domingo, 20 de maio de 2018

Maio 68 contra o patriarcado



1. Diz-se habitualmente que um dos motivos de Maio 68 foi a crise de gerações. Mas porquê nessa altura e por todo o lado, do Japão à Califórnia? Revolução leninista, para tomar o poder ? claro que não, o ‘gauchisme’ ou esquerdismo pôde sonhar com isso (na Alemanha e na Itália deu grupúsculos armados), mas em França nunca lhe esteve ao alcance. Se houve revolução, também não foi ‘cultural’, à maneira do maoismo. Também não foi só uma ‘revolta’, apaziguada com os acordos de Grenelle entre o governo e os sindicatos, que puseram fim às greves de ocupação. A resposta implica uma avaliação das mudanças que houve. Em todo o caso, para revolução, mais seria anarquista, que era a bandeira de Cohn-Bendit, que no sábado de 11 de Maio, numa mesa redonda politica na televisão, a certa altura voltou-se para os espectadores, desafiando os operários a juntarem-se à greve dos estudantes: os sindicatos tinham convocado uma greve geral para 2ª feira, 13, os jovens operários de Sud Aviation, em Nantes, ocuparam as fábricas e o movimento alastrou-se em ocupações anárquicas de quatro semanas, contra os sindicatos e o leninista partido comunista, pararam comboios e metros, acabou a gasolina nas bombas. Tudo parou, as pessoas nas ruas de Paris tratavam-se por tu, a qualidade do tempo quotidiano mudou até junho.
2. Se para se saber o que foi esse anarquismo não programado teoricamente, há que perguntar pelas consequências, então a mais célebre terá sido a da libertação sexual que veio para ficar, seguindo-se o feminismo, os movimentos gays e lésbicos, assim como a contestação das hierarquias[1]. Contestação por quem? Pelos que entraram na cena politica, as mulheres e os/as jovens, aquelas chegadas à esfera social dos empregos fora de casa, estes/as a chegarem à idade adulta em que se sai de casa. Foi uma população nova na cena pública que tomou a palavra – la prise de la parole, título do ensaio de Michel de Certeau –, tomou a palavra política, em França e por todo o lado, do Japão à Califórnia passando por Praga. Contestou o patriarcado familiar, o pai e o marido-patrão, pela simples presença afirmada sem licença fora de casa, mas fora de casa também contestou o poder do pai, o patriarcado social, o poder dos ‘patrões’, dos professores e dos ‘padres’, com o papa Paulo VI a desperdiçar o ‘aggiornamento’ conciliar com uma encíclica que proibia a pílula e abria a porta da rua aos católicos progressistas; contestados até os dirigentes sindicais e partidários leninistas, que bem lhes responderam, aos grupúsculos de várias tendências, dizendo-os contaminados com “a doença infantil do comunismo”. Um cartoon apontava o retrato na parede do secretário geral do P. C. F., brincando com o nome dele, Waldeck Rochet: ‘va le décrocher’ (vai desprendê-lo). Quem assim ria, como se tornou lendário o riso de Cohn-Bendit, que líder que ri não comanda, quem assim ri não quer tomar o poder, delega essa tomada à imaginação. O esgotamento dos partidos comunistas começou daí.
3. Note-se que Maio 68 também foi bom para os patrões: 30 anos mais tarde, em Le nouvel esprit du capitalisme, o sociólogo Luc Boltanski mostrou como as empresas fortemente hierarquizadas tinham introduzido a flexibilidade do ‘espírito’ de Maio 68 e simplificado burocracias, desmantelado produções em oficinas autónomas, aligeirando quer em proveito dos vários níveis de trabalho quer em proveito do capital (que entretanto entrou em outra lógica, neo-liberal, recuperando o que acordara em Grenelle). Resta saber o porquê deste movimento? no que ele implicou de conflito de gerações, que não foi só no espectacular Maio francês, que iluminou de liberdade os países capitalistas após vinte e poucos anos de desenvolvimento com Estado social, a melhor época desde o fim da guerra do ponto de vista social democrata. O que é que lhe permitiu o desencadeamento, que cadeados e grelhas caíram para que mulheres e jovens assim se tenham apoderado das ruas em todo o planeta industrializado? Responder à questão implica que se lembre que somos estruturados com o que vem de fora, com o que aprendemos, usos e costumes sociais que nos fazem da nossa tribo com estilo individual, implica saber que as rupturas revolucionárias são justamente a implantação de novos usos. Que usos tinham mudado para que Maio 68 fosse tão galvanizador? A invenção decisiva das sociedades modernas, com a electricidade, foi a máquina: no pós-guerra, pela primeira vez as máquinas saíram das fábricas e dos comboios e chegaram à população civil como grande possibilidade nova. Um artigo do Le Monde de 4 de Maio deste ano, diz como a Renault em 1972 lançou o modelo R5 que teve imenso sucesso até meados dos anos 80 e foi concebido para “agradar a duas clientelas até aí negligenciadas: os jovens e as mulheres”. Os tais que tinham tomado a palavra, que, sendo gente que usava a pílula, que fazia amor e não a guerra, estavam a poder serem pilotos de automóveis, assim como elas igualmente manobravam máquinas de lavar, aspiradores e outros electrodomésticos. E era o que fazia diferença em relação aos ‘patriarcas’ lá de casa, em relação à geração anterior: foram novos usos que os modernizaram, os tornaram autónomos nas suas vidas e portanto críticos dos ‘antiquados’ que coarctavam essa autonomia, que muitos nem sequer saberiam das novas possibilidades que estavam à vista, que as televisões, o cinema e as músicas todavia mostravam. Sociedade de consumo? há que perceber que para muitos foi acesso a um nível novo de conforto na vida, que saber pilotar máquinas dá uma capacidade de autonomia inestimável, terá sido um dos motores do que se abriu na grande alegria de Maio (que Junho acinzentou), uma brecha, com riscos, mas que não se deve fechar (Cohn-Bendit).
[texto editado pelo Público on-line em 20 de maio 2018]

Em 1968, Marx já tinha 150 anos
4. A coincidência de passarem 200 anos sobre o nascimento de Karl Marx leva a perguntar pela ‘pertinência marxista’ da grande greve do Maio 68 francês. Que não foi leninista, parece claro: os acordos de Grenelle entre o governo gaullista e os sindicatos, “em que, segundo Jorge Almeida Fernandes, os trabalhadores obtiveram uma inimaginável vitória, em termos salariais e de horário, mas também de liberdade [...] criação dos comités de empresa” (Público de 5/5/18), representariam – “numa sociedade de abundância e em crescimento, no auge dos ‘Trinta Gloriosos’” (ibidem) –, pode-se dizer, o auge do reformismo social-democrata, mas que a escola de Chicago de Milton Friedman se encarregou de recuperar para o capital, a cavalo da nova vaga industrial electrónica. Há que distinguir duas descendências do marxismo na viragem para o século XX, uma que procurou seguir a critica do capital de Marx e teve que se adequar à evolução das sociedades industrializadas, o reformismo social-democrata, e outra que não tinha que ter em conta as lições de O capital por se tratar de sociedades de predominância agrícola mais ou menos feudal na Rússia ou na China, e que, nos seus períodos ‘leninista’ ou ‘maoista’, o que fizeram foram formas aceleradas de industrialização à base da “ditadura do proletariado” exercida pelo Estado que se acentuou muitíssimo (também como repressão) quando a teoria previa que se dissipasse, tendo culminado a partir de certo momento em estruturas capitalistas (que na China mantiveram uma tradição estatal de mais de dois milénios de burocracia mandarim disseminada por todo o território).
5. Porquê a social-democracia ou o reformismo marxista, vilipendiado pelos leninistas (nomeadamente por ter largado a nacionalização de toda a propriedade industrial) como se só houvesse um tipo de sociedade e como se o leninismo fosse marxista, ou seja, porque é que a revolução não vingou como Marx preconizou? Não sei discutir a dimensão económica desta questão, mas percebeu-se em Portugal nos anos 80 que esse tipo de revolução – como a houve na pequena Cuba, mas igualmente um pais sem indústria – não era já possível nas sociedades contemporâneas. Vejo duas razões ‘filosóficas’. Uma delas é que não se pode prescindir do mercado como estrutura de troca em sociedades razoavelmente complexas, já que da parte dos cidadãos o dinheiro é um mecanismo de liberdade de escolha, ainda quando os orçamentos familiares são curtos; ora, essa complexidade implica alguma autonomia entre as redes bancárias e financeiras e a dimensão politica, tanto mais quanto esta estiver dependente de eleições democráticas e de liberdade de expressão (vê-se bem nas autocracias actuais, Rússia, Turquia, Hungria, Polónia). A segunda razão liga-se à primeira, o capitalismo ganhou porque inovou fortemente em termos industriais e propôs, por exemplo acima, automóveis e electrodomésticos que justificam que se queira ter melhores salários. Não tenho dúvidas de que Marx não podia prever isso, ele nem sequer soube das possibilidades extraordinárias que a electricidade iria dar à indústria capitalista.
6. A célebre IX tese sobre Feuerbach, que os filósofos só o que fizeram foi interpretar o mundo, quando o que se tratava é de o mudar, é ingrata em relação à filosofia. Marx pensava talvez nos pensadores europeus até Kant (sem atender a que este separara filosofia e ciências, enquanto Newton, por exemplo importante em termos de ‘mudar o mundo’, se considerava filósofo e cientista), mas tendo o exemplo de Hegel diante dele, em que a filosofia levava a melhor sobre a história, o direito e a economia. Ora, Marx concebeu o seu materialismo histórico e dialéctico como uma forma de filosofia com história e economia[2] e é destas dimensões científicas que lhe veio o motivo de revolução, dependendo esta necessariamente das suas circunstâncias, imprevisíveis (como ele próprio diz no prefácio de 1872 ao Manifesto do Partido Comunista)[3]. Sendo assim, o que propus como razão de ser da grande efervescência de há 50 anos, a mudança dos usos pelos carros e máquinas eléctricas, acaba por bater certo com uma perspectiva marxista incidindo, não na esfera da politica, a não ser no que aos acordos de Grenelle diz respeito que foi sol de pouca dura, mas no que se poderia chamar a esfera antropológica da reprodução, para não dizer do erotismo, além da reprodução biológica propriamente dita.
7. Já agora, num bom artigo de jornal sobre Karl Marx do jornalista Manuel Carvalho no mesmo número do Público, em que cita algumas valorizações inesperadas de Marx pelo deputado Paulo Rangel do PSD, uma delas é para dizer que “a ideia de que são os factos económicos que explicam os comportamentos humanos em geral e o próprio sistema politico foi o seu principal legado”. A fórmula tradicional era “não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social [a economia] que inversamente determina a sua consciência”, com a palavra feitiço determinação que Derrida detestava mas merece alguma consideração, comparando-a com duas outras etimologicamente equivalentes, ‘definição’ e ‘delimitação’: as três dizem limites, fronteiras (fines), términos, mas apenas ‘determinação’ tem igualmente um sentido de ‘causalidade’, que se poderia dizer ‘substancialista’ não fora esta relação com os outros dois termos que dizem ‘limites’; o que parece resultar desta comparação é que determinação diz a causalidade dentro dos limites nos quais ela se exerce, isto é, determinação de possibilidades de movimento, que é justamente o que as ciências dão a conhecer. Precisado assim o sentido, o que é que a economia determina? Por exemplo, a vontade de comer que nos leva a sentarmo-nos à mesa? Ou esta releva da nossa anatomia, ‘determinada’ pela lei da selva? É a economia que determina a nossa anatomia ou pelo contrário a anatomia que determina parcialmente a economia, obrigando-a antes de mais a instituir redes produtivas e comerciais de alimentação e a que os salários pagos em geral sejam suficientes para alimentar as famílias? Deve-se mesmo dizer que esta determinação implica uma prioridade absoluta da ciência económica, a da eliminação da fome. Este primeiro argumento, que se pode estender a outras necessidades biológicas ou anatómicas como habitação e segurança, implica que não haja nenhuma instância determinante: atribui-la à economia significa cortar com a biologia, opor a esta as ciências das sociedades.
8. Venhamos agora à determinação da ‘consciência’ pela economia. Aqui, além do argumento anterior voltar – se a consciência pertencer à anatomia cerebral –, parece que o velho marxismo cedeu à metafísica dualista, na medida justamente em que este argumento procura contrariar esse dualismo, sem ter neurologia nem filosofia da linguagem que lhe pudesse ajudar a construir o argumento. É onde a formulação de P. Rangel é mais inteligente, substituindo a consciência pelos comportamentos humanos, que seriam ‘explicados’ e não determinados pelos factos económicos. Insuspeito de marxismo, parece que Rangel aceita esta ‘explicação’ como legado recebido por não marxistas, o que torna a questão mais interessante ainda. O que entender por ‘factos económicos’? Por um lado, exclui factos de dimensão politica e cultural ou ideológica, por outro parece restringir a ‘instância económica’ geral a ‘factos’, que se possam confrontar com ‘comportamentos humanos’, porventura às incidências da actividade económica de cada humano nos seus comportamentos; mas por outro, que esses factos também expliquem o sistema politico, deixa o económico igualmente do lado do sistema, não apenas dos factos. Serão então os comportamentos humanos, enquanto ‘explicados’ (e não ‘determinados’), que pedem explicação: ora, eles foram aprendidos em unidades locais, família, escola e arredores antes de instituições onde se trabalhe, mesmo o que se revele da ordem da especialização profissional dificilmente se desliga não apenas das outras aprendizagens como das idiossincrasias de cada um. Aprendidos embora nos seus percursos na tribo, os comportamentos humanos fazem parte do enigma estrutural de cada um, não são explicáveis por distinções entre anatomia, económico, político, social, cultural, mas as aprendizagens fizeram-se dentro de possibilidades que se foram alargando e restringindo – novas possibilidades eliminam outras abertas anteriormente – ao longo da vida (o que é sobremaneira grave é o que acontece àqueles que nascem em condições tribais que desde logo têm possibilidades muito restringidas, à beira da miséria e da fome). É por isso impossível pretender que os ‘factos económicos’ que implicam dimensões diversas, quer biológicas quer aprendizagens antropológicas como andar e falar, determinem ou expliquem esses comportamentos humanos. Os linguistas soviéticos discutiram nos anos 30 o lugar da língua na formação social e Estaline decidiu a questão dizendo que a língua não pertence à super-estrutura. Ora, como a língua está em todas as instâncias sociais, é o próprio conceito de super-estrutura e da sua oposição à infra-estrutura que se desvanece. Por seu lado, a ‘consciência’ enquanto forma susceptível de ser factor social releva da fala, é a auto-afectação pela própria voz (Derrida), aquilo a que Damásio chama ‘mente’. Com tudo o que as ciências hoje nos ensinam, sabemos demais para continuar a acreditar em determinações que determinem: as determinações que há, os limites de possibilidades, não têm factores singulares a determiná-las, são, por assim dizer, pluri-determinadas.



[1] Com alguma igualdade de salários : quando em outubro de 68 fui trabalhar num laboratório de física nuclear como operador de computador, tendo direito a um salário superior ao dos meus colegas por ter uma licenciatura, foi-me proposto baixar o meu em proveito do dos outros, para ‘trabalho igual, salário igual’.
[2] Lenine ter-lhe há dado uma dimensão exclusivamente política, creio eu que nunca o consegui ler.
[3] “Apesar das circunstâncias terem mudado muito no de­curso dos últimos 25 anos, os princípios gerais expostos neste Manifesto conservam ainda hoje a sua exac­tidão nas suas grandes linhas. Haveria que rever, aqui e ali, alguns detalhes. O pró­prio Manifesto explica que a aplicação dos princípios dependerá em todo o lado e sempre das circunstâncias históricas dadas, e que, por consequência, não há que atribuir im­portância demasia­da às medidas revolucionárias enumeradas no final do capítulo 2. Esta passagem seria hoje, em bastantes aspectos, redigida de forma diferente”, es­cre­vem Marx e Engels no prefácio que redigiram para a re­edição de 1872 do que conside­ram um “documento his­tórico que não nos atribuímos já o direito de alterar” (K. Marx et F. Engels, Manifeste du Parti Communiste, trad. de Laura Lafargue, Éditions Sociales, 1962, p. 9-10).

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