1. Foi a primeira vez que Jacques Derrida veio
a Portugal, a Lisboa, a convite do Manuel Maria Carrilho, e eu tinha-lhe
escrito a pedir uma entrevista e
dando-lhe conta duma dificuldade em que me encontrava na redacção da minha tese
de doutoramento. Começara por um projecto de análise de um corpus de
provérbios, com que aliciei o Professor Lindley Cintra que acabou por me
‘salvar’, mas percebi ao fim de alguns anos de tentativas que não sabia
linguística que chegasse e que aliás mesmo para um linguista seria algo de
quase impossível. Fiquei então com a questão da semântica que tinha encontrado
nessa tentativa, a questão do sentido, não apenas na frase, a nível da
linguística, mas também da semiótica, questão essa que fora crucial nos debates
estruturalistas dos anos 60 e 70 e que não tinha ficado resolvida. O que creio
ter conseguido com a gramatologia de Derrida (Epistemologia do sentido, ed. Gulbenkian).
2. O problema era filosófico e podia
não me ter aparecido, já que não o lera em sítio nenhum: qual era o lugar do
‘corpo’ na linguagem, na ‘fala’ (parole), uma vez que excluído da ‘língua’, com os ‘sons’ reduzidos, à maneira de
Husserl, por Derrida sobre Saussure. Já tinha escrito o volume prático da tese,
a leitura semiótica da Poética de Aristóteles e da Sobre a verdade e a mentira em sentido extra-moral de Nietzsche (Leituras de Aristóteles e de
Nietzsche, também editado pela
Gulbenkian), escolhidos por causa da questão da ‘metáfora’, com duas posições
opostas, e estava a escrever a parte teórica. Ao dar pela questão, tinha
organizado as aulas desse ano justamente em torno do tema do ‘corpo’, lendo
Lévi-Strauss e José Gil em antropologia, psicanálise, de que lera apenas a Interpretação
dos sonhos, com o Vocabulário de Laplanche e Pontalis, e neurologia, com
Changeux que acabara de sair.
3. Na conversa, houve um momento
importante, quando eu disse ‘sendo a linguagem que faz o homem’ e ele me
interrompeu ‘eu nunca disse isso’ e eu, inocente, ‘ai não? então sou eu que digo’.
A sensação que tive depois foi a de alguém que estivesse a conversar com Kant e
tivesse sido corrigido por ele! Claro que não sou capaz de restituir o que ele
me explicou, mas lembro-me bem de que disse que ‘corpo’, fazendo par oposto a
‘alma’, sempre que eu digo ‘corpo’ a ‘alma’ vem também, ainda que não dita. Com
efeito, tanto o ‘corpo’ como a ‘alma’ fazem de cada humano uma espécie de ilha, desligada do ‘mundo’ que todavia lhes dá
alimentação e aprendizagem.
Era pois necessário mudar de
perspectiva, vim depois a encontrar as raízes corporais da fala na fisiologia
do eixo neuronal entre a audição e a fonação, e a perceber mais tarde a
necessidade das várias ciências reduzirem os contributos umas das outras para
poderem isolar a dimensão de que se ocupam (portanto, de a linguística reduzir
a fisiologia e a acústica).
Além disso, a certa altura Derrida disse-me que os
dois livros dele de que mais gostava eram o Glas (Hegel e Genet) e La carte postale (Freud), aqueles que eu já lera dele sendo,
segundo ele, ‘ainda académicos’. Claro que fui lê-los logo de seguida, apesar
do tempo para a tese não ser muito: ora, foi neles que Derrida descobriu o
motivo de duplo laço, que veio
a ser fulcral na descoberta da Filosofia com ciências, as cinco me tendo vindo todas juntas justamente pelo jogo nelas de duplos
laços, como me foi dado numa tarde em que chegava a casa, como uma iluminação.
4. Ainda hoje me arrepio com a ideia
do que teria sido de mim se não tivesse sido esse encontro com Derrida. Ora
aconteceu algo de incrível: tendo no final da sua primeira conferência, na Universidade
Nova, ficado combinado que almoçaríamos no dia seguinte, recebi logo de manhã
um recado a dizer que ele tinha tido uma crise do fígado muito forte essa noite
e que só depois confirmaria, sim ou não, o almoço. Combalido, ele veio
almoçar comigo, generosamente, essa generosidade imensa foi duma grande
fecundidade no resto da minha vida. Chapéu!
1 comentário:
Caro Fernando: «Na conversa, houve um momento importante, quando eu disse ‘sendo a linguagem que faz o homem’ e ele me interrompeu ‘eu nunca disse isso’ e eu, inocente, ‘ai não? então sou eu que digo’. A sensação que tive depois foi a de alguém que estivesse a conversar com Kant e tivesse sido corrigido por ele! Claro que não sou capaz de restituir o que ele me explicou, mas lembro-me bem de que disse que ‘corpo’, fazendo par oposto a ‘alma’, sempre que eu digo ‘corpo’ a ‘alma’ vem também, ainda que não dita.» Lembro-me de quando me contaste este passo da conversa com o Derrida. Foi na viagem que fizemos no Alfa Pendular de Coimbra-Lisboa, depois do Colóquio sobre o Nancy (2014)... Abraço!
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