quarta-feira, 9 de maio de 2018

Exercício em torno de H2D



1. isto é, em torno dos três pensadores que me inspiram, foram eles que fizeram o percurso até ao motivo de cena fenomenológica (que em Le jeu des Sciences é o que dá o título ao capítulo sobre eles e Prigogine): devo partir de Husserl ou recuar até ele? Ambas as hipóteses podem ter as suas fecundidades.
2. Não há dúvida de que o ponto forte de partida é a intencionalidade enquanto anulação da oposição sujeito / objecto: sem este na sua exterioridade, não há consciência, não há sujeito, não há pensamento, não há Cogito. O conhecimento é prévio, é condição do pensamento; é portanto condição de um e do outro que o mundo de objectos exista, embora venha a ser reduzido na sua empiricidade[1]. Mas tratando-se de ‘objecto’, como Heidegger dirá, está-se já na filosofia, Husserl repete a definição que retira o ‘objecto’ do contexto, do mundo que está na origem dos ‘objectos’. Ou seja, estes são objectos de percepção, visual ou manual, mas inertes (tal como sucede nos exemplos dos filósofos europeus, ao contrário dos medievais que exemplificavam com cavalos), sem movimento nem tempo, encaminham-se para essências ideais; é nesse caminho que encontram a linguagem do juízo categórico que torna possível o nível básico do conhecimento: S é P (sujeito é predicado), S substantivo (trata-se de um objecto) é P adjectivo (qualidade a definir), sendo que o ‘é’ não é dado na percepção, diz Husserl, Heidegger levou-o para o Ser que o tal objecto, mas este ‘é’ pertence à linguagem filosófica da definição, a chamada ‘cópula’, nem sequer é verbo (não tem tempos nem modos); fora da definição é uma forma verbal que permite dizer a existência (das coisas do mundo), e por isso também dizer a ligação (cópula) entre os substantivos e os adjectivos, as coisas e o que conhecemos delas, o que elas são enquanto tais, a sua espécie. Dirá um dia Lyotard que os limites de Husserl são os de a consciência que ‘constitui’ intencionalmente objectos não poder constituir nem o Ser (Heidegger) nem o Outro (Levinas).
3. Heidegger fez cair as fronteiras entre o objecto e o seu contexto, retirando o ‘sujeito filosófico’ do conhecimento (como Kant retirara a ‘alma’), substituiu-o pelo Dasein, o humano enquanto sendo no seu mundo, introduziu o tempo e o cuidado, este implicitando quer o trabalho quer a linguagem. O Ser é colocado desse lado do mundo, do lado que o dá, implicitando também o nascimento, só explícita a morte, mas como antecipação, não como facto empírico, tão implícito na temporalidade como o nascimento: mas o que é fortemente implicitado com a temporalidade é o movimento, nos seus exemplos as plantas (flores e frutos na leitura que faz da Physica de Aristóteles) mais do que os animais, que me lembre. Mas aí vai-se o conhecimento, a biologia não o interessa mais do que as outras ciências, o mundo dos humanos é aonde eles são projectados, afectados, compreendendo-o por aprendizagem prévia (pré-compreensão) e com discurso que interpreta essa compreensão, o que indicia – em Ser e Tempo – diferença entre compreender e dizer:  a linguagem será cada vez mais importante, sobretudo a meditação da historicidade de palavras gregas e alemãs arcaicas. As coisas também são temporais, não apenas os humanos, em Tempo e Ser  não são já dadas pelo neutro Ser da diferença ontológica, mas ‘ser e tempo’ de cada coisa são-lhe dados pelo Acontecimento (ontológico: Ereignis), mais perto pois do contexto, do nascimento ou do fabrico. Mas só mais perto, já que ele não chega a dizer que o Dasein humano éa dado pelo Ereignis, apesar do motivo da pro-dução (que será sobremaneira das coisas, não dos vivos?). A grande descoberta do II Heidegger é o retiro da doação: o que dá ente deixa-o ser, dissimula a sua força doadora, deixa ser o ente em sua autonomia, em sua temporalidade, motivo estrutural da cena fenomenológica[2]. O que é crucial no motivo do Acontecimento é a pluralidade da doação, quase larga o cordão umbilical à ‘criação’, à ontoteologia, abre o desenho da cena fenomenológica (sem as especificações que lhes vêm dos diversos níveis científicos), mas ainda sem algo que lhe é essencial, as relações entre os entes, que permanecem uma ‘população’ sem organização, digamos assim: Ser e Tempo não sabia o que fazer do outro Dasein, do Mitsein.
4. E é onde Derrida decide, com a différance e a trace. O que ele traz consigo e lhe permite revolucionar o campo husserlo-heideggeriano é a predominância da linguística no alvoroço estruturalista da época, aliança da filosofia com várias ciências sociais e humanas mas batendo com a cabeça no muro do tempo que Heidegger abrira: a différance e a trace não teriam sido possíveis se se tratasse apenas de filosofia, sem essa aliança. Ora, na primeira parte da De la grammatologie, ambos os motivos avançam sem que a diferença entre ambos seja esclarecida, pelo menos que eu tenha dado por isso. Com efeito, ele pretende que entra pela linguística, pela linguagem, mas que poderia entrar doutra maneira, que é apenas uma questão de estratégia, assim como repetirá frequentemente que a différance e a trace têm muitos outros parceiros, marca, marche (degrau, caminhar), suplemento, e por aí fora, consoante o (con)texto, as oposições a desconstruir. Ora bem, é claro para a différance que ela vale para a linguagem, com o seu jogo entre ‘e’ e ‘a’, entre oral e escrita na poesia e na literatura mas também na filosofia, por onde a gramatologia entrou com uma nova questão vinda desde o Fedro de Platão; mas valerá igualmente para a biologia e seu pro-grama genético? Por certo, que ele tem retenções e adiamentos como os textos de língua, no metabolismo celular, ou na embriologia. Quando muitos anos mais tarde, conversando com Elisabeth Roudinesco, Derrida falará da trace vivante, do rasto vivo, deixa transparecer que a sua proposta gramatológica de que o rasto é sempre prévio ao ente vale para os vivos mas não é claro que valha para os inertes, para as rochas ou para os oceanos e atmosferas, como se houvesse uma ruptura entre os astros em geral e a vida terrestre, entre a física e a química inorgânica por um lado e a biologia bioquímica por outro: as ciências a interferirem na filosofia.
5. Para esclarecer esta questão inesperada, vejamos o que é que a trace ou rasto acrescenta à différance. A noção de ‘vestígio’ (trace em francês) implica que este é um sinal ‘presente’ de algo de ‘ausente’ que o precedeu como seu motivo, algo que ‘risca’: um risco é um vestígio de um giz, de um lápis que já não está lá e deixou marca, um traço. Esse ‘ausente’ que deixou ‘presentes’ trabalhou, gravou, imprimiu, inscreveu. Outro produziu este, há relação entre o que se nos dá como presente e o ausente que o deu. Exemplo maior: a aprendizagem da linguagem, quando alguém fala aqui e agora, houve antes quem tenha falado, cujas falas ausentes se inscreveram neste presente, que é vestígio delas. Ora, esse ‘ausente’ que fez não é puramente ausente, embora sem ser presente : está retirado, está lá sem estar, como antepassado (os antepassados não passam, retiram-se). Motivo heideggeriano, sim, mas que largou o Ser e o Ereignis Acontecimento, largou o nível da ‘diferença ontológica’, transpôs-se para o das relações entre entes, para o trabalho que há entre eles, de geração nomeadamente, exemplo importante.
6. Voltemos à questão que dissemos inesperada, entre química mineral e bioquímica. Dois átomos de hidrogénio e um de oxigénio trocam electrões de maneira a formar-se uma molécula de água (H2O), de tal maneira forte que acima dos 100 graus prefere desliquidar-se e gaseificar-se, perdendo as forças electromagnéticas da liquidez, do que desfazer a molécula, vai às nuvens, chove e volta ao mar, máquina a vapor, sempre se guarda como água, tão importante na nossa biologia: dá para pensar que uma molécula de água é ‘vestígio’ de dois mais um átomos que a deram? Que da aproximação deles resultou a transformação desses átomos numa nova molécula, sendo essa transformação o trabalho do rasto? dizer que electrões, que são os elementos chave das transformações químicas, se inscrevem numa molécula com novas qualidades, fazendo-a? Mas os átomos estão presentes na nova molécula! Outro fenómeno curioso, tão importante na nossa civilização, a electricidade é uma corrente de electrões que correm através das moléculas dum cabo metálico, por exemplo, sem se fixarem nele; são transporte de energia que algo produziu que não está lá já, uma turbina de barragem hidráulica, por exemplo: pode-se pensar gramatologicamente que a corrente é vestígio da pressão da turbina? Não será reduzir o rasto à causalidade física? E a corrente ionizada dos sistemas neuronais que gravam o que se aprende em sinapses, vestígio aqui de sons ouvidos ou de pessoas vistas e acarinhadas retiradas de tal maneira que a activação dessas sinapses se fará jogando numa circunstância diferente, sem que se saiba desses antepassados? Por ora, não sei responder, nem sim nem não (talvez não); nem sequer sei como é que a doação retirada heideggeriana, desviada da diferença ontológica para o nível dos fenómenos, será adequada a estes químicos e eléctricos. Já que estamos na bioquímica, as suas moléculas orgânicas são exemplos muitíssimo mais complexos do que a da água, com o inconveniente de se degradarem mais facilmente. Mas o que decide do rasto vivo’ é a célula enquanto conjunto com autonomia – a do seu metabolismo, que resulta da alimentação de novas moléculas – de se auto-reproduzir: onde parece certo que a célula que se divide em duas fica antepassada das suas ‘filhas’, estas vestígios dela, rasto ausente com efeitos presentes. Ora, entre uma qualquer molécula orgânica, à base nomeadamente de moléculas de carbono, e uma célula que se reproduz, há uma molécula particular (não, não é o ADN), um ribo, que tem a propriedade de ‘sintetizar’ outras e de permitir assim o metabolismo e portanto a alimentação, o ácido ribonucleico (ARN): será nestas moléculas, e derivadamente nos ácidos desoxiribonucleicos (ADN), que perderam um oxigénio (desoxi) – bem gostaria de saber as incidências dessa perda, nunca li ninguém a explicá-las – que estará o segredo irredutível da trace vivante de Derrida; o ARN será um escritor de moléculas celulares, segundo Barbieri há um jogo complexo de ribos a jogarem no metabolismo. E a questão que fica é: entre a água e o ARN, não haverá rastos que levem à vida? Não só não sei responder, não sei que chegue das duas químicas, do que as une na ciência química, como muito me admiraria que houvesse quem saiba suficientemente de bioquímica e de gramatologia para poder responder. Também não sei prever o que se ganharia com uma resposta positiva.
7. Motivo heideggeriano, sim, mas que largou o Ser e o Ereignis Acontecimento, largou o nível da ‘diferença ontológica’, transpôs-se para o das relações entre entes, para o trabalho que há entre eles, de geração nomeadamente, escrevi acima : mas não só. Também se transpôs para a diferença entre o pensar/dizer e o ser que se pensa/diz, essa diferença que Parménides dissera ser o mesmo[3]. Extraordinário percurso da desconstrução que reabilita um dos grandes pensadores gregos, que o plurilinguismo do helenismo arrumara, o que depois fôra acentuado pela tradição cartesiana até Husserl. Todavia Platão e Aristóteles eram-lhe fieis. Platão : no Sofista, pensamento e discurso são o mesmo (263e), discurso não pode ser sobre nada (262e); Aristóteles : ousia é primária (substância) e secundária (essência), o que o latim separou é o ‘mesmo’ em grego. Regressar a Parménides, como Heidegger não ousou ou conseguiu, foi a proeza de Derrida: não há fora de texto (De la grammatologie, p. 227). Quando penso/digo ‘o cão comeu o osso inteiro’, a palavra ‘cão’ traz consigo um dado cão indicado pelo artigo definido, assim como ‘osso’, enquanto que ‘inteiro’ traz uma qualificação aplicada ao osso. Do contexto, o pensamento/dito não pensa/diz nada, aquilo a que se chama o ‘referente’, onde,  quando, de dia ou de noite?, se o cão estava com fome ou pelo contrário saciado, etc; naquela frase da dita ‘realidade’ só se pensa o que é dito, e sempre se pensa quando se constata que o osso foi inteiramente comido por aquele cão, da mesma maneira como qualquer cozinheiro, ainda que conversando, pensa cada gesto da sopa que está fazendo ainda que não ‘diga’ nada, mas revelando-o quando adiante disser, ‘estava distraído, não acendi o lume’, não pensou o gesto dos fósforos e do gás. E como não se pensa senão na sintaxe duma língua, dizendo mentalmente, tudo o que se faz é pensado em texto mental, ainda que distraidamente, a guiar por exemplo de quem também pode conversar. O que não deixa de ser engraçado, é como para retornar a Parménides, Derrida teve que ir roubar ao não parmenidiano Husserl[4] a sua ‘redução’ para a aplicar à linguagem, à diferença entre os sons e as suas diferenças significantes, para poder retirar a ‘subjectividade’ do pensador/falador do texto que ele pensa/diz, e também retirar as coisas, podendo assim instaurar a lei da verdade, tal que também permite mentir: só posso mentir, se o que eu digo sem ser em flagrante, parecer verdade. As falas sobre o que se passou têm a mesma condição das escritas, trazem pensamento, dito e factos. A condição da mentira é que o que conta seja verosímil, possa passar como verdadeiro, era a condição que Aristóteles propunha para as narrativas das tragédias (a ficção é uma mentira). A mentira não é uma questão entre as palavras e as coisas, nem entre as frases e os ‘factos’, palavra esta que releva da semântica do verbo fazer, entre o que se conta, uma narrativa, e os factos contados: é uma questão entre dois textos que contam os mesmos factos de maneira diferente, o que não impede que se possa reconstituir e provar a falsidade, mediante leitura de indícios dos factos.
8. Como é que a gramatologia de Derrida arrematou a sequência Husserl / Heidegger nesta minha maneira de ler numa fenomenologia geral? Se tenho razão em considerar as invenções da definição filosófica e do laboratório científico como as duas etapas decisivas da aventura ocidental do conhecimento, há que reconhecer que o gesto decisivo de Husserl de pôr a intencionalidade esbarrou com o laboratório e com Galileu, na Origem da geometria percebe-se que é ele que interrompe a continuidade da história desta: o laboratório põe os ‘objectos’ em movimento como a grande objecção ao conhecimento, torna impossível uma percepção pura (já que introduz o tempo na geometria, como medida do movimento laboratorial), Husserl veio aquém do laboratório. Igualmente, o gesto decisivo de Heidegger é regressar aquém da definição (inventada por Sócrates, ele privilegia os mal chamados – ele acha – pré-socráticos), inclusivamente a sua leitura tão fina da Physica de Aristóteles, o grande filósofo definidor, tem que recorrer a Heraclito – “a phusis (o Ser) gosta de se esconder” – para encontrar o retiro  da doação do Ser. Mas ambos os H2 ficaram do lado dos ‘entes’ como questão primordial do conhecimento, ainda que se tratasse dos humanos. Foi essa amarra que a introdução da questão da escrita virou do avesso, relendo a antiga aliança entre literatura e filosofia[5]: com a força da différance que recebera da redução husserliana, ele colou o nome à percepção da coisa, acompanhando a inversão que já Heidegger lhe infligira (pondo a intuição categorial – a do juízo sobre o percebido – como prévia à intuição sensível, a da percepção), estendendo essa temporalidade à dos textos que não fazem mais nada do que dizer o mundo, os próprios falantes incluídos neste: os humanos falam e escrevem entre si e assim se entendem no conhecer e no agir e no fazer e no amar e no cantar... Que não nos lembremos do que se passou connosco antes dos 3 anos, no tempo da in-fância, da não-fala, é sem dúvida consequência de que a linguagem toma conta de nós, torna-nos espontaneamente inteligentes ao aprendermos dos outros as primeiras possibilidades de os conhecermos e ao mundo deles. “Não há fora de texto”: tanto diz que o que vamos sabendo é sempre particular, parcelar e parcial, e por tanto incompleto, como diz que há muito mais mundo a saber, a conhecer, que essa viagem é sem fim, é a nossa finitude.
9. Heidegger lera palavras históricas, gregas e alemãs, filosofara sobre as etimologias, deixando-as fora do contexto, como se ainda guardasse um pé na definição abandonada. Derrida não lê palavras nem frases (como os silogismos da lógica aristotélica), lê as palavras e as frases nos textos que conhecem, melhor ou pior, o mundo que dizem. O texto liga as sintaxes das frases em sequências textuais mais ou menos longas que interferem entre si, no curto como no longo contexto, sem regras gerais, a gramática textual a ter que ser esclarecida de cada vez, o que ele faz constantemente, infatigavelmente, saltando dum para outro texto que se repercuta no que está lendo, inventando de cada vez o rigor da leitura que o texto lhe pede. ‘Sintaxe’ é a ordem (taxis) de con(sin)junto das palavras numa frase, mas como as frases num texto dado jogam umas sobre as outras, a polissemia das palavras (que os dicionários registam como variações de significado) é no texto que se situa, irradia consoante as vizinhanças, próximas ou não. Em campos semióticos delimitados, quer Lévi-Strauss (os mitos ameríndios) quer Barthes (um texto literário, S/Z), jogaram com um motivo de código para discernirem estes efeitos de diferenças de sentido. Mas em Derrida este jogo de diferenças adentro do texto e com outros textos vizinhos desfaz qualquer lógica susceptível de cientificidade, de proximidade paradigmática, é derrotante para qualquer leitor. É porventura esta complexidade que Platão teme no Fedro, que o leitor – que não tem o escritor ao lado para lhe responder às dúvidas – se veja tentado a fazer como os rapsodos que são capazes de recitar Homero de cor mas tal hábito de memorização absorva neles a capacidade de pensar autonomamente. O texto como contexto é o que resiste à definição, tal como resiste à memória, é o que se presta ao esquecimento. Então o que Derrida objecta a Platão leva a propor que o nosso conhecimento do mundo e das suas coisas é feito de memória, de inscrição aprendida, misturada de esquecimentos devidos à própria temporalidade corporal dos processos, como todos sabemos – e mal nos iria que nos lembrássemos de tudo o que dizemos e ouvimos, escrevemos ou lemos – que de nos esquecermos disto ou daquilo quantas vezes nos lamentamos. Freud também fazia parte da aliança de Derrida.
10. A maneira como Damásio chamou mente à internalidade da rede neuronal a que só o próprio tem acesso ajuda a perceber que, por um lado, se trata de fenómenos químico-eléctricos, de sinapses inscritas por aprendizagem (E. Kandel), e que, por outro, é aquilo que nos é mais pessoal, aquilo que cada um de nós mais privilegia no que é, no que ama, no que pensa, no que busca, aquilo que sempre a filosofia e o cristianismo privilegiaram como intelectual, espiritual, mental: Damásio articula assim como mesmo neuronal o que sempre foi ao longo dos séculos dito e pensado como duas dimensões opostas e se trata de dois acessos diferentes[6]. Uma reflexão equivalente se pode fazer a partir duma caracterização do humano pelo filósofo José Gil como “uma respiração que fala” (As metamorfoses do corpo). A respiração é um processo de conduzir o oxigénio a cada uma das células, que será captado como fonte de energia do metabolismo celular, donde o movimento do vivo. Falar é por seu lado transcender a situação orgânica da mente e entender-se com a mente de outro. A palavra grega pneuma, sopro, como ruah em hebreu e spiritus em latim, que o cristianismo traduziu por ‘espírito’, mantém na sua letra relação à respiração, sem a qual não há fala: articula igualmente opostos tradicionais da filosofia. Poderíamos ousar: respiritual, neuromental. Estes dois termos dizem como se movem os humanos com células a carbono e como nunca se moverão os robots a sílica dos inteligentes do Vale da Sílica que nos ameaçam o futuro, dizem o que eles não sabem mas que salta à vista dum idiota como eu.



[1] Condição, ver-se-á com Derrida. para se poder falar com a mesma palavra ‘cavalo’ de muitos cavalos empiricamente não idênticos. Os nomes e palavras afins são o primeiro e fundamental exemplo de redução, o que Husserl não viu e não interessou Heidegger, mas culminou em Derrida no “não há fora de texto”.
[2] É o que ignora quem o repudia por causa do nazismo, que é uma nódoa intelectual (não um crime !), insuportável justamente por causa desta descoberta. Enquanto que o antisemitismo que durou até à velhice, Sibony (Question d’être entre Bible et Heidegger) mostrou que resulta de ele ser um ‘pensador judeu’ que se ignora, excepto numa zona qualquer ‘inconsciente’ onde se gera o antisemistismo.
[3] Derrida trata dessa questão no texto Le supplément de copule. La philosophie devant la linguistique, Marges, em que discute a relação entre categorias de pensamento e categorias de língua tal como o grande linguista Émile Benveniste (em Problèmes de linguistique générale) os fizera encontrar nas Categorias de Aristóteles e na sintaxe da língua grega.
[4] Mas a intencionalidade é o início do gesto de retorno ao velho filósofo grego.
[5] Com cúmplices como Nietzsche, Freud, Blanchot, Mallarmé, Bataille, Ponge, tantos outros.
[6] No debate com Changeux (Ce qui nous fait penser. La nature et la règle, há tradução port.), Ricœur propõe-lhe esta diferença de textos, aqueles que eu digo de mim e aqueles que dizem sobre o humano em geral, mas Changeux nâo entendeu a objecção. Dirá em Portugal em entrevista a Ana Gerchenfeld (Público) que espera que um dia os neurologistas possam ler o que os seus pacientes pensam, contra a futura proposta de Damásio.

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