quinta-feira, 19 de julho de 2018

Retorno à questão da verdade



1. Tratei dela a propósito da proposta dum filósofo italiano sobre a chamada pós-verdade (no blogue, 11/02/2018), mas a questão ficou pouco clara, sem sistematicidade argumentativa. E é uma questão preocupante para quem se dá às questões fortes do sentido das coisas e da vida. Volto pois a ela, procurando saber donde partir o questionar. Há dois obstáculos seculares à questão: por um lado, a separação entre pensamento e realidade, entre as palavras e as coisas, entre o sujeito que questiona e o objecto questionado, como se fossem dois mundos que se enfrentavam de zonas opostas; por outro, a bitola absoluta para a verdade, vinda desde o platonismo da diferença Céu / Terra onde o cristianismo alojara o Criador, valendo por si só, ab-solus, a que cada coisa que ele criou é relativa, como criatura sua, a sua verdade anterior a qualquer consideração do seu contexto particular, numa espécie de tête-à-tête, a que Heidegger chamou onto-teo-logia, discurso (logos) do ente e do deus. Claramente predominante nas filosofias dos cartesianos até Leibniz, a critica da razão pura desalojou-lhe os três pilares, mantendo todavia o esquema cognitivo no sujeito / objecto, aquele voltado para o mundo deste em seus a prioris.
2. É ainda neste esquema que Husserl liga a consciência que percepciona ao objecto que lhe aparece, ligados na intencionalidade do aparecer fenomenal, sem o qual não há consciência,; mas também não há sensações prévias ao objecto percepcionado, que necessitem de ser sintetizadas: a mesmidade do objecto na diversidade de percepções possíveis, visuais, tácticas, acústicas, olfactivas, é condição da mesmidade da consciência que percepciona, em sua intuição sensível. Só no passo seguinte, o da intuição categorial, intervém a linguagem do juízo que nomeia o objecto S e o adjectiva de uma (ou mais) qualidade P (S é P), o que mantém a secundariedade da verdade deste juízo em relação à intencionalidade perceptiva. Não é certo que Ser e Tempo a desfaça como o fará a gramatologia, mas a sua revolução consiste em retirar o Dasein do par ontoteológico sujeito / objecto ao colocá-lo como ser no mundo, que é o dos outros humanos e do cuidar enquanto habitante da Terra, permitindo ao II Heidegger recuperar a phusis de Aristóteles e a sua fecundidade, a doação que se retira. Ora, faz parte deste percurso a consideração da historicidade das palavras, mormente filosóficas, a indagação de etimologias possíveis, como a célebre entre todas alêtheia, verdade de algo ou de alguém como o seu desvelar ao humano que cuida, verdade que é doada à sua nomeação. É o caso dum bebé que nasce e se recebe – é menino ou menina? é preto, branco ou mestiço, em casal de etnias diferentes?[1] –, bebé a quem se dá um nome como parte do ritual que o torna membro da tribo. Ou no caso dum marceneiro que, trabalhando com vários tipos de madeira, faz um objecto que, depois de (pro)duzido, de trazido à presença dos usos, se chamará cadeira, ou mesa, ou armário. E se não tem nome ou este for ignorado, será por exemplo a ‘coisa’.
3. O passo de Derrida introduz os outros e o contexto da habitação com a questão da linguagem enquanto escrita, isto é, um sistem que se re(pro)duz por aprendizagem em articulação com os outros usos. Nem palavra nem frase são ‘verdadeiras’ , não são senão elementos de composição de falas, discursos orais ou textos escritos. É certo todavia que se pode falar da ‘verdade’ duma mesa, feita de nogueira, com mais de cinquenta anos, bonita e adequada a uma dúzia de comensais, etc., ou da verdade da cadela Ginja, arraçada de pastor alemão misturado, com 14 anos e com seus hábitos e gostos, a verdade das suas possibilidades. Quando se trata da verdade dum humano, a questão é bem mais delicada, já que em boa parte ele/a sabe melhor dela, da sua saúde e do seu contentamento com a vida, das suas memórias e sonhos, do que lhe vem à cabeça, enquanto que os que com ele/a convivem saberão do que observam de fora ao longo dos tempos, do que lhe ouvem, talvez confidências, do que deduzem, simpatias e aversões, habilidades e incapacidades, convivas esses que rapidamente chocam com o enigma que ele/a é, e que ao/à próprio/a é dado doutra perspectiva. A sua verdade é também ela de possibilidades, mas muito mais vastas porque incluindo possibilidades de mudança de contexto, de mundo e de usos, que pode até ser para longe da tribo de origem, a perder de vista o que, tribalmente enquadrado, se sabia dele/a. Com efeito, o que se apercebe de outrem é sempre no contexto tribal de relações (parentes, vizinhos, colegas, amigos, conhecidos), em torno dos respectivos nomes, os quais vêm sempre no que se conta ou opina dele/a, com as qualificações mais ou menos adequadas, mais ou menos incertas. Coisa ou gente não se conhece sem os nomes respectivos, não há oposição entre um nome e a coisa nomeada, como não a há entre um retrato e a pessoa retratada, entre um mapa e o correlativo território. Esta diferença coisa / nome vem constantemente na filosofia grega clássica, onoma / pragma, antes do helenismo ter acrescentado outras línguas ao grego e portanto a economia da tradução, com o signo e o seu lekton, o significado do nome que o estrangeiro desconhece, ao ouvir o nome e sem ver a coisa. [A denominação é certa mas não é uma definição, contém por vezes um grau de incerteza, por exemplo em que se escolhe os pratos pelos nomes no menu dum restaurante : escolhi ‘toucinho do céu’, que nome supõe (uma receita e) um gosto e ao comê-lo perguntei a mim próprio por que carga de água é que chamavam àquilo ‘toucinho do céu’]
4. Mas a grande diferença introduzida pela gramatologia nesta questão da verdade está no aforismo “não há fora de texto”, que implica que as coisas de que o texto fala são ditas, significadas pela indicação do seu nome mas apenas conhecidas pelos efeitos nesse nome das diferenças textuais, que podem figurar algo de diferente, como as metáforas, por exemplo, esse algo será o que o texto dá a conhecer. Ora estes efeitos textuais, escritos ou orais, em geral segundo códigos conhecidos dos falantes, quando são relativos a usos estritos, são multiplicação de polissemias (de que a metáfora é um caso) como economia estrutural da língua que evita que as palavras usadas não ultrapassem os poucos milhares que se usam no quotidiano. São bons exemplos de polissemia os provérbios, capazes de ilustrar situações sempre diversas, tanto para o sim como para o não ou o talvez, exemplo popular do que os eruditos fazem como poesia e literatura, pensamento ou conhecimento. É que não se conhece nada senão relacionando com outros conhecimentos já sabidos, à maneira do dicionário (imensa tautologia, Barthes) que dá as significações das palavras através de outras palavras, possibilidade indefinida de frases com limite de palavras, multiplicadas pela sintaxe, morfologia e polissemia.
5. A questão então é: como passar da verdade das coisas e dos humanos para a verdade dos textos, orais ou escritos. A minha proposta é abordar esta questão da verdade textual passando da diferença nomes / coisas para estoutra com a qual aprendemos uns e outras: receitas / usos, aquelas sendo os textos narrativos que dizem estes em seu fazer-se. Teoria e prática, saber e experiência, são aí sempre ligados, o que permite que a aprendizagem ligue indissociavelmente os nomes, as coisas e o como se faz, em verdade. Verdade, em nome de quê? Dos antepassados que já assim faziam. Digamos que é onde está a base que impede a radicalidade dos cepticismos filosóficos, que sempre viveram da oposição nomes / coisas que aqui não existe. Mas além dos usos, de carácter técnico, por assim dizer, há os costumes, e é aqui que tudo fia mais fino. Se se puder dizer, de forma simplista, que o que até agora chamámos ‘coisas’, da ordem dos ‘fenómenos’, do que aparece aos olhos e talvez às mãos também, ao faro e aos ouvidos, releva do que a gramática clássica designava por substantivos (e verbos, mas talvez não todos), sobra o mundo dos adjectivos que qualifica e introduz gostos, aqueles que o provérbio diz que não se discutem mas também os que se discutem, muitas vezes fortemente, e que por isso mesmo deram origem à substantivação desses adjectivos: de livre a liberdade, de justo a justiça, e por aí fora, essência e existência dos filósofos. De forma geral, usos e costumes organizam-se segundo paradigmas e é nesses paradigmas, nas suas variações históricas, que a questão filosófica da verdade se põe, em torno de discussões de época. Há um exemplo no meu e.book Da Natureza à Técnica (cap. 3. 21-31), sobre a querela medieval dos universais entre ‘realistas’ e ‘nominalistas’, em que se percebe como um especialista dessa época (Alain de Libera) lê Aristóteles à maneira medieval (platonizado teologicamente, se se pode dizer, na sua Metaphysica, ignorando a Physica de que aquela depende), no que consiste a maneira da filosofia académica funcionar, isolando os textos do mundo que os escreveu e ignorando as transformações desse mundo: ou seja, a verdade textual deve incluir o gesto histórico da escrita em sua época, a da discussão, deve ter em conta a história da civilização que impede a noção de “philosophia perennis”. De maneira muito elementar, pode-se dizer que aquela discussão – saber se em cada cavalo há uma essência de cavalo (realismo) ou se esta é um ‘nome’ acrescentado pelos humanos aos cavalos (nominalismo) – foi vencida pela verdade nominalista, pela sua via moderna sobre a aristotélica via antiqua, tendo vindo a abrir a possibilidade cartesiana das ideias e a possibilidade do laboratório da ciência física de Galileu e Newton, a possibilidade de toda a ciência europeia, incluindo a biologia molecular. Só que esta caracterizou a espécie equídea pelo seu programa genético em cada cavalo e égua, confirmando numa outra conceptualidade a verdade dos realistas, cuja derrota de então a tornou possível. Exemplo duma verdade, entre filosofia e ciências, historicamente retorcida.
6. O primeiro lugar dum inquérito sobre a noção de verdade deve fazer-se, não apenas em tal texto, como também no paradigma histórico em que ele foi escrito e depois naqueles em que foi lido: buscar a verdade desse texto, o que o fez escrever e ler. O motivo de paradigma de Kuhn diz quer o que atrai um cientista à sua ciência, digamos a tradição dela, como o que orienta o seu saber e fazer, os puzzles a resolver, mas sem opor teoria e experiência, incluindo todo o operar laboratorial e o teorizar em compêndios e revistas, condicionando a visão de cada indígena do paradigma (que foi o que implicou muitas resistências a este motivo). Ora, é um motivo que se presta a definir toda e qualquer unidade social, fábrica, empresa comercial, unidade administrativa, família, e permite em geral circunscrever a verdade dessa unidade social à sua verificabilidade em relação ao paradigma, aos respectivos usos, como se faz exemplarmente no laboratório de física. No exemplo dado acima, é a verificabilidade que o laboratório bioquímico deu ao motivo de espécie biológica que permitiu concluir sobre a verdade filosófica medieval e moderna. As ciências inventaram com os respectivos laboratórios métodos de verificabilidade do conhecimento que produzem que a filosofia, com apenas a definição, não conseguiu. Esta verificação diz respeito a erros, não a mentiras nem a ficções. Estas duas formas de ‘não verdade’ só podem jogar desde que respeitem a condição aristotélica da verossimilhança (eikos), isto é que pareçam verdade em relação ao paradigma em que se inserem.
7. Resta dar um exemplo do que acima se disse como tarefa de leitura da verdade dum texto, daquilo que o fez escrever. Não sei que destino tiveram, a partir dos anos 80, as semióticas estruturalistas dos anos 60 e 70, de que creio terem tido sucesso – não sei se sucessores – quer as Mitologias de Lévi-Strauss, quer a leitura textual dum só texto de Roland Barthes, S/Z e outras três tentativas. Procurei seguir o método deste último em vários exemplos, de que contarei um aspecto da minha Leitura materialista do evangelho de Marcos[2].
8. A Bíblia cristã (conheço muito mal a hebraica e nada da tradição judaica de leitura) é considerada como o livro que foi mais lido no Ocidente, mas nunca foi o seu texto, apenas pedaços, citações destacadas do contexto e mesmo essas lidas com olhos gregos, platónicos ou não. Foi também provavelmente o texto mais avaliado criticamente na modernidade mas aí a armadilha maior foi a consideração praticamente unânime, crentes ou ateus, de que se trata dum livro religioso. Os crentes, lendo a sua figura principal, Jesus, como uma divindade incarnada que sabia tudo, acrescentaram-lhe a noção implícita de que foi escrito para durar os quase dois mil anos que nos separam dela. A exegese científica da escola histórico-crítica que predominou no século passado cortou os textos evangelhos em perícopas (Formgeschichte, história das formas), procurando encontrar nas comunidades que receberam a pregação cristã inicial, ou seja no seu contexto de destino, a razão de ser de cada uma delas. A ideia não é má, embora provavelmente essas comunidades tivessem muito do imaginário ‘cristão’ do exegeta, mas teve como consequência a desintegração do texto narrativo, suspeito aliás, com os seus milagres, de infidelidade histórica. Diga-se desde já que, ao procurar-se uma ‘verdade’ do texto, da narrativa, não se trata aqui de buscar  uma verdade histórica desse tipo, embora alguns pontos de verossimilhança sejam possíveis e outros de plausibilidade, com a não verificabilidade dos elementos relevando do código mítico, opondo Céu / Terra / Abismo (desmitologização bultmanniana). Desse trabalho exegético resultou uma tese importante no que diz respeito aos três evangelhos ditos sinópticos, justamente por causa da relação entre eles permitir uma ‘óptica’ de ‘conjunto’ (sun): Mateus e Lucas dependem de Marcos no que têm de paralelo, ambos têm uma outra fonte comum, Quelle, e ambos têm uma fonte própria. O que faz de Marcos o primeiro, que mereceu a confiança dos dois outros (enquanto que João releva duma tradição bem diferente, com pouco paralelo com os outros três).
9. Vamos então ao texto de Marcos em que, à maneira de Barthes, repertoriei uma série de códigos de tipo paramétrico, interpretando-os com uma grelha restituindo o modo de produção da Palestina da época, que colocou o Templo de Jerusalém no nó do poder religioso, politico e financeiro. Quando Marcos foi escrito, esse Templo tinha sido incendiado pelos Romanos em 70 e pode-se perceber que nos três sinópticos a narrativa oferece um antagonismo fundamental entre o actor narrativo profético Jesus e esse Templo, donde expulsou os vendilhões e que ocupou, depois de discutir com as chefias politicas e religiosas, tendo-as calado com autoridade. Três códigos sequenciais articulam a trama narrativa, o principal conduzindo as acções dos diversos actores narrativos, colocando em Jesus uma primeira palavra “o tempo cumpriu-se e o reino do Deus está perto; convertei-vos e crede na boa nova” em forte contraste com a última, “meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”, que é dada no original aramaico em que Jesus a terá pronunciado antes de expirar. Outro código sequencial busca saber quem é este Jesus taumaturgo que fala com autoridade e anuncia o fim dos tempos, entre várias hipóteses (profeta, João Baptista ressuscitado, etc), um dos discípulos, Pedro, na sequência dum gesto de partilha de pão e peixe, tendo reconhecido que ele era o Messias, o que ele próprio prisioneiro confessará diante do tribunal judaico no Templo. Um terceiro código se cruza frequentemente com este, o das estratégias de Jesus e dos seus discípulos (que o seguem), das multidões (que o procuram e escutam) e dos adversários (que tramam a sua perca desde muito cedo). Diante dessas estratégias, Jesus escolhe a sua, fugir das cidades deixando-se atrair pelas multidões fora delas, durante a primeira metade do texto, passada na Galileia; na sequência da confissão de Pedro, decide-se a partir para Jerusalém onde afrontará os senhores do Templo, refugiando-se em clandestinidade durante a noite, onde será preso por traição dum dos seus, condenado pela autoridade romana, executado e sepultado. Uma curta sequência junto do sepulcro dois dias depois dá-o como ressuscitado e anuncia-o na Galileia. A narrativa é pois a dum fracasso do Messias que anunciou o fim dos tempos, que teve sempre a precaução estratégica de escapar aos seus adversários mas acabou apanhado. Questão que poderá pôr um leitor: porque é que ele foi meter-se na boca do lobo, em Jerusalém? O texto dá uma resposta a tal questão, fazendo Jesus por três vezes anunciar o que lhe sucederá, como sofrimento, rejeição e crucifixão, mas depois levantar-se-á dos mortos. Ora, esta predição do futuro narrativo é contraditória com o código estratégico e com o que ele supõe de Jesus como alguém que toma cautelas por não saber o que virá e que obviamente não quer ser morto, contradição aliás que se manifesta claramente na surpresa total dos discípulos em torno do sepulcro vazio. É nesta contradição textual que se manifesta a verdade do texto. Não apenas em relação ao que se passou 40 anos antes, mas sobretudo em relação ao fim do Templo que acaba de ocorrer, que um longo discurso de Jesus anuncia, evocando uma expressão profética sobre uma antiga profanação do Templo: “quando vires a abominação da desolação erigida onde não deve – compreende, leitor! – [...]”, este convite ao leitor sendo a chave do texto, caso raríssimo na Bíblia em que se cita o seu leitor[3]. É para o anúncio primeiro, “o tempo cumpriu-se e o reino do Deus está perto”, que o leitor é chamado, a compreender que Jesus Messias virá brevemente, ele que dissera que o faria enquanto fossem vivos alguns dos que o conheceram. As cartas de Paulo mostram que os apóstolos acreditavam que Jesus voltaria em glória ainda durante a vida deles. Em 70 já tinham morrido quase todos, agora que também o Templo acabou, não falta mais nada; mas depois da morte na cruz, que não tenha voltado como Messias foi o segundo grande fracasso (que Lucas procura adiar sine die)[4].
10. Afinal, para o leitor de Marcos, Jesus não foi o Messias. A verdade deste texto desdobrou-se em seguida, na procura duma outra resposta ao clamor do “meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”, do que as possíveis no paradigma antropológico hebraico, nem a ressurreição nem o retorno messiânico que ela supunha. Essa nova resposta, já se esboça nos últimos textos do novo Testamento, ajudada com terminologia filosófica (Colossenses, Efésios, Filipenses 2,6-11, evangelho de João) mas desenvolver-se-á no paradigma platónico de Alexandria, com o que será o dogma da incarnação, afirmado no sec. IV sem a menor referência à ressurreição nem ao Messias. É certo que Deus e a ressurreição são fenomenologicamente inverificáveis, que há muitas leituras textuais a fazer nesta conclusão rápida, não impede que se possa vislumbrar que a verdade de Marcos permite programar a verdade da teologia cristã como resposta àquele clamor insuportável.



[1] Tenho vários sobrinhos em que a questão se pôs.
[2] Publicada em francês em 1974, traduzida em castelhano, alemão e americano. Em resposta ao sucesso duma ficção célebre sobre o código bíblico, esta leitura foi retida na antologia das 50 obras principais de crítica moderna da Bíblia por um grupo de exegetes de língua alemã, Thomas_Staubli, Wer knackt den Code? Meilensteine der Bibelforschung 50 Porträts, Patmos, 2009, Dusseldorf [Quem é capaz de decifrar o código ? Grandes marcos da investigação bíblica. 50 retratos] 35 anos após a publicação, foi um consolo incalculável.

[3] Além do paralelo de Mateus, apenas numa carta no início do livro do Apocalipse (1,3).
[4] Tratei da questão de como se instituiu o dogma cristão da incarnação no texto de 23/02/2018.

terça-feira, 3 de julho de 2018

Da fecundidade espiritual



Espiritual e religioso são coisas diferentes
1. O cristianismo é um fenómeno espiritual e religioso que tem uma relação estrutural à história da filosofia, mas a consideração que vou fazer sobre essa relação leve-me a começar pela distinção entre estes dois termos que são habitualmente tidos por facilmente trocáveis um pelo outro, para em seguida mostrar como filosofia e cristianismo não são exteriores uma ao outro. Dum ponto de vista antropológico, a religião reenvia para os usos que os antepassados transmitiram pela aprendizagem das novas gerações (cada uso é justificado ao antropólogo ‘porque os nossos pais já faziam assim’): não estando já lá, ausentes, eles têm efeitos presentes na repetição desses usos, assim os rituais relativos a seres sobrenaturais a reler escrupulosamente (religio: relegere, Benveniste). Por outro lado, nas sociedades agrícolas, só os deuses têm poder sobre a fecundidade dos campos, rebanhos e mulheres, assim como as vitórias na guerra (ver as bênçãos e maldições do Deuteronómio, cap. 28 e do Levítico, cap. 26). A religião justifica o estado actual  da sociedade como bendita (ou não) pelos seus deuses, é holística, cobre todos os seus indígenas, os que aprenderam os seus usos, diferentes dos das sociedades estrangeiras. Foi desta clausura religiosa que, em meados do milenário antes da nossa época, saíram o que se pode chamar escolas de exercício espiritual, como Zaratustra na Pérsia (700-630), Lau-Tseu (640-517) e Confúcio (551-479) na China, Buda na Índia /543-479), os Profetas escritores em Israel (sec. VIII-VI), ou mesmo Heraclito, Parménides, Pitágoras e Sócrates na Grécia (sec.VI-V). 'Escola’ significa que, em vez da transmissão de pais para filhos própria à sociedade, fez-se de mestres em discípulos a de novos usos de escrita que se tornaram possíveis de continuar de geração em geração. Eles têm em comum um corte mais ou menos nítido com as tradições holísticas da sua sociedade, incluindo as religiosas, com as suas maneiras de se alimentares e de respirarem – é isso, antes de mais, o novo sopro que diz a etimologia da palavra ‘espiritual’ – com aquilo que nas casas ricas era tido como honra. Se nos limitarmos ao exemplo de Sócrates, o corte com o saber tradicional é bem marcado pelo “só sei uma coisas, sei que nada sei”, e no que diz respeito aos desejos de honra que se abandonam, seja dinheiro, reputação, honra (Apologia 29 e), fortuna, interesses da casa, comandos do exército, carreira politica, qualquer cargo, laço ou facção politico (Apologia 36b9), os prazeres de comer e de beber, do amor, a beleza das vestes e do calçado e de outros ornamentos (Fédon 64d-65a), estes desejos sendo substituídos pela busca da sabedoria e das virtudes, “a coragem, a temperança, a justiça e em geral a verdadeira virtude, que se adquirem com a sabedoria” (Fédon 69b). Muito poucos se ocupam disso: “libertar a alma não é, achamos nós, o fim a que os verdadeiros filósofos e apenas eles aspiram ardente e constantemente?” (Fédon 67d). Há um desgosto das coisas do mundo das casas, uma busca ética espiritual que não se pode confundir com a religião de todos nem com a sua moral (os desejos devem seguir os usos ancestrais) que dizem respeito a todos os cidadãos e a todas as instituições, nomeadamente as que dizem respeito à educação da juventude.
2. Este tipo de fenómeno, na sua marginalidade, implica portanto a escrita de textos que se lêem e meditam; não foi  possível senão um certo limiar de cosmopolitismo, em que uma certa diversidade de textos e a sua publicação em Atenas, em meados do sec V, gerou debates sobre a avaliação dos saberes tradicionais e das escolhas (heresias, nome das escolas filosóficas e dos cultos orientais no helenismo, entre os quais o cristianismo dos primeiros três séculos). Com o enfraquecimento da religião holística ancestral que ele veio a substituir, a sua distinção em relação às outras escolas espirituais tornou-se difícil pelo desaparecimento desta pluralidade com o colapso das grandes cidades romanas do ocidente. Dois índices de como o cristianismo veio a sofrer uma mutação de escola espiritual em religião: a regra para se tornar cristão deixa de ser uma conversão espiritual dos costumes seguida de baptismo, este torna-se o rito religioso social de nascimento dos bebés; desde o sec IV, a instituição eclesiástica será incessantemente transbordada nas suas margens por movimentos espirituais de adultos que se convertem a uma vida de ascese em relação às honras sociais, uns integrados em seguida (mosteiros, conventos), outros combatidos enquanto ‘heresias’, nos sois casos o motor desses movimentos sendo a leitura das Escrituras. A dizer verdade, até à Reforma de Lutero, o cristianismo não será uma ‘religião do livro’, já que este é escondido em latim (até meados do sec XX no catolicismo, ainda testemunhei na minha juventude desta ‘descoberta’ da Bíblia).

Filosofia e cristianismo
3. Pierre Hadot mostrou como as filosofias grega e helenística relevavam do espiritual. Sócrates, disse Aristóteles, inventou a definição ; os primeiros diálogos de Platão mostram-no a ajudar os jovens a descobrir por eles mesmos a boa definição das principais virtudes, de maneira a que em seguida possam vivê-la. No Ménon (71d-72c), onde se encontra uma definição de ‘definição’ (sem o termo), é a de virtude que serve de exemplo. No Parménides, espantosa ficção do velho pensador eleata face ao jovem Sócrates, ficção essa que cobre a discussão dos argumentos do jovem Aristóteles[1], crítico das Formas ideias do seu mestre: “começaste muito cedo, Sócrates, antes de estares exercitado, a definir (horizesthai) o belo, o justo, o bom e cada uma das outras formas” (135c), sublinhando portanto como essas Formas eternas eram o resultado da definição[2]. A alma imortal é o correlato quer desta definição quer destas Formas ideais, como se deduz desta citação: “quando a opinião realmente verdadeira e firme sobre o belo, o justo, o bem e os seus contrários se produz nas almas, eu digo que é o divino que nasce numa raça de demónios” (Politico 309c). Neste pensamento intelectual e espiritual são inseparáveis, como testemunham as escolas do platonismo e do neo-platonismo do império romano, foi o que tornou próximos filosofia e cristianismo.
4. Este vem contudo dum outro horizonte, duma antropologia hebraica totalmente estrangeira ao platonismo, como mostra um parágrafo da primeira carta de Paulo aos cristãos de Tessalónica: “nós, os que estaremos ainda vivos para a Vinda do Senhor [...] seremos reunidos [...] e levados em nuvens para encontrar o Senhor Jesus nos ares” (1Th 4,15-17), a bem-aventurança imortal, com ressurreição dos mortos entretanto, sendo concebida como uma ascensão colectiva da terra para os céus; este imaginário apocalíptico ilustra bem a ausência da oposição alma / corpo na antropologia hebraica e no novo Testamento cristão, que se escreveu em torno do motivo da ressurreição do Messias Jesus, obviamente incompatível com Platão[3]. Ora, o inicio da última carta de Paulo, aos cristãos de Roma (1,1-4), mostra como este obstáculo pôde ser contornado: “Paulo, escravo do Messias Jesus [...] nascido da semente de David segundo a carne, definido (horisthenos) filho de Deus em potência segundo o sopro de santidade pela ressurreição dos mortos de Jesus Messias o senhor nosso”. Traduzido habitualmente por ‘constituído’ ou ‘estabelecido’, horisthenos é o particípio aoristo do verbo horizesthai (definir) que se citou acima no Parménides, o que significa que Paulo era suficientemente conhecedor de helenismo para ser capaz de transpor o ente celeste hebraico (o Messias que virá brevemente dos céus) no ente celeste grego, o Filho de Deus concebido como uma Forma ideal do platonismo. Este título é com efeito desconhecido da tradição bíblica hebraica (Deus nunca é dito ‘Pai’ dos Israelitas)[4]. Que o obstáculo tenha sido contornado por este motivo grego de Filho de Deus[5], mostra-se na leitura do primeiro grande texto sistemático de teologia cristã, o  Peri Archôn de Orígenes de Alexandria (escrito cerca de 315). Esta história é lida habitualmente em termos de continuidade entre os textos judeo-cristãos e Orígenes, mas a ruptura é bem evidente: a dizer verdade, não é o jovem cristianismo que usa a linguagem filosófica grega, mas o discurso platónico, velho dos seus seis séculos, que se apropria destes jovens textos ‘orientais’ e lhes aplica uma redução[6] completa, por assim dizer, de tudo o que neles é narrativo, corporal, relevando dos sentidos, isto é “indigno de Deus”. Já não é questão de Messias (a figura escatológica entrou em discrédito porque não se realizou, ficou adiada), o capítulo a que um editor posterior deu como título “O Cristo” não fala senão do Filho e da Sabedoria na Trindade. Para abreviar, a teoria trinitária e da incarnação não pôde ser concebida senão em meio grego, com motivos filosóficos[7]. Todavia, o Deus dos filósofos (Platão, Aristóteles, Plotino) ignorava o que se passa no mundo terrestre dos humanos, ele será enxertado com o Deus bíblico que criou o mundo e conhece cada l´írio e cada passarinho, cada cabelo humano, constituindo com a alma imortal a estrutura de base da teologia cristã até hoje, dando ao que Heidegger chamou ontoteologia – a partir de Platão – a nitidez dum criador que tem cada uma das suas criaturas diante de si. Que Nietzsche tenha dito que “o cristianismo é platonismo para o povo” (prefácio de Para além do bem e do mal), descontando o seu desprezo por estes três termos, permanece um belo elogio: que uma mulher e um escravo cristão acreditassem ter o Deus do Universo presente na sua alma, tornando-os por vezes capazes de resistirem ao marido ou ao patrão, é algo de inaudito dum ponto de vista histórico. Desaparecido o Messias, a Bíblia continuará a ser lida na liturgia (em latim), mas se a filosofia espiritual de Platão não se tivesse apoderado do cristianismo, este teria tido a sorte dos cultos que lhe foram contemporâneos; só que também não haveria filosofia, já que foi o cristianismo que a levou nas suas bagagens conceptuais: eles não são exteriores um à outra, sem a sua simbiose não haveria Europa.
5. O platonismo agostiniano era válido para monges, camponeses e guerreiros, deixava de ser suficiente para as comunas de artesãos e mercadores donde sairá a Europa, a qual terá necessidade de Aristóteles – a redução dele já não é a dos corpos mas, menos brutal, a dos seus acidentes –, duma razão capaz de pensar as coisas da Terra, capaz de permitir de abrir o laboratório de Galileu e de Newton. A estrutura da Summa Theologiæ de Tomás de Aquino mostra como esta teologia é amassada de razão filosófica: cada artigo (tem mais de 3000) é estruturado por três objecções à questão do seu título, seguido do argumento de autoridade teológica, seja bíblico, seja conciliar, seja dum Padre da Igreja,, isolado num sed contra que decide no que diz respeito à adesão de fé mas sem intervir nos raciocínios que se seguem, primeiro a demonstração da tese, em seguida a refutação das três objecções iniciais: os argumentos, tanto as objecções como a demonstração e as refutações, são todos de ordem exclusivamente filosófica: a Suma é um tratado filosófico sobre dados da fé. Ela guardará todavia a alma imortal, que será despedida por Kant – com o Deus e a substância dos númenos, o triplo pilar da ontoteologia – e substituída por um sujeito voltado para o mundo, permanecendo-lhe todavia oposto no sujeito / objecto e nas representações de um no outro que circulam ainda facilmente (ontoteologicamente) em numerosos discursos actuais, tanto filosóficos como científicos. A viragem no entanto foi iniciada pelo ser no mundo heideggeriano: é a dogmática grega do cristianismo que ora desaparece, tal como em Orígenes as narrativas bíblicas desapareceram da teologia.

Que futuro?
6. Desaparecem então o cristianismo e as outras grandes religiões? Não se o pode prever. Encontramo-nos numa situação cosmopolita que se parece, em certos aspectos, ao do império romano que conseguiu acabar com as guerras no seu interior com o preço da evacuação do politico, o que por seu lado trouxe o enfraquecimento da religião cívica e a proliferação de escolas e de cultos espirituais. O que hoje ocupa o lugar do império é o que Heidegger diagnosticou desde cedo como o Ge-stell, esta estrutura técnico-financeira que está a globalizar o planeta humano, em que nós temos o nosso emprego algumas horas por dia numa interdependência que aboliu as fronteiras e reduziu a potencia dos Estados nações como outrora a das autoridades locais toleradas por Roma, mas sem haver imperador, nem cabeça, nem mesmo o Capital a tem, apesar do seu nome[8]. Entra-se nele pela escola holística e pelos livros e impressos, toda a gente sendo em seguida ‘chamada’ (a ekklesia era a assembleia dos ‘chamados’, convocados) pelo espectáculo incessante dos médias de qualquer tipo, músicas, imagens em movimento, vozes publicitarias, “the médium is the message” de Mac Luhan significando talvez que são os médias que substituem o holístico das religiões, o novo ópio do povo (com divertimento, não é necessariamente pejorativo, os livros foram os primeiros médias), este espectáculo que compensa a disciplinação que os empregos do Ge-stell nos impõem, rotina que nos magoa. Se se pode pensar que, juntamente com o desporto de multidões, é este conjunto que ocupa hoje o lugar holístico das religiões, não pareee que se possa argumentar filosoficamente sobre o desaparecimento destas, apesar da sua perca de velocidade: a metafísica acabada (Heidegger), poderá a filosofia argumentar sobre a sua desaparição, a da alma e da esperança dum além da morte ou, pelo contrario, argumentar sobre a sua sobrevivência? As doenças que não regridem tão depressa como se quereria, os sofrimentos sociais impiedosos e a sua desproporção com o luxo manifestado pelos médias, continuarão o seu papel em favor da consolação religiosa que exploram os fundamentalistas? Pode-se pelo contrario argumentar em termos filosóficos em favor da sobrevivência espiritual do cristianismo, sem poder fazer nenhuma previsão, se for verdade que “o vento, o pneuma, sopra onde quer (João 3,8), o próprio cosmopolitismo abre-lhe vazios favoráveis, de que são testemunhas, por exemplo, as teologias de libertação, mas também muitas vidas anónimas de cristãos dedicados a causas difíceis.

A questão da fecundidade
7. Comparado com as cosmogonias vizinhas, o primeiro capítulo da Bíblia (da sua última mão, cerca de um século antes de Sócrates) é um texto ritmado (6 dias, 10 palavras) por uma razão que não é inferior ao  Timeu de Platão. A luz, as plantas e as suas sementes, os animais do mar, dos ares e da terá, o casal dos humanos, a palavra que abençoa, isto é: “sede fecundos, multiplicai-vos” (Gn 1,22,28), tudo é declarado “bom” (7 vezes), com esta particularidade que tanto os humanos como os animais são criados herbívoros, como se a lei da selva carnívora fosse incompatível com esta bondade da criação[9]. Dt 28 e Lv 26 já citados, confirmam a lição de Gn 1: a bênção é a fecundidade. Não é de admirar, a riqueza em todas as sociedades de antes da indústria releva essencialmente da fecundidade das sementeiras, plantações e rebanhos, sem que os humanos possam remediar à falta dela, é por isso sem dúvida que ela é uma das chaves das mitologias. Os herdeiros das casas ricas também dependem dela: em Os Sete contra Tebas 746 de Esquilo, a razão da maldição que caiu sobre a casa de Laio, pai de Édipo, foi a insistência da sua demanda dum filho, que terá querido forçar a mão do Deus. Na Bíblia, o Deus mostra o seu poder fecundando uma velha estéril, Sara, dando em Isaac uma descendência a Abraão (Gn 18,9-15), e depois uma outra mulher estéril, Ana, cujo filho, Samuel, será o profeta que escolherá o rei David (1 Sam 1); depois doutra velha estéril, Isabel, mãe de João o Baptista (Lc 1,5-25), o último é o caso mais conhecido, pois que, para sublinhar o futuro Messias, Jesus nem sequer terá pai humano[10].
8. Platão não parece ter ficado muito espantado com a fecundidade, esses entes que nascem e morrem, geração e corrupção, é o que lhe inspiram repugnância e o leva a procurar Formas ideais eternas: a eternidade levou largamente a melhor sobre a fecundidade na tradição filosófica greco-europeia. E no entanto, não há algo de escandaloso para a compreensão que uma pequena semente se possa tornar uma árvores frondosa? Não há um poder, uma archê da phusis, nestes esntes vivos em que do menos sai o mais? É um dos grandes espantos da Physica de Aristóteles, que ele consegue compreender como seu motivo da ousia, que muda de acidentes sem deixar de ser a mesma substância (ousia primeira) e da mesma essência (ousia segunda) que os da sua espécie. Todas as coisas têm uma causa, é o grande motivo do pensamento grego: a mesa, foi um marceneiro que a fez, mas os vivos têm o movimento por eles mesmos (kath’autôn), eis o grande espanto. Também do lado bíblico, por exemplo esta pequena parábola em Marcos – “[...] um homem que terá lançado a sua semente na terra: enquanto dorme e se levanta, de noite e de dia, a semente germina e cresce, sem que ele saiba como; por ela mesma, a terra produz primeiro a erva, depois a espiga, depois esta cheia de trigo; e quando o fruto está prestes, logo ele vem com a foice, porque a colheita está pronta” (4,26-29) – que conta o trabalho agrícola, a fecundidade da terra sem que o semeador saiba como, a que ecoa Paulo (argumento sobre a ressurreição): “tu semeias [...] um grão nu, de trigo, por exemplo, ou de qualquer outra semente, e o Deus dá-lhe um corpo como quer, a cada semente o seu corpo” (1Co 15,37-38). O que o camponês não sabe, é ‘a terra dela mesma’, o Deus que tem o segredo da terra e da semente.
9. Platão sabe todavia alguma coisa, pois que quando quer falar da relação entre a experiência interior (de pensar) e o seu discurso exterior, uma que não se vê e outro que se ouve, o único recurso que parece ter ao seu alcance – sublinhado por Derrida, no seu texto célebre La Pharmacie de Platon[11] – é justamente a relação entre o pai que pensa e o seu filho, o logos, em oposição com o texto escrito, bastardo e órfão. O pai pode sempre responder pelo seu filho, pela sua palavra viva, ao contrário do escritor que já não está lá. O parentesco é a vida, a sua fecundidade, o que vem dela mesma, o que é espontâneo, com acento sempre no interior, como convém a um pensador[12]. E é ainda o que mostra a importância do ‘género’ – genos: nascimento, família, linhagem, raça, geração –, motivo filosófico e lógico que pensa a multiplicidade das coisas do mundo, submetidas ao nascimento e à morte, ao movimento e ao tempo, à geração em suma. Ora, é o mesmo gesto, mutatis mutandis, de Paulo quando ele quer dizer a potência do Messias ressuscitado na sua própria obra, dele Paulo – “eu plantei, Apolo [outro pregador cristão] regou, mas foi o Deus que deu o crescimento” (1Co 3,6) –, definindo-o “filho de Deus em potência”, o que adiante esclarece dizendo “o seu Filho, para ser ele próprio o primogénito de muitos irmãos” (Ro 8,29): muito fecundo, não em filhos como o Pai, mas em irmãos. Potência é a fecundidade, a qual é sempre o segredo do Pai.

O enigma da aprendizagem: o aprendido prendeu o aprendiz
10. Este empréstimo metafórico da fecundidade biológica pela cena do pensamento filosófico e pela acção missionária cristã leva a interrogar a instituição da cena social, o como da aprendizagem da linguagem e dos outros usos tribais, o que os sociólogos chamam a socialização dos indivíduos, o que permite relevar o interesse do motivo heideggeriano do ser no mundo (em Ser e Tempo) e o de retiro do Ser, tornado em 1962 (Tempo e Ser)[13] o do Ereignis (Acontecimento ontológico que doa os acontecimentos ônticos), da doação que deixa ser o que é dado em sua autonomia temporal. O que está em jogo é o seguinte: como é que tal uso triabal, seja a linguagem, que já está lá, ancestral, anterior à criancinha, se torna o seu uso, tão hábil e espontâneo que ele o sente como seu, dizendo ‘eu...’, pensando, sonhando, decidindo, empreendendo tal ou tal obra, útil ou artística. Como é que este ‘interior’ que o bebé ainda não tem, reino de toda espiritualidade, é construído a partir do exterior tribal, dos seus pais e parentes, vizinhos e colegas? Há muitas regras na língua, bastante precisas e complexas, aprender-se-ão as mais importantes na escola bem mais tarde, mas aprende-se a falar sem as conhecer, fala-se sem lhes poder dar atenção, ainda que se seja linguista, são elas que tomam posse daquele que se tornará pouco a pouco um falante na sua voz inédita, que não imita a dos outros, adultos ou velhos ou do outro sexo, todas diferentes. Em ‘a-prender’ há um ‘prender’ a criança, um laço que liga nela o que será preciso para que ele possa falar por si mesmo, espontaneamente, com habilidade, exercer com autonomia a linguagem do seu mundo, devir (aprendendo outros usos também) o ser no mundo que ele não era (antes, era um ‘ser no seio da sua mãe’). Este ‘prender’ não é todavia uma ‘prisão’ devida aos que lhe ensinaram, que é certo que participam daquilo que foi aprendido como o mesmo, as regras da língua, condição da linguagem como capacidade de entendimento, de comum. Esta ‘parte’ dos mestres no aprendiz é um laço também, é preciso todavia que eles se apaguem, que a doação deles – heteronomia – desapareça, se retire, para que haja autonomia, não permaneçam deles senão as traces (em francês), rastos, vestígios (portanto não é uma prisão). Derrida levou um pouco mais longe o que aqui se faz a partir de Heidegger: esta aprendizagem da linguagem faz-se por redução fenomenológica da empiricidade das vozes dos que ensinam para que o aprendido se manifeste numa voz outra, inédita,  criada pelo jogo das diferenças linguísticas (entre as diversas vozes: o ‘signifiant’ de Saussure), jogo que só existe em vozes, é claro. Enigma da différance, economia do mesmo (a língua que se aprende) e excesso do singular (as vozes e suas falaas), apagamento dos mestres para que o aprendiz fale pela sua voz e cabeça.
11. Este enigma pode ser abordado assim. Aprender implica a passividade daquele que antes não sabia, mas o aprendido é a sua actividade, na sua voz, sem que entre os dois, passivo e activo que durarão no tempo, se possa decidir, por exemplo primeiro passivo e depois activo: este duplo laço – de voz e de pensamento, entre o quer fala e os com quem aprende – permanecerá o tempo todo da vida, a lei tribal e a do falante, que será corrigida pela primeira e deverá afirmar-se frequentemente face a ela, ganhar distância, dissimulando e enganando, gritando se for preciso, por vezes deprimindo-se talvez. Os mestres permanecem em retiro nos discípulos como seus antepassados, sem que eles saibam como (os sonhos testemunham-no). O dualismo entre o inteligível e o sensível foi uma (de) cisão devida à definição, historicamente necessária, sem dúvida, deste duplo laço, corte entre a alma, depois o sujeito, por um lado, e do outro o corpo, o mundo, os outros: substancializou-se o que foi a lenta construção duma diferença duplamente ligada, em que nenhum é sem o outro. A reminiscência é proposta no Ménon expressamente contra a aprendizagem, esta sendo manifestamente inadequada a dar conta das grandes experiências de pensamento que justamente ultrapassam tudo o que o pensador aprendeu, aquilo que se atribui aos deuses (citação do Politico, § 3). Se foi sobre este enigma que esbarraram Platão. Aristóteles, Descartes, Kant, Husserl, ou mesmo Heidegger, haveria que perceber a indicação de que ela deve restar enigmática, fora da alçada da definição filosófica e da determinação laboratorial. Aprendemos ao longo das nossas vidas; este belo enigma dos grafos[14] e das suas sinapses que de aprender se fazem[15] imprimidas de fora nos neurónios (passividade), elas são no entanto a actividade deles –, base da nossa livre individualidade simultânea com a nossa socialização, as duas indissociáveis, como se disse, é nesse enigma que reside a fecundidade essencial das sociedades humanas, que lhes permite prosseguirem no fio das gerações, o próprio da fecundidade sendo ser generosa.

A fecundidade torna-se espiritual
12. Em certos humanos, todavia, o enigma pode tornar-se mais enigmático quando lhes sucede deixarem de suportar os usos aprendidos, que se tornam muito pesados para os seus desejos, quando são levados a fugir dos limites da sua clausura tribal  imanente, religiosa outrora, mediática nos dias de hoje. Porque os usos sendo hierarquizados, inclinam para ocupar os melhores lugares, aqueles em que possam fazer-se invejar: é aonde o ‘prender’ do aprendido se torna muitas vezes ‘prisão’. Há nos evangelhos sinópticos três fórmulas de oposições que podem ajudar a entender o que está aqui em questão: “Deus e o Dinheiro” [16], “Deus e César”[17], “Deus dos vivos e Deus dos mortos”[18]. Trata-se de emblemas feitiços aprendidos, é certo, mas jogando por vezes com uma força tal que não se apagam, permanecem heteronomia explícita que insiste constantemente: tens que tornar-te rico, que dissimular face aos concorrentes de cada dia, brigar pelos melhores lugares, cultivar astúcias como saber experimentado. Cada um compreenderá o que pode vir um dia fazer nele reviravolta – sucedeu a inúmeros homens e mulheres ao longo da história, não apenas na tradição ocidental, longe disso – e fazê-lo romper com a clausura social imanente aos usos estabelecidos em torno desses feitiços, a ruptura dita metanóia, conversão, mudança dos usos para maior ligeireza na alimentação e na respiração. A espontaneidade devem ligeira, a habilidade busca desapropriar-se das apropriações dos desejos pelos feitiços sociais, ascese, esse longo trabalho do seu apagamento em vista duma espécie de ingenuidade ética para a bondade, a clareza, a justeza da justiça, a temperança, que sei eu? O sinal dessa liberdade encontrada é a alegria do novo caminhar.
13. Na antropologia hebraica do novo Testamento, esta ruptura foi compreendida pelo anúncio – boa nova, alegrai-vos – da iminência do fim dos tempos, que o imaginário apocalíptico de Paulo aos Tessalonicenses (§ 4) ilustra como a transcendência, maneira bíblica que implicaria a saída da Lei de Moisés pela fé no Messias ressuscitado. A decepção das gerações seguintes fez sem dúvida tanto para parar a conversão dos Judeus como para precipitar os Cristãos para a alma imortal de Platão, que permitia escapar à clausura social do império romano, tal como outros cultos faziam à maneira deles. O que se chama transcendência, se for concebida em relação à imanência social, religiosa ou imperial, será verificável nessas experiências excessivas da alma, que aliás recomeçarão com o devir religião oficial do cristianismo, os monges místicos do deserto, mosteiros, devotio moderna, Reforma e seus posteriores revivals.
14. Actualmente, quando se torna filosoficamente difícil, senão impossível, crer na criação, na ressurreição, na incarnação, no céu / inferno das almas, esta escapadela espiritual pode revestir aspectos muito diversos, de dedicação social (cada vez mais sem referência cristã), artística ou outra. Como reconhecer o espiritual: a ruptura com os feitiços torna-se manifesta na fecundidade em torno de si que transborda além das suas forças pessoais, na pobreza e nudez dos seus meios. O espiritual cristão terá na leitura dos textos bíblicos uma referencia importante, qualquer que seja a sua posição face às confissões integradas. Ora, o que se lê neles implica como apelo espiritual predominante o amor do próximo como a si mesmo, que tanto é a coisa mais difícil do mundo como está ao alcance de quem quer que seja, pobre ou rico, cultivado ou analfabeto. A compreensão deste apelo pode conduzir à avaliação dos desejos oprimidos dos que são chamados ‘os pobres’, os sem tribo. Paradoxo da fecundidade: deixa-se a tribo para se esforçar por a devolver a outros, dela excluídos. Se há um enigma da aprendizagem da fecundidade social, há um sobre-enigma da desaprendizagem para uma fecundidade de outra ordem, ética. Se com Derrida, se falou de trace (rasto) para o aprender dum duplo laço, o da sua espontaneidade e o que o liga aos mestres apagados, retirados, aqui haverá que evocar Levinas que, a propósito do santo, falava dum rasto diacrónico, dum “passado que não foi nunca presente”, isto é, que não conhece a sincronia da aprendizagem. A filósofa Fernanda Bernardo define assim: “o seu desígnio é de pensar como a inquietação, o sobressalto, o cuidado obsessivo do sujeito pela sorte do outro, se faz sentir nele mesmo, independentemente da sua vontade [19]. Não se poderia dizer melhor.
15. Conhecer a alegria dada pela ascese dos feitiços, a liberdade de se tornar ‘pobre’ pelo sopro que vos prende, fecundos além do que podeis, tal é o desenho do discurso da montanha de Mateus 5-7 que começa dizendo “felizes vós, pobres porque entregues ao sopro (ao espírito)” e termina com a imagem duma casa construída sobre rocha que a tempestade não desfaz.

O original francês deste texto foi publicado em Noesis. Nº 24-25, Philosophie et Religion aujourd’hui, automne 2014 – printemps 2015, pp. 141-153
Revue philosophique du Centre de Recherche d’Histoire des Idées (dirigée par Pierre-Yves Quigier) de l’Université Nice Sophia Antipolis 

P. S. – Sobre o Criador
        16. A história do cristianismo diz respeito a gente que acreditava num Criador e esperava na sua ressurreição no final do mundo, mais tarde que a alma deles viesse à presença do Criador após a sua morte. Esta mitologia duma vida eterna no céu após uma vida justa na terra já não é a nossa, de neurologias sem ‘almas’. A criação é um antropomorfismo do obreiro humano para compreender a espantosa fecundidade dos seres vivos: obrou o conjunto do céu e da terra, que já está sempre cá antes dos humanos e de todas as coisas, vivas ou não. Criador de entes, como dizem os filósofos, das coisas que se vêm e se tocam; como pensá-lo enquanto criador de células e das suas moléculas complexas e frágeis, pedindo um metabolismo incessante para se refazerem, ou então dos átomos e das suas partículas fugazes, toda esta população que Bohr chamava “seres de laboratório”? Por outro lado, este deslocamento antropomórfico depende duma concepção da causalidade de tipo substancialista, que encontra o seu efeito específico no que hoje em dia se chama acontecimentos, cuja imotivação pediria uma determinação ‘metafísica’. Ora, segundo Derrida, o que está em jogo em qualquer acontecimento – no limite, tudo é acontecimento, a rotina sendo o seu grau zero – é “a unidade do acaso e da necessidade num cálculo sem fim” (Marges. De la Philosophie, p. 7), o que um automóvel pode ilustrar, fabricado em laboratórios físicos e químicos segundo regras rigorosas em vista de fazer percursos aleatórios. Igualmente, qualquer animal na cena ecológica, a sua bioquímica bem regulada pulsiona-o à busca aleatória doutro vivo para comer, devendo fugir por sua vez de ser comido. Não tem importância alguma que um biólogo seja ou não crente, o que ele tem é que fazer biologia: não é necessária nenhuma grande Causa neste jogo de acasos e necessidades indissociáveis (a própria noção de ‘regra’ ou ‘lei’ implica que ela joga em situações aleatórias). Acrescente-se que é difícil de pensar a bondade dum Criador dos vivos que tenha posto como regra da vida animal (ciclo biológico da reprodução do carbono, elemento necessário de qualquer molécula dos vivos: fotossíntese das plantas, herbívoros que as comem e são comidos pelos carnívoros) que a sobrevivência do leão dependa da morte da gazela e esta da fome do leão, em que vence o mais forte ou o mais astuto. Foi desta lei da selva que as sociedades humanas herdaram a sua violência tecida de força muscular e de astúcia, a chamada questão do mal.








[1] “Foi uma observação que fiz no outro dia, ao ouvir-te-discutir aqui mesmo com o nosso amigo Aristóteles”.
[2] Cf. no mesmo sentido Metafísica 1078b18-34.
[3] Como mostra o fracasso da pregação de Paulo em Atenas (Actos dos Apóstolos, 17,22-33).
[4] É provável que seja invenção de Paulo, que dele veio aos outros textos do novo Testamento.
[5] É o único título usado pelos textos cristãos do sec II dirigidos a figuras de intelectuais pagãos, onde nem sequer figura o nome de Jesus: é o caso de A Diogneto (125-6), Aristide (125), Quadratus (idem), Pastor de Hermas (meados do sec II), Taciano (idem), Atenágoras (176).
[6] Usando uma verdadeira máquina de transposição de sentidos entre narrativas e textos gnosiológicos, o sentido literal mudando para anagógico ou moral ou espiritual.
[7] Paulo ignora a incarnação (Filipenses 2,6-11 é ume interpolação gnóstica do século seguinte), João tornou-se de muito difícil interpreatção, devido ao peso da dogmática do sec IV.
[8] Gorbachov, de Klerk e Mandela foram talvez os últimos políticos que conseguiram mudar o mundo deles.
[9] Gn 9,3, após o dilúvio, alarga a alimentação humana aos animais, excepto o sangue (§ 14n).
[10] Foi apenas no contexto do platonismo e do maniqueismo, no sec III, que será interpretado o nascimento virginal em termos de sexualidade, Maria sempre Virgem, apesar dos evangelhos mencionarem os numerosos irmãos de Jesus, incluindo Tiago, autor duma das epístolas. Não se trata, como se costuma dizer, duma moral judeo-cristã, mas irano-greco-cristã.
[11] In La Dissémination, Seuil, 1972
[12] Que irá em todo o caso até ao ponto de escrever no Sofista (263 e) que o pensamento da alma consigo mesma, sem voz, dianoia bem interior, e o IlogosI são o mesmo.
[13] Questions IV, Gallimard, 1976
[14] J.-P. Changeux, L’homme neuronal, Pluriel, 1983.
[15] E. Kandel, À la recherche de la mémoire. Une nouvelle théorie de l’esprit, Odile Jacob, 2007.
[16] Mt 6,24, Lc 16,13
[17] Mc 11,17, Mt 22,21, Lc 20,25. César sendo o ocupante, a resposta de Jesus não pode representar o que ela significa hoje, sob pena de cair na armadilha que lhe põem, as gentes não se admirariam. As imagens sendo proibidas pela Lei, a resposta vale implicitamente que a moeda do imposto com a imagem de César deve ser reenviada fora de Israel, com o César. É este implícito que impede a acusação de colaboracionista.
[18] Mc 12,27, Mt 22,32, Lc 20,38. O deus dos vivos é o da fecundidadde (ressurreição), o dos mortos é o do Templo (da religião) que se opõe ao Messias.
[19] F. Bernardo, 2000, Transcendência e Subjectividade. A ‘Subject-illeida­de’ ou a responsabilidade ética como incondição do sujeito em Emmanuel Lévinas, tese doutoramento, 2000 (primeira redacção fotocopiada de 1997), vol. I, p. 168 (eu sublinho).