1. O que os diversos fundamentalismos
religiosos que se manifestam no nosso mundo actual – extrema direita americana
evangelista, integrismos católico, judaico e islâmico – têm em comum é a
recusa global dos excessos libertários, mormente em matéria de costumes
sexuais, que as televisões exibem como depravação do mundo ocidental
desenvolvido. Uma questão prévia
aos massacres desde o 11 de setembro ao 13 de novembro é a de saber porque é
que apenas o mundo árabe muçulmano tem fornecido a forma terrorista-bomba que
nos assombra desde as torres de Nova Iorque, que imola igualmente os que a
provocam juntamente com as vítimas inocentes indiscriminadas, o horror ético de
‘darem a vida’ para matar criminosamente. Não tenho resposta para ela, nunca
estudei o Corão nem a história que ele iniciou, apenas uma sugestão arriscada
que permite gizar a noção de Califado, reclamada como meta politica pelos guerrilheiros
da Síria e Iraque.
2. Semelhante à Cristandade medieval
como forma religiosa unificadora de várias sociedades, o Califado difere dela
por representar o que foi o auge da civilização muçulmana sem rivais na
época, enquanto que a
Cristandade, que aliás beneficiou da cultura árabe, foi apenas um início de que
a modernidade se afastou. Durante os seus Séculos de Ouro, ignoraram os
bárbaros europeus, até estes aparecerem a barrar-lhes os caminhos dos negócios
e sobretudo quando, já modernos, manifestaram uma capacidade tecnológica que
eles ignoravam e muito os surpreendeu. Diferença também e sobretudo na organização
antropológica a que Germaine Tillion chamou “o harém e os primos”, visando as
comunidades familiares endogâmicas (E. Todd, O terceiro planeta), com prioridade do casamento entre primos de
primeiro grau, criando conjuntos vastos sem ‘cunhados’ entre eles. Este
patriarcado fortemente machista (as burkas femininas são uma defesa contra os
homens de fora) dificulta os acordos entre as ‘ilhas’ familiares, é talvez o
que dificulta o regime democrático de discussão e eleições em ordem a Estados
modernos: oscilam entre formas de liderança ditatorial laica ou de
fraternidades islâmicas, a Turquia, de tradição imperial e não árabe, está a
voltar para trás.
3. Reclamar o Califado como vasta
unidade politico-religiosa, exprimiria uma homogeneidade de costumes muçulmanos
opostos aos modernos ocidentais, sonhando integrar nela as técnicas ocidentais
(sem saber que estas são parte essencial da desconstrução dessa homogeneidade,
conforme sucedeu na Europa), excluindo as relações com o Ocidente desmoralizado
e ateu; mas exprimiria também um ressentimento histórico, o dos ‘homens’
muçulmanos face aos europeus que conseguiram desenvolver-se mais do que eles. A
pulsão agressiva (machista, o prémio são as virgens no céu) que vitima também
os seus portadores teria aí raízes antropológicas e históricas, a que a grande
maioria da população muçulmana é obviamente alheia, querendo uma vida melhor, a
que vêem nos écrans das televisões.
4. Há já alguns anos que pensava que
não haveria, pelo menos tão cedo, uma 3ª guerra mundial, que de vez em quando
há quem anuncie. Numa sociedade globalizada, os poucos que possam decretar uma
guerra mundial têm interesses em todo o lado que lhos impedem. Há, sim, a
guerra económica, de que temos sido vítimas, nós todos que dependemos da banca.
Mas este ‘acto de guerra’ (Hollande) parece significar que uma guerra mundial
começou com o 11 de setembro e com os Bush-Blair a invadirem o Iraque, continua
com a França, os EUA e a Rússia a bombardearem a Síria, a que ‘eles’ ripostam
em Paris. Bagão Félix, no Público de sábado, 21, citava o Papa Francisco em junho deste ano, em Sarajevo, a
falar na “3ª guerra mundial travada por pedaços”: será este um novo tipo de
guerra na história. E dá alguma razão a Huntigton, não que seja guerra de civilizações,
mas tem algo disso, já que vinda dos que parecem incapazes de se modernizarem e
detestam a ‘imoralidade’ ocidental, que fazem esta guerra não para conquistar o
que quer que seja (Loureiro dos Santos) mas por pura raiva, explodindo-se. É a
esta raiva que o ‘sonho’ do Califado dá um título ‘nobre’.