quinta-feira, 26 de setembro de 2013

'Espiritual' não é a mesma coisa do que 'religioso'




1. Toda a gente confunde, mas a história ocidental distingue claramente dois tipos de fenómenos que apenas uma noção vaga de divindade permite confundir: há muitos espirituais que não crêem no Deus monoteísta do Ocidente. A primeira leva de movimentos espirituais deu-se com a eclosão da escrita, escolas em que discípulos relêem e meditam os escritos do mestre: em meados do primeiro milénio antes da nossa era. Zaratustra na Pér­sia (sec VIII), Lao-Tseu e Confúcio (sec. VI-V) na China, Buda na Índia (sec. VI-V), os Profetas em Israel (s. VIII-VI), também Heraclito, Par­ménides, Pitágoras, Sócrates na Grécia (s. VI-V). Es­colas de exercício espiritual, abrem um novo contexto social, buscando intensidades do viver – virtude, sabedoria – que a reprodução das casas e dos seus usos não satisfazem já. Rompem com o ‘religioso’, que implica o sagrado ancestral e diz respeito a toda a gente; trata-se de aventuras de expe­rimentação à margem das sociedades estabelecidas, que abando­nam os rituais e mitos des­tas, à maneira, entre nós, de um novo pensamento, poético, filo­sófico, científico, que escave quase em silêncio um novo cami­nho: elas estão na génese do que chamamos cultura, relativa a ante­passados históricos com nome (e não o sagrado holístico, de todos os antepassados). A oposi­ção ocidental entre a alma e o corpo, não sendo válida sem mais para as tradi­ções asiá­ti­cas, permitirá em todo o caso visualizar o que está em jogo em todas elas: o deslocamento dos gostos da casa, da guerra e do corpo para os da alma. O espiritual é marginal, o religioso é holístico e ancestral.
2. No evangelho, a distinção é clara desde o início: o apelo à conversão com o baptismo como ritual de ruptura, tendo sido o mundo político-religioso quem condenou os dois que apelavam à conversão, João Baptista e Jesus. Este opôs Deus não apenas ao Dinheiro (Mateus 6,24) e ao poder político ocupante de César (idem 22,21) mas também ao Deus dos mortos (“ele não é um Deus de mortos mas de vivos”, Marcos 12,27), isto é, ao poder religioso do Templo, como mostra uma palavra dirigida a alguém que queria seguir o mestre mas primeiro devia enterrar o seu pai: “deixa os mortos enterrarem os seus mortos” (Lucas 9,60); o Deus dos mortos é o dos antepassados mortos e enterrados, donde deriva a religião. Durante alguns séculos, o cristianismo foi um movimento espiritual no meio de outros no império romano, foi mesmo perigoso ser cristão em certa épocas, mas depois os Césares escolheram-no como religião oficial em vez da ancestral. Em poucas gerações no Ocidente, o cristianismo tornou-se religião holística ancestral, o baptismo tornado rito de bebés, sinal evidente da mutação. Mas há outro sinal muito mais óbvio: a partir daí, a religião não deixou de parir nas suas margens movimentos espirituais que se referiam à aposta evangélica adulta contra os senhores deste mundo. O problema destes movimentos foi terem-se tornado rapidamente ‘religiosos’, integrados na hierarquia (o frade é pobre mas a Ordem é rica), donde que tiveram que surgir outros, até à Reforma de Lutero, que visitara Roma na altura da construção da Basílica de S. Pedro, financiada pela ‘venda’ de indulgências: o protestantismo foi claramente espiritual na sua eclosão, mas também se tornou religião por sua vez, com dissidências espirituais incessantes até aos carismáticos recentes.
3. A escrita na base do espiritual (por isso o catolicismo fechou a Bíblia em latim, ainda assim era na minha meninice) avalia criticamente o saber recebido de antepassados. A Filosofia de Sócrates e Platão é indissociavelmente espiritual e intelectual (basta ler o Fédon), a busca do saber sendo da virtude também, foi Aristóteles quem contribuiu para a separação das águas. Mas quem conheceu gente dedicada ao saber ou à música ou outras artes que cultivava acima de qualquer dos gostos de que o mundo vive, como os encontramos por vezes nas nossas escolas, Rómulo de Carvalho ou Óscar Lopes, pode ter percebido que não é necessário crer numa divindade para se ser espiritual e intelectual sem separação entre saber e modo de viver.
4. Os gestos e falas de simplicidade do novo bispo de Roma Francisco foram acolhidos como sinais espirituais de bom augúrio, continuará essa simplicidade do viver, esperemos. Mas no contexto religioso imponente de basílicas, bancos e espectáculo mediático, vai ser bem difícil, creio, a tarefa quase impossível de trazer as gentes do religioso ao espiritual e à sua ruptura, em tempos em que a crise nos assola e traz de volta a miséria que julgávamos ultrapassada de vez. Faz parte de ser espiritual hoje que, crentes ou não, demos as mãos – livres e solidárias – contra a dominação da alta finança sobre o medíocre poder político e os médias ao seu serviço.
5. Francisco é como Obama: seduzem pela sua autenticidade, rara em políticos e religiosos; mas o contexto de poder, americano e vaticano, não pode deixar de criar decepções.

A Bíblia Hebraica revisitada




1. Assim como os Filósofos escreveram a Filosofia grega, também os Profetas escreveram a Bíblia hebraica. Eis o paralelo que se pode estabelecer a partir da revolução paradigmática dos estudos exegéticos, sobretudo protestantes de língua alemã, relativos aos seus cinco primeiros livros, o Pentateuco, revolução essa que despoletou a partir de 1975 e de que dá fé, em língua acessível a latinos, o livro organizado pelo suíço Albert de Pury, Le Pentateuque en question. Les ori­gines et la composition des cinq premiers livres de la Bible à la lu­mière des recherches récentes, Labor et Fides, 1989, em que colaboram os principais obreiros desta renovação espectacular.
2. Na Bíblia hebraica, além desses cinco livros contando a pré-história lendária dos antepassados Abraão e Moisés, segue-se noutros cinco a história da monarquia inaugurada por David (por volta do ano 1000 antes da nossa era tomou Jerusalém e fez dela a sua capital) e que terminou em 587 com a derrota de Judá e Israel face aos Caldeus da Babilónia. Depois vêm os livros dos grandes Profetas, Isaías, Jeremias, Ezequiel e mais uns tantos menores, fortemente críticos da falta de justiça social dos monarcas e que reclamam falar em nome do próprio Deus de Israel, Yahvé. Durante o século XX, pensou-se que, das quatro redacções de que o Pentateuco é composto, a primeira era do tempo do rei Salomão, filho de David, a segunda contemporânea dos Profetas do século VIII, a terceira o livro dito Deuteronómio em grego, de cerca de 640, e a quarta já no século V provavelmente, após a restauração de Israel, na paz de vassalos que os Persas lhe garantiram entre vencerem os Caldeus em 539 até serem derrotados por Alexandre em 331. Esta última mão fez o acabamento do Pentateuco, a chamada Tora, a Lei de Moisés que ainda hoje é lida solenemente nas sinagogas.
3. O argumento fundamental da revolução paradigmática é este: nenhum dos Profetas fala de Abraão, de Moisés, da saída do Egipto, da aliança e outorga dos 10 Mandamentos no Sinai, o que implica necessariamente que os textos que contam essas lendas foram escritos apenas depois dos textos dos Profetas, o primeiro dos livros do Pentateuco sendo o Deuteronómio, o tal de 640. Explica-se assim, exemplo importante, que apareça por duas vezes, no cap. 12 do Génesis e no início do Êxodo, a figura antropologicamente impossível dum Deus sem povo que escolhe um: primeiro o seu antepassado Abraão, depois o seu líder libertador Moisés; trata-se pois duma figura teológica, que é a grande invenção profética, com o motivo da aliança – fabulosa ficção! – que Yahvé estabeleceu no deserto com o povo mediante Moisés, outorgando os 10 Mandamentos; o Deuteronómio prossegue com vários capítulos de leis que reformam o sistema de culto e estabelecem um direito comum cuja pérola é “que não haja pobre no meio de ti” (cap. 15, 4): a lógica da aliança é que se o povo for fiel à justiça da prática da lei, Yahvé garante-lhe a paz face aos inimigos. Esse texto foi usado pelo rei Josias para encenar essa aliança (2º livro dos Reis, cap. 22-23), tendo os Profetas concluído que a derrota de 587 veio da infidelidade de reis e povo.
4. Porquê essa cena-ficção se passa no deserto? Havia já três séculos e meio de monarquia em Israel, com agricultura e muitos usos e costumes arreigados. A cena passa-se antes desses usos, no deserto não há agricultura, o povo está como que nu diante de Yahvé: trata-se da operação filosófica de redução da realidade social – um tipo específico da Bíblia – para deixar à vista apenas a questão ética e espiritual da aliança, deixar sobressair a origem divina das leis que os Profetas propõem. E é aonde se pode estabelecer um paralelo com os Filósofos, nomeadamente é possível fazer uma comparação com a República de Platão, mutatis mutandis: em ambos os casos – Formas ideais celestes e Yahvé – trata-se fazer da separação entre o Céu e a Terra a medida ética quase infinita duma formidável reforma política da cidade dos humanos, cada um reinventando a origem das suas respectivas sociedades: a origem justa da polis no Filósofo, o deserto ancestral no Profeta.
5. Tiro três consequências apenas. a) Torna-se possível distinguir claramente a Bíblia hebraica – a referência maior dos Judeus – do Antigo Testamento como parte da Bíblia cristã, onde é apenas uma ‘letra’ que anuncia um ‘espírito’, o Novo Testamento: letra esvaziada do seu potencial ético-político, subordinada ao novo ‘espiritual’. Ou à inglesa, without: a Bíblia hebraica é a Bíblia com (with) o não ter (out) o cristianismo. b) A revolução paradigmática da exegese do Pentateuco e as consequências filosóficas que lhe acrescentei permitem retomar a primeira frase deste texto: assim como os Filósofos escreveram a Filosofia grega, também os Profetas escreveram a Bíblia hebraica. E assim como se pode estimar Platão e detestar o platonismo, creio ser possível aos intelectuais judeus que não acreditam no Yahvé do deserto procurarem, se quiserem, uma base sólida nos seus antepassados para se afirmarem culturalmente. Foi esse livro e a endogamia que ele preconizou que permitiu a inverosímil aventura da Diáspora, com tanta dor e perseguição. c) Se for verdade que a Bíblia hebraica e a Filosofia socrática são os dois pilares do pensamento ocidental, também para os intelectuais ocidentais em geral pode ser uma grande e saborosa novidade que os ali­cerces desses pilares sejam dois textos que pensam a cidade, busquem uma aliança do pensa­mento com a justiça.

 (http://phenomenologiehistorique.blogspot.pt/, Prophètes et Philosophes)

Público, 17 março 2013

Filosofia e história




A recensão por D. Pires Aurélio da Breve história da Filosofia de P. Tunhas e A. Abranches (Expresso 3 novembro 2012) releva dum conceito escolar de Filosofia (conceptual, exterior ao mundo e à história) e parece ignorar que há outras maneiras filosóficas de encarar essa história, e portanto de encarar a questão dum eventual ‘progresso’ da filosofia, desde que esta seja encarada como parte efectiva da história do Ocidente greco-europeu, como parte decisiva pelos efeitos que teve nessa história. Se se tem em conta o pensamento de Heidegger e de Derrida, a importância dada às palavras, à sua tradução, aos textos, e não apenas aos ‘conceitos’, às ‘ideias’ e seus sistemas, é possível relevar por exemplo: que não haveria o Ocidente que há sem a invenção da operação de definição por Sócrates, Platão e Aristóteles; que o cristianismo não teria passado dum culto oriental do império romano como outros se o platonismo não tivesse pegado nele desde Orígenes de Alexandria (início do sec. III); que a diferença da Europa em relação às grandes civilizações asiáticas foi ter no seu berço a filosofia, além da Bíblia e do direito romano, isto é, as universidades medievais; que Galileu e Newton consideravam-se filósofos e de facto inventaram uma segunda operação de conhecimento, após a da definição, o laboratório científico; que todas as outras ciências, economia, biologia, psicologia, surgiram também da filosofia, como as filosofias políticas que vieram ter à democracia.
Várias tentativas de historiadores e economistas para compreenderem o segredo da modernidade europeia (como E. Jones O milagre europeu, 2002, Gradiva, A. Schiavone, L’histoire brisée. La Rome antique et l’Occident moderne, 2003, Bélin, K. Pomeranz, La force de l’empire. Révolution industrielle et écologie, ou pourquoi l’Angleterre a fait mieux que la Chine ?, 2009, Ère) falharam porque provavelmente têm também uma concepção puramente conceptual da filosofia, não lhes veio à cabeça que definição, universidades medievais e laboratório científico fazem parte estrutural da diferença europeia. Pelos vistos, há filósofos que também não o sabem.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Casamento e filhos (homossexualidade)



1. A questão do casamento entre dois homens e entre duas mulheres não é uma questão jurídica, como julga quem argumenta contra ou a favor dele a partir do direito. É uma questão social que pede uma decisão política, após a qual os juristas têm o importante papel de a legislar. Como sucedeu com outras questões sociais e politicas, como a abolição da escravatura que nos Estados Unidos provocou a única guerra civil que eles conheceram para ser resolvida, ou a da pena de morte, que eles ainda não resolveram integralmente, tendo o direito pactuado com ambas até que as sociedades tenham resolvido a respectiva abolição. Ou o divórcio, a legitimação dos filhos extra matrimónio, para dar exemplos de ordem familiar, ou melhor dito, relativos à organização do parentesco, decisões politicas que se opuseram ao que o direito secularmente estipulou.
2. A organização do parentesco é estruturante do social, como mostrou uma célebre obra de Lévi-Strauss sobre as suas estruturas elementares: homem, mulher, filho e irmão da mulher formam o quadriedro elementar, o irmão da mulher sendo o que permite figurar a troca de mulheres como o que impede a reprodução biológica de se auto-centrar em ilhas de descendentes, o que impõe que, em cada grau de parentesco, duas famílias se cruzem e façam sociedade: o interdito do incesto não tem razões biológicas mas sociais, foi a sua tese fundamental, ele é condição da exogamia, que as mulheres vão casar fora de casa. E pode-se continuar pelas sociedades agrícolas posteriores, cuja célula social não era a ‘família’ mas a casa, simultaneamente realidade de parentesco e de actividade económica, rural na maioria dos casos (de que entre os Gregos, por exemplo, os escravos também faziam parte, como se pode ler na Política de Aristóteles); a casa, como os nomes ainda atestam frequentemente (a mulher passa do nome do pai para o do marido), era uma coisa entre pai e filhos, com diversas possibilidades de herança (morgadio, igualdade dos irmãos independentes, comunitarismo patriarcal, “harém dos primos” no Magrebe, etc.).
3. A nossa família moderna – pais e filhos habitando em apartamentos de prédios e trabalhando fora de casa os homens e depois também as mulheres – resultou da fractura das duas dimensões das casas de antanho, empresas económicas e outras actividades sociais e politicas por um lado, e famílias por outro, o que começou há pouco mais de dois séculos no Ocidente. A atestar esta historicidade do casamento que acompanha a do parentesco: a palavra ‘casamento’ não é primitiva no vocabulário indo-europeu (Benveniste), como o não é na Bíblia hebraica, a casa era entre pai e filhos, não entre marido e mulher. Depois mudou (há literatura abundante sobre isso).
4. O ponto polémico é saber qual é a importância social do parentesco. Não é tanto a relação entre macho e fêmea, como a sua estabilidade em ordem à procriação e educação dos filhos, que foi sempre e em todo o lado preocupação social predominante: a reprodução da própria sociedade, pela longa aprendizagem dos usos e costumes dos que nascem pelos adultos (pertencendo hoje em parte essencial à escola, torna possível divórcios e recasamentos que as casas antigas não permitiam). Aprender os usos e os costumes é uma tarefa essencial porque os nossos cérebros nascem virgens de mundo e, sendo órgãos simultaneamente biológicos e sociais, só funcionam por serem socializados pela aprendizagem (a filosofia nunca se preocupou muito com esta, desde Platão que queria abolir as casas, o património como o matrimónio). Ora, se a escola é feita por homens e mulheres, não se vê que um casal de dois homens ou de duas mulheres não possa realizar cabalmente esta missão essencial do parentesco: se lhes foi permitido casar, a adopção faz parte essencial desse casamento. Embora haja casais heterossexuais que preferem não ter filhos, tendo todo o direito de casarem, como os homossexuais.
5. O que faz problema aqui, em mim como em qualquer um, até porventura nos próprios homossexuais que se casam, é que nós estamos moldados pelo modelo do casamento heterossexual que se encaixa muito melhor na maneira da reprodução biológica se fazer, a nossa linguagem – pai e mãe, marido e mulher – que tem a ver com aspectos afectivos fundamentais da nossa existência precoce, rebela-se aqui (até os psicanalistas se atrapalham com a complicação da coisa). Assim como o nosso racismo espontâneo só se vence na nossa intimidade quando temos um/a amigo/a negro/a, também julgo que a melhor maneira de se perceber o que está em jogo é conhecer de perto o que foi durante muito tempo o drama tremendo de gente, rapazes e raparigas que se descobrem como atraídos por gente do seu sexo e isso ser terrivelmente mal visto socialmente, sem saberem como dizer aos amigos que namoram alegremente eles com elas, aos pais, a alguém em que pudessem ter confiança. Trata-se, como em tempos percebi contra os meus preconceitos lendo um texto de Miguel Gaspar, duma outra reviravolta histórica do parentesco, a que só o tempo dará a pacificação da língua (quando eu era adolescente, abominavam-se os divorciados, juntamente com os ateus, os comunistas e os ex-padres casados).
6. Porquê se desabrocha alguém como hetero ou homossexual? Não creio que haja hoje em dia explicação par isso, entre hormonas e psicanálises. O mais provável é que pertença ao grande enigma de cada humano na criação da sua espontaneidade em fazer com grande habilidade o que aprendeu, como também os talentos intelectuais e as ‘vocações’ para a música, para o desenho, para a matemática ou para as maquinarias.
7. Aos juristas: compreender a novidade social e legislá-la.
Público de 7 setembro 2013, com alguns acrescentos