domingo, 22 de dezembro de 2013

O Estado, entre alianças e rivalidades




1. Dois sociólogos escreveram há uma quinzena de anos que não havia uma definição de sociedade que servisse para todas as épocas (Dubet e Martucelli, Dans quelle société vi­vons-nous?, Seuil, 1998). Creio que é um d/efeito filosófico que as ciências europeias herdaram ao se situarem na oposição sujeito / objecto, no caso conceitos como acção (Touraine), prática (Althusser), habitus (Bourdieu); a sua desconstrução pode dar lugar ao motivo de ‘usos sociais’ em respectivos paradigmas, implicando aprendizagem, o ‘sujeito’ modificado por cada uso aprendido. Definir-se-á então sociedade em geral como o sistema mais ou menos complexo de paradigmas de usos que se repetem em múltiplas unidades locais, aprendidos por cada nova geração como condição da renovação da sua população. Ora, a aprendizagem traz consigo dois princípios: por um lado, o de aliança entre as unidades locais que trocam entre si (o/a jovem torna-se um/a dos nossos), e por outro o de rivalidade, já que as habilidades ganhas servirão, além da aliança, para ocupar os lugares de prestígio da sociedade; indissociáveis e inconciliáveis entre si, eles são a condição da coesão social. Um texto de P. Clastres equilibrava por assim dizer estes dois aspectos duma sociedade entre as trocas de Lévi-Strauss e a guerra de todos contra todos de Hobbes: troca-se adentro da sociedade (mulheres, discursos, bens), faz-se guerra para fora (Guerra, religião, poder, Ed. 70, 1980). Mas no coração das trocas também a rivalidade joga: se recebo um presente, tenho que dar um equivalente ou melhor, sob pena de desconsideração social. obbesO que significa que estes dois princípios jogam a todos os níveis das sociedades, desde o dos irmãos ou dos colegas até ao das grandes guerras com aliados dum lado e doutro.
2. A guerra não era só apanágio das tribos a que Clastres se referia, foi-o de todas as sociedades históricas, em que a nobreza era a casta dos guerreiros, os quais também prevaleciam para dentro sobre escravos, servos ou súbditos. Se constatamos que, fora 1914-45, nos dois últimos séculos não houve guerra entre as principais nações (Polanyi: “o comércio doravante estava ligado à paz”), ela prevaleceu como fenómeno regional mas sobretudo deslocou-se para o mundo da economia e das finanças, cuja palavra chave é a competitividade (rivalidades) num mercado de trocas (alianças), assim como entre lucros e salários. Um bom exemplo de como os dois princípios se podem compatibilizar sem se anularem é a maneira como são organizados os desportos, competição por definição, através de regras e árbitros que as fiscalizam: regras arbitradas são regulação. Eis o que permitirá abordar a noção de Estado, ao nível geral que convém ao filósofo.
3. Digamos que as sociedades contemporâneas são complexos de actividades especializadas diversas que se interpenetram frequentemente mas de que é possível ressalvar a autonomia relativa entre eles de sectores como alimentação e saúde, construção, transporte, fabricos variados, etc. Três todavia se diferenciam por serem estruturalmente necessários, transversais, a todos os outros: os que têm a ver com as aprendizagens (escolas, livros e outros meios de comunicação), os que têm a ver com o dinheiro (mercado e finanças) e o Estado que tem a ver com a regulação do conjunto (leis, administração, tribunais, segurança, defesa, etc.)
4. A democracia impôs-se na modernidade como a maneira mais ética e razoável de o Estado ser organizado a partir da sociedade civil, embora haja regimes e tradições diferentes. Qual foi a razão de fundo da sua invenção pelos Gregos nos séculos VI e V antes da nossa era (Sólon, Clístenes, Péricles)? Numa sociedade esclavagista em que os nobres adquiriam escravos na guerra para trabalho agrícola (então base da riqueza), as suas casas ganharam preponderância tal que esmagavam as casas pequenas, por vezes ficando escravos por dívidas (Sólon anulou-as). A democracia foi essencialmente o travão a essa dominação como ameaça de vida precária da maioria das casas e dos  cidadãos, para obviar à desigualdade social quando a sua dimensão ameaça destruir a própria cidade: ela nunca interessou por ela mesma às casas guerreiras, desapareceu da história até as burguesias a imporem às aristocracias, o comércio às guerras.
5. Sem dúvida que a pertença à U. Europeia torna as coisas ainda mais complicadas, mas quando Rui Tavares chama a atenção para que, entre os objectivos dela, está “o pleno emprego”, isso lembra-nos que o emprego é parte essencial da democracia, juntamente com o Estado social. Acontece que nos dois outros sectores transversais, o princípio da rivalidade afirma-se como selecção no sentido de fomentar, na escola, os mais competentes para virem a ocupar lugares de topo, na finança, os mais ricos porque os que mais beneficiam da aliança dos cidadãos que trabalham para eles: são os que não precisam de serem protegidos senão da implosão social. Em épocas de tanto desemprego, é bom que quem tem responsabilidades de regulação saiba que o jogo entre estes dois princípios não pode ser o de se perfilhar um contra o outro, mas o de se ter ambos como vectores imprescindíveis do alvo democrático, a aliança sendo a boa solidariedade para que todos tenham direito a viver melhor e assim se garanta o próprio conjunto social. Eis o que deve guiar o guião da reforma do Estado, como é certamente o que guia o árbitro dos árbitros, o Tribunal Constitucional.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Porque é que as ciências precisam de laboratório ?




(determinação e indeterminação no âmbito
da Filosofia com Ciências)

comunicação a Philosophy of Science in the 21st Century – Challenges and Tasks 
Lisboa, Faculdade de Ciências, 4 a 6 dezembro 2013 
   https://www.youtube.com/watch?v=vrx7ulPlfZE&feature=c4-overview&list=UU5mZ3LtH1nRFdlKb_xBo6lQ

vídeo da comunicação que não foi lida senão parcialmente; segue-se uma entrevista





 
1. Assim como não é frequente os filósofos interrogarem-se sobre a razão filosófica de ser da definição, também não será costume que cientistas e filósofos das ciências se interroguem sobre o estatuto epistemológico do laboratório, a crer por exemplo no Dictionnaire d’Histoire et Philosophie des Sciences de Dominique Lecourt (P U F, 1999)  em que a entrada ‘laboratório’ não existe. Ora, são estas as duas invenções maiores da história gnosiológica do Ocidente, dos Gregos a primeira, dos Europeus a segunda. Presumo que se se fizesse uma sondagem entre cientistas e filósofos das ciências sobre a razão de ser do laboratório se encontrassem respostas análogas às da necessidade de andaimes para construir um prédio, que são retirados e ignorados uma vez o prédio pronto, um instrumento indispensável que a reflexão dispensa de pensar. Presumo, presunção talvez. Acontece em todo o caso que o laboratório se me impôs como crucial em Filosofia com Ciências e é do que me vou ocupar.
2. A definição é uma operação violenta de escrita operada sobre as narrativas e os discursos retóricos enquanto particulares que retirou o termo a definir dos seus contextos, ou seja que reduziu esses contextos e os seus caracteres particulares, incluindo a ampla morfologia dos próprios verbos das narrativas, e constituiu o texto filosófico enquanto texto que trata de generalidades (e não mais de particulares, acontecimentos ou opiniões), de essências impessoais e intemporais, sem lugar nem circunstância, sem contextos pois, e argumenta sobre elas, nomeadamente indagando de causas e efeitos como razão de ser das coisas.
3. A especulação medieval mostrou os limites do alcance da definição. O laboratório de física do século XVII acrescentou-lhe, à teoria científica de definições feita, a experimentação sobre movimentos detectados por instrumentos de medição (segundo dimensões que se foram multiplicando nos séculos seguintes): numa das coisas que sempre faltara aos filósofos, o uso das mãos, tanto Galileu como Newton eram exímios, fabricando eles próprios a sua aparelhagem laboratorial. Mas embora acrescentando, o laboratório não deixou de ser filho da definição, já que, como esta, opera uma redução do contexto donde retira o fenómeno a analisar laboratorialmente, retira-o do alcance das narrativas e opiniões para o alçar ao saber gnosiológico intemporal, digamos ‘universal’, se entendermos por ‘universo’ os laboratórios que repitam as operações experimentais e as escolas e bibliografias onde se ensinam ciências. Poder-se-á então dizer que o que o laboratório consegue e o torna condição estrutural dessa verdade científica universal é a criação de condições experimentais de determinação que justamente não existem nos contextos habituais da chamada ‘realidade’, de que se ocupam narrativas e opiniões. Mas ao fazê-lo, diz também algo que provavelmente incomodará muitos cientistas e filósofos das ciências: que fora do laboratório, não havendo determinação, essa dita ‘realidade’ permanece indeterminada, e é sobre isso que quero reflectir aqui.

Os três estratos dos textos científicos
4. Proponho que os textos científicos em geral são compostos de três estratos. O primeiro é o de mais fácil diagnóstico, já que se dá como citação do que foi experimentação laboratorial, exemplificando com os resultados das medidas se se trata de física ou química, com as operações linguísticas de comutação estrutural, as informações dum indígena tribal ao antropólogo. Mas no primeiro caso, por exemplo os resultados das medições do espaço e do tempo da queda duma bolinha pela calha duma tábua por Galileu (que aliás não os dá e usava demonstrações geométricas que notações algébricas ainda não as tinha disponíveis), esses resultados só têm sentido para servirem de verificação duma equação, das suas variáveis e e t, que permitem conhecer a velocidade respectiva  (v=e/t) e a sua aceleração (a=v/t=e/t2). E como as variáveis são parte definitória da equação, que pertence ao segundo estrato, o da teoria, já que é essa equação que justamente se trata de descobrir, haverá que dizer que não há fronteira que separe estes dois primeiros estratos. Mas uma equação, na sua forma algébrica, sendo o essencial das descobertas da física como veremos, não subsiste sem a sua interpretação em termos de linguagem duplamente articulada, explicitando que e significa ‘espaço’, t ‘tempo’, v velocidade, a aceleração, = ‘igual a’, / ‘divisão do primeiro factor pelo segundo’ e 2 ‘multiplicação do factor por si mesmo ou elevação ao quadrado’. O que implica que o segundo estrato, o da teoria, se compõe das equações físicas e da sua interpretação, da compreensão teórica desse nível operacional, que corresponde ao fragmento duma questão científica regional. Mas tem também a teoria que vier a unificar os diversos fragmentos experimentais e respectivas equações, o que implica querer dar conta da ‘realidade’ que diz respeito ao domínio científico em questão.
5. O terceiro estrato é o que Les mots et les choses de Michel Foucault exibiu magistralmente: o epistema comum a três disciplinas diferentes, a respeito dos vivos, das línguas e do trabalho, quer nos séculos clássicos (entre 1660 e 1780) em torno da representação em tabelas, quer com a assunção da temporalidade nos respectivos paradigmas no século XIX, afirmadas respectivamente como biologia, linguística e economia, como ciências que se autonomizaram da metafísica beneficiando do corte operado entre ciências e filosofia pela critica kantiana. Sendo comum a três disciplinas e diferentes na maneira como o são em cada uma, este epistema revela-se claramente como indissociavelmente filosófico e científico, estas ciências herdeiras da definição filosóficas. E sem dúvida que se poderia mostrar que também a teoria da física de Newton, que ele sabia ser uma nova ciência mas a que chamou “filosofia natural”, e até por vezes “filosofia experimental”, é indissociavelmente filosófica, pelo papel da definição na teoria, e científica, pela sua componente matemática e experimental (geometria e mecânica, na sua maneira de explicar a nova mecânica como ciência das forças).
6. A relação entre a física e a técnica tem no laboratório um carácter paradoxal. Se distinguirmos entre laboratório de físico, em que se descobre tal fenómeno, e laboratório de engenheiro, em que se inventa tal artefacto, por exemplo um automóvel, pode-se perceber que este, por um lado é polivalente, recorre a várias regiões da física e da química, e que por outro aplica ao seu artefacto as equações descobertas pela física através das medidas que calcula segundo as suas equações. O paradoxo reside no facto de que as interpretações teóricas dessas equações podem variar sem que isso provoque problemas ao engenheiro: o caso mais flagrante é o das novas interpretações relativistas (para velocidades perto da da luz) e quânticas (para dimensões da ordem das partículas sub-atómicas) da física não afectarem a ‘verdade’ da física newtoniana tal como ela continua a ser utilizada na maior parte dos laboratórios de engenharia: contra a ideia corrente que considera essa física obsoleta, historicamente ultrapassada, se se tomam em consideração os laboratórios, isto é o alcance  dimensional dos seus aparelhos de medição, essa física para velocidades e distâncias terrestres continua verdadeira, já que nessas dimensões as equações relativistas e quânticas reduzem-se às newtonianas.

Paradigmas, epistemas, fenomenologia
7. Esta distinção entre estratos não é incompatível com a bela análise kuhniana dos paradigmas, embora a consideração dos epistemas à Foucauld coloque alguma ‘comensurabilidade’ a paradigmas bem distintos a olho nu, entre disciplinas e depois ciências claramente distintas, o que sugere que a tese da incomensurabilidade ignora a dimensão filosófica dos paradigmas. Mas uma das características mais fortes deste motivo kuhniano é a exclusão da oposição entre teoria  e experiência, como aliás a consideração feita acima da relação entre variáveis das equações e resultados experimentais já sublinhava. Há uma vantagem fenomenológica na maneira de não se poder dissociar teoria científica e epistema, ciência e filosofia: é que, numa época em que a distinção clara entre ambas operada pela crítica kantiana não parece ter já pertinência, dado que as ciências se autonomizaram suficientemente das questões metafísicas, e é pelo contrário o problema das suas interrelações, da chamada interdisciplinaridade, que se tornou agudo e doloroso, nesta nossa época torna-se necessário tentar avançar mais longe do que Kuhn, penetrar nos próprios paradigmas (que não no laboratório, interdito aos não especialistas) a indagar do que há de filosofia neles como obstáculo a essa interdisciplinaridade (e que consiste na oposição dentro / fora, com as figuras de sujeito / objecto, sucedâneo europeu do dualismo platónico alma / corpo).
8. Mas não se pode entrar nos paradigmas científicos duma forma ‘apenas’ filosófica, é necessária a cumplicidade epistemológica das próprias ciências, não apenas a que é indagada mas de várias que se possa considerar cobrir o leque das várias regiões científicas. É aqui que a invocação do epistema de Les mots et les choses é interessante, já que, procedendo embora de uma maneira bem diferente, se tratou de analisar o epistema comum às principais ciências do século XX, através das suas descobertas maiores: a teoria do átomo e da molécula, a biologia molecular e neuronal, a dupla articulação das línguas (Saussure, Martinet), a relação entre o interdito do incesto e a exogamia como estrutura elementar das sociedades humanas (Lévi-Strauss) e a teoria freudiana das pulsões (o critério de discernimento destas descobertas como primaciais é interno à própria indagação, não susceptível de argumentação a priori).
9. Basta esta lista para se perceber que se trata duma caminhada bem diferente da de Foucault: com efeito foi a fenomenologia, que Husserl abriu em termos de poder tratar o que chamou “crise das ciências europeias” e a que Heidegger primeiro e Derrida em seguida fizeram desvios capitais, que permitiu a descoberta dum acordo entre as várias ciências insuspeitado dos próprios cientistas, senão dos filósofos inspiradores. Heidegger permitiu sair do que enclausurava em Husserl a ‘consciência’ do sujeito e do seu Ego, vir ao ser no mundo que do ‘exterior’ é instituído na sua ‘interioridade’, vir à historicidade dos termos filosóficos e à sua impregnação pelos textos científicos (crendo-se exteriores à filosofia); Derrida prolongou ambos os seus predecessores e, escrevendo différence como différance, marcou esta (espácio-temporal da vida, da linguagem e da técnica) como relação estrutural ao outro, atento ao motivo biológico do ‘programa genético’, permitindo assim desocultar o lugar da aprendizagem como instituição do ser no mundo, em prolongamento da concepção e do nascimento. Seja dito de passagem que é este motivo da différance como arqui-escrita que dá conta da importância que aqui se atribui ao laboratório.
10. Deixando de lado os motivos fenomenológicos desta caminhada, que tornaria este texto ininteligível, há que dizer que o motivo de fenómeno a descrever se veio a mostrar extremamente fecundo, já que deve ser à descrição dos seus fenómenos que se dedicam as várias ciências, a fenomenologia revelou-se pois o que deveria ser a coisa delas. E foi assim essa relação ignorada das ciências entre elas e com a fenomenologia que se manifestou, nas suas principais descobertas, a dimensão filosófica delas ocultada pela critica kantiana, o que permitiu que elas viessem a ocupar um lugar filosófico nessa fenomenologia reelaborada, o que chamei Filosofia com Ciências. Basta lembrar que, desde a ‘alma’ platónica, e apesar de Aristóteles, que o ‘sujeito’ e a ‘consciência’ europeus são privados de corpo e de sexo, de linguagem e de trabalho, de peso e de sociedade, para se perceber que uma fenomenologia que se queira capaz de interferir nas difíceis questões da nossa civilização, parida justamente da definição filosófica e do laboratório físico e químico, precisa de ser capaz dessas dimensões de que o ‘sujeito’ foi despojado e de que as diversas ciências se ocuparam com êxitos notáveis ao longo do século que passou. A nova Filosofia com Ciências permite em princípio (havendo por certo ainda muito trabalho de competências variadas a fazer) compreender o universo das coisas, descrever os seus fenómenos, unificar os saberes hoje tão escandalosamente dispersos.

Cientistas, filósofos e a ‘realidade’
11. É esta Filosofia com Ciências, fenomenologia reelaborada, que proponho ser o epistema das ciências actuais. É claro que é preciso ter lata, tanta que ninguém dá por ela. Se for certo o que disse nas minhas primeiras palavras sobre a falta de atenção dos cientistas ao laboratório e dos filósofos à definição, entende-se que uns e outros se pretendam decifradores da chamada ‘realidade’ com que se confrontam como se fossem observadores exteriores, neutros, entregues ao ‘puro’ conhecimento, ao ‘puro’ pensamento. Ambos pretendem obviamente abarcá-la, a tal ‘realidade’, mas o mal-entendido é inevitável: os cientistas nem sequer entendem as questões dos filósofos, estes por sua vez tendem a aceitar sem crítica a versão que os cientistas têm da sua ciência, parecem ignorar a tradição filosófica que atravessa esta, sabem-se exteriores ao laboratório e incompetentes para apreciar o que lá se passa. Como posso eu justificar a minha audácia? Vejo duas razões de ordem pessoal. A primeira consiste em a minha primeira formação ter sido científica, uma licenciatura em engenharia civil e portanto em física clássica. A segunda resulta de não ter tarimba filosófica académica e de ter entrado em filosofia por via de questões (teológicas) em parte alheias a ela; nomeadamente cheguei às questões que relacionam filosofia e ciências, não através da física que aí é predominante, mas das questões epistemológicas da linguística saussuriana que tinham sido colocadas nos anos 60 pelo estruturalismo francês e onde Derrida tinha afiado as suas primeiras armas. Ora, quando peguei nessas questões nos anos 80, o campo tinha sido abandonado e apresentou-se-me como o face a face entre uma ciência muito recente e um pensamento filosófico fortemente inovador e que fora atravessado por ela. Enquanto que a filosofia das ciências se me dava como uma espécie de negócio de velhotes viúvos que querem ‘juntar os trapinhos’, sem serem capazes todavia de perderem todos os hábitos das suas longas vidas, eu encontrei-me, fascinado, face a um jovem casal virgem capaz de se modificarem um diante do outro. Com efeito, Derrida passara essencialmente pela ‘diferença’ saussuriana para afirmar o seu questionamento entre filosofia, oralidade e escrita, enquanto que o debate estruturalista que pude ler esmorecera em posições filosóficas antagónicas inadequadas ao que havia de singular na nova ciência. Foi só após ter sabido compreender o que estava em jogo que se me abriu a porta fenomenológica de acesso às outras ciências, que se completou quando poucos anos mais tarde descobri maravilhado o ‘retiro do ser’ heideggeriano na sua leitura dum capítulo da Physica de Aristóteles. 
12. Este, em seu tempo, lera o que chamamos ‘realidade’ como phusis, como aquilo que cresce e se desabrocha, não só os vivos, mas também as casas e cidades dos humanos, as suas obras poéticas e retóricas. Ou seja, essa ‘realidade’ foi ordenada filosoficamente, a phusis como Ser. Apesar da importância decisiva do aristotelismo para a Europa que Heidegger sublinhou, em certo aspecto foi Platão quem venceu, o que se reflecte na maneira como filósofos e cientistas, quando lhes acontece quererem dizer de que é composta a ‘realidade’ (res), fazem enumerações de ‘coisas’ variadas sem contexto. Porque o ‘contexto’, por aí comecei, é o que foi reduzido pela definição e pelo laboratório, é pois o que fica sempre por conhecer, por pensar (sem phusis). No entanto, quando um cientista pretende analisar um fenómeno em seu laboratório, pondo uma hipótese teórica, como se diz, tem que o ir buscar ao seu contexto, apará-lo e limpá-lo digamos, antes de o pôr em movimento para lhe medir o percurso. Essa hipótese destina-se a integrar a teoria já confirmada que é suposta corresponder à tal ‘realidade’. Mas é como se se esquecesse o passo final que completaria o do ir buscar o fenómeno lá fora, se se esquecesse de ir verificar se batia certo... mas com quê? A tal ‘realidade’ é dispersa e sem contextos, confrontar o resultado com quê? No caso da física, verificam-se os resultados com as variáveis da equação, a verificação, passa-se pois dentro da laboratório. Lá fora, continua a ser o que não se sabe senão por narrativas e opiniões, que não valem para ciências e filosofias. Por exemplo, a lei da gravidade, segundo a qual as coisas caem para a terra com a mesma aceleração, é insusceptível de verificação por causa da resistência do ar segundo as superfícies dos objectos. Visto num tubo de vidro com possibilidade de ar e de vácuo alternadamente, vê-se bem com os nossos olhos a lei que lhes é improvável (no pavilhão do Conhecimento), mas esse tubo é um laboratório!

Regras e aleatório
13. O que está em questão é saber como é que as regras que as ciências descobrem no laboratório funcionam fora dele. A ideologia europeia é a de que o laboratório manifesta o determinismo de todo o universo[1]: uma vez provado experimentalmente, é universalmente determinado. E então, porque é que é preciso o laboratório? Façamos um desvio, dum laboratório de cientistas, só dele é que tenho falado, para o dum (muitos) engenheiro de automóveis. Aí, a questão muda radicalmente, já que é a verificação do funcionamento do artefacto na ‘realidade’ fora do  laboratório que é primordial, de tal maneira que se pode dizer que, ao contrário do cientista, ele tem que ter sempre os olhos fora do laboratório, não na ‘realidade’ mas na ‘cena de circulação’ de transportes e na sua lei do tráfego: é esta, com efeito, que determina a ‘anatomia’ dum automóvel (dum camião, duma mota, duma bicicleta) como aparelho que tem que ser capaz de avançar mais ou menos depressa, acelerar ou travar, virar à direita ou à esquerda, recuar até, avisar outros carros, vê-los à frente mas também atrás, etc. Ao que há que acrescentar algo capaz de lhe dar movimento, um motor, cego por sua vez para o tráfego. O que é que é interessante neste exemplo para a nossa questão? É perceber que tudo o que no laboratório é experimentado rigorosamente segundo várias regiões da física e da química, em condições de determinação que permitem aferir causas e efeitos de movimentos, todas as regras segundo as quais o automóvel é fabricado exercem-se segundo o aleatório do tráfego, cuja lei é a teoria do engenheiro, se dizer se pode, é para esse aleatório que se faz o automóvel.
14. Se voltarmos aos laboratórios científicos, pensemos por exemplo nos laboratórios bioquímicos de biologia. Seja ao nível das células e do seu metabolismo incessante, seja do sangue que lhes transporta as moléculas necessárias, seja do aparelho digestivo e respiratório que ‘carrega’ esse sangue, seja do cérebro e (outras) glândulas hormonais, seja dos órgãos periféricos que permitem situar-se na cena ecológica e dos músculos que nela se deslocam, todas as inúmeras e minuciosas regras que se descobrem estão ao serviço da circulação nessa cena: porquê? Porque todas as complexas moléculas de que a célula precisa têm que ter moléculas de carbono (além de outras), as quais só existem nas plantas (por fotossíntese), nos herbívoros que as comem e que são necessariamente as presas ideais dos carnívoros. O ciclo biológico do carbono explica a lei da selva que determina as anatomias de todas as espécies zoológicas (as imensas diferenças entre estas mostrando que tal determinação não é determinista), que têm que ser capazes de procurar e comer plantas ou animais para sua auto-reprodução e de escaparem a outros que delas se alimentem. Regras e aleatório.
15. O mesmo se passa nas regras duma língua, fonologia e morfologia, sintaxe e semântica, códigos textuais segundo paradigmas dos seus corpus: essas regras, por vezes muito subtis, às dezenas em cada frase mas em que nunca pensamos quando as utilizamos, sob pena de não falarmos, agem de forma quase sempre correcta mesmo em analfabetos e em crianças pequenas com a agilidade enorme que o aleatório da conversa pede, em que nunca se sabe bem o que o outro vai dizer nem por conseguinte o que se lhe responderá. E poder-se-ia continuar com os exemplos dos usos duma casa ou duma fábrica, usos que se aprenderam mas em que há com frequência alterações de contexto que obrigam a improvisar, com as leis dos tribunais que os juízes têm que adaptar a cada caso concreto, e por aí fora. Nem a física escapa, como mostra o exemplo do automóvel. Mas nenhuma pedra cai, segundo a lei da gravidade, se não for movida por algo de aleatório, pé que a empurra ou abalo do seu solo.
16. Não só toda a ‘realidade’ é indeterminada, como o que as ciências descobrem – em laboratórios concebidos segundo condições de determinação – são regras que se adequam a essa indeterminação. O que significa que a Filosofia com Ciências apresenta uma outra vantagem inestimável em termos de teoria do conhecimento: a chamada ‘realidade’ deixa de ser um amontoado desordenado de ‘coisas’ de toda a ordem para ser organizada em cenas de circulação cujas leis são conhecidas. E os mecanismos singulares que nelas se movem, fazem-no autonomamente segundo as regras que as ciências vão descobrindo consoante as suas espécies (moléculas, biológicas, sociedades, línguas): com Heidegger percebemos que estas regras das cenas, isto é de todos os outros mecanismos, heteronomia, são dadas a cada um (alimentação, aprendizagens) como sua autonomia, e retiradas para deixarem que esta seja real. A determinação que descobre a heteronomia no laboratório é pois estruturalmente correlativa da indeterminação de cada autonomia. Como sucedia em sua ourtra maneira na Physica de Aristóteles, a sua Filosofia com Ciências, com a ousia (essência-substância) e os seus indeterminados acidentes.
17. A última coisa a precisar nesta questão do laboratório está longe de ser de somenos, já que nos faz a todos sofrer. Ele reduz o contexto do que descobre, se é de ciências, mas também o de engenheiro, ao utilizar os resultados descobertos, ignora os contextos que vão além do que inventaram: a poluição resulta dessa cegueira redutora. Se um automóvel expele gases, o seu laboratório não experimentou a incidência desses gases na respiração dos indígenas, como terá que fazer um outro laboratório, de medicina desta vez. Os chamados “efeitos secundários”, como em farmácia também, são efeitos que o laboratório não pôde considerar, porque não faziam parte do teste experimental. É aonde está a dificuldade da enorme questão das alterações climáticas: elas dão-se na tal ‘realidade’ sem que haja laboratórios para as testar, apenas estatísticas. É aonde está a dificuldade da enorme questão das alterações climáticas: elas dão-se na tal ‘realidade’ sem que haja laboratórios para as testar, apenas estatísticas. É dessas estatísticas que se está a fazer o seu laboratório, argumentando com as convergências entre os vários factores medidos. A dificuldade é política: como convencer com esses argumentos probabilísticos os que dominam as redes de especulação financeira e os dirigentes políticos que eles cativam com empréstimos, juros e dívidas? Quantas catástrofes serão necessárias?
18. Voltemos ao paradoxo do § 6. A tradição filosófica vinda dos Gregos, da sua invenção da definição, veio até Heidegger como ‘o pensamento pensa’, procurando conhecer o que observa. O ‘labor’ do laboratório com matemática e meios de mensuração veio alterar esta economia do saber no que aos usos sociais, à technê, diz respeito: é a técnica científica agora que ‘labora’ o conhecimento, transforma os usos sociais, ficando o pensamento, inclusive científico, num estatuto digamos de acompanhamento interpretativo, que vai atrás do elaborado pela técnica, pelo ‘sistema técnico’ e financeiro. Foi o que Heidegger chamou Ge-stell e que se tornou muito mais ameaçador estas últimas décadas. Escapa ao controle dos humanos, que são ‘usados’ nele como nova condição humana. Quereria que esta reflexão mostrando que o sistema técnico e financeiro não é determinista mas cheio de indeterminações possa ajudar a buscar saídas em época tão difícil.






[1] “Devemos olhar o estado presente do Universo como efeito do seu estado anterior e como causa do que se vai seguir. Uma inteligência que num instante dado conhecesse todas as forças de que a natureza está animada e a situação respectiva dos seres que a compõem, se fosse suficientemente vasta para submeter esses dados à análise, abraçaria na mesma fórmula os movimentos dos maiores corpos do Universo e os do mais leve átomo: nada seria incerto para ela e o futuro como o passado estariam presentes aos seus olhos” (Laplace, Ensaio filosófico sobre as probabilidades, 1814), citado da Teia www.




sexta-feira, 22 de novembro de 2013

O risco de publicar 1000 páginas en francês


Ter publicado Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida, um livro de 1000 páginas em dois volumes em francês foi um erro ou foi uma chance? A questão é minha, claro. A editora, que não tem grande reputação mas publica imensos títulos universitários que mais nenhuma quer, propôs-me que reduzisse o tamanho, mantendo embora dois volumes, mas com sorte consegui vencer a resistência. Num texto que não facilita, pois pede ao leitor curiosidade em seis disciplinas diferentes, sem ter nome filosófico em França, quando a gente nova hoje só lê inglês – oh! miséria do pensamento que valha – e a Internet fabrica leitores apressados à pressão, parece ter sido um erro, face à única chance: a de o livro existir, pode-se encontrar por acaso ou conselho.
Porquê ter optado por tal dimensão? Só tenho um motivo, mas ele consola-me ainda que fique como único leitor: aquele texto foi uma aventura da escrita, foi-se pensando enquanto se escrevia; se posso dizer sem falsas modéstias, a sua escrita, com tudo o que ela teve de aleatório, impôs-me respeito: percebe-se que ela me ultrapassa, devido às leituras que fui intercalando com ela. E se venho à questão, foi por me ter apercebido que uma das coisas que esse texto esclarece na sua estrutura é a impossibilidade de dissociar na proposta formulada o que releva da tradição fenomenológica e o que releva das várias ciências. Com efeito, o segundo capítulo, consagrado a Husserl, Heidegger, Prigogine e Derrida, é dedicado ao motivo de cena, com os de redução, de doação retirada ou dissimulada do Ereignis, de produção de entropia e de suplemento e estrição respectivamente, que farão parte da composição desse motivo por vir, mas esta não lhe foi possível fazer, composição que virá apenas no cap. 7, após a descrição de quatro disciplinas científicas (que aliás fornecem outras componentes, inesperadas, como o retiro regulador a compor com o estrito, as pequenas repetições e o acontecimento e a tese da verdade). Aliás os cap. 1 e 2 só foram escritos entre o 6º e o 7º. Mas quanta coisa só veio depois, nomeadamente quase todo o 2º volume que não estava previsto quando acabei o 9º capítulo (final do 1º volume). Apenas o motivo de duplo laço (double bind) vinha do acontecimento do pensamento que esteve na origem da escrita.

É claro que não conseguiria nunca publicá-lo em português. L’Hamartan, que eu não conhecia (foi o José Gil quem me falou nela para este caso), foi a única chance.

domingo, 17 de novembro de 2013

Duas críticas da oposição sujeito / objecto





1. Tenho porfiadamente insistido em que as ciências europeias (pela sua origem histórica, não geográfica) têm no seu paradigma teórico um obstáculo epistemológico que elas ignoram, a oposição sujeito / objecto, mas que condiciona a respectiva leitura das cenas da realidade aquando se voltam para estas após a experimentação laboratorial. Acho pois que vale a pena avançar dois argumentos dessa crítica, um de Heidegger e o outro de Derrida, ambos assinalando a ruptura deles com Husserl, no modo da infiel fidelidade de lhe prolongarem o pensamento além do que ele visou. À minha maneira, direi os argumentos pelos exemplos e não da forma académica que é a que lhes compete.
2. A intencionalidade da consciência em Husserl foi a maneira de dessubstancializar a consciência, largar a res cartesiana da res cogitans, ligar o sentido do objecto à intenção da consciência, esta constituindo aquele. O que Heidegger criticou foi que, ao privilegiar a percepção, a intuição sensível, como primeiro passo para a intuição categorial, em que o ‘é’ do juízo é dado sem vir da sensibilidade (e, acrescente-se, a linguagem em que o juízo é expresso), Husserl pressupunha o objecto delimitado, fora do seu contexto no mundo, já definido filosoficamente. Propondo que o ‘é’ reenvia ao Ser que dá os objectos, colocou este como prévio à percepção e o ser humano, o Dasein, como sempre já ser no mundo, a intuição categorial prévia à sensível, se dizer se pode. Derrida radicalizará: não há percepção (digamos que o cinema é anterior à fotografia). O ser no mundo cuida do mundo, usa os objectos dele, aprende a usá-los no mundo, sem nunca se separar dele, como um ‘sujeito’, uma ‘consciência’. Para exemplificar este argumento, levei uma vez um fervedor de leite para a aula e mostrei-o como o ‘objecto’ da fenomenologia de Husserl, fora do seu contexto da cozinha: numa sala de aula, toda a gente o via e sorria. Mas quando se entra na cozinha e ele está arrumado com panelas e caçarolas, não se repara nele a não ser quando se quer aquecer o leite, tal como se aprendeu. Um fidalgo doutras eras nunca ia à cozinha, se visse um fervedor de leite perguntava ‘o que é isto? para que serve?’. O ser no mundo de 1927 (Ser e Tempo) é uma viragem decisiva do pensamento filosófico ocidental, não apenas em relação a Descartes e Kant, mas inclusivamente a Platão e à sua alma de que o ‘sujeito’ é o descendente, na sua oposição ao corpo e ao mundo. O ser no mundo pensas o humano antes da filosofia.
3. Heidegger em todo o caso não foi até ao fim do seu gesto, podemos sabê-lo lendo o De la grammatologie de Derrida que, em certo sentido, pressupõe os Gregos clássicos, Platão e Aristóteles, que não opunham pensamento e linguagem, o logos sendo o mesmo (tauton), um e outra e o ser, noein, legein e einai, ambos discípulos de Parménides neste ponto. Mas também Derrida pressupõe o ser no mundo, ao regressar a Husserl e ao levar a sério a sua redução da empiricidade do ‘objecto’ mas agora para compreender a lição saussuriana, a diferença entre os significantes da língua e os sons da fala, sendo que aqueles não são senão diferenças destes. O que só se entende se a redução retiver o ‘ser ouvido’ dos sons ao reduzi-los, retiver as suas diferenças que todavia não são sem eles. A trace ou différance ou archiécriture passa por aqui. O que significa que a linguagem é parte essencial da constituição da consciência que constitui objectos, a linguagem com os usos do mundo (ela é um deles e torna os outros possíveis de serem aprendidos) é prévia ao sujeito, como o são todos os usos do mundo que o humano aprende ao longo da sua vida para ser tal humano concreto. Derrida completa o ser no mundo, torna possível o que a filosofia parece ter sempre ignorado, pensar a aprendizagem (que a oposição sujeito / objecto ignora).
4. Lendo os últimos seminários de Heidegger nos anos 60 (Questions IV), percebe-se que ele nunca foi ao ponto de fazer do Dasein um ente a que o Ereignis dá “tempo e ser” como a qualquer ente (conferência de 1962), como se o privilégio do pensamento o tivesse impedido (nascer, comer, crescer, aprender) e Darwin e Freud fossem aquilo a que ele resistia, o seu Dasein não se tendo desligado por completo do ‘sujeito’, por exemplo, sempre oposto aos animais em geral, como se a diferença entre um humano e um chimpanzé fosse maior do que a diferença entre um chimpanzé e um peixe ou uma formiga (como supõe os motivos de ‘alma imortal’ e de ‘racionalidade’). Estes dois passos além de Husserl tornaram possível a leitura da história ocidental, do lugar primacial da filosofia na passagem dos Gregos e Romanos aos Europeus, lendo a historicidade das palavras (Heidegger) e dos textos (Derrida) em vez de ‘mentalidades’ ou outras ‘representações’, coisas de que as ciências sociais e humanas estão pejadas. Tentei em No paradigma de Biologia falta o Ser no Mundo (debate com Teresa Avelar e António Damásio), neste blogue, mostrar como a biologia e a neurobiologia carecem de ultrapassar desta oposição, como também a física em “Force et énergie, c’est quoi?” (www.Philoavecsciences2.blogspot.com

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

A Cibernética é uma ‘revolução’ ?




1. Li uma entrevista do filósofo João Maria Freitas Branco, meu amigo, como um desafio, uma boa provocação. Dizia ele, e foi a manchete do Público (3 novembro 2013): “estamos a viver uma revolução tão profunda como a do neolítico” – com um “provavelmente” antes de “profundo” no texto que matiza um pouco a afirmação inesperada –, a que talvez se venha a chamar “revolução informática”. Extensa e rápida, ainda pouco sabemos dela. Afirmação inesperada, pois parece passar por cima da revolução industrial, crendo eu que se trata da sua terceira fase, após a primeira (até ao final do sec. XIX: máquina a vapor, ferro e primeira química industrial) e a segunda (electricidade, automóveis e aviões, aço e betão armado, grandes cidades), terceira fase que é certamente caracterizada pelos transistores e pelos circuitos integrados, pela electrónica ou electricidade de correntes fracas e susceptíveis de serem operatórias. É a partir deste factor tecnológico novo que acho que se pode reflectir um pouco sobre o que está a mudar tão aceleradamente, colocando questões sociais, politicas e culturais novas.

Resumo das duas revoluções que houve
2. A invenção neolítica da agricultura e da criação do gado arrancou os humanos à selva em que se disputavam com outros mamíferos e outros vertebrados, criando excessos de alimentação que libertou outros humanos para tarefas especializadas em cidades, além das da guerra dos nobres. Tratou-se duma invenção da geografia, em sentido etimológico, os humanos começaram a ‘escrever’ (grafia) a terra (geo), como da história que se tornou possível a partir dessas escritas e outras artesanais, incluindo o que assim chamamos, escrita que transcreve o que dizemos e calculamos de maneira a poder durar além da morte dos que escrevem e pensam, a criar pois condições de ‘progresso’, uma nova geração de discípulos podendo ir além da herança que recebeu dos mestres da geração anterior. Polanyi chamou “grande transformação” à que resultou do que chamamos revolução industrial e que veio das cidades e já não dos campos que pressupõe, é claro, mas também da escrita que no século XVII aliou a definição filosófica herdada dos Gregos com a geometria que mede e a mecânica das forças (Newton) no que chamamos laboratório, onde o labor artesanal faz unidade com o conhecimento humano, gerando a nossa noção de ciência, física e química, donde inventores de variadas vocações nos deram as máquinas, a electricidade, as químicas.
3. Se quisermos datar o início desta modernidade, o período que vai de 1450 a 1520 presta-se a isso. Foi o tempo das descobertas dos oceanos e dos continentes do planeta terrestre, o tempo em que o renascimento da Europa se fez ao sul italiano como humanismo e ao norte com a invenção da imprensa e a quebra consequente do cristianismo com a reforma protestante, a qual só se estabilizou devido à possibilidade de os cristãos terem a bíblia nas mãos. E é claro que colocar assim um início é sempre uma facilitação, já que Gutenberg só teve textos para imprimir devido ao movimento de transformação comunal e das universidades medievais dos séculos XII e XIII.
4. Esta invenção da imprensa permitiu substituir a cópia de manuscritos um a um por trabalho muscular de copistas por uma mecanização tipográfica que incide directamente sobre as linhas dos textos alfabéticos compostas previamente por um só trabalho que servirá para multiplicar as cópias que forem precisas: é nesta multiplicação, fecundidade da tipografia, que consiste o fenómeno novo de que a cibernética é hoje, aos nossos olhos, a última etapa. O trabalho tipográfico é industrial, faz-se em unidades sociais especializadas, as casas de edição, representa uma incidência nova – em relação às escolas, às igrejas e às sinagogas – da cena social da habitação, da cidade, se se quiser, sobre a cena intelectual do saber, das escritas e leituras, incidência essa que conhecerá mais tarde uma reversão fecunda com o laboratório dos engenheiros que constrói artifícios variados para a cidade a partir da colusão do artesanal da mecânica com a geometria e a filosofia natural no laboratório científico. Mas já houvera o protestantismo e o alargamento do renascimento na origem do humanismo como movimento de letrados voltados para o pensamento, as ciências, as artes e a filosofia, para repensar a estrutura das sociedades, das cidades.
5. Então a cibernética, ver-se-á adiante porque é que prefiro este termo ao de informática, será uma forma – entre outras, específica? não sozinha, em todo o caso – de a cena social do século XXI incidir sobre a cena da escrita, do conhecimento e do pensamento e tornar possível movimentos sociais, de tendência planetária talvez com o tempo, de que se tentará esboçar um desenho. Para lá chegar, será necessário recordar de forma resumida as principais formas desta incidência, entre a invenção da imprensa e a cibernética. As sociedades humanas inventaram quatro formas de inscrição (não há nome nenhum que convenha às quatro, a não ser este, que implica que todas se aprendem) que foram diagnosticadas num texto sobre palavras, números, músicas e imagens[1], as três primeiras articulando-se linearmente: as palavras duplamente, feitas de fonemas ou letras imotivadas (não referem nada) e inserindo-se em frases; os números e outros caracteres da matemática tendo uma referência convencionada (quantitativa) e formando equações como suas frases; os sons musicais imotivados em suas frases musicais; as imagens, enfim, não têm articulação linear mas a superficial dum plano com moldura. É sobre estes quatro tipos de inscrições, duas orais e duas escritas, mas aquelas com formas de notação adequada (alfabeto e musical), que haverá diferentes técnicas. Podemos dizer sumariamente que estas são da ordem da mecanização (energia cinéticas, como a máquina de escrever), da química (fotografia e cinema) e da electricidade (telégrafo), nenhuma delas podendo operar sobre as inscrições sem um trabalho humano prévio, mais ou menos criativo, como hoje se diz, ainda que se trate dum ‘operador’ que obedece a indicações dum ‘autor’, à maneira dos dactilógrafos, ofício gerado pela invenção da máquina de escrever no séc. XIX, quando a tipografia ainda exigia do autor um trabalho com “papel e tinta, caneta e mata-borrão” (Zeca). Além dos livros, a tipografia já produzia também jornais, tendo o sec. XIX inventado a escrita química pela luz (phôs), a fotografia que na viragem para o século seguinte ganhou movimento (kinêsis) cinematográfico. Foi todavia a electricidade a invenção maior nos seus efeitos, tanto na cena social como na das inscrições. É o que nos vai ocupar.

A electricidade enquanto corrente
6. Ela consiste numa forma de energia composta de electrões de átomos metálicos que, sob certas condições (diferença de voltagem), ‘correm’ por superfícies, sobretudo de cabos ou fios fabricados para o efeito. Essa corrente eléctrica, que só foi possível devido à invenção da pilha pelo italiano Volta (1800) – a electricidade foi materialmente inventada, creio ser o único caso em que não havia nada antes, por assim dizer, apenas fenómenos estranhos de magnetismo exibidos em salões do sec. XVIII –, tem a propriedade peculiar de se poder transformar noutras formas de energia (locais, que não ‘correm’) e reciprocamente: cinética ou mecânica (motor eléctrico, turbina), luminosa e térmica (lâmpadas, painéis solares, aquecimentos), sonora (telefone), ondas electromagnéticas (rádio, televisão), exemplos não exaustivos, nomeadamente das chamadas correntes fortes ou de alta tensão. Esta propriedade teve uma fecundidade imensa na transformação das paisagens na 2ª etapa da revolução industrial, já que permitiu transportar energia, com fios ou sem fios, com altos rendimentos a grandes distâncias (tele-), de turbinas hidro-eléctricas e centrais térmicas às cidades e fábricas onde devolve as diferentes formas de energia segundo as necessidades locais. As grandes metrópoles do séc. XX, incluindo os ascensores dos arranha-céus, só assim foram possíveis.
7. É a possibilidade de transformação recíproca em energia luminosa e sonora, mas agora em correntes fracas, de baixa tensão, e já não as que movem motores e iluminam cidades, que tornou possível a cibernética. Partamos dum exemplo mais antigo, o telefone. Uma fala (ou uma música) é uma ‘corrente de ar’ com frequências determinadas que um mecanismo electro-fónico transforma em uma ‘corrente eléctrica’ que, em vez da mesma tensão dum cabo de electricidade das nossas casas, desposa as frequências sonoras em tão ‘alta fidelidade’ que pode no aparelho do interlocutor voltar a transformar-se na mesma ‘corrente de ar’ que este reconhece e a que responde, por uma mesma via no sentido do regresso. Não sou físico, seja como for que essa transformação se passa, temos a possibilidade de dois diagramas de frequências, sonora e eléctrica, se corresponderem, ainda que porventura à vista deles não se vislumbre tal correspondência, que no entanto a nossa experiência do telefone nos confirma: as duas correntes em suportes diferentes são a mesma. Mas temos outros exemplos de fenómenos equivalentes: um trivial é uma leitura em voz alta, em que à linearidade das palavras alfabéticas, segundo a visão, corresponde a das palavras orais, segundo a audição, e creio que se pode dizer que como é que os cérebros de quem aprendeu a ler fazem isso é ainda hoje razoavelmente misterioso, em ligações entre grafos de sinapses (Changeux), provavelmente não lineares como a escrita e a fala. Outro exemplo, menos trivial, foi-nos fornecido pela biologia molecular: entre a sequência dum troço de ADN, a do respectivo ARNm e a da proteína que este ‘sintetiza’, há igualmente um paralelo exacto (que as célebres mutações genéticas podem levar a erros e doenças).

As correntes governáveis
8. É assim esta equivalência técnica entre correntes eléctricas com frequências moduláveis, como se diz, correspondendo biunivocamente às frequências das inscrições sonoras (falas e músicas) ou alfabéticas e matemáticas, além das imagens (que percebo menos como se faça), que está no coração cibernético dos dois fenómenos novos que tentaremos compreender, os computadores e a Teia deles (WWW). O que é que o computador tem de específico, em relação aos fenómenos de inscrição anteriores, desde os livros e jornais à rádio, cinema e televisão, e com a excepção do telefone? Estes funcionam segundo uma estrutura de multiplicação a partir dum só pólo, ‘criativo’ como se diz – o autor, a redacção do jornal, a tipografia, o locutor da rádio, o realizador e as respectivas maquinarias de emissão –, devendo chegar a uma quantidade grande e dispersa de receptores que acolhem os produtos inscritos sem terem sobre eles outro controle do que o da critica pessoal, com efeitos praticamente apenas de ordem doméstica, se se pode dizer. Ora, o computador implica estruturalmente as mãos desse operador doméstico, mãos que escrevem em teclados palavras ou números, textos ou problemas, e até notação musical. As imagens é outra coisa, mas com micros apropriados também se pode falar e musicar sonoramente, mas dificilmente o falar substitui o escrever no teclado que dispense a dactilografia, por razões que têm a ver com a articulação fonética das palavras (as vozes são empiricamente diferentes e a electricidade é de alta fidelidade). Também a articulação das palavras em frases, segundo as regras da sintaxe e da semântica das diversas línguas, implica uma limitação dos textos, à diferença da matemática (o texto citado acima explica estas questões): o fenómeno estrutural da polissemia das línguas, obstáculo desde sempre à lógica que acabou por o tornear inventando um algoritmo de tipo matemático, impede o computador de ‘pensar’ a partir do texto que lhe é fornecido pelo teclado, ao invés da matemática que, com programas de software adequados, consegue não só calcular  muito rapidamente como inclusivamente fazer cálculos complexos demais para os humanos. Este tipo de dificuldade computacional com as línguas duplamente articuladas testa-se bem nas dificuldades de tradução, embora haja melhorias notáveis nos últimos anos quando se trate de textos de tipo técnico e não literário.
9. Ora bem, creio que se pode e deve dizer que esta resistência da polissemia das línguas ao computador garante a parte activa dos operadores naquilo que dizem, que querem dizer, tal como acontece aliás com o telefone, mutatis mutandis. Os operadores são necessários à Internet, são um factor democrático no coração da tecnocracia que ela representa. É onde o termo ‘cibernética’ me parece mais interessante do que ‘informática’, correlativo da semanticamente pobre ‘informação’, resposta que se dá a quem saber o horário dum comboio, o preço duma mercadoria, o trajecto para um dado destino ou outra receita do género. Quem pede a informação precisa dela e fica dependente da veracidade do informante, como assim também se situa o leitor de livros e jornais, o espectador televisivo, meros receptores, críticos embora, do que lhe enviam, daquilo de que o informam. A palavra ‘cibernética’, do grego “arte de pilotar, de governar”, acentua pelo contrário a capacidade de ‘piloto’ do operador, como ele ‘governa’ o seu computador, como a operatividade deste depende da sua ‘criatividade’, da sua “razão adulta”, como dizia Kant e J. M. Freitas Branco assinalava. E diz o que permite essa diferença entre espectador e operador, o jogo da electricidade como ‘corrente’ que desposa textos ou números ou músicas, que é susceptível de 1/0, de passar ou ser interrompida, de ser governada de forma produtiva. Se há revolução, ela radica aqui, no que cibernética diz e impede de caracterizar a Internet como um ‘média de massas’, perto do livro por esse lado, que também suscita uma operatividade mental do seu leitor e o pode metamorfosear.

A questão política
10. Mas não há bem sem mal. Um livro não é bom só por ser livro, ainda que best-seller, Mein Kampf foi um livro que fez mal, a mediocridade dos ‘médias de massas’ também pode afectar os internautas, como testemunhou autobiograficamente N. Carr que se viu incapaz de ler um livro, ou mesmo um capítulo (ver neste Blogue a internet e os livros que contam). É possível que muito do que se passa nela, além dos negócios, não seja mais do que agitação, informação e entretenimento, pouco haja de cibernética fora dos profissionais. Creio aliás que a especulação financeira que deu cabo das economias ocidentais nesta crise que estoirou em 2008 foi acelerada pela internet.
11. E que incidências politicas positivas, que revolução? é a questão de Freitas Branco, o contexto da sua entrevista. É difícil de saber por enquanto, diz ele e tem sem dúvida razão. A liberdade activa do operador e o facto de não haver pólos de emissão e possível comando como nos outros médias, significa um funcionamento anárquico, etimologicamente ‘sem poder’, que normalmente é dispersivo, não facilita apelos a regrupamentos, excepto em momentos de crise aguda do contexto social e político, como já se tem visto e onde os telemóveis funcionam como uma espécie de complemento, porventura mais importantes ainda. Apelos que vêm de fora da Internet  e para fora dela encaminham. Mas o que poderá ser mais significativo é o papel directamente político e democrático de discussões e de escolhas, votações e sondagens, e por aí fora, o que se chamaria um papel democrítico, como o que exercem os blogues que ganham público devido às questões que suscitam, papel esse que irá alem do duma ‘opinião pública’ se for o duma ‘participação pública’. É aí que sem dúvida o futuro dirá e fará as surpresas, o tipo de pequenas e grandes questões que poderão ser activas democriticamente, do bairro à nação, à Europa, ao clima de planeta. Sem que haja que pensar a Internet só, provavelmente livros e revistas, rádios e televisões continuarão a jogar o seu papel, quiçá maior. O grande obstáculo continuará a ser o de todos estes médias funcionarem predominantemente nas línguas regionais e nacionais, não parecendo óbvio que o inglês macarrónico que serve de segunda língua técnica e comercial seja adequado sem mais à universalidade desta democrítica.

Extracto doutro texto inédito
28. É nesta história que entram os computadores, fazendo correr electricamente os textos que os nossos dedos escrevem, dedos que são automaticamente reduzidos com todo o seu contexto habitacional no acto mesmo de escrever. A Teia global é feita desses textos inscritos em corrente eléctrica, reduzido o hardware de todos os aparelhos, e lidos em ecrãs, a corrente eléctrica escapando à nossa percepção. Claro que entre esses escritos que circulam há muita narrativa, muita efusão afectiva do Mundo, tal como numa carta que para isso é escrita ; também há elementos indicadores da proveniência dos textos, como datas e assinaturas nas cartas, mas a aceleração eléctrica, os reenvios frequentes esbatem-nos. Mas no que diz respeito a textos de pensamento e conhecimento que circulam, ainda que assinados como os livros das bibliotecas, o seu encavalitamento uns atrás dos outros cria uma espécie de palimpsesto electrónico em que, referido embora o Mundo da habitação e alimentação, essas referências exigem a competência inteligente do leitor, com o risco de a ‘corrida’ textual fazer mais para diluir do que para intensificar essa inteligência[2]. A palavra tradicional que diz este efeito é ‘especulação’. Ela foi usada para criticar a maneira escolástica de transmitir o saber por leituras, comentários e debates universitários de textos recebidos dos antepassados, os comentários de Agostinho pelo Lombardo sendo em seguida comentados, como os de Aristóteles pelo Aquino. O texto fala do Mundo, define e argumenta, é ‘espelho’ (speculum) dele, reenvia para outros textos sem quase se tocarem, com um jogo de espelhos reflectindo-se uns nos outros. Essa maneira especulativa foi a ‘chance’ da futura Europa, quando começou a conhecer por ‘experiência’ coisas de que esses livros antigos não sabiam nada, como Duarte Pacheco Pereira já argumentava por ela contra a autoridade dos Antigos um século antes de Galileu. Especulação é o reenvio de textos para textos sem passarem pelo contrôle experimental das coisas de que esses textos falam. Não é necessariamente pejorativo : qualquer demonstração matemática o faz, é a grande virtude do operar matemático, mas de que carecem as línguas duplamente articuladas, que têm que recorrer a definições para argumentarem logicamente a partir delas, chegando no entanto, num Heidegger por exemplo maior, a um nível de abstracção notável, muito parco em exemplos. A hipótese colocada aqui é a de que a Teia se presta a um tipo electrónico de especulação, de mensagens que reenviam a mensagens com os seus contextos de habitação sempre reduzidos, o que daria azo a uma tendencial oposição entre os ecrãs e o Mundo de que eles falam e que reduzem, com alguma analogia com a oposição clássica entre a alma e o corpo com o respectivo mundo. Presta-se a um idealismo electrónico, que a corrida da corrente acelerará. Onde encontrar uma analogia para o que quero dizer ? nos alunos fracos que repetem o que leram sem terem percebido grande coisa : se se prestam a ler, os ecrãs prestam-se também a tresler. Insisto no ‘prestar-se’, toda a leitura se presta a isso, é a razão da crítica platónica da escrita no Fedro. O que ajudará a impedir esse risco de tresler é a necessidade, como em relação às bibliotecas, de haver guias de leitura : os professores são sempre imprescindíveis. Não é só a Teia que assim contribue para a multiplicação da ‘bêtise’, da ‘burrice’ ; como sempre houve livros e jornais imbecis, também acontece rádios e televisões serem financiadas por critérios de audiências, por um lado, como por outro, após um dia de trabalho quantas vezes monótono e um trajecto cansativo de regresso a casa, apetece qualquer banalidade que nos queiram impingir, que chegam ao ponto de trazerem as gargalhadas e as palmas já gravadas no programa, para sublinhar a imbecilidade da coisa que permite escapar ao engravatado dos empregos, dos mal-empregados.
29. Mas pode-se ter uma perspectiva mais positiva, quando se pensa que muita gente encontra no ‘emprego’ do Ge-stell, não um ofício que goste de fazer mas um salário para o tempo livre, aquele em que não está no emprego. A partir da instituição de correios electrónicos, em que cada um tem que tomar a iniciativa de abrir um endereço e de ir bater à porta de outros, sem que haja poder institucional de contrôle interno à Teia – que é um albergue espanhol –, podem-se criar todo o tipo de alianças segundo interesses próprios, com muito maior facilidade do que com os meios anteriores e bem maior alcance geográfico, desde que haja língua comum aos assim aliados. Reduzidos electronicamente os seus corpo e mundo, não se é solipsista no entanto como a alma de Platão e Descartes. E encontra-se na Teia algo de novo, e para todos os gostos. Para espectadores que busquem saberes de todos os géneros, que podem inclusivamente encontrar coisas raras e difíceis, que a poucos interesse, como que uma enciclopédia imensa de todos os níveis culturais. Quem se sinta monótono na sua vida habitacional, entre família e emprego, tem mil maneiras de respirar melhor (mas pode não encontrar nenhuma, é claro, se não se souber orientar). Pode encontrar nos ecrãs o que lhe permita divertir-se, o ‘diverso’ que se solta do ‘universo’ obrigatório para poder respirar em direcções várias e não constrangidas : cultura e espectáculos vários, o novo ‘ópio do povo’, termo que já não é necessariamente negativo se compensação para vidas cansadas e sem horizontes quando as revoluções se tornaram coisa do passado, o ‘ópio’ sendo um prazer quando o contexto aborrece, melhor em todo o caso do que o ópio propriamente dito. A cultura antes de mais: a Teia oferece a qualquer um o acesso aos maiores tesouros e monumentos da história da humanidade. O prazer cultural, além da especialização profissional, poderá ter o sentido forte do que outrora se dizia ‘espiritual’, que começou por ser liberdade de respirar além das clausuras das doxas, sentidas como asfixiantes, como foi a filosofia de Platão, por exemplo, a espiritualidade dos tempos do neoplatonismo plotiniano ou no século XIV a ‘devotio moderna’. Foi a força dessas experiências, em que intelectual e espiritual não se distinguiam nitidamente, que se impôs de tal forma, que o corpo e o seu contexto mundano tornaram-se mesquinhos, redução dos usos da habitação, riquezas, glórias das guerras e luxos afins. Assim há por vezes quem aposte tudo, o emprego incluido muitas vezes, no viver sem apoios, a respirar fora do mundo mundano : como convidam os textos de Nietzsche. Ou, para quem os souber ler, os capítulos 5 a 7 do evangelho de Mateus que tanto seduziu Pasolini, herege de todas as ortodoxias.
Ver também neste blogue  A Internet e os livros que contam.




[1] http://www.educ.fc.ul.pt/hyper/resources/fbelo.htm. Palavras, Números, Músicas, Imagens. Livro, Cérebro, Computador.

[2] Não há nada melhor para pensar do que ler bons textos, devagar e com lápis na mão, e ir escrevendo o que eles derem a pensar.

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

A questão dos exemplos nesta Fenomenologia




1. No lançamento do Heidegger, pensador da Terra na Fábrica do Braço de Prata a 30 de março de 2012, a convite e boa hospitalidade do Nuno Nabais e com a generosa e cúmplice participação da Irene Borges Duarte, pôs-se a questão dos exemplos em Filosofia, se são necessários ou porventura estorvos que distraem do que verdadeiramente conta. Claro que se trata de uma questão a que diferentes leitores darão respostas diversas, mas no caso do Heidegger a questão para mim prende-se com a relação do pensamento dele com a fenomenologia. Disse eu que a maior dificuldade desse pensamento é o grau de abstracção dos seus argumentos, quase como se de matemática se tratasse, e da raridade dos seus exemplos, sendo que estes me fazem sempre falta para compreender o que está em questão. E acrescentei no final que, tendo vindo tardiamente à filosofia, nunca estive nela com os dois pés, como aqueles que a recebem como primeira formação universitária, mas sempre com um pé dentro e outro fora. Ora, eu creio que no caso do Heidegger os exemplos, os meus em todo o caso, têm um estatuto filosófico próprio, se se tem em conta o seu motivo da diferença ontológica, entre o Ser (e mais tarde o Ereignis, Acontecimento) e os entes, aquele a nível ontológico, estes a nível ôntico. Aquele não é ente (nomeadamente não é Deus), é ‘nada’ que dá os entes e dissimula a doação, faz vir à presença cada ente e o deixa vir em sua autonomia temporal, retirando a ‘força’ da doação, da heteronomia doada.
2. Ora, que Heidegger tenha sempre procurado compreender o nível do Ser, muito lentamente progredindo até ao Ereignis de 1962 (conferência Tempo e Ser), é obviamente a sua grande força de pensador e é provável que, se tivesse dado mais atenção aos exemplos, se arriscasse a ser compreendido ‘por baixo’, se dizer se pode, como se queixou, por exemplo, do ‘humanismo’ de Sartre na Carta sobre o Humanismo a J. Beaufret. Só que esses entes correspondem ao nível da descrição fenomenológica pelo qual ele entrou, pela mão de Husserl e, se rompeu com o mestre, foi para indagar justamente, não dos entes, das coisas, mas do que as dá, do Ser pois. É então possível, e para mim necessário, a título de fecundar outros tipos de discurso com o pensamento heideggeriano, nomeadamente os científicos, é justo que se tente compreender como as categorias de doação com retiro ou dissimulação dessa doação, podem ajudar a pensar os discursos da biologia (exemplo que procurei ilustrar no colóquio de Fenomenologia de Évora, em Outubro de 2011, nomeadamente em debate com A. Damásio) ou da psicanálise, da antropologia, das ciências da linguagem. O nascimento parece-me claramente um bom exemplo, o melhor porventura, da sua busca pelo que faz vir à presença e deixa vir, em contraponto com o papel da morte para o Dasein em Ser e Tempo. E a aprendizagem, conascimento diz-se em francês o conhecimento, já que é ela que institui o sujeito enquanto sujeito falante e actuante na sua tribo. Questão crucial da Fenomenologia, que daria uma boa razão a Heidegger para ter largado Husserl: cada uso que se aprende, seja prático seja uma formação teórica, altera o sujeito, e é por isso que as noções sociológicas de ‘acção’ (Touraine) e ‘prática’ (Althusser) não são boas. Ora bem, a questão que eu ponho, para defender ainda mais a minha herética maneira de fazer exemplos fenomenológicos, é que presumo que o próprio Heidegger não terá dado por eles, por algumas consequências do seu pensamento, não terá dado pelos retiros a nível ôntico, que são o que estrutura a reformulação que tentei da fenomenologia. Não terá entendido que o ser no mundo altera o sujeito, que os usos sociais da tribo do Dasein o instituem na sua maior intimidade e singularidade, de que a voz é um bom exemplo, já que ela identifica a tribo pelo sotaque mas também a sua singularidade (‘sou eu’, ao telefone). Já agora, sem ele também dizer que se trata deste exemplo, a maneira como Derrida em De la Grammatologie, faz trabalhar a diferença de Saussure entre os significantes e os sons pela diferença fenomenológica de Husserl, reduzindo a empiricidade da voz singular (“le son entendu”) para reter apenas as suas diferenças como significante fenomenal, estrutural (“l’être entendu du son”), a diferença que se repete, não é senão uma análise fenomenológica da aprendizagem da língua, de como num bebé se institui uma voz inédita (e o mesmo se pode dizer da sua leitura do Esboço de Psicologia clínica de Freud). Também aqui exemplos de tipo fenomenológico podem permitir ajudar a pensar melhor as descobertas científicas mais importantes; aliás, sem passar por Derrida, seria mais difícil, talvez impossível usar Heidegger nessa tentativa de compreender o que chamei O jogo das Ciências, compreender aquilo que se passa fora do laboratório, no que chamei ‘cena’ (do tráfego, da gravitação, da alimentação, da habitação, da inscrição): considerando o gesto de tirar um fenómeno dessa cena para o examinar no laboratório em condições de delimitação da multiplicidade aleatória de causalidades e depois o gesto de o restituir, fazendo a teoria, não apenas do que se descobriu no laboratório (é o que os cientistas fazem em geral) mas também do que se passa na tal cena em que as regras científicas jogam em função do aleatório da cena.
3. Isto serve também para elucidar os que ficaram perplexos com a minha tentativa, dizendo que nem Heidegger nem Derrida eram fenomenólogos. Sem dúvida, mas passaram por lá e não perderam nunca a ligação a essa passagem obrigatória. Por exemplo, a dupla dimensão da différance, o seu enigma (no texto com esse título, nas Marges), corresponde justamente ao que é o mesmo (uma língua, uma espécie biológica, uma tribo) que releva das ciências respectivas e ao excesso fenomenológico que é o singular de cada voz falante ou de cada indivíduo.
4. Esta aplicação da différance permite tematizar esta relação entre o mesmo e o seu excesso (singular) em termos da minha ousadia em Física, a de propor que cada grave é constituído por forças (nucleares, electromagnéticas, gravitacionais) que contêm excessos energéticos (respectivamente: protões e neutrões, electrões, graves sujeitos ao princípio da inércia), segundo a célebre fórmula de Einstein, E = m.c2. Alguém que fala dirigindo-se a outro, usa uma certa energia de relação, com muitas cambiantes possíveis entre afecto e rivalidade, e a língua tem regras (ou leis, também se diz) que são justamente o que retém essa energia sonora (ou gráfica) de forma, digamos, civilizada. Quando a língua não consegue mais essa retenção, tanto pode dar choro como riso ou gritos de fúria, e por aí fora. Os códigos linguísticos, Barthes assinalava-o em S/Z, são leis, isto é, são forças que retêm energias singulares: assim as oposições filosóficas do logocentrismo de que Derrida nos ensinou a desconstrução, são forças políticas nos seus efeitos sociais, o logos preponderante era o do pai e patrão, preponderante sobre escravos, mulher e filhos, mas sujeito na cidade a pais-patrões de casas mais ricas. O direito, por sua vez, com suas leis e códigos, também implica teoricamente uma mesmidade (todos os cidadãos são iguais perante a lei) que deve reter e conter as energias dos cidadãos nas suas competições. Igualmente, julgo que se pode pensar que os cancros são excessos energéticos que se rebelam às forças do ADN que contêm os metabolismos celulares nas suas funções especializadas no respectivo órgão e na respectiva dimensão, a obesidade sendo um outro tipo de fenómeno de excesso que as forças ou códigos do ADN não contêm suficientemente. Ora bem, são estas forças que são susceptíveis de ciência, não os singulares que se movem nas respectivas cenas, ecológicas ou sociais, consoante o tráfego (e que já Aristóteles dizia que não são susceptíveis de ‘ciência’). Isto é, estes fenómenos não são nunca de ‘singulares’ sozinhos, de ‘coisas em si’, mas sempre de ‘seres no mundo’ com outros.