domingo, 24 de agosto de 2008

Evolução, razão e Bíblia



1. O debate americano entre evolucionistas e criacionistas, agora a alastrar à Europa, só tem sentido se o colocarmos em termos de razão, mas esta precisará de ser esclarecida dos dois lados. Comecemos pela evolução, nestes 150 anos da publicação da Origem das Espécies. Não me parece que, com se diz habitualmente, a selecção natural seja um ‘mecanismo’; trata-se, outrossim, duma lógica de compreensão global das análises biológicas que Darwin forneceu, lógica essa que para nós hoje se tornou quase uma tautologia: os mais aptos sobrevivem, seja por que razões for (como mostra a excepção que representam os dinossauros). A lei a que ela obedece parece ser, à maneira do ciclo da água entre chuva, rios, mares e evaporação, a do ciclo de reprodução das moléculas de carbono, essenciais a todas as moléculas componentes das células, fabricadas, a partir do hoje mal afamado CO2 da atmosfera, pela fotossíntese dos vegetais que os herbívoros comem para depois serem comidos pelos carnívoros. Verdadeira lei da selva: os animais só sobrevivem comendo outros seres vivos.
2. As respectivas anatomias, tanto de invertebrados como de vertebrados, foram desenhadas pela evolução com uma panóplia surpreendente de mecanismos, entre força e astúcia, para conseguirem essa sobrevivência: comerem outros e evitarem ser comidos por terceiros. O que não se pode fazer por ‘determinismo genético’ como parece ser preconizado pela explicação neo-darwinista que assenta os ‘mecanismos’ da evolução exclusivamente nas mutações do ADN. Este exige que lhe cheguem moléculas de carbono (e fósforo, azoto, etc), mas não diz onde as encontrar, já que a caça (e a fuga) são fenómenos essencialmente aleatórios, a que as anatomias biológicas se adequam (assim como os determinismos mecânicos e químicos dum automóvel são pensados para um tráfego essencialmente aleatório). Os evolucionistas modernos têm uma filosofia inadequada para pensar a relação da lei da selva com a lógica da evolução.
3. Se o aleatório é estrutural nos detalhes da anatomia das espécies, a teoria do ‘desígnio inteligente’ perde a sua pertinência, que é de responder, em termos de problemática global, ao ‘acaso’ (que não é a mesma coisa do que o aleatório), ao acaso das mutações como único mecanismo. Desde que a análise se aproxime das questões concretas da evolução das espécies e das transformações ecológicas, tal como os biólogos as põem tanto quanto os fósseis o permitem, tanto faz que se acredite em Deus como não, o que é decisivo é compreender a transformação das regras na sua adequação essencial aos aleatórios.
4. Voltemos ao debate americano. Os defensores da evolução ganhariam em ir buscar armas ao campo oposto, à 1ª página da Bíblia (Génesis, capítulo 1) e à sua admirável construção da criação do mundo em 6 dias. Escrito provavelmente no início do século V antes de Cristo, trata-se, na época das célebres cosmogonias mesopotâmicas, egípcias, gregas, dum verdadeiro texto de razão, nos seus números, classificação e organização do cosmos, duma razão que pede meças ao próprio Timeu de Platão, escrito uma boa centena de anos mais tarde. Os 6 dias enquadram 10 palavras de criação, distinguindo-se em 4 dias com 5 palavras (vv. 3-19) e 2 dias com outras 5 (vv. 20-31), formando dois conjuntos de igual extensão, de 207 e 206 palavras hebraicas (P. Beauchamp, Création et séparation). A separação entre o Criador e o universo (sol, lua, fecundidade das espécies, e por aí fora) é uma crítica teológica das magias religiosas dessas épocas, e até do mito de Adão e Eva que se lhe segue, crítica essa que a aliança entre a filosofia grega e a bíblia no seio da teologia cristã veio a concretizar paulatinamente: tratou-se da pré-história da razão filosófica e científica europeia, também assim da própria razão biológica.
Público, 22 / 08 /2008 (com algumas alterações)