188]) passem a exibir uma operatividade inédita. De resto, F. Belo caracteriza justamente a filosofia com ciências como uma fenomenologia, na medida em que esta desvela e dá a ver o funcionamento estrutural das descobertas científicas, ao mesmo tempo que é por elas iluminada. Assim, o fenómeno geral descrito por esta fenomenologia é a assemblagem (assemblage), definida como «um mecanismo de autonomia com heteronomia apagada» [§ 2] e cujas leis de combinação (em duplo laço) e circulação constituem o facto e a especificidade das diversas cenas ou campos de investigação a que se dedicam as ciências regionais especializadas. Na medida em que o trabalho fenomenológico aqui proposto consiste na composição de argumentos heterogéneos, tanto filosóficos quanto científicos, com o objectivo de mostrar (e não de demonstrar, função das ciências) o funcionamento dessas diferentes cenas onde as “coisas mesmas” acontecem, o autor pode avançar a polémica tese de que a fenomenologia enquanto filosofia com ciências viria ocupar na modernidade o lugar da Física de Aristóteles na antiguidade clássica [§ 186], tese esta que pressupõe, no entanto, as conclusões retiradas no capítulo que dedica ao funcionamento da verdade imanente a cada cena.
O primeiro capítulo de La philosophie avec sciences ao XXe siècle, intitulado “Du double lien”, apresenta o mecanismo de autonomia das assemblagens, que funcionam precisamente segundo a lógica de um duplo laço (que o autor retoma do motivo derridiano do double-bind) entre duas leis inconciliáveis e indissociáveis. Para o ilustrar, F. Belo começa pelo exemplo relativamente simples da viatura automóvel [§ 15-18], cuja assemblagem tem de dar conta, ao mesmo tempo, da lei física da termodinâmica dos gases (que comanda o motor) e da lei antropológica do tráfego (que preside ao jogo, unidade da necessidade e do acaso, da circulação automóvel): o duplo laço formado por estas duas leis inconciliáveis e indissociáveis, e que constitui a lógica teórica da cena de circulação, pressupõe o retiro de uma das leis em relação à outra. Por um lado, temos um retiro estrito dos elementos da assemblagem que funcionam por repetição (o motor, no caso do automóvel); por outro lado, um retiro regulador dos elementos da assemblagem que regulam o movimento de acordo com o jogo (regras e aleatório) da cena, provocando nela efeitos suplementares. O que está em causa nesta lógica dos retiros é a forma como a autonomia de cada assemblagem pressupõe sempre uma doação heteronómica que se apaga: cada cena é ela mesma uma doação em retiro das várias assemblagens que nela circulam, estas funcionando sempre segundo o duplo laço de duas leis inconciliáveis e indissociáveis que se encontram, elas mesmas, em retiro uma em relação à outra. A doação em retiro da cena é, segundo o autor, o correspondente fenomenológico da diferença ontológica de Heidegger, enquanto que os dois retiros das assemblagens derivam de uma inspiração derridiana [§ 57-73].
Esta lógica dos retiros é testada, neste primeiro capítulo, a vários níveis. Em primeiro lugar, trata-se de verificar a chamada cena da alimentação, segundo o funcionamento das diferentes assemblagens que a povoam [§ 19-26]. Assim, ao nível da vida (em sentido biológico), os organismos unicelulares funcionam segundo um único duplo laço (retiro estrito do ADN e retiro regulador do metabolismo), as plantas funcionam segundo esse primeiro duplo laço e segundo um segundo duplo laço (retiro estrito do metabolismo e retiro regulador da homeostase hormonal) e, finalmente, os animais funcionam segundo os dois primeiros duplos laços e segundo um terceiro duplo laço (retiro estrito das hormonas e retiro regulador o sistema de mobilidade). Quando se passa de uma assemblagem para outra, os elementos em retiro regulador passam a estar em retiro estrito na assemblagem seguinte, de forma a possibilitarem a sua autonomia e a consequente adaptação às regras próprias do jogo em que ela está inserida: o metabolismo celular (comum a todos os seres vivos) pressupõe o retiro estrito do ADN, a nutrição (comum a todos os organismos) pressupõe o retiro estrito do metabolismo e a espontaneidade motora (as tácticas de caça e de fuga dos animais) pressupõe o retiro estrito da busca de homeostase hormonal (da fome). Este último duplo laço está também intimamente ligado à lei fundamental da cena da alimentação, a lei da selva (os animais só sobrevivem comendo outros seres vivos), lei ecológica inconciliável e indissociável da lei bioquímica da homeostase hormonal. A multiplicação de duplos laços é o que, segundo o autor, permite, por um lado, pensar uma evolução sem determinismo (o ADN não determina em absoluto o destino das espécies) e, por outro lado, explicar a validade não contraditória das diferentes ciências especializadas: «as leis deduzidas por cada ciência ao nível da circulação da cena respectiva permanecem válidas nas cenas seguintes, mas não dão conta das leis próprias da nova cena» [§ 73].
A lógica do duplo laço é depois testada ao nível da cena da habitação [§ 27-32], constituída pelo elemento nuclear que são as unidades locais de habitação, definidas por um sistema de usos, que nelas é transmitido de geração em geração, e que pressupõem o retiro estrito dos gestos corporais e o retiro regulador das suas receitas. É aqui que o autor introduz mais um interessante conceito operativo: o de envie, intraduzível, pois dizendo ao mesmo tempo o desejo (de aprender e desempenhar bem os usos) e a inveja (de quem o faz e de se ser, por sua vez, invejado). O par usos/envies define o sistema dos useiros de cada unidade social privada, cuja reprodução depende das alianças que entre elas se estabelecem (segundo a lógica da exogamia social, regulada pelo interdito do incesto) e estando estas retiradas estritamente em relação ao espaço social, submetido à lei da guerra (que substitui a lei da selva nas sociedades agrícolas), e tendo por isso que dar conta do aleatório de rivalidades e de ameaças que constituem o espaço social (disciplina e economia defensiva das envies), por forma a garantir as condições gerais de habitação e de alimentação: o duplo laço aqui é entre a lei da aliança e a lei da guerra. Finalmente, o duplo laço é testado ainda na cena da inscrição [§ 33-48], intimamente ligada ao sistema de usos e suas receitas, e constituída pelos diversos modos de transformação da matéria com vista a um reconhecimento perene. Dos quatro tipos de inscrição reconhecidos pelo autor (linguagem, escrita matemática, música e imagem), a primazia é dada à linguagem humana, definida pelo duplo laço do retiro estrito dos fonemas e das letras (segundo a teoria saussuriana da imotivação do signo), que permite a multiplicação de combinatórias e de possibilidades de enunciação, e do retiro regulador da lei da pertinência (proposta por Flahault), ligada à especificidade de cada contexto. Se a lógica do retiro doador e do duplo laço é comum à análise de cada uma das cenas e das duas respectivas assemblagens, o seu funcionamento local é dado na imanência de cada uma, algo que é comprovado pela economia argumentativa do texto e pela leitura constante dos especialistas em cada matéria (devidamente indicados na bibliografia), tal como é apanágio desta filosofia com ciências, estas últimas submetidas também a um duplo laço, aquele que se constitui entre, por um lado, as receitas e o corpus de cada paradigma científico (a lei da definição que comanda a sua reprodução) e, por outro lado, a experimentação, que é da ordem do acontecimento singular [§ 76-83].
O segundo capítulo de La philosophie avec sciences au XXe siècle, intitulado “Du supplément entropique”, começa com a constatação de que os motivos do duplo laço e do retiro doador, na medida em que permitem pensar uma autonomia com heteronomia apagada, são dados a ler essencialmente a partir das ciências da vida. A sua aplicação à física (a ciência modelo da tradição) pode, contudo, ser feita a partir das duas forças estruturantes dos graves inertes, forças nucleares e electromagnéticas [§ 84-87]. Este alargamento da lógica do duplo laço à cena da gravitação é fundamental para introduzir o objectivo deste segundo capítulo, que abandona a perspectiva sincrónica das diferentes cenas, para se dedicar ao problema da evolução das mesmas, isto é, a uma descrição diacrónica de tipo genético que introduz o factor tempo. Uma vez mais, o modelo explicativo é deduzido da composição entre as descobertas científicas e a abordagem filosófica: partindo da teoria das estruturas dissipativas e da reversão do 2º princípio da Termodinâmica, propostos por Pirogine, e da teoria semântica da evolução de Barbieri, será possível explicar a evolução das moléculas para as células a partir do motivo de um “suplemento entrópico”, que segue justamente a lógica proposta por Derrida, segundo a qual um suplemento é sempre uma mais-valia requerida de antemão por aquilo mesmo que é suplementado e que sofre, por isso, efeitos retroactivos [§ 88-99]. O suplemento entrópico, um modelo evolutivo que substitui o acaso por um imenso jogo de mecanismos instáveis de regulação do aleatório, permitiria então compreender a formação de novas cenas e sub-cenas como suplementos entrópicos de cada cena mais geral, funcionando em oscilação homeostática: «Em rigor, não há senão uma cena do Universo, a da gravitação, que implantou sobre a terra a cena da alimentação que implantou, em seguida, as da habitação e da inscrição dos humanos, como sub-cenas da cena universal, cada uma destas sub-cenas implantando inúmeras outras mais particulares» [§ 97]
A evolução histórica é, em seguida, entendida a partir das diversas invenções, enquanto acontecimentos de suplementariedade entrópica, e da formação de novas sub-cenas instáveis a partir das transformações dos usos que com elas advêm. A primeira destas invenções teria sido a da agricultura e pecuária, ou seja, a introdução do tempo económico entre a apropriação e o consumo, que suplanta a lei da selva, e que tem a casa como unidade local de habitação. A cena que dela resulta é o que permite, uma vez mais por suplementariedade, as três invenções da “modernidade grega” e as suas consequentes sub-cenas: o logos e a cena democrática, a moeda e a cena do mercado e a definição e a cena da escola – cenas instáveis, tal como o vieram provar os acontecimentos históricos (a queda do Império Romano) que as adiaram de novo até à modernidade propriamente moderna europeia [§ 106-114]. Esta última será marcada pela invenção da máquina e da electricidade e pela consequente substituição da energia biológica por uma energia produzida socialmente, que dá origem a um novo tipo de unidade local de habitação, a da família, e à reinvenção das sub-cenas da escola, do mercado e da democracia, segundo mecanismos distintos daqueles em que funcionavam na modernidade grega [§ 115-122]. As sociedades de casas (energia biológica) e as sociedades de instituições e famílias (energia industrial) acabam por funcionar segundo dois paradigmas distintos: as primeiras funcionam segundo a lógica da autarcia das unidades locais de habitação, que pressupõe a justaposição de assemblagens semelhantes e homogéneas, enquanto as segundas funcionam segundo a lógica da heterarcia, que pressupõe uma nova organização de assemblagens especializadas e heterogéneas. Esta diferença paradigmática encontra o seu paralelo, em termos de evolução biológica, na diferença entre a reprodução por justaposição dos seres vivos unicelulares e a metamorfose por organização especializada que dá origem aos organismos animais e que pressupõe o mecanismo heterogéneo da sexualidade [§ 123-131]. O capítulo termina com uma reflexão sobre o não-determinismo da evolução por suplementaridade entrópica, a partir do motivo da “bem(mal)dição”, que diz a indissociabilidade entre a vida e a morte, a novidade e a perenidade.
O capítulo seguinte do livro é inteiramente dedicado à evolução histórica da cena de doação da própria filosofia com ciências, a saber, a cena da inscrição, onde circula a escrita e, consequentemente, o pensamento filosófico, mas também a ciência moderna. As duas invenções suplementárias marcantes nesta evolução terão sido a invenção da definição (pela escola socrática) e a invenção do laboratório (pela física do século XVII): a primeira marcando a distinção entre a filosofia e as narrativas literárias e a segunda marcando a distinção entre as ciências e a filosofia, distinções estas subsidiárias da instituição de unidades sociais (a escola e a universidade, a igreja, o laboratório), ou assemblagens, relacionadas com a escrita e a leitura, ou seja, doadas e constituintes da cena da inscrição e das suas diversas sub-cenas suplementárias (e cuja autonomia não é já recebida de modo hereditário, mas segundo uma relação inédita entre mestre e discípulo). A invenção da definição pressupõe uma dupla redução: a da denominação (redução das singularidades empíricas, operação da linguagem em duplo laço) e a da abstracção (redução da polissemia e da cena narrativa e quotidiana). O gesto da definição instaura assim um plano da eternidade (o eidos, separado dos entes), que permitiu a instituição escolar enquanto sub-cena em retiro em relação à cena da habitação (a Academia de Platão e a sua herança). Aristóteles configura uma deriva em relação a este gesto, na medida em que, seguindo a inspiração socrático-platónica da definição, propõe uma reconsideração da phusis, uma espécie de primeiro “retorno às coisas mesmas” fenomenológico. A primeira sub-cena filosófica da cena da inscrição passa assim pela Academia de Platão [§ 139-140], pelo Liceu de Aristóteles [§ 141-145] e pela instituição da Igreja cristã e das universidades medievais [§ 145-148]. Quanto à invenção do laboratório, F. Belo atribui-a à conjugação inédita de dois gestos, um platónico (o laboratório como reelaboração da definição grega, em retiro em relação ao jogo com o aleatório das cenas, e instituindo a separação entre sujeito e objecto) e outro aristotélico (o apelo à experiência empírica) [§149-150]. Depois de ensaiar um paralelismo entre relação Platão/Aristóteles e a relação moderna Descartes/Kant [§ 151-152], de modo a compreender a génese do sujeito transcendental, o autor passa em análise o papel da escola enquanto produtora de sujeitos, os seus efeitos suplementários sobre as assemblagens biológicas [§ 153-155] e a sua aliança com o laboratório das ciências modernas, origem de um novo paradigma do saber [§ 156-161].
O momento fulcral deste terceiro capítulo é, no entanto, a apresentação das bases teóricas da filosofia com ciências enquanto fenomenologia, com a apropriação dos motivos teóricos herdados de Husserl, Heidegger e Derrida. Assim, a fenomenologia de matriz husserliana é lida como uma nova etapa no esforço de desubstancialização do ser, a partir do motivo da redução fenomenológica, que descobre a diferença entre a “empiricidade aparecente” (aquilo que é reduzido) e o aparecer retido como idealidade, e que permite configurar uma nova figura da definição [§ 162-163]. Mas, será também esta desubstancialização que Heidegger vai procurar ao nível ontológico, nomeadamente a partir do motivo do Ereignis («Nada-de-acontecimento-que-dá-os-acontecimentos»), que permitiria pensar a ousia aristotélica antes da distinção entre essência e acidentes, ou seja, antes da distinção entre ser e tempo, mas também entre actividade e passividade. F. Belo designa este movimento de doação em retiro (ou de heteronomia apagada) como (pro)dução, «marcando o “fazer vir à presença” no “pro” e o “deixar vir à presença” nos parêntesis que o escondem» [§ 164-170]. Finalmente, Derrida teria sabido conjugar, numa única operação, o duplo laço entre a redução husserliana (a economia de apagamento ou de desubstancialização) e a (pro)dução heideggeriana (o deixar ser a novidade de cada presença), a partir do motivo do rastro (trace) imotivado e dos efeitos do seu apagamento. F. Belo chama a esta operação re(pro)dução, para marcar a sua quase-transcendentalidade, ou seja, a contaminação originária entre o empírico e o transcendental que está em jogo quando cada novo acontecimento singular reitera e constitui a própria cena que o doou – um outro nome para a finitude, portanto. Este duplo laço, mecanismo local e singular da autonomia com heteronomia apagada, é novamente testado ao nível da linguística, do metabolismo celular e da aprendizagem [§ 171-184]. É neste sentido que a filosofia com ciências se identifica com a fenomenologia e com a sua herança recente.
O último capítulo de La philosophie avec sciences au XXe siècle é dedicado ao problema fundamental de como avaliar a pertinência dos modelos e propostas avançados por esta filosofia com ciências, ou seja, do problema dos critérios de verdade. Como composição das descobertas científicas e fenomenológicas do século XX, a filosofia com ciências marca um certo retorno a um saber sistemático, mas respeitando a singularidade e as diferenças irredutíveis entre as diferentes assemblagens e as suas cenas. Por conseguinte, a verdade de cada cena só pode ser imanente a cada uma das cenas, as ciências especializadas sendo o trabalho descritivo ou de demonstração dessas mesmas verdades. Neste sentido, e tal como a evolução é um processo que joga entre regras e aleatório, as verdades científicas não podem deixar de ser históricas, mas encontrando o seu critério de verdade em cada cena histórica que descrevem. Que os motivos dos retiros e dos duplos laços ocupem uma posição quase-transcendental neste panorama significará justamente que eles derivam desse mesmo funcionamento singular e histórico que os dão a ver. Ou, como avança o autor, «a “verdade” de cada cena, espécie, indivíduo, sociedade, língua e cultura, é a da sua reprodução através dos outros [...], é esta reprodução que mostra a verdade de cada cena: verdade que a ciência demonstra quando encontra nelas os recursos em retiro. Esta “verdade” é a heteronomia dada que se esconde, se dissimula, para deixar ser a autonomia ou a abertura de cada indivíduo, de cada coisa» [§ 190]. O capítulo prossegue com uma reflexão sobre a possibilidade de desvelar uma ética da re(pro)dução, que se condensaria no mote «deixar ser o ente» [§ 196-199], seguida de uma reflexão sobre o papel regulador das instituições políticas, principalmente no que toca à economia [§ 196-208]. Estes dois pontos finais parecem-nos menos interessantes, tanto pelo carácter demasiado generalista do primeiro, como pelo facto de as propostas políticas que são depois avançadas acabarem por ser apenas uma constatação do próprio funcionamento formal dos mecanismos políticos: como dominação da lei da guerra, em termos milenares, e como institucionalização pública da administração da economia (cena da habitação), em termos modernos. Mais fecunda parece ser a proposta avançada em anexo (uma comunicação proferida em Outubro de 2007 no Institut Franco Portugais) de uma economia política fenomenológica enquanto ciência terapêutica, que recupera o carácter de composição interdisciplinar usado na descrição das várias cenas e suas assemblagens, e que aponta para a possibilidade de uma cena propriamente política em sentido moderno.
Em suma, La philosophie avec sciences au XXe siècle é o testemunho condensado de uma proposta arriscada, mas indiscutivelmente inovadora no panorama filosófico actual, estranha talvez na herança do seu horizonte de saber integrado e sistemático (filosófico, portanto), ainda que atenta ao contexto histórico em que se insere. Cremos que, acima de tudo, nos lança um desafio forte a avaliar a operatividade de alguns dos motivos fundamentais do pensamento contemporâneo e um convite à sua reinvenção e aplicação (aquilo que o autor outrora designou como uma espécie de “engenharia filosófica”), como possibilidade efectiva de uma interdisciplinaridade digna desse nome. A fidelidade e a pertinência com que o faz deverá ser avaliada por todos aqueles (filósofos ou especialistas nas diferentes áreas) que aceitem o desafio e que deverão ter em conta que, tanto a sua crítica como o seu acolhimento, pressuporão sempre enveredar, de alguma forma, por uma composição de saberes heterogéneos, o que converge afinal para o apelo último que aqui está em causa: apelo à continuidade a ao porvir de pensar com e a partir das “coisas mesmas”, no enigma da sua singularidade e indeterminação radicais.

Gonçalo Zagalo Pereira, Março de 2010
Publicado na Revista Filosófica de Coimbra, nº 38, 2010, pp. 506-513

sábado, 12 de novembro de 2011

A guerra dos capitais

1. A crónica de Rui Tavares (13/07) lembrou-me o livro notável do socialista não marxista Karl Polanyi, La Grande transformation. Aux origines politiques et économiques de notre temps, escrito em 1944, estava a 2ª grande guerra a terminar. “No século XIX produziu-se um fenómeno sem precedentes nos anais da civilização ocidental: os cem anos de paz de 1815 a 1914. À parte a guerra da Crimeia, acontecimento mais ou menos colonial, a Inglaterra, a França, a Prússia, a Itália e a Rússia não fizeram guerra umas às outras senão dezoito meses no total” (p. 23), apesar da enorme quantidade de conflitos ‘locais’ que balizaram o século. Diagnóstico: “o comércio estava agora ligado à paz. No passado, a organização do mercado tinha sido militar e guerreira. Era um auxiliar do pirata, do corsário, da caravana armada, [...] dos traficantes de escravos e dos exércitos coloniais das companhias. Tudo isso agora estava doravante esquecido. O comércio dependia agora dum sistema monetário internacional que não podia funcionar durante uma guerra geral. Exigia a paz, e as grandes Potências esforçavam-se por a manter” (p. 36).
2. Isto era escrito a quente: a primeira globalização, após uma centena de anos de paz, acabava de sofrer durante 30 anos uma implosão inenarrável, é o que o seu livro procura explicar. A tese é a seguinte: o mercado auto-regulador (promovido pelo liberalismo inglês) foi a causa das duas grandes guerras, tendo gerado proteccionismos de defesa contra o domínio comercial inglês e em consequência os nacionalismos que desencadearam as duas guerras. Eis o ponto nevrálgico da sua argumentação: ‘mercadoria’ sendo empiricamente definida como objecto produzido para ser vendido no mercado e ‘mercado’ como os contactos efectivos entre vendedores e compradores, resulta na prática que deve haver mercados para todos os produtos da indústria; este postulado, diz Polanyi, é falso no que diz respeito à força de trabalho, à terra e à moeda, já que nenhum foi produzido para ser vendido, nenhum é pois ‘mercadoria’. Os três devem ser preservados do estatuto mercantil que o liberalismo lhes atribuiu.
3. O que impressiona é que os seus argumentos ganham na crise actual um relevo intempestivo. O desemprego aumenta assustadoramente, os ‘contratos de trabalho’, que são a forma democrática de organizar a economia, são demolidos por considerações em que a ‘força de trabalho’, que não foi feita pela evolução biológica e civilizacional para ser mercadoria, se tornou em algo que se compra e se vende, se pega e se deita fora. Quanto à terra, já não é só a terra agrícola a que Polanyi se referia, é o território organizado industrialmente, isto é, as empresas de produção que são eminentemente locais, organizadas para produzirem mercadorias que respondem a problemas locais dos países, de trabalho, de habitação, de alimentação e não para serem mercadorias, são elas que se transferem de país rico a país pobre, se vendem abstracta ou especulativamente, em bolsas longínquas. E o terceiro é a moeda, o ataque actual ao euro cada vez mais descarado, onde se percebe que os chamados ‘mercados’ não o são: mercado é aonde se vendem e compram mercadorias, as moedas para isso servem e não para serem elas vendidas e darem lucros fora das vendas, como a especulação das subprimes é exemplo do absurdo a que os financeiros podem chegar em suas guerras de capitais.
4. Intempestivo, quer dizer que estes argumentos vêm de outro tempo, de outra crise, mas em que se pretendia também a auto-regulação dos mercados (os tais que o não são). Não pode o filósofo ter a pretensão de dizer o que há que fazer. Constatar apenas com Boltanski que “o capitalismo prospera; a sociedade degrada-se” (Le nouvel esprit du capitalisme, 1999). Esta crise repete a da primeira metade do século XX, o comércio internacional impede guerras de bombas, mas, para que os números astronómicos dos grandes capitais aumentem algumas percentagemzinhas de alguns milhõezitos de dólares, está a produzir guerras financeiras em que os países vão caindo um a um, consoante a sua dimensão económica, primeiro os mais pequenos em economia e maiores em dívida, mas ameaça chegar aos outros, aos Estados Unidos de Obama também. Como será possível ter em atenção os argumentos de Polanyi, senhores economistas, transpô-los para esta crise e para a reformulação da vossa ciência, que Friedmann despolitizou e tão graves consequências está a ter, largando a brida à guerra dos capitais que ela deveria controlar?

Público, 18/07/2011

Neoliberalismo ou antiliberalismo?

1. Como se sabe, a noção de 'contrato', que implica uma ligação livre entre duas partes que obriga ambas, liga e responsabiliza, é uma das traves do pensamento liberal clássico, de Hobbes a Rousseau. Contra as sociedades autoritárias e clericais do Antigo Regime, propunha-se que as relações sociais se fizessem sem intervenção da autoridade real, entre pessoas livres e responsáveis, gente fiel à sua palavra.
2. Na actualidade, o contrato de trabalho é a maneira democrática de colocar quem trabalha como cidadão livre, de igual para igual com o seu empregador. Isto é a lógica do plano político e jurídico, que ao Estado compete resguardar, enquanto que, no plano económico, o trabalhador ‘desaparece’, o seu salário sendo incluído anonimamente na rubrica ‘custos de produção’. A consideração economicista do contrato de trabalho, que usa argumentos de ordem económica para lhe aumentar a precariedade, é assim, ao nível político, um antiliberalismo, que é o termo que lhe serve, em vez do de neoliberalismo. A bela palavra ‘liberal’, como sabem os Americanos, é uma palavra cara a todos os que se reclamam da tradição emancipatória europeia, a todos os que se querem social-democratas.

Islândia: economia rima com democracia ?

1. Foram os Gregos que inventaram, além da Filosofia (Sócrates, Platão, Aristóteles), tanto a democracia (Sólon, Clístenes, Péricles) para impedir que as casas poderosas eliminem as mais pobres, como a moeda do mercado quotidiano. Inventaram assim a Razão pública, de que Kant saudou o retorno no final do século XVIII, à Filosofia tendo-se juntado os laboratórios das Ciências. Sobrepondo-se às relações de força, a Razão procurará a liberdade: no caso do mercado, o dinheiro dá a liberdade de escolher o que comprar, em vez dum racionamento igualitário (como em Cuba). Note-se que a economia actual, que exige cada vez mais escolaridade a todos os níveis, só é viável com democracia, como à sua maneira asiática a China vai aprender.
2. É certo que o mercado não funciona sem lucros, mas também deveria ser claro que não há critério intrínseco (científico, aritmético) para na produção distinguir a parte dos lucros e a dos salários, o que ocorre sempre por razões politicas (concertação, greves). Há portanto um factor político, que deve ser de razão democrática, no coração da economia enquanto ciên-cia. A especulação financeira (‘especular’ é funcionar em espe-lho, sem ver para fora) passa-se apenas entre capitais e lucros, ignora as economias que a suportam, como quem serra ramos de árvores neles sentado: a bolsa dela mesma não é democrática. Mas pode ser chamada à democracia, como os referendos islandeses mostram exemplarmente, propondo um bom teste à democraticidade dos dirigentes políticos (holandeses e ingleses) e dos comentadores.
3. Assim como há ciências das línguas, das doenças, da agricultura, e por aí fora, a economia é só a ciência dos mercados, nem da produção (engenharias) nem dos usos caseiros das coisas compradas: ela é apenas a ciência dum sector da sociedade. Mas as sociologias sendo especializadas em sectores diversos, na ausência da sociologia do conjunto da sociedade e menos ainda da globalização, a economia arroga-se esse papel, sem concorrentes à sua altura.
4. Tomando a moeda como unidade de medida que permite reduzir (metodologicamente) a imensa variedade de coisas que se trocam nos mercados, ela não pode senão ignorar a dimensão politica que está no seu coração e revelar-se portanto inadequada para resolver questões democráticas como a que vive a Islândia (os bancos da fraude são privados), situa-ção a que o filósofo Derrida chamou aporia (beco sem saída) devida à conjugação indissociável na economia de duas leis contrárias, a das finanças internacionais e a da democracia (nacional), uma espécie de duplo laço esquizofrénico (Bateson) da economia. Marx teorizou no seu tempo esta aporia como contradição capital / trabalho e propôs como solução eliminar um dos factores, e com ele o mercado e a liberdade, veio a ver-se. O neo-liberalismo da escola de Chicago reinante que reduziu metodologicamente os salários de quem produz com o capital à rubrica dos ‘custos’, com a consequência tornada evidente que em tempos de crise é a primeira ‘despesa’ a ser alvo de redução como desemprego em massa, sinal oposto ao marxismo que condena a liberdade dos que não têm salário. A chance única do que se intitula socialismo ou social-democracia é procurar obedecer às duas leis e vale a pena ver como vai evoluir o caso da Islândia.
5. Sem ter competência para dizer como, é necessária uma ‘economia política’ adequada aos tempos de hoje, uma ciência que tenha as duas componentes do seu nome, as regras (nomia) e a habitação (oikos, casa) das populações, que deva diagnosticar o lugar – fora dela – do político, que possa evitar o que em 2008 nos ameaçou e já parece esquecido, que a ganância da especulação financeira dê cabo das sociedades. É a falta desta ciência uma das razões mais fortes para as dificuldades estratégicas da esfera socialista, a economia de hoje dá de bandeja o poder à direita e precipita as gentes para a rua, se não houver referendos.
Público, 15/04/2011

Cérebro e computador

1. Permita-se-me uma pequena reacção à entrevista de Ed Boyden (Público de 10/11/11) que é um bom exemplo do que é a investigação neurológica pelas bandas americanas, com a ressalva de um A. Damásio que deveria ficar infeliz se a lesse. Na sua juventude de sucesso, E. B. é uma figura simpática, mas a sua ingenuidade entusiástica deixa ver bem as lacunas do paradigma dominante na actual neurologia, submetido às inteligentes questões de Ana Gerschenfeld. Ele deverá ser um excelente engenheiro de laboratório, em geral nisso os Americanos são muito bons. Mas o laboratório não é tudo: ele arranca o fenómeno a estudar à cena do Mundo e cria condições experimentais de determinação que permitam conhecimentos, experiência a experiência, sempre fragmentariamente. E por isso é necessária, antes e depois, uma teoria adequada do que se passa na cena do Mundo a que o fenómeno é restituído e é quando se pode verificar a compreensão que se ganhou.
2. É o paradigma que E. B. exibe, socorrendo-se de exemplos de investigações que se estão a fazer ou de ‘há quem pense que’, de ‘escolas de pensamento’; por vezes são investigadores de informática, que têm problemas de paradigma equivalentes quando tomam o cérebro como modelo para os computadores. Sabendo embora que o cérebro não funciona em código binário O/1, estes neurólogos acham que “é possível representar seja o que for com um código digital”, e E. B. cai na armadilha que Ana G. lhe estendeu: que virá a ser possível, embora “muito difícil, muito difícil”, “colocar as nossas memórias num disco rígido e recuperá-las em caso de Alzheimer”!
3. A questão da comparação entre cérebro e computador está viciada nos pressupostos: que o cérebro serve para calcular e pensar, iludindo que os cérebros humanos que fazem isso são essencialmente muito parecidos com os de chimpanzés ou de cães, os quais são incapazes de calcular e pensar como os computadores. Os nossos cérebros animais foram inventados pela evolução para gerir a alimentação e a respiração e para caçar e fugir a ser-se caçado, é para isso que há ‘neurónios’ articulados com hormonas e outras químicas. Calcular deve-se à invenção de números, pensar à invenção de línguas, que, com técnicas de habitação, introduzem – aprendendo-se – nos nossos cérebros lógicas sociais, variáveis com as antropologias: o nosso cérebro é simultaneamente um órgão biológico e social. O computador é só social.
4. Um último ponto: “se substituirmos as células uma a uma por pequenos computadores que reproduzem exactamente o que cada célula faz”, diz E. B. a dado momento, e eu não queria acreditar nos meus olhos. A especificidade dos neurónios enquanto células animais é de, com muitas centenas de sinapses, fazerem redes com milhares de outras células e assim se afectarem umas às outras formando, redes com redes, um cérebro auto-afectado e afectado pelo mundo. Isto é, ‘um neurónio’ não existe por definição: neurónio é sinapses! Vê-se bem como fazem falta neurólogos teóricos, capazes de articular o trabalho de laboratório com a cena do mundo.

sábado, 15 de outubro de 2011

A Economia Política por vir enquanto ciência terapêutica

1. Todas as ciências sociais dignas desse nome foram instituídas a partir (além da geometria) da matriz filosófica herdada pela Europa da Grécia e das universidades medievais, matriz com a qual tiveram que romper como condição da sua autonomia científica, tanto teórica quanto metodológica e experimental. Foi Kant quem teorizou filosoficamente essa ruptura e concedeu autonomia às ciências que se instituíram barulhentamente nas universidades europeias do sec. XIX. Mas não podendo darem-se conta dos motivos teóricos e práticos adquiridos a partir dessa ruptura, não podendo justificarem-se epistemologicamente, as ciências guardam do seu nascimento uma espécie de umbigo filosófico que o seu desenvolvimento histórico reelaborará sem que os seus cientistas dêem por ela. É verdade das ciências da matéria e da energia, as primeiras e romper desde Galileu e Newton, das ciências dos vivos, das sociedades, da economia enquanto ciência social. É este umbigo inacessível aos economistas que, sem que eu o seja, me interessará aqui: abordá-lo-ei a partir do que chamei filosofia com ciências ou fenomenologia reformulada, sem poder detalhar aqui esses meus pressupostos.

As ‘leis económicas’ dependem dos contextos sociais
2. Começarei citando dois economistas, cuja competência releva de economias exteriores ao espaço euro-americano. Primeiro, o japonês Taichi Sakaiya, que trabalhou no célebre Ministério do Comércio e Indústria Internacionais (MITI) , aonde foi o responsável de duas Expsições (Osaka 1970, Okinawa 1975). “A experiência do Japão moderno, sobretudo depois da guerra, é cheia de excepções ao que, a nível mundial, é considerado como um corpus de leis económicas. Por exemplo, o Japão conseguiu um crescimento económico rápido ao mesmo tempo que os diferenciais dos rendimentos diminuíam de forma considerável. As empresas cresceram e os seus empregados tornaram-se mais leais para com elas. O leque salarial reduzido e o sistema de emprego para a vida inteira não fizeram diminuir a competição para a promoção nas empresas. Ainda que as diferenças entre os rendimentos e as posições baseadas em diplomas académicos sejam menores do que em qualquer outro país, a competição nos testes e exames é intensa. Quando os níveis de rendimento aumentam, os trabalhadores não baixam o ritmo do trabalho. A urbanização crescente foi seguida duma diminuição das taxas de criminalidade. Uma transição para o sector dos serviços na actividade económica não produziu um aumento da economia subterrânea” . O que implica que este “corpus de leis económicas” muda segundo as diferenças antropológicas (históricas ou sociológicas), o que o autor ilustra seguindo o percurso histórico do Japão.
3. A uma conclusão semelhante – a alteração das leis económicas segundo os contextos sociais – chegou o economista francês Jacques Sapir, que acompanhou in loco desde os anos 80 a economia soviética primeiro e russa em seguida, ensinando a ciência económica em Moscovo. É a sua competência excepcional sobre “o fracasso repetido das políticas inspiradas, ou sugeridas, pelas organizações internacionais e pelos seus colegas que gozam da melhor reputação na profissão (p. 9) que torna preciosa a citação que encerra a discussão conduzida sobre “quatro dos principais paradigmas da acção económica contemporânea [que] nos deixa perceber o campo de ruínas em que se tornou o pensamento económico dominante. [...] 1. As vantagens e desvantagens dum crescimento da concorrência, da descentralização, da flexibilidade ou dum reforço da propriedade privada [são os quatro paradigmas discutidos], são contingentes aos contextos institucionais, estruturais e técnicos em que essas decisões devem ser tomadas. Não pode pois haver nenhuma regra geral, mas uma análise caso por caso, e a contribuição dos economistas pode residir numa análise concreta de situações concretas. 2. A economia, enquanto disciplina científica, não pode fundar na sua totalidade uma tal decisão, seja em que sentido for. Há uma parte irredutível de escolha social e ética que implica que a decisão não seja o facto de técnicos, juristas, mas que ela empenhe a representação política da comunidade em questão” (eu subl).

Ciência social ou ciência da sociedade ?
4. É que a economia não é uma ‘ciência da sociedade’ na sua globalidade, ela é apenas uma ‘ciência social’, tal como a linguística, o direito ou a demografia, ou mesmo a medicina, isto é, uma ciência que trata de certas estruturas das sociedades contemporâneas, as que dizem respeito ao mercado, enquanto que a ciência que deveria dar conta da globalidade das estruturas dessas sociedades, a sociologia, é manifestamente incapaz de o fazer, parecendo limitar-se a certos campos – sociologia da educação, da família, da cultura, dos médias, eleitoral, e por aí fora -, como uma ‘ciência social’ entre outras, confessando-se implicitamente incapaz de atingir a maneira muito complexa como essas diversas estruturas se imbricam umas nas outras, algumas (a língua, escola e médias, administração política e mercado) atravessando todas as outras. O que penso é que, assim como no tempo da organização moderna dos Estados nações, coube ao direito o papel indispensável de ‘ciência da sociedade’ global, também é hoje, nestes tempos de globalização dos mercados, a economia que supre uma sociologia incapaz de assumir esse papel que teoricamente lhe competiria. E como estar-se-á facilmente de acordo que esse papel seja cumprido pela economia enquanto a sociologia não estiver à altura dele, a questão que há que colocar é a das escolhas que ela tem que fazer, dada, como dizia Sapir, “a parte irredutível de escolha social e ética que implica que a decisão não seja tomada por técnicos, juristas”, os técnicos em questão sendo aqui claramente os economistas. Estas escolhas, na medida em que elas relevem de abordagens científicas, deveriam ser primeiro objecto das investigações da sociologia, é a ela que os políticos, os activistas e os cidadãos deveriam pedir esclarecimentos. Também os economistas: que estatísticas ter em conta, o que é que há que preservar de social à partida?

A lei da selva e a lei da guerra
5. Para perceber o que é que com efeito é problemático na globalização dos mercados e das tecnologias, incluindo os médias, há que fazer uma breve digressão recordando como a evolução foi dominada pela lei da selva, ligada a razões bioquímicas precisas (1. 7-8). As espécies mais evoluídas, os artrópodos entre os invertebrados e as aves e os mamíferos entre os vertebrados, chegaram a endogamias estritas para defenderem o que as torna diferentes das que estão mais próximas, mormente o sistema neuronal que articula em torno do cérebro os órgãos de percepção e locomoção, quer para a preensão das presas, quer para se defenderem dos predadores. Foi por isso que nós, os humanos, herdámos músculos e cérebros de espécies hábeis para se desenvencilharem sob a violência da lei da selva. Se a invenção da agricultura e da criação de gado representou a domesticação pelas sociedades humanas da lei da selva, esta já se tinha deslocado para uma outra forma de lei, a lei da guerra entre elas, sociedades, P. Clastres tendo demonstrado a existência de uma fronteira dentro da qual se trocam mulheres e presentes, fora da qual se guerreia. A explicação passaria aqui por um factor que se dirá antropo-químico, ‘vontades’ (envies) com base hormonal que, por um lado, pedem regras morais, usos e costumes, a começar pelo interdito do incesto, para os moderar ‘ad intra’e, por outro lado, empurram para a guerra ‘ad extra’. De forma muito geral, como vimos, trata-se da ‘vontade’ (envie) de fazer como os outros, essencial à dinâmica de toda a espécie de aprendizagem, mas que facilmente se pode tornar ‘vontade’ (envie) de ser invejado (envie) pelos outros como o mais forte e hábil. Ora, a agricultura e a domesticação de gado, ao mesmo tempo que controlavam a lei da selva, também tornaram possível a acumulação de riquezas não perecíveis que fizeram mudar a natureza da guerra, a tornaram guerra de conquista – de espólios e despojos, de escravos, de sociedades reduzidas à vassalagem –, as castas nobres sendo em todo lado a dos guerreiros.

O comércio global contra a guerra global
6. O livro notável do socialista não marxista Karl Polanyi, La Grande transformation. Aux origines politiques et économiques de notre temps, escrito em 1944 , após as suas primeiras palavras – “a Paz de cem anos. A civilização do século XIX desabou” (p. 219) – prossegue um pouco adiante: “no século XIX produziu-se um fenómeno sem precedentes nos anais da civilização ocidental: os cem anos de paz de 1815 a 1914. À parte a guerra da Crimeia, acontecimento mais ou menos colonial, a Inglaterra, a França, a Prússia, a Itália e a Rússia não fizeram guerra umas às outras senão dezoito meses no total” (p. 23), apesar da enorme quantidade de conflitos ‘locais’ que balizaram o século . Eis o seu diagnóstico: “o comércio estava agora ligado à paz. No passado, a organização do mercado tinha sido militar e guerreira. Era um auxiliar do pirata, do corsário, da caravana armada, [...] dos mercadores com espada, da burguesia urbana em armas, dos aventureiros e exploradores, dos das plantações e dos conquistadores, dos caçadores de homens e dos traficantes de escravos, e dos exércitos coloniais das companhias. Tudo isso agora estava doravante esquecido. O comércio dependia agora dum sistema monetário internacional que não podia funcionar durante uma guerra geral. Exigia a paz, e as grandes Potências esforçavam-se por a manter” (p. 36). Isto era escrito a quente: a primeira globalização, após uma centena de anos de paz, acabava de sofrer durante 30 anos uma implosão inenarrável, é o que o seu livro procura explicar. A tese é a seguinte: o mercado auto-regulador (promovido pelo liberalismo inglês) foi a causa das duas grandes guerras, na medida em que desencadeou proteccionismos de defesa que degeneraram em nacionalismos. Eis o ponto decisivo da sua argumentação: ‘mercadoria’ sendo empiricamente definida como objecto produzido para ser vendido no mercado e ‘mercado’ como os contactos efectivos entre vendedores e compradores, resulta na prática que deve haver mercados para todos os produtos da indústria; este postulado, diz Polanyi, é falso no que diz respeito à força de trabalho, à terra e à moeda, já que nenhum foi produzido para ser vendido, nenhum é pois ‘mercadoria’. Os três devem ser preservados do estatuto mercantil que o liberalismo lhes atribuiu.

“O capitalismo prospera; a sociedade degrada-se”
7. Não é aqui o lugar (nem eu teria competência para tal) de discutir esta tese, que nos pode em todo o caso servir de indicador sobre um ponto essencial da nossa actualidade: o liberalismo acérrimo, regressado há uns 30 anos, corre o risco de destruir as estruturas da própria sociedade global. Já que “O capitalismo prospera; a sociedade degrada-se”, constatam numa fórmula lapidar Luc Boltanski e Ève Chiapello . Quer dizer que novas formas de implosão podem perfilar-se no horizonte. Em todo o caso, parece que, apesar da frequência de conflitos locais, os 65 anos de paz global desde 1945 devem ser contados como a retomada da que durou todo o século XIX. Seremos libertados então da lei da guerra? Claro que não. Enquanto as instituições e tratados de direito internacional prosseguem a busca do seu controle, ela simplesmente deslocou-se para outro lado, sem cessar o seu jogo em todo o lado onde rivalidades e raivas se manifestam, isto é, por onde quer que haja humanos. Além dos conflitos locais e regionais, ela é bem visível, por exemplo em que as regras a tornam ‘simbólica’, como se diz, na organização espectacular dos desportos, tanto na áspera competição dos atletas como na paixão dos seus adeptos. Por outro lado, o que aqui nos interessa, ela tem um papel fundamental em economia que, no domínio financeiro, está cada vez mais dependente duma verdadeira guerra dos capitais. Talvez haja só os economistas para não se darem conta, por razões ideológicas do ofício, já que é evidente para qualquer observador honesto, isto é cujo objectivo na vida não é enriquecer, é evidente que a lógica profunda da economia mundial nos últimos 30 anos é a duma guerra de números, que busca os números cada vez maiores. Números que se tornam astronómicos, portanto abstractos: que sejam maiores do que os dos concorrentes. É certo que esses números traduzem-se em poder comprar unidades sociais, nomeadamente no estrangeiro, territórios a ‘conquistar’ como no colonialismo clássico, agora por meio de capitais e tecnologia, mas também aí o que se procura é o aumento dos números. É o momento de procurarmos abordar o coração da ciência económica.

A moeda e a redução científica em economia...
8. Por onde o fazer, da maneira ‘fenomenológica’? Digamos que os economistas não fazem nada para nos facilitar a tarefa. Num belo texto de 1969, Numismatiques, uma espécie de teoria filosófico-lacaniana das moedas, J.-J. Goux aborda a economia pela teoria da moeda e da mercadoria do Capital de Marx. O ponto decisivo é que o papel de qualquer equivalente geral de circulação de mercadorias, o ouro na época, implica que ele seja excluído, retirado do seu estatuto de mercadoria, para se tornar – sob a forma de moeda – susceptível de ser trocado por qualquer tipo de mercadoria, segundo preços expressos por cada uma em valor monetário. Para os estabelecer, é preciso, é certo, contar os seus diversos custos de produção industrial, mas uma vez isso feito, o produto torna-se mercadoria durante o tempo da sua circulação no mercado, o seu valor de uso sendo reduzido, ignorado pelos números do mercado, como condição estrutural da própria troca, do mercado, e portanto também da economia enquanto ciência. Esta trabalha com números estatísticos: preços e quantidades de mercadorias, pagamentos e vendas, custos e lucros. Esta redução é a operação propriamente científica da economia, tal como a mutação em linguística estrutural ou as medidas de distância, tempo, peso, temperatura, etc., em física. Ela torna possível a constituição de arquivos estatísticos como laboratório científico da ciência económica, fora da cena propriamente dita do mercado e do seu aleatório indefinido, torna possível instituir ‘fenómenos económicos’, no sentido de susceptíveis de ‘experimentação científica’. Trata-se de fragmentos (laboratoriais) que a teoria – organizadora da experimentação – deve reunir, unificar, afim de poder em seguida generalizar. Como vimos, qualquer laboratório científico de qualquer ciência reduz por definição, por estrutura, a ‘coisa’ a analisar, retirando-a do seu contexto na cena da dita realidade: a comutação linguística reduz o ‘sentido’ das unidades linguísticas analisadas para constituir os seus paradigmas, como o físico reduz a ‘qualidade’ dos fenómenos para não reter senão as dimensões requeridas para a experimentação. O que significa que há uma ‘cegueira’ desta redução que é a ranção da cientificidade ganha, cegueira sobre a cena ‘real’ sobre a singularidade dos seus jogos incessantes, sobre as suas indeterminações. É esta cegueira dos laboratórios dos engenheiros que explica, por exemplo, os efeitos de poluição das suas máquinas, efeitos que o laboratório teve que reduzir, deixar fora do laboratório. Quando uma dada teoria económica tem como finalidade compreender, ou mesmo ‘prever’, tais agenciamentos macroeconómicos, não se pode tratar nem das ‘predições’ sobre o comportamento de tal ou tal agente económico, nem das suas incidências noutros factores sociais reduzidos pela redução científica. Por exemplo, se tal política económica pode prever os limites do aumento do desemprego que será consequência da sua aplicação, não pode todavia saber, por ela mesma, se haverá ou não em consequência uma explosão social, ou algo semelhante, que possa pôr em causa o aspecto económico que essa política visava regular.

... escondem a política dentro das escolhas económicas
9. O que é problemático, é que é esta redução de tudo o que não é mercado pela moeda, esta operação científica da economia, que justifica, parece-me, a viragem monetarista dos anos 70 para o neo-liberalismo de que hoje constatamos os efeitos de crise sobre as sociedades. Contradição do meu discurso? Pelo contrário, é a sua confirmação: a economia não é uma ciência da sociedade, é apenas uma ciência social, a que diz respeito à estrutura social que é o mercado e, para sê-lo, tem que reduzir tudo o que nas sociedades modernas não é susceptível de mercado, que ela não pode senão ignorar, devido à cegueira metodológica dessa mesma redução, limites do seu laboratório. Foi assim que este neo-liberalismo monetarista expulsou a economia política de Keynes que tornou possíveis os famosos 30 gloriosos anos de 47-73, a expulsou com argumentos próximos das ‘evidências científicas’ ligadas a esta redução. A moeda presta-se a isso, com efeito: o capital (qualquer que seja a sua forma jurídica de propriedade, privada, fundos de pensões, estatal) seria o único factor social que não é reduzido, já que ele se exprime em unidades monetárias, enquanto que os trabalhadores são reduzidos a salários que são facilmente ‘escondidos’ como ‘custos de produção’ , fáceis de suprimir em nome da produtividade, isto é, da concorrência entre capitais, sem que o desemprego seja ‘visível’ nas contas. Outra consequência é a chamada flexibilidade que visa diminuir, senão anular, o que foi uma das principais apostas liberais nos séculos clássicos (Locke e Rousseau), a noção de contrato social entre homens de palavra, como alternativa filosófica às relações hierárquicas sacralizadas do Antigo Regime, e que representa a única defesa social, jurídica e não económica nem directamente política, de quem ‘produz’ aquilo de que o capital colhe os frutos. Coisas que a economia enquanto ciência ignora.
10. O que desaparece nesta maneira liberal de fazer as contas económicas é um dos pontos incontornáveis da análise socialista: a distribuição das mais valias da produção industrial, após abaterem-se os custos em materiais e energia e pagos os impostos e juros de financiamento, esta redistribuição – entre o conjunto dos salários de todos os que trabalham na empresa, por um lado, e os lucros do capital – permanece essencialmente aleatória. Ela não é susceptível de uma regra científica ou dum critério aritmético intrínseco, é sempre o efeito duma apropriação. É óbvio que ela não é independente da cena do mercado e da sua instabilidade estrutural, a montante como a jusante. Nomeadamente depende de que os salários deverão permitir a reprodução quotidiana dos trabalhadores e das suas famílias (precavendo-se as futuras gerações) que habitualmente, pelo efeito da própria revolução industrial que concentrou as populações nas grandes cidades, não dispõem já dos recursos de auto-consumo (hortas e galinhas) e têm portanto que comprar tudo aquilo de que precisam. Mas estas precisões, por outro lado, também são aleatórias e não têm limites: pelo jogo disseminante da própria publicidade das marcas, fomentado pelo valor de uso em vista de melhorar o valor de troca no mercado, há sempre coisas de mais a querer comprar, viajar, etc. A distribuição entre salários e lucros constitui uma aporia, entre ‘vontades’ (envies) mais ou menos invejosas (envieuses), aquilo a que os marxistas chamam ‘luta de classes’: não havendo solução racional, esta não pode pois ser senão política. Marx teorizou-a como contradição entre capital e trabalho, tendo decidido politicamente eliminar um dos factores, com a consequência de restrições à liberdade que se viram. O neo-liberalismo tende a fazer a ‘decisão’ inversa, a ‘ignorar’ o factor trabalho, como se disse (‘custos’ e não ‘contratos’), ou seja a ignorar a ‘sociedade’(“a sociedade não existe”, disse Mrs. Thatcher): a crise financeira recente, ao provocar a devastação das próprias economias, mostra bem o erro da ministra. Estes dois séculos de industrialização capitalista contam como a solução da aporia foi sempre política, através quer de greves e de lutas mais ou menos selvagens, quer de concertações mais ou menos sob a égide do Estado. É este carácter essencialmente político da economia ser apagado pela redução monetária, que dá boa consciência liberal – trata-se sempre da lei da guerra – aos generais, oficiais e sargentos, aos quadros das grandes empresas, cuja finalidade é a de enriquecerem, os seus salários costumando ser negociados nos bastidores.
11. O imperativo da poupança dos custos (economia no sentido corrente da palavra) que hoje se generaliza – em nome da sacrossanta competitividade, da guerra dos capitais – tem assim um alvo imediato, evidente, os salários da infantaria (chamam-se assim os que não têm palavra – in-fans – na guerra), o seu despedimento e readmissão facilitados, ‘flexíveis’. O outro alvo diz respeito ao domínio da produção, submetido à competência do engenheiro e não do economista gestionário. Com efeito, há um duplo laço nas empresas, um técnico, que liga máquinas, matérias primas e trabalhadores no processo de produção (as “forças produtivas” de Marx) e o outro, mercantil, que liga ao mercado (as “relações de produção”), as suas duas leis são indissociáveis (não há trabalho sem capital e mercado) mas também têm aspectos inconciliáveis, numa aporia articulada à outra, o engenheiro sendo sistematicamente submetido à pressão de baixar os preços, com os riscos de qualidade da produção. Já que o engenheiro, aludiu-se acima, também opera uma redução laboratorial com a respectiva cegueira estrutural, por exemplo tudo o que diz respeito ao ambiente, quer o interno do fabrico e das condições de trabalho, quer o exterior, a chamada poluição. Aqui, a pressão da poupança dos custos, cega do ponto de vista da ciência económica, opera-se sobre uma outra cegueira ‘científica’, o perigo tornando-se duplo e devendo ser também evitado politicamente, corrigido por outros critérios, como sucede na confecção dos orçamentos nacionais ou municipais, isto é, por instâncias essencialmente locais, cada vez mais impotentes diante da multinacionalidade do capital e da tecnologia.

A cegueira estrutural duma ciência social que se toma por ciência da sociedade
12. Em resumo, a redução monetária, própria da economia enquanto ciência social, é incompatível com o lugar por ela ocupado duma ciência da sociedade, já que esse lugar tem que ter em conta o que é reduzido, deveria articular as diversas reduções das diversas ciências sociais. É certo que não é fácil dizer o que seria, o que será? essa ciência global da sociedade , mas insista-se. As pessoas podem ser mais ou menos avisadas, inteligentes e sensíveis à ecologia e ao social, esta cegueira estrutural da economia enquanto ciência tem efeitos sobre as suas hipóteses teóricas, sobre a sua maneira de seleccionar as estatísticas a ter em conta, permite compreender as diferenças de concepção (ideológicas, de boa consciência) entre os diversos actores, tanto económicos como políticos. A questão que haveria que levantar: faltando uma sociologia como ciência das sociedades globais que servisse de guia à economia enquanto ciência do mercado, podem-se encontrar critérios susceptíveis de consenso científico, que não o duma ‘ciência normal’ (Kuhn) cega? À maneira, por exemplo, da ciência jurídica, que recebe as questões sobre as quais trabalhar – a escravatura, o aborto, a pena de morte, a eutanásia, a pedofilia – do debate político democrático: não é ela, ciência social terapêutica, que decide das respostas a dar-lhes. Seja outro exemplo duma ciência positiva terapêutica, a biologia dos mamíferos humanos enquanto ciência, isto é, a medicina. Sendo uma ciência positiva, visa mais do que o conhecimento fundamental em anatomia e fisiologia humanas, visa as suas doenças, tem por finalidade as curas singulares. Foram as doenças, desde Hipócrates pelo menos, que puseram as questões a que a medicina tenta responder: ninguém negará que, tal como o direito, a medicina é uma ciência essencialmente terapêutica. Ora, acontece que, nas sociedades modernas, hospitais, indústria farmacêutica, consultas médicas, clínicas variadas, pertencem às unidades sociais de que a economia se deve ocupar, dos seus custos, salários, lucros, etc., fazendo face à aporia de decidir entre curar e poupar, lucrar. Há muito tempo que os médicos sabem que a alimentação, tanto a quantidade quanto a qualidade, é essencial para a saúde das populações: se se encontrarem diante duma situação de fome acelerada, diante dum desemprego crescente, por exemplo, devido a uma crise económica grave, corre-se o risco de se porem problemas insolúveis de custos de tratamentos que farão agravar a crise. Se esta for económica, não se pode pretender que se trate duma questão exterior à economia enquanto ciência, já que ela diz essencialmente respeito, antes de tudo o mais, a gente que come (como justificar os salários se não for assim?). O que significa que a fome é uma questão social que se põe à economia antes de se por à medicina, conclusão sem dúvida inesperada: a economia tem que ter em conta a biologia nas suas hipóteses teóricas de base, esta conclusão faz parte da ‘unificação dos saberes’.

A tarefa da economia política: controlar a lei da guerra dos capitais
13. Invoquemos para terminar um outro economista não alinhado com o pensamento único da Escola de Chicago. Segundo o canadiano Gilles Dostaler, a designação clássica de economia política faz “referência a uma tradição multidisciplinar de abordagem dos problemas económicos e sociais, em oposição a uma abordagem mais fechada ou especializada que postula que a sociedade é composta duma soma de agentes racionais. [... ] [hoje] convidam-se os economistas na praça pública como técnicos que teriam uma resposta técnica a um problema técnico [...] podendo ser tratado matematicamente e de forma determinista. [...] Keynes denunciou esta hiper-matematização, ele dizia que o ciclo económico é um processo político, social, psicológico, ideológico, tão complicado que não se o pode por numa equação e dizer: ‘é assim! Se se passa isto, vai suceder aquilo...’. Keynes dizia que o economista deve ser humilde como um dentista [um terapeuta], um tecnicozinho. Ora, [...] hoje dá-se à economia um estatuto análogo à física ou à biologia”. Através da redução operada pela moeda, a economia deve ser a ciência da habitação (oikos, a casa, nomos, o seu governo), tal como a medicina é a ciência das doenças através da redução operada pelos laboratórios bioquímicos. É óbvio que não tenho nada a dizer de minimamente preciso a respeito do que deve ser esta economia enquanto ciência terapêutica da habitação humana na Terra, das suas maneiras de ter em conta as questões ecológicas, a fome, a pobreza, o desemprego, como chegar a esse controle da lei da guerra no que diz respeito ao capital financeiro especulativo. A ‘especulação’, do latim speculum, espelho, é um exemplo flagrante dos efeitos da cegueira monetária: nas bolsas, só se dá atenção ao que mostram os ecrãs, os números dos capitais, lucros e perdas, sem se saber directamente nada da realidade empresarial e económica, dos trabalhadores e das poluições, excepto pelos seus efeitos nos números do espelho. Os mesmos Gregos que inventaram a economia, inventaram também a democracia como maneira política, através de debates e votação de leis, de impedir que as casas poderosas não absorvam ou esmaguem as casas mais fracas. Os Romanos inventaram o direito por razões semelhantes, mas dando lugar ao direito de uso e abuso da propriedade aos cidadãos ricos, que gozavam do imperium, dum poder de expansão por via militar que porventura estará na raiz remota dos números astronómicos que servem de alvo na guerra dos capitais, cuja única condição parece ser a de ser maior do que os dos concorrentes. Ora, assim como camiões TIR, carros de luxo e carros utilitários usam as mesmas estradas devendo sujeitarem-se à regulação do código da estrada, assim também os Estados devem regular, criar regras democráticas às economias nacionais. A sua impotência crescente diante das finanças multinacionais, exibida na crise que essa especulação provocou sobre as economias americana e europeias será uma outra razão para a ciência económica assumir a necessidade de regulação política dos mercados. Já que se ela não serve para evitar este conflito entre finanças e economia, que ciência é ela?
14. A questão é que isso implica uma viragem epistemológica que não se vê como acontecerá, quem ou o quê poderá estar na sua origem. Um exemplo histórico relativamente recente, o da economia política de Keynes nos anos 30, poderá dar alguma luz. Do pouco que sei, pode-se pensar que, vendo a crise de 1929 e compreendendo as lições do New Deal de Roosevelt, ele procurou repensar a sua ciência no sentido do que seria necessário para remediar à crise, responder-lhe terapeuticamente. “Não pode pois haver nenhuma regra geral, mas uma análise caso porã caso”, dizia Sapir, como é o caso das ciências terapêuticas, ‘cada caso é um caso’, diz-se habitualmente em medicina e reabilitação, na jurisprudência ou no projecto duma barragem ou duma ponte em engenharia civil. A economia política é a que têm que exercer os Estados, as municipalidades, todas as instituições que têm que fazer um orçamento para controlar as suas despesas, determinando prioridades consoante: é a esse nível que se exerce o essencial da economia, que precisa de 'ciência' adequada. [Parece ao leigo que a economia monetarista de Friedman prefere ater-se ao que se joga na guerra dos capitais, mas sem saber como os desarmar quando entram em especulação, como evitar os efeitos colaterais desta sobre a economia real, como se diz, os efeitos que a estão devastando, a essa coisa que é seu 'objecto' preservar. Que ciência é esta cuja base são os 'desejos' de capital, o seu crescimento como sendo a sua lei? Há dois princípios contradictórios a pretenderem reger a tal economia real, um do lado da troca de capitais, do cimo, o outro do sopé, da habitação, da 'oikos'.]
15. Haverá sem dúvida já jovens economistas que buscam trabalhar no sentido de inverer este estado de coisas. Admitindo que cheguem a resultados susceptíveis de aplicação terapêutica, o problema será: e como fazer para que estas novas concepções penetrem nas universidades de pensamento único (totaliárias, como as sociedades de partido único), se tornem, senão dominantes ou maioritárias, pelo menos admitidas à exposição magistral, à discussão? Como pretender que essas discussões possam contribuir para o que Boltanski e Chiapello chamaram o “novo espírito do capitalismo”, cheguem a ter efeitos na guerra dos capitais? O exemplo de Keynes é paradoxal: a sua teoria só teve êxito entre os economistas e os políticos após a guerra de 39-45, foi preciso um cataclismo pavoroso para que a viragem da ciência económica fosse viável. Ora, eu escrevi isto em 2007, depois houve uma crise fortíssima que justificou, infelizmente, aquilo que aqui escrevi (a especulação sobre as ‘subprimes’ desencadeou falências de bancos e desmoronou numerosas economias fundadas em créditos estrangeiros) e somos obrigados a constatar que, nem economistas, financeiros ou dirigentes políticos nem eleitores (a votarem à direita), ninguém parece ter aprendido nada! Não havia Keynes nenhum? Ou o cataclismo não foi suficiente? Há, é certo, correntes alter-mundialistas e ecologistas muito variadas, mas para deixarem de ser minoritárias, precisarão duma crise mais forte? Um texto como este não podia terminar bem.

Qu’est-ce que l’économie politique? Entrevue de G. Dostaler por Forgues e Thériault, in www.unites.uqam.ca./aep/dostaler.html
Fernando Belo, Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida, vol.1. Scène, retraits et régulation de l’aléatoire, vol.. 2. La Phénoménologie reformulée, en vérité, L’Harmattan, 2007.
Idem, La Philosophie avec Sciences au XXe siècle, L’Harmattan, 2009
Luc Boltanski e Ève Chiapello, Le nouvel esprit du capitalisme, Gallimard, 1999
Karl Polanyi, La Grande transformation. Aux origines politiques et économiques de notre temps, Galimard, 1983
Taichi Sakaiya, Japão. As duas faces do gigante, trad. port. par A.-P. Curado de l’édition américaine, What is Japan ? Contradictions and transformations (Kodansha America Inc., 1993), Difusão Cultural, Lisboa, 1994, p. 151.
Jacques Sapir, Les trous noirs de la science économique. Essai sur l’impossibilité de penser le temps et l’argent, Albin Michel, 2000, pp. 263-4 (sublinhado meu)

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

OS HOMENS: A GUERRA E A LEI, A ESCRITA E A MÁQUINA

1. Partirei duma modificação da questão de José Gil citada na convocatória deste encontro: “quem sou eu como homem?”, supondo assim que há na tradição ocidental uma certa variabilidade, um leque de possíveis da vertente masculina do género, que normalizam os que nascem rapazes, isto é, lhes fornecem as ‘normas’ do que se chama educação.

As corridinhas da minha vida

2. O honroso convite para estar aqui - que agradeço à generosidade da Teresa Joaquim, que não quereria decepcionar -, sobrevindo quando acabo de ser reformado da actividade profissional, permitiu-me olhar para o meu ‘curriculum vitæ’ (à letra, curriculum é ‘corridinha’) com o olhar aguisado por essa questão: que género de homem fui eu? dentre os possíveis, nos últimos 70 anos, para um lisboeta de média burguesia sem heranças e portanto dependendo, para começar, dos estudos que fizesse.
3. O contraste é nítido entre a regularidade da segunda parte desse currículo (quase 30 anos de ensino universitário) e a instabilidade da primeira: estudos de engenharia civil, acabados os quais entrei para um seminário católico estudar filosofia e teologia para ser padre e deixar de o ser sete anos mais tarde após ter acabado uma licenciatura de teologia em Paris. Ora, esta instabilidade - com excepção da entrada para o seminário, pelo menos a nível consciente - parece-me ter sido sempre ditada mais por exclusão de partes, por uma recusa de possíveis, pelo que não queria, do que por uma escolha positiva: quero isto. Lembro-me bem, embora não o saiba explicar, que só direito, medicina e engenharia apareciam como cursos superiores possíveis ao rapazito que eu era, aluno médio, bom sobretudo em matemática. As duas primeiras foram excluídas, uma por ser letras, outra por pouca matemática, ambas pelo trabalho de memorização que implicavam, como também depois engenharia civil foi a opção que ficou por não querer nenhuma das outras cinco engenharias então possíveis. Além destas, haveria duas outras possibilidades tradicionais, a da tropa e a do clérigo: a primeira nunca se me pôs, o asmático magríssimo que eu era, que jogava à bola mas não à pancada, foi isento do seviço militar (embora tenha acabado por ir lá parar, por ínvios caminhos e não voluntariamente). A segunda só se pôs mais tarde, na sequência duma conversão espiritual muito intensa, veio a impôr-se inesperadamente à ‘opção’ de engenheiro que me sobrara, a modos da tal escrita direita por linhas tortas. Mas veio a esvaziar-se progressivamente ao longo dos fabulosos anos 60 (desde 65 que saí, primeiro para Louvaina, em 67 para Paris), esses anos em que a revolução sexual exibiu o abalo formidável do patriarcado ocidental, em que o clérigo que eu era cedeu à política, à liberdade intelectual e ao desejo da experiência sexual. Donde resultaram dois filhos e um livro francês que me abriria as portas universitárias de Lisboa. A instabilidade só parou quando, na primavera de 75, fui convidado, por sugestão do Fernando Gil e do Manuel Vilaverde Cabral, por três estudantes de Filosofia da Faculdade de Letras a ir para lá dar aulas. Tudo se passa como se até aí tivesse andado às arrecuas, a que este inesperado convite acabou por vir dar sentido. Em resumo, enquanto que a guerra e a lei sempre me fizeram fugir, foi entre a máquina e a escrita que oscilei, com um recuo intermediário no tempo que me ajuda a perceber que há sempre sobrevivências possíveis na história, a duvidar dos triunfos modernos, que podem não ser duradouros.
4. Recapitulando por onde andaram as minhas escolhas e recusas - leis, medicina, construção técnica, guerra, clero e filosofia - quero crer que, à excepção das artes e do duro trabalho manual, se trata dos principais modelos normativos da actividade tradicional dos homens europeus, donde as mulheres estavam liminarmente excluídas. Todos pertenciam ao paradigma mais geral do género medieval e europeu: o patriarcado. Sendo a vertente feminina deste bastante conhecida, eu pretenderia fazer um desenho sobretudo da vertente masculina, duma certa lógica do seu jogo, daquilo que diria serem as suas ‘figuras filosófico-antropológicas’.


As casas e a lei da guerra

5. Para dar a entender o género literário do meu discurso, diria que na última dúzia de anos me tenho dedicado a compreender, de uma forma quase pragmática, quatro momentos-chave do discurso filosófico greco-europeu: a) em torno da escola socrática e da sua invenção da definição e da argumentação sobre conceitos (Sócrates, Platão e Aristóteles), b) a elaboração medieval da teologia cristã a partir de conceitos filosóficos (Aquino, Occam), c) a invenção do laboratório científico (Descartes, Gallileu, Newton, Kant), d) a revolução industrial e o concomitante desenvolvimento das ciências, mormente no século XX (Husserl, Heidegger, Derrida). De uma forma quase pragmática significa que os gestos filosóficos são lidos na sua eficácia antropológica e histórica. Também incidiram sobre as configurações do género masculino europeu, será o que tentarei evocar.
6. Apesar da sua variedade ao longo da história e da geografia, creio que se pode dizer que o patriarcado é a forma geral da organização do parentesco das sociedades neolíticas, das sociedades em que a agricultura e o gado são as formas predominantes da riqueza e do poder, cujas energias são essencialmente de tipo biológico, vegetal, animal, humano, mormente muscular. No patriarcado dos nossos antepassados cristãos e europeus, duas figuras são claramente dominantes: a do pai-patrão e a do padre. É a correlação entre elas que me parece poder definir a excepcionalidade do patriarcado ocidental (embora eu não seja conhecedor dos outros), de que procurarei evocar brevemente a respectiva lógica e topografia.
7. O pai é a figura dominante da casa - ‘dominus’ da ‘domus’ em latim -, a casa é a unidade social de todas as sociedades neolíticas (que bem podem ser ditas sociedades de casas), unidade com duas vertentes indissociáveis: a do parentesco e a da actividade económica. O pai é pai e é patrão. Com excepção das casas dos artesãos e comerciantes dos burgos, as casas são tendencialmente autárcicas, nelas se reproduz o essencial do que lhes é preciso: donde a clausura delas, para nós, modernos, asfixiante. A agricultura e os rebanhos sendo a primeira e básica forma de riqueza, cujo excesso permite todas as outras, é na grandeza da dimensão das propriedades e do número de trabalhadores que esta reside, nos palácios e formas luxuosas de vida que ela se exibe. A qual exibição é essencial à própria dinâmica social, como aliás em qualquer outro tipo de sociedade: sabendo-se que há sempre alguém mais pobre do que eu, de quem possa ser invejado, o que cada um quer acima de tudo é que ‘se veja’ e se ‘inveja’ a sua riqueza, a sua posição social.
8. O antropólogo francês Pierre Clastres, no seu texto póstumo "Archéologie de la violence: la guerre dans les sociétés primitives", Libre 77-1, defende a universalidade da guerra entre estas . Com mais forte razão se a pode defender para estas sociedades de casas, já que em todo o lado as classes dominantes, as nobrezas, são classes exclusivamente votadas à guerra. Ora bem, sem poder desenvolver o argumento, creio poder afirmar que é este jogo do querer ser-se algo que se veja e se inveja que estará na raiz de todos os conflitos sociais e, a níveis mais globais, na raiz da guerra. A classe guerreira, cuja nobreza se afirma em não trabalhar com as suas próprias mãos, justifica-se por ser ela que defende os que trabalham e a alimentam - camponeses e pastores -, que os vizinhos estrangeiros querem submeter, mas simultaneamente, em jogos de rivalidade ancestrais, é ela que, sempre que o pode fazer com probabilidade de êxito, ataca esses mesmos vizinhos para os tributar como vassalos.
9. Por outro lado, o jogo de alianças que os senhores tecem com alguns para melhor vencerem outros faz-se mormente pela troca de mulheres, de maneira equivalente, mutatis mutandis, à que se dá nas sociedades primitivas, segundo Lévi-Strauss relido por Clastres, as quais são igualmente autárcicas: a fronteira endogâmica, isto é, da troca de mulheres, é a fronteira da guerra. As mulheres estrangeiras - que, como nas espécies primatas que nos são próximas, são fisicamente mais fracas do que os machos - são cobiçadas para rapto ou violação, fazem parte dos bens a defender encarniçadamente, já que elas são o factor essencial da reprodução social no coração de cada casa, um factor precioso porque afectado de raridade, se se pode dizer. Com efeito, o texto "Fertilité naturelle, reproduction forcée" da antropóloga italiana Paola Tabet explica a infertilidade relativa da espécie humana: fecundável 48 horas por mês sem sinal externo, um bébé de cada vez por regra, nove meses mais alguns anos de criação, e ainda, nesses tempos, muito baixa esperança de vida, morte frequente das mães no parto, alta mortalidade infantil.
10. Se se atender a que nas cidades, mormente a partir do século XVIII, crescem as tarefas policiais de garantir a não violência nas ruas, e se se entender ‘guerra’ num sentido lato de violência física masculina, pode-se pretender que a lei geral que comanda a estrutura das sociedades de casas é a lei da guerra. Como a energia dominante é da ordem do ‘natural’, do muscular e das mãos (mesmo após a invenção das armas de fogo), e tendo-se em conta que os homens das casas trabalhadoras, além de peões de guerra na juventude, têm a cargo os trabalhos fisicamente mais duros, pode-se resumir a preponderância da força masculina, do patriarcado como estrutura social dominante, como efeito da lei da guerra. Mas é preciso generalizar, tomando o exemplo de Clastres. A lei da guerra, desde as tribos à concorrência económica e aos bandos de rapaziada à maneira do West Side Story, passando pelas querelas de Antigos e Modernos em todos os domínios culturais e políticos, parece ser a lei dominante das sociedades humanas, em peleja pelos (sempre) raros lugares em que se seja visto e invejado. O dado de base é a diferença entre indígenas e estrangeiros e os seus graus (de língua e usos e costumes): se é absolutamente necessário defender-se deles sempre que nos atacarem, é muito provável que, esta eventualidade apresentando-se com frequência, as desforras e vinganças impliquem rivalidades permanentes entre vizinhos. Aos Outros, àqueles com quem não se trocam mulheres nem presentes nem palavras, faz-se-lhes a guerra qualquer que seja, da indiferença ao combate, pela mais forte das razões masculinas: tem que se mostrar aos outros e aos nossos que somos nós os mais fortes. Nos negócios como no desporto ainda hoje é essa a lei. Enquanto que com os da sua própria tribo, as trocas tanto são de aliança como de rivalidade, segundo o jogo do querer ser-se visto e invejado. O Estado de direito, no que diz respeito a armas, exércitos e polícias, representa a contenção da lei da guerra pelas leis civis: é uma das condições da libertação das mulheres.

A escrita acima da natureza

11. A casa tradicional que assim evoquei tem muito de prisão: para as mulheres, sem dúvida nenhuma, mas também para todos os homens que (ainda) não são pais, para os que, pais de casas pobres, trabalham com suas mãos e vivem em sujeição aos ditames dos senhores das guerras. A leitura dos textos antigos que hoje nos são tão difíceis de entender, desde os Gregos e os Romanos, sugere que a grande fuga possível aos constrangimentos destas casas fechadas em suas fronteiras e honras residia na leitura, tendo a filosofia platónica produzido uma instância ideal, de que o cristianismo em seguida se apoderou, a instância da alma, para precisar onticamente o lugar da liberdade possível, a do pensamento e da arte literária. Se esses textos nos são difíceis, a nós que buscamos pensar valorizando o corpo e os seus prazeres, é porque foi contestando estes que os nossos antepassados tiveram a experiência - hoje tanto trivial como rara, da trivialidade das imagens televisisas, da raridade do pensamento - a experiência da libertação dos laços mesquinhos das invejas dos vizinhos como glória maior. Eis como Platão evoca esta alma pensante, que conheceu as Ideias eternas antes de nascer e que sobreviverá, imortal, além do corpo, como capaz de se arrancar ao seu contexto, que ele evoca como sendo de “brigas, cargos, reuniões, festins” : “[...] é que realmente só o seu corpo é que está presente e mora na cidade, enquanto que o seu pensamento, considerando tudo aquilo com desdém como coisas mesquinhas e sem valor, passeia por todo o lado o seu voo, como diz Píndaro, sondando os abismos da terra e medindo a extensão da sua superfície [geo-metria], perseguindo os astros no além céu [astronomia], escrutando de todas as maneiras toda a natureza e cada um dos entes inteiramente, sem nunca se abaixar ao que está perto dele” .
12. Contra Platão disse o filósofo contemporâneo J. Derrida que esta experiência só foi possível enquanto ligada essencialmente à escrita. Ora, é dela que se reclama a outra vertente do patriarcado ocidental, a da Igreja católica, enquanto instituição religiosa cuja voz penetra o âmago das casas, lhes toca as almas. Transgredido ou não, o celibato dos seus padres permite entender duas facetas da sua estrutura. 1) Que a sexualidade, e portanto a procriação de crianças, sejam excluídas dela, implica que não é o parentesco a sua ordem de reprodução, mas justamente a ‘traditio’ do livro, por muito ‘traído’ que este tenha sido e, com a escrita e as almas recuperadas a Platão, a tradição também de conceitos da filosofia grega, nomeadamente como ossatura da teologia (que servem inclusive de grelha de leitura do próprio livro da herança hebraica). 2) Esta estrutura de exclusão da ‘reprodução natural’ (e a consequente estigmatização da sexualidade como excessiva e diabólica) - exclusão do que, juntamente com a alimentação, é a própria essência da natureza - outorga à instituição eclesiástica um estatuto de sobre-natural, relativo à reprodução da virtude nas almas, digamos rapidamente (e ainda aqui se copia Sócrates), o qual estatuto justifica o epíteto de padre dado aos seus agentes institucionais: tratar-se-ia dum ‘pai’ duma ordem superior à dos pais, patrões e guerreiros. E isso observa-se na maneira como os reis se sujeitaram (e se rebelaram, mas a sujeição era também aos senhores da escrita) a esta ordem que os ‘consagrava’, a eles guerreiros, nas suas missões de governar, de produzir leis e de modificar os códigos do poder. Dessas leis se gerará lentamente o direito que se imporá, senão à guerra, pelo menos a muitos dos seus excessos. Às leis dos costumes antigos, a lei escrita impor-se-á, a tradição romana tendo vindo por via do direito canónico.
13. Ora, sem ser possível detalhar, não haveria a modernidade que houve se não fossem estes ‘pais sobrenaturais’ que inventaram as universidades medievais, onde se estudava, entre outras coisas, leis, medicina, teologia e filosofia, às quais universidades, em boa parte, se deve a invenção da Europa e depois a da modernidade, já que, ainda que contestários de Aristóteles e das teologias e filosofias escolásticas, por elas passaram a esmagadora maioria dos sábios, pensadores, escritores e outros inventores cujos nomes respeitamos como antepassados da modernidade que nos fez. A universalidade não é, como se crê muitas vezes, invenção grega mas cristã (os Gregos não traduziam, como o cristianismo fez desde o seu alvor), mas adequou-se de forma muito oportuna à invenção gnosiológica da definição e da abstração filosófica, de maneira que a cristandade medieval pôde sobrepôr-se à diversidade das línguas e dos usos das inúmeras comunidades e fazer equivaler, se dizer se pode, o ‘sobre-natural’ religioso ao ‘meta-físico’ filosófico. Pode-se dizer, aproximadamente, que se trata do mesmo termo, um em latim o outro em grego (onde a natureza é dita physis): sem que os respectivos discursos se confundam, eles convergem na sua definição estrutural como excesso em relação às dinâmicas e energias da natureza, como primazia da escrita sobre o parentesco. Durante vários séculos, foi em livros e discursos latinos que o saber se foi transmitindo e desenvolvendo nas universidades, ganhando um maior surto a partir da invenção da imprensa, do cisma protestante e das discussões e cepticismo que ele avivou, aonde a leitura começa a emancipar-se do clero e depois do latim, se vão afirmando as figuras, sempre masculinas, do sábio, do erudito, do professor leigo, mais tarde do escritor e do intelectual. Aluda-se também às descobertas marítimas de outros países e povos que incrementaram as figuras do aventureiro e do comerciante, mais tarde a do capitalista. Foi desta revolução dita Renascimento que a Europa nasceu, no alvor do século XVI.

Os engenheiros sem corpo (nem sexo)

14. Assim como o dos escritores e leitores da Antiguidade clássica, o saber dos filósofos medievais era essencialmente ‘contemplativo’, procurava compreender as coisas mas sem lhes mexer com as mãos. É ainda o jeito de Descartes, que se assegura de si como duvidando e portanto pensando, como existindo enquanto alma que pensa, “coisa pensante”. É no capítulo IV do Discurso do Método, e ele acrescenta: "depois, examinando com atenção o que eu era, e vendo que podia fingir que não tinha nenhum corpo, e que não havia mundo nenhum, nem nenhum lugar aonde eu fosse”, versão moderna do que há pouco citámos do Teeteto de Platão. Este fingimento, esta ficção de alguém que pensa sem que importe o seu corpo, mundo ou lugar, que realidade pode ela ter? Nada mais, nada menos do que a dos cientistas modernos, cujas teorias são, em princípio, válidas em qualquer lugar, pouco importando quem as enuncia. Com efeito, foi numa lógica assim que contemporâneos de Descartes como Galileu inventaram o laboratório como um lugar fora do mundo habitual e da corporeidade subjectiva do cientista, dando figura à ficção cartesiana, dando-lhe um outro corpo, feito de matemática e técnicas de medição, capaz de avaliar teoricamente as experimentações que aí se façam. Digamos que se deu assim origem a uma nova figura (masculina) fundamental da modernidade, a do cientista de laboratório, a que, a partir da segunda metade do século XIX, se acrescentará a figura do engenheiro.
15. Às figuras relevando da casa, da guerra e da musculatura - o pai, o patrão, o trabalhador manual pesado, além do comerciante que está à espera nas margens mercantes das casas - e da escrita, da lei e da escola (esta também ainda marginal) - o padre, o filósofo, o escritor, o professor -, acrescenta-se esta outra do engenheiro que lhes é irredutível. Em relação à casa: substitui o trabalho muscular pelo trabalho feito com máquinas, à base de energias mecânicas, eléctricas, térmicas, químicas, por um lado; por outro, ele tem origem na escrita filosófica (Galileu e Newton diziam-se filósofos), instaura essas máquinas no tal nível ‘acima da natureza’ e das suas energias meramente biológicas, e é por aí que revolucionará as sociedades europeias. Em relação à escrita: substitui a contemplação reflexiva, que observa sem mãos, pelo labor experimental dos laboratórios, prolongando as mãos pelas máquinas e instrumentos, por técnicas muito variadas. Mas não tendo sexo, já que o seu novo ‘corpo’ laboratorial resulta do meta-físico e do sobre-natural, essa figura - como a da escrita desde sempre - está, de jure, aberta às mulheres, ao invés da figura do guerreiro, tendo surgido masculina por razões antropológicas da história.

Fim ou sobrevivência do patriarcado?

16. Se houvesse que escolher um entre os numerosos factores da transformação revolucionária das sociedades de casas nas sociedades modernas dos dois últimos séculos, e é claro que não se pode, seria certamente a invenção e comercialização, a partir de 1776, da máquina a vapor por James Watt, acrescentada da da electricidade ao longo do século XIX, que eu escolheria. As fábricas a que estas invenções deram origem, a começar pela do engenheiro Watt com o capitalista Boulton, não eram comportáveis pelas casas de antanho e forçaram à separação progressiva das duas vertentes das casas, as unidades sociais económicas tendendo a ganharem dimensão e a separarem-se das unidades de parentesco, as famílias, que doravante se alojam em apartamentos de prédios das cidades, cujas populações começaram também a crescer por aí fora. Em resumo, as máquinas obrigaram as unidades sociais que eram as casas a cindirem-se em instituições (onde se tem emprego umas tantas horas por dia) e famílias (casal e filhos, lugar de reprodução ‘natural’). Ao contrário das antigas casas, onde o saber-fazer era transmitido como herança de pais para filhos, agora a escola, dantes marginal, estende-se a toda a gente como instituição de transmissão do saber social acumulado, lugar obrigatório de passagem de cada um entre a família e o futuro emprego. Por outro lado, o mercado é a necessária ligação entre instituições e famílias (aquelas pagando os salários que permitem os orçamentos familiares, já que tudo se compra doravante, acabada de vez a autarcia de antanho), e o Estado o igualmente necessário regulador do conjunto.
17. Foi esta revolução que, na sua primeira etapa (do vapor, carvão e ferro, dos patrões), buscou consolidar a família burguesa, naquilo a que Freud chamou o “super-ego”, mas que, na segunda (da electricidade, do petróleo, do aço e do cimento, dos gestores), a foi esvaziando de filhos e libertando as mães para os empregos. “O feminismo, diz Françoise Collin , foi sempre para mim da ordem do movimento mais do que da ordem [...] das teorias, a diferença dos sexos [...] não é tanto da ordem do constatável ou do analisável, mas da ordem do transformável”. Julgo que podemos assim chamar feminismo antes de mais a esse movimento imenso de entrada maciça das raparigas nas escolas, de entrada maciça das mulheres nos empregos das instituições, libertas enfim da “troca das mulheres”, como estrutura do parentesco das casas autárcicas. Houve feminismo sempre que as raparigas compreendiam que um novo mundo se abria para elas, além da clausura familiar que se tornava asfixiante; feminismo será este impulso multiplicado por milhões das raparigas libertando-se das casas de antanho, que forçam, sendo preciso, as portas, se fazem surdas às reprimendas paternas ou fraternas. Este movimento revolucionou a ordem do parentesco moderno, assinalou o fim da ordem patriarcal. A autonomia que vem a cada mulher do saber ganho com a escolaridade e com os médias, a livre decisão de escolher um ofício e um namorado sem precisar do consentimento dos pais, a independência económica relativa que dá o salário, a pertença a duas unidades locais, família e emprego, cada uma relativizando a outra, dá-lhe uma liberdade equivalente à dos rapazes com quem priva.
18. A escrita é uma técnica e vice-versa, a técnica inscreve-se no social, transforma-o. Ter usado, de forma provocatória, os termos ‘sobrenatural’ ou ‘metafísico’, foi uma tentativa de sublinhar um dos segredos da modernidade: a prevalência nela do princípio da escrita e da técnica sobre o do parentesco, este que prevalecera desde sempre, desde as sociedades primitivas, segundo as análises consagradas de Lévi-Strauss. Se o patriarcado, em sociedades agrícolas, prevaleceu como ‘cultura’, era por ele ser, digamos, uma forma de natureza transformada em cultura, por se tratar, do nosso ponto de vista de hoje, duma forma cultural em que a natureza era predominante, se se pode dizer. Ora, o que hoje em dia releva mais estritamente dessa natureza, está delimitado em duas grandes zonas da actividade social, dizendo respeito à alimentação e à saúde, que, sendo essenciais e irredutíveis, estão cada vez mais longe de serem as fontes da riqueza, do poder e do prestígio social. Mas não do prazer, quer gastronómico, quer erótico, nem da arte, domínios que, no entanto, ganharam autonomia e pouco terão a ver com o antigo patriarcado. Este sobreviveu, durante o século XIX, no imenso esforço de afirmação da família burguesa citadina, a par das primeiras empresas industriais dos ‘patrões’ enfrentando a crise: sob a forma, primeiro, da “morte de Deus” que Niezstche anunciou no século XIX - que é também a morte do padre como determinante social, como clero a par da nobreza -, isto é, a vitória da escrita moderna sobre a patriarcal, para vir a rebentar um século depois, na explosão dos anos 60 que, revolta dos jovens e emancipação das mulheres, lhe acrescentaram a “morte do pai” - e até do patrão (que já vinha cedendo ao gestor) -, figurada simbólicamente, na Paris de Maio 68, pela vaia política do velho guerreiro, o general De Gaulle: “10 ans, ça suffit”, se pudermos ouvir como eco da história mil vezes mais longa das sociedades neolíticas, soará a “10 mil anos, já chega de patriarcado”.
19. Os termos ‘sobrenatural’ e ‘metafísico’ sublinham o papel estrutural dos discursos teológico e filosófico na construção da civilização europeia (e portanto na sua desconstrução actual, mormente como crise). Essa provocação poderá justificar-se, na forma sumária dum texto como este, pela evocação do que há na modernidade de prodigioso, de ‘além da natureza e das suas energias biológicas’ - de milagroso, diriam os Antigos se pudessem vir ver as invenções dos seus descendentes. Ultrapassagem das capacidades limitadas dos nossos músculos e da sua energia ‘natural’ por máquinas (com energias produzidas a partir do conhecimento científico) de muitas dimensões, adequadas aos trabalhos mais diversos. Ultrapassagem das capacidades limitadas dos nossos olhos para ‘verem’ átomos, moléculas, células, genes, electricidade, em escalas ínfimas. Ultrapassagem da terrível oposição luz / trevas de outrora pela iluminação das nossas cidades. Os enormes edifícios que arranham os céus, conseguindo o que falhou em Babel. Ultrapassagem das capacidades limitadas das nossas pernas pelos 200 kilómetros à hora de velocidade e a hecatombe respectiva dos nossos jovens nas estradas. Ultrapassagem da incapacidade do nosso peso para deixar o solo pelos aviões que voam acima das nuvens. Americanos na lua que Deus tinha criado no céu. Bombas que caiem do céu dos Deuses de outrora matando dezenas de milhar de Japoneses. Núvem que escapa duma central nuclear em panne e mata ao longo do tempo pessoas a centenas de kilómetros de distância. Que se possa estar à cabeceira de dois amantes a olhar-lhes a intimidade mais íntima, um homem e uma mulher, mas também duas mulheres ou dois homens. Que um espectáculo musical ou desportivo possa ser visto em sua casa por milhões de pessoas em toda a terra. Que a estupidez mais estúpida possa entrar em casas humanas e encontrar nelas gente para se rir beatamente. Que alguém possa viver com o fígado ou o coração de outrem, que morreu. Que a engenharia genética possa... o que está ainda para vir. Flagelos como a fome e a sida em centenas de milhões de pessoas, as poluições e os terrorismos e a impotência dos opulentos e obesos. Sobrenatural, sem dúvida, em comparação com os mitos de antanho.
20. Os termos ‘sobrenatural’ e ‘metafísico’ (parcialmente inadequados) interessam-me para dizerem o hiato entre duas civilizações (poderia dizer-se ‘revolução’ para sublinhar outros aspectos) de maneira a acentuar a crise do patriarcado: uma delas em torno das energias biológicas e do saber herdado nas casas com a religião, em que o masculino / feminino prevalece como paternidade (guerreira) / maternidade, a outra, em que as energias são fabricadas e com elas tudo o mais, segundo um saber vindo da tradição escolar (originada da filosofia e da ciência, isto é, da razão que tende à universalidade do planeta), em que a ordem económica da máquina e do capital se tornou preponderante, e em que as funções de procriação - na rêde das famílias - foram drasticamente reduzidas, com a consequente libertação possível (parcial) das mulhers da função materna e dos homens da paterna. Em princípio, que a força muscular tenha sido vencida pela razão moderna - as máquinas em vez dos braços, as leis em vez dos guerreiros, a escola democrática em vez da instituição perseguindo dogmática e inquisitorialmente os saberes, o debate e a busca livre em vez dos poderes do ‘monos’ (patriarcal, monarca, monoteismo) do único, separado, solitário - parece pôr fim ao patriarcado, abre pelo menos quase todos os lugares às mulheres: excepto alguns em que a força bruta continue a ser pertinente, os do desporto em que as desafios são paralelos e descriminados. Mas de facto? Sem dúvida que o patriarcado sobrevive de forma ainda maciça em muitas zonas do planeta, que mesmo nas sociedades ocidentais as sombras da liberdade são muitas; julgo no entanto que ninguém aqui pensa que as coisas eram melhores há 40 anos, antes do 25 de Abril e dos anos 60 da rebelião dos quotidianos. A questão que continua, para a qual não haverá resposta senão a da continuação do movimento, é a das sobrevivências. O que chamei ‘sobre-natural’ ou ‘meta-físico’ é eminentemente equívoco, não é possível senão como complexificação, como sublimação que retém energias para as deslocar para outras incidências, como denegação do natural ou do físico. Como é que as diferenças entre machos e fêmeas humanas (diferenças sexuais primárias e secundárias, como se diz) jogam pela calada nessas superações modernas? E as diferenças antropológicas ganhas por séculos de tradições das casas? Vão-se redistribuir igualmente, ou vão induzir outras formas de machismos e do seu repúdio? Duvido que haja já hoje em dia biologias moleculares ou neuronais, psicologias e antropologias, capazes de abordarem essas questões de forma não arbitrária.


Conferência na semana da Arrábida de setembro de 2003, Masculinidades / Feminilidades