1. “A psicanálise, uma ciência
diferente das outras” é o título duma conferência colocada neste blogue que
justificava com algum detalhe essa cientificidade diferente. Essas ‘outras’
ciências eram relativas aos outros domínios a que faço aqui frequentemente
referência, onde a cientificidade é menos disputada; não eram visadas as outras
disciplinas psicológicas que se desenvolveram ao longo do último século, em
geral após a própria psicanálise e que se pretendem ‘científicas’[1].
Não só ‘após’ todavia, também ‘contra’ ela nas últimas décadas, procurando
fugir ao ascendente que Freud logrou, a meu ver pelo menos por duas das suas
grandes novidades – que não creio terem sido ultrapassadas, ou sequer igualadas,
por nenhuma outra psicologia, nem pela própria neurologia, que tem um estatuto
científico claramente mais forte, enquanto ramo da biologia molecular – a
saber, o lugar central da sexualidade (na sua relação à lei) e o papel da
interpretação dos sonhos como metodologia terapêutica (que teoria dos sonhos há
além da dele?). À celebridade de Freud nenhum outro psicólogo oferece
minimamente concorrência, pelo menos do ponto de vista fenomenológico, já que,
em termos práticos, a longa duração duma psicanálise e o seu custo financeiro
são obviamente obstáculos de monta na comparação com outras terapias. Não
conheço minimamente os paradigmas dessas outras terapias que se reclamam de
serem ‘ciências psicológicas’ para poder fazer um confronto entre elas e a psicanálise,
desta aliás dependo sobretudo de leituras do próprio Freud como contributo
fundamental para a filosofia com ciências que pratico, além dum período de um ano e meio em que fui
psicanalisado em Paris. Limitar-me-ei então aqui a delinear o laboratório da
psicanálise e a indagar da maneira de ser do ser-no-mundo humano que o
justifica e ilustra, pois em boa parte é à teoria e prática psicanalítica que
devemos algum conhecimento deste tipo de aspectos dos humanos. 2. Como abordar a temporalidade quotidiana dum
humano em seu ser-no-mundo? Ela oscila entre diversas ocupações e respectivas atitudes, de que quatro se podem
distinguir da forma aproximativa que convém ao não especialista: a) concentrada,
quando se trata de trabalho que pede atenção e exclui qualquer outra
consideração; b) atenção flutuante, quando se trata duma actividade rotineira
(na cozinha, à mesa da refeição, a conduzir automóvel) que dá para conversar ou
pensar noutras coisas; c) relaxada em tempo de descanso, permitindo devaneios do
pensamento; d) a dormir com exclusão de qualquer vigilância, mas ainda aí
oscilação entre d2) os longos sonos de 90 minutos e d1)
os intervalos entre eles (uns vinte minutos) de sono dito paradoxal, com sonhos
mais ou menos estranhos à lógica quotidiana. As duas primeiras ocupações, a) e
b), derivam de aprendizagens de usos, que tanto são de fazer com mãos e
instrumentos como de dizer, que trazem consigo regras do paradigma adequado,
quer técnicas, quer da moral quotidiana, o que diz respeito ao bem fazer e ao
bem dizer; é nestas ocupações, já que se ensinam, que se veiculam as regras que
estruturarão o humano como ser daquele mundo, perto do que Freud chamou super-ego. Enquanto que as ocupações c) relevam duma
espécie de alivio quanto ao peso dessas regras, alivio que se manifesta por
exemplo em risos e brincadeiras que Freud também analisou: o logos, já que tratamos aqui de filosofia, exerce com
efeito o peso da disciplina, da seriedade. Grande descoberta dele, os sonhos
das ocupações d1) fazem muito maior alivio do que c) com contrapeso
de a) e b), justamente porque a consciência vigilante de bom senso está fora de
serviço, manifestando-se apenas no que ele chamou “elaboração secundária”,
aspectos do sonho que serviram à sua arquitectura de forma conjuntural e que
não têm relevância interpretativa.
3. Se se aceita esta maneira de
colocar quatro posições das oscilações estruturais – estrutura como movimento,
como se disse em texto anterior sobre a “lei da guerra” –, pode-se entender a
lógica do laboratório psicanalítico: a) e b) são-lhe inacessíveis directamente,
fazem parte da ‘realidade’ extra-laboratorial da qual se colhe, como se de uma
amostra fenomenológica se tratasse, um período de tempo entre meia e uma hora
com alguma frequência semanal em que se coloca o paciente na posição mais
propícia das ocupações c), deitado e despreocupado das ocupações a) e b) tanto
quanto possível, e se incentiva a despreocupação com a directiva seguinte:
‘diga tudo o que lhe vier à cabeça, ainda que estúpido ou indecente, não me
oculte nada’. Não só não se preocupe com o teor do que lhe vier à cabeça, mas
antes pelo contrário, faça o que não costuma fazer, deixe de dissimular essas
asneiras, que lhe estragariam a reputação fora do laboratório. É que a dissimulação
do que nos vem espontaneamente à cabeça é algo que aprendemos cedo, quando nos
corrigem erros ou castigam malandrices, aprendemos que dizer disparates cria a
reputação de idiota ou de imoral: aprendemos a guardar para nós, como segredos,
esses inconvenientes sociais, de tal maneira aprendemos que esses disparates se
dissimulam a nós mesmos, tornando-se ‘inconscientes’, não sabidos do próprio,
remetidos para a zona esquecida de que os sonhos farão a sua festa, por vezes
dolorosa, assinalando o ‘peso’ do social que nos pesa no que se chama
‘pesadelos’. Todo o jogo da análise faz-se assim, ignorando quanto possível a)
e b) para, em c) de laboratório, deixar vir d1) à memória: não
aquilo que se esqueceu, mas algo que foi elaborado – “elaboração primária”, nos
termos de Freud: condensação, deslocamento, encenação – sobre aquilo que se
esqueceu, algo que pode ser dito usando uma frase de Levinas, “um passado que
nunca foi presente”.
4. Se a cito (o que ele detestaria,
ele detestava a psicanálise), é porque a citação ajuda a compreender muitos dos
malentendidos da psicanálise, mormente em torno do Édipo que o próprio Freud
hiperbolou e da sexualidade genital, a qual por regra só desperta na puberdade.
Os sonhos não revelam forçosamente uma sexualidade perversa de crianças de 3 ou
4 anos, mas a maneira como a lógica da terapia analítica consiste em apanhar a
boleia do sonho e conseguir ir ao passado que este sonha com material de épocas
diversas. Fiz muitas vezes sonhos de me faltar um ou outro exame de liceu para
cumprir, sem nunca ter sonhado com o paradoxo de ter vindo a ser professor
universitário de filosofia apesar de ter chumbado nessa disciplina no liceu[2].
5. É o retorno deste ‘ir ao passado’
que permite ao paciente ir compreendendo alguns nós da sua estrutura oscilante
e os desfazendo assim, as vindas ao divã do laboratório alternando com as
ocupações habituais e dessa inter-relação se refazendo o seu discurso sobre si
e o mundo que ele é. Ora bem, o que há de excepcional neste trabalho de análise
científica é que ele não opera ‘espécies’ (como a biologia ou a antropologia)
ou ‘paradigmas’ (como a linguística) válidos para muita gente, nem chaves de
sonhos nem Édipos universais; pelo contrário, este trabalho é rigorosamente
empírico, faz-se sobre o que há de mais particular, individual, as associações
de ideias e os sonhos de cada um, incomensuráveis sem dúvida entre humanos,
fossem até irmãos gémeos, creio. A razão de ser desta radicalidade empirista
vem da ambição imensa que é a dela: o conhecimento duma ‘mente’ humana. A.
Damásio escreveu que esta era constituída pela rede dos neurónios enquanto só o
próprio tem acesso a eles. O termo ‘acesso’ mostra bem a origem neurologista do
diagnóstico: o neurologista não tem acesso aos neurónios do outro. Não tem?
Claro que tem, a este ou àquele, a tal porção de neurónios, acesso
bio-físico-químico, mas não à rede deles todos. Ora, sendo a ‘mente’ essa rede
enquanto tal, global, digamos, com seus conhecimentos actuais e suas memórias,
as que estão lá esquecidas e as que jogam no conhecimento actual, e ainda
aquelas que mereceram o nome de ‘inconsciente’ por não terem condições de
consciencialização, tão sobrepostas de outras quando eram frágeis demais e sem
meios linguísticos de se dizer, sendo tudo isto a ‘mente’, a palavra ‘acesso’ é
inadequada: essa mente é parte do próprio ser-no-mundo. Se o neurologista não lhe tem acesso pois, se
depende sempre do que o paciente disser e aí falta-lhe cientificidade no seu
laboratório, percebe-se então que a psicanálise dá-se como objectivo
(alucinante!) o conhecimento dessa mente, chocando inevitavelmente com o enigma
que ela é, inclusivamente para o próprio. O conhecimento que ela gerar vale
sobretudo para este, o que significa que é enquanto terapia que ela se
justifica como ciência, duma maneira que nem sequer vale para a medicina:
embora terapia de humanos individuais, em que, como se diz, “cada caso é um
caso”, enquanto biologia, ela permanece uma ciência como as outras.
6. Sem que dê para desenvolver aqui,
acontece que na fenomenologia que aqui se vai tentando fazer a partir da sua
articulação com as principais descobertas das ciências no século 20, a
psicanálise foi a única que esclareceu desde o início a relação entre o
laboratório e o fora dele, o retiro a que chamou “inconsciente” como motor dinâmico das relações com os outros humanos tendo
em conta – no tal “super-ego” – o aparelho de regulação social dessas relações, o duplo laço deste enigma que somos
cada um de nós. Há uma questão curiosa, me parece, que nem sequer sei se há algum
lugar discursivo em que ela possa ser colocada, mas que faz parte essencial do
trabalho psicanalítico, que incentiva as chamadas – desde os séculos clássicos
– “associações de ideias”. Freud terá permitido perceber, quer na Psicopatologia
da vida quotidiana quer em O
chiste na sua relação com o inconsciente, livros que li há já muitos anos, que há duas maneiras bem diferentes de a
uma ideia se associar outra: uma delas é a coincidência literal de palavras ou
expressões entre a primeira e a outra que se lhe associa, sendo arbitrária a
associação em relação aos respectivos sentidos; a outra é a coincidência à
maneira do sentido linguístico, mais perto de alguma lógica assim, enquanto a
primeira se faz em torno do significante, literal e arbitrário por definição.
Mas a questão que quero pôr é prévia à associação de ideias, é a de saber
porquê as há, porquê a corrente de ideias, digamos, que nos percorre: donde vem à nossa mente, que é mais larga do que isso, esse percorrer
de ideias que a ocupa, à mente,
de forma que se diria prioritária, ou predominante, este ‘cinema interior’ que
só cessa nas ocupações a) mas volta nas b) e domina claramente em c), para
desaparecer em d2) e voltar à solta em d1) como sonho?
Não é o caso de toda a gente? Não se trata só de ‘ideias’, é certo, mas de
‘coisas’ que vêm à cabeça, com emoções ou desejos por vezes, mas também mais
independentes outras vezes, desinteressadas, ou mesmo pouco interessantes, e
que se associam justamente, pegam-se uma na outra, por letra ou por sentido,
por algo que se vê e suscita o que suscitará outra ‘coisa’... o que é que dá
motor a este ‘suscitar’ ruminante? Ele ocupa-nos, por vezes preocupa-nos, não
nos larga, em geral foge ao nosso controle, quem consegue fazer silêncio em si,
calar esta voz incessante? Os que fazem meditação sabem como a chamada
‘distracção’ vem breve, um pensamento qualquer que se busque amadurecer faz
associação de ideias com outra coisa qualquer sem relação com ele e depois
outra coisa ainda, o silêncio revela-se muito difícil, senão impossível. Ora,
este percorrer de ideias não somos ‘nós’, é certo (nós somos muito mais do que
isso, um ‘mais’ que não sabemos), mas ela está muito perto do que podemos dizer
que somos nós quando pensamos, desejamos, planeamos, escrevemos, discutimos,
quando achamos que estamos a ‘fazer’ algo que nos é importante naquele momento,
mas ... e quando o percorrer de ideias volta e nos deixa mais ou menos
passivos, até sem darmos atenção, sem controle dele? Donde vem a energia que
move este ‘cinema interior’? Será o grau zero da sublimação (da líbido)
freudiana? Provavelmente é a energia das próprias células. Estas, em seus cerca
de 200 tecidos especializados, estão sempre disponíveis para o que podem e
sabem fazer, uma boa parte deles feita para tratar da comida; os neurónios têm
parte nesta disponibilidade e quando a atenção não é chamada por algo do mundo[3],
estão prontos para o que der e vier entretendo-se entretanto com o percorrer de
ideias, que não fazer nada seria demasiado perigoso para o ser-no-mundo fora do
abrigo do sono. Distraídos, mas prontos s para o que for preciso.
7. Uma das dificuldades nestas coisas neuronais,
pelo menos do ponto de vista do leigo que nunca viu neurologistas porem a
questão desta maneira[4],
tem a ver com a relação entre o que se aprendeu e o que Damásio chama, no Erro
de Descartes, “emoções
secundárias” (as “primárias” respondem a situações de fome, sexo, etc.) que
terão a ver sobretudo com as relações com os outros, quando os usos rotineiros
são afrontados num acontecimento, inesperado por definição, e obrigam a buscar
energias suplementares para as decisões que haja de haver. Fora do
acontecimento, os usos fazem-se através dos grafos (Changeux) da respectiva aprendizagem que disciplinaram
as ‘emoções’ que foram necessárias para aprender, quando ainda não se sabia.
Estas emoções são de ordem hormonal (hormao, em grego, é empurrar para movimento, excitar
para a guerra, por exemplo) e jogam com os grafos que as disciplinam, lhes
contêm a energia, efeito justamente da aprendizagem. Ora, nos exemplos de
Damásio, trata-se sobretudo de cólera e de medo. A cólera dá para entender, uma
energia que se insurge contra a impotência relativa da razão dos grafos, quer
no falar que grita, quer na gesticulação dos gestos para bater ou afrontar. E o
medo? Em contraste com a cólera cuja vibração diz o excesso que inteiriça o
corpo para o confronto, é o tremer do corpo que assinala o medo, a impotência da razão ganha nos grafos da
aprendizagem manifestando-se na fragilidade desse corpo que treme. Um corpo que
treme, quando ri ou chora, num orgasmo ou com muita febre, é o quê? Digamos que
se trata dum corpo que se des-organiza, que perde a capacidade de se mobilizar, de mobilizar o sistema neuronal
que, dos órgãos perceptivos ao cérebro e daí aos músculos, lhe permite circular
no mundo com a sua inteireza, se dizer se pode. Desconjunta-se, não fica em
pedaços, mas falha-lhe o conjunto orgânico da mobilidade que permite responder,
perde-lhe o controlo, a disciplina rotineira cessa de funcionar momentaneamente.
Tudo se passa como se o jogo entre a química hormonal dos neuro-transmissores e
a rede sináptica dos grafos aprendidos dos usos tribais[5]
não fosse uma ‘dialéctica’, mas se tratasse justamente de oscilações, não
‘entre’ mas ‘dentro’ da rede químico-eléctrica: falha-lhe a habilidade
espontânea, em que química e grafos jogam bem, mas falha também a disciplina
destes sobre aquela que conseguisse fazer face à situação. De qualquer forma,
falta a razão dos comportamentos usuais segundo os grafos nos vários casos de
tremores: quando se chora convulsivamente (uma convulsão neurológica é um tremer – tremendo! – do corpo
todo revolvido sobre si); quando se ri a bandeiras despregadas e se é desarmado
pela piada dum adversário inteligente, é o tal peso do logos social que nos estruturou que se desfaz, o
‘despregar-se’ do tremer, desconjuntado o corpo; aliás, também na cólera,
quando a uma fúria de patroa se chama descompostura; e do orgasmo, que depois vira
sonolência, como dizer que o mundo em redor desaba, mercê duma como que
fogueira que abrasa os corpos, os convulsiona, daí que o pudor tenha
tradicionalmente preferido retirar-se em privado, expulsando previamente espectadores
eventuais.
[2] No 6º ano,
numa cadeira com esse título mas que era – manual, professor e aulas sonolentas
depois do almoço – completamente incompreensível para o garoto bom em matemática
que eu era aos 15 anos.
[3] Digamos de
forma simplificada que a atenção é a maneira como o sistema neuronal, entre o
ver / ouvir e o mexer / falar, faz a sua parte duma prática, atento às suas
regras e zonas de aleatório; digamos que pensar dá-se entre duas práticas – por
exemplo intelectual, entre ler e escrever, ou entre ter encomenda duma obra e
fazê-la –, organiza mentalmente os dispositivos necessários.
[4] Mas pus-me
a reler os parágrafos 11. 41-43 do meu Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida, no 2º volume, e encontrei a
questão tratada tanto quanto um leigo audaz foi capaz, mas reconheci que a
leitura é difícil, infelizmente. O que é novo paradigma pede tempo.
[5] Um jogo
entre bioquímica e electricidade de iões que reagem com outros iões
bioquímicos, oscilações entre densidades de sódio e de potássio nas sinapses, é
inacreditável o detalhe destas coisas que se podem ler mas sem se saber ir mais
longe. A electricidade inventada por Volta é de electrões do metal dos cabos,
não reage quimicamente com ele, como faz a de iões.