1. isto é, em torno dos três pensadores que me
inspiram, foram eles que fizeram o percurso até ao motivo de cena
fenomenológica (que em Le jeu des Sciences é o que dá o título ao capítulo sobre eles e Prigogine): devo partir de Husserl
ou recuar até ele? Ambas as hipóteses podem ter as suas fecundidades.
2. Não há dúvida de que o ponto forte de partida é
a intencionalidade enquanto anulação da oposição sujeito / objecto: sem este
na sua exterioridade, não há consciência, não há sujeito, não há pensamento, não há Cogito. O conhecimento é
prévio, é condição do pensamento; é portanto condição de um e do outro que o
mundo de objectos exista, embora venha a ser reduzido na sua empiricidade[1].
Mas tratando-se de ‘objecto’, como Heidegger dirá, está-se já na filosofia,
Husserl repete a definição que retira o ‘objecto’ do contexto, do mundo que
está na origem dos ‘objectos’. Ou seja, estes são objectos de percepção, visual
ou manual, mas inertes (tal como sucede nos exemplos dos filósofos europeus, ao contrário dos medievais que exemplificavam com cavalos), sem
movimento nem tempo, encaminham-se para essências ideais; é nesse caminho que
encontram a linguagem do juízo categórico que torna possível o nível básico do
conhecimento: S é P (sujeito é predicado), S substantivo (trata-se de um objecto)
é P adjectivo (qualidade a definir), sendo que o ‘é’ não é dado na percepção,
diz Husserl, Heidegger levou-o para o Ser que dá o tal objecto, mas este ‘é’ pertence à linguagem
filosófica da definição, a chamada ‘cópula’, nem sequer é verbo (não tem tempos
nem modos); fora da definição é uma forma verbal que permite dizer a existência
(das coisas do mundo), e por isso também dizer a ligação (cópula) entre os
substantivos e os adjectivos, as coisas e o que conhecemos delas, o que elas
são enquanto tais, a sua espécie. Dirá um dia Lyotard que os limites de Husserl
são os de a consciência que ‘constitui’ intencionalmente objectos não poder
constituir nem o Ser (Heidegger) nem o Outro (Levinas).
3. Heidegger fez cair as fronteiras entre o
objecto e o seu contexto, retirando o ‘sujeito filosófico’ do conhecimento (como
Kant retirara a ‘alma’), substituiu-o pelo Dasein, o humano enquanto sendo no seu mundo, introduziu
o tempo e o cuidado, este implicitando quer o trabalho quer a linguagem. O Ser
é colocado desse lado do mundo, do lado que o dá, implicitando também o nascimento,
só explícita a morte, mas como antecipação, não como facto empírico, tão
implícito na temporalidade como o nascimento: mas o que é fortemente
implicitado com a temporalidade é o movimento, nos seus exemplos as plantas (flores e frutos na
leitura que faz da Physica de
Aristóteles) mais do que os animais, que me lembre. Mas aí vai-se o
conhecimento, a biologia não o interessa mais do que as outras ciências, o
mundo dos humanos é aonde eles são projectados, afectados, compreendendo-o por
aprendizagem prévia (pré-compreensão) e com discurso que interpreta essa
compreensão, o que indicia – em Ser e Tempo – diferença entre compreender e dizer: a linguagem será cada vez mais
importante, sobretudo a meditação da historicidade de palavras gregas e alemãs
arcaicas. As coisas também são temporais, não apenas os humanos, em Tempo e
Ser não são já dadas pelo neutro Ser da diferença ontológica,
mas ‘ser e tempo’ de cada coisa são-lhe dados pelo Acontecimento (ontológico: Ereignis), mais perto pois do contexto, do nascimento ou
do fabrico. Mas só mais perto, já que ele não chega a dizer que o Dasein humano éa dado pelo Ereignis, apesar do motivo da pro-dução (que será
sobremaneira das coisas, não dos vivos?). A grande descoberta do II Heidegger é
o retiro da doação: o que dá
ente deixa-o ser, dissimula a sua força doadora, deixa ser o ente em sua
autonomia, em sua temporalidade,
motivo estrutural da cena fenomenológica[2].
O que é crucial no motivo do Acontecimento é a pluralidade da doação, quase
larga o cordão umbilical à ‘criação’, à ontoteologia, abre o desenho da cena
fenomenológica (sem as especificações que lhes vêm dos diversos níveis científicos),
mas ainda sem algo que lhe é essencial, as relações entre os entes, que permanecem
uma ‘população’ sem organização, digamos assim: Ser e Tempo não sabia o que fazer do outro Dasein, do Mitsein.
4. E é onde Derrida decide, com a différance e a trace. O que ele traz consigo e lhe permite revolucionar o campo
husserlo-heideggeriano é a predominância da linguística no alvoroço
estruturalista da época, aliança da filosofia com várias ciências sociais e
humanas mas batendo com a cabeça no muro do tempo que Heidegger abrira: a
différance e a trace não teriam sido possíveis se se tratasse apenas de
filosofia, sem essa aliança. Ora,
na primeira parte da De la grammatologie, ambos os motivos avançam sem que a diferença entre ambos seja
esclarecida, pelo menos que eu tenha dado por isso. Com efeito, ele pretende
que entra pela linguística, pela linguagem, mas que poderia entrar doutra
maneira, que é apenas uma questão de estratégia, assim como repetirá frequentemente
que a différance e a trace têm muitos outros parceiros, marca, marche (degrau, caminhar), suplemento, e por aí fora, consoante o (con)texto, as oposições a desconstruir. Ora bem, é
claro para a différance que
ela vale para a linguagem, com o seu jogo entre ‘e’ e ‘a’, entre oral e escrita
na poesia e na literatura mas também na filosofia, por onde a gramatologia
entrou com uma nova questão vinda desde o Fedro de Platão; mas valerá igualmente para a biologia
e seu pro-grama genético? Por certo, que ele tem retenções e adiamentos como os
textos de língua, no metabolismo celular, ou na embriologia. Quando muitos anos
mais tarde, conversando com Elisabeth Roudinesco, Derrida falará da trace
vivante, do rasto vivo, deixa
transparecer que a sua proposta gramatológica de que o rasto é sempre prévio ao ente vale para os vivos mas não é claro que valha para
os inertes, para as rochas ou para os oceanos e atmosferas, como se houvesse
uma ruptura entre os astros em geral e a vida terrestre, entre a física e a
química inorgânica por um lado e a biologia bioquímica por outro: as ciências a
interferirem na filosofia.
5. Para esclarecer esta questão inesperada,
vejamos o que é que a trace ou
rasto acrescenta à différance.
A noção de ‘vestígio’ (trace
em francês) implica que este é um sinal ‘presente’ de algo de ‘ausente’ que o
precedeu como seu motivo, algo que ‘risca’: um risco é um vestígio de um giz,
de um lápis que já não está lá e deixou marca, um traço. Esse ‘ausente’ que deixou ‘presentes’ trabalhou, gravou, imprimiu, inscreveu. Outro produziu este, há relação
entre o que se nos dá como presente e o ausente que o deu. Exemplo maior: a
aprendizagem da linguagem, quando alguém fala aqui e agora, houve antes quem
tenha falado, cujas falas ausentes se inscreveram neste presente,
que é vestígio delas. Ora, esse ‘ausente’ que fez não é puramente ausente,
embora sem ser presente : está retirado, está
lá sem estar, como antepassado (os antepassados não passam,
retiram-se). Motivo heideggeriano, sim, mas que largou o Ser e o Ereignis Acontecimento, largou o nível da ‘diferença ontológica’, transpôs-se
para o das relações entre entes, para o trabalho que há entre eles, de geração
nomeadamente, exemplo importante.
6.
Voltemos à questão que dissemos
inesperada, entre química mineral e bioquímica. Dois átomos de hidrogénio e um
de oxigénio trocam electrões de maneira a formar-se uma molécula de água (H2O),
de tal maneira forte que acima dos 100 graus prefere desliquidar-se e
gaseificar-se, perdendo as forças electromagnéticas da liquidez, do que
desfazer a molécula, vai às nuvens, chove e volta ao mar, máquina a vapor,
sempre se guarda como água, tão importante na nossa biologia: dá para pensar
que uma molécula de água é ‘vestígio’ de dois mais um átomos que a deram? Que
da aproximação deles resultou a
transformação desses átomos numa nova molécula, sendo essa transformação o trabalho
do rasto? dizer que electrões, que são os elementos chave das transformações químicas,
se inscrevem numa molécula com
novas qualidades, fazendo-a? Mas os átomos estão presentes na nova molécula!
Outro fenómeno curioso, tão importante na nossa civilização, a electricidade é
uma corrente de electrões que correm através das moléculas dum cabo metálico,
por exemplo, sem se fixarem nele; são transporte de energia que algo produziu
que não está lá já, uma turbina de barragem hidráulica, por exemplo: pode-se
pensar gramatologicamente que a corrente é vestígio da pressão da turbina? Não
será reduzir o rasto à causalidade física? E a corrente ionizada dos sistemas
neuronais que gravam o que se aprende em sinapses, vestígio aqui de sons
ouvidos ou de pessoas vistas e acarinhadas retiradas de tal maneira que a activação dessas sinapses se
fará jogando numa circunstância diferente, sem que se saiba desses
antepassados? Por ora, não sei responder, nem sim nem não (talvez não); nem
sequer sei como é que a doação retirada heideggeriana, desviada da diferença
ontológica para o nível dos fenómenos, será adequada a estes químicos e
eléctricos. Já que estamos na bioquímica, as suas moléculas orgânicas são
exemplos muitíssimo mais complexos do que a da água, com o inconveniente de se
degradarem mais facilmente. Mas o que decide do ‘rasto vivo’ é a célula enquanto conjunto com
autonomia – a do seu metabolismo, que resulta da alimentação de novas moléculas
– de se auto-reproduzir: onde parece certo que a célula que se divide em duas
fica antepassada das suas ‘filhas’, estas vestígios dela, rasto ausente com
efeitos presentes. Ora, entre uma qualquer molécula orgânica, à base
nomeadamente de moléculas de carbono, e uma célula que se reproduz, há uma
molécula particular (não, não é o ADN), um ribo, que tem a propriedade de
‘sintetizar’ outras e de permitir assim o metabolismo e portanto a alimentação,
o ácido ribonucleico (ARN): será nestas moléculas, e derivadamente nos ácidos
desoxiribonucleicos (ADN), que perderam um oxigénio (desoxi) – bem gostaria de
saber as incidências dessa perda, nunca li ninguém a explicá-las – que estará o
segredo irredutível da trace vivante de Derrida; o ARN será um escritor de moléculas celulares, segundo Barbieri há um jogo complexo de ribos a
jogarem no metabolismo. E a questão que fica é: entre a água e o ARN, não
haverá rastos que levem à vida? Não só não sei responder, não sei que chegue
das duas químicas, do que as une na ciência química, como muito me admiraria que houvesse quem saiba
suficientemente de bioquímica e de gramatologia para poder responder. Também
não sei prever o que se ganharia com uma resposta positiva.
7. Motivo heideggeriano, sim, mas
que largou o Ser e o Ereignis Acontecimento, largou
o nível da ‘diferença ontológica’, transpôs-se para o das relações entre entes,
para o trabalho que há entre eles, de geração nomeadamente, escrevi
acima : mas não só. Também se transpôs para a diferença entre o
pensar/dizer e o ser que se pensa/diz, essa diferença que Parménides dissera
ser o mesmo[3]. Extraordinário percurso da desconstrução que reabilita um dos grandes
pensadores gregos, que o plurilinguismo do helenismo arrumara, o que depois
fôra acentuado pela tradição cartesiana até Husserl. Todavia Platão e
Aristóteles eram-lhe fieis. Platão : no Sofista, pensamento e discurso são o mesmo (263e), discurso não pode ser sobre
nada (262e); Aristóteles : ousia é primária
(substância) e secundária (essência), o que o latim separou é o ‘mesmo’ em
grego. Regressar a Parménides, como Heidegger não
ousou ou conseguiu, foi a proeza de Derrida: “não há fora de
texto” (De la grammatologie, p. 227). Quando penso/digo ‘o cão comeu o osso inteiro’, a
palavra ‘cão’ traz consigo um dado cão indicado pelo artigo definido, assim
como ‘osso’, enquanto que ‘inteiro’ traz uma qualificação aplicada ao osso. Do
contexto, o pensamento/dito não pensa/diz nada, aquilo a que se chama o
‘referente’, onde, quando, de dia
ou de noite?, se o cão estava com fome ou pelo contrário saciado, etc; naquela
frase da dita ‘realidade’ só se pensa o que é dito, e sempre se pensa quando se
constata que o osso foi inteiramente comido por aquele cão, da mesma maneira
como qualquer cozinheiro, ainda que conversando, pensa cada gesto da sopa que
está fazendo ainda que não ‘diga’ nada, mas revelando-o quando adiante disser,
‘estava distraído, não acendi o lume’, não pensou o gesto dos fósforos e do
gás. E como não se pensa senão na sintaxe duma língua, dizendo mentalmente, tudo
o que se faz é pensado em texto mental, ainda que distraidamente, a guiar por exemplo de quem também pode
conversar. O que não deixa de ser engraçado, é como para retornar a Parménides,
Derrida teve que ir roubar ao não parmenidiano Husserl[4]
a sua ‘redução’ para a aplicar à linguagem, à diferença entre os sons e as suas
diferenças significantes, para poder retirar a ‘subjectividade’ do pensador/falador
do texto que ele pensa/diz, e também retirar as coisas, podendo assim instaurar
a lei da verdade, tal que
também permite mentir: só posso mentir, se o que eu digo sem ser em flagrante,
parecer verdade. As falas sobre o que se passou têm a mesma condição das
escritas, trazem pensamento, dito e factos. A condição da mentira é que o que
conta seja verosímil, possa passar como verdadeiro, era a condição que
Aristóteles propunha para as narrativas das tragédias (a ficção é uma mentira).
A mentira não é uma questão entre as palavras e as coisas, nem entre as frases
e os ‘factos’, palavra esta que releva da semântica do verbo fazer, entre o que se conta, uma narrativa, e os factos
contados: é uma questão entre dois textos que contam os mesmos factos de
maneira diferente, o que não impede que se possa reconstituir e provar a
falsidade, mediante leitura de indícios dos factos.
8. Como é que a gramatologia de Derrida arrematou
a sequência Husserl / Heidegger nesta minha maneira de ler numa fenomenologia
geral? Se tenho razão em considerar as invenções da definição filosófica e do
laboratório científico como as duas etapas decisivas da aventura ocidental do
conhecimento, há que reconhecer que o gesto decisivo de Husserl de pôr a
intencionalidade esbarrou com o laboratório e com Galileu, na Origem da
geometria percebe-se que é ele
que interrompe a continuidade da história desta: o laboratório põe os
‘objectos’ em movimento como a grande objecção ao conhecimento, torna impossível uma percepção
pura (já que introduz o tempo na geometria, como medida do movimento
laboratorial), Husserl veio aquém do laboratório. Igualmente, o gesto decisivo de Heidegger é
regressar aquém da definição
(inventada por Sócrates, ele privilegia os mal chamados – ele acha –
pré-socráticos), inclusivamente a sua leitura tão fina da Physica de Aristóteles, o grande filósofo definidor, tem
que recorrer a Heraclito – “a phusis (o Ser) gosta de se esconder” – para encontrar o retiro da
doação do Ser. Mas ambos os H2 ficaram do lado dos ‘entes’ como
questão primordial do conhecimento, ainda que se tratasse dos humanos. Foi essa
amarra que a introdução da questão da escrita virou do avesso, relendo a antiga
aliança entre literatura e filosofia[5]:
com a força da différance que
recebera da redução husserliana, ele colou o nome à percepção da coisa, acompanhando a inversão que já Heidegger lhe
infligira (pondo a intuição categorial – a do juízo sobre o percebido – como
prévia à intuição sensível, a da percepção), estendendo essa temporalidade à
dos textos que não fazem mais nada do que dizer o mundo, os próprios falantes incluídos neste: os humanos
falam e escrevem entre si e assim se entendem no conhecer e no agir e no fazer
e no amar e no cantar... Que não nos lembremos do que se passou connosco antes
dos 3 anos, no tempo da in-fância, da não-fala, é sem dúvida consequência de
que a linguagem toma conta de nós, torna-nos espontaneamente inteligentes ao
aprendermos dos outros as primeiras possibilidades de os conhecermos e ao mundo
deles. “Não há fora de texto”: tanto diz que o que vamos sabendo é sempre particular,
parcelar e parcial, e por tanto incompleto, como diz que há muito mais mundo a
saber, a conhecer, que essa viagem é sem fim, é a nossa finitude.
9. Heidegger lera palavras históricas, gregas e
alemãs, filosofara sobre as etimologias, deixando-as fora do contexto, como se
ainda guardasse um pé na definição abandonada. Derrida não lê palavras nem
frases (como os silogismos da lógica aristotélica), lê as palavras e as frases
nos textos que conhecem,
melhor ou pior, o mundo que dizem. O texto liga as sintaxes das frases em
sequências textuais mais ou menos longas que interferem entre si, no curto como
no longo contexto, sem regras gerais, a gramática textual a ter que ser
esclarecida de cada vez, o que ele faz constantemente, infatigavelmente, saltando
dum para outro texto que se repercuta no que está lendo, inventando de cada vez
o rigor da leitura que o texto lhe pede. ‘Sintaxe’ é a ordem (taxis) de con(sin)junto das palavras numa frase, mas como as frases num texto dado jogam
umas sobre as outras, a polissemia das palavras (que os dicionários registam
como variações de significado) é no texto que se situa, irradia consoante as
vizinhanças, próximas ou não. Em campos semióticos delimitados, quer
Lévi-Strauss (os mitos ameríndios) quer Barthes (um texto literário, S/Z), jogaram com um motivo de código para discernirem estes efeitos de diferenças de
sentido. Mas em Derrida este jogo de diferenças adentro do texto e com outros
textos vizinhos desfaz qualquer lógica susceptível de cientificidade, de
proximidade paradigmática, é derrotante para qualquer leitor. É porventura esta
complexidade que Platão teme no Fedro, que o leitor – que não tem o escritor ao lado para lhe responder às
dúvidas – se veja tentado a fazer como os rapsodos que são capazes de recitar
Homero de cor mas tal hábito de memorização absorva neles a capacidade de
pensar autonomamente. O texto como contexto é o que resiste à definição, tal como
resiste à memória, é o que se presta ao esquecimento. Então o que Derrida
objecta a Platão leva a propor que o nosso conhecimento do mundo e das suas
coisas é feito de memória, de inscrição aprendida, misturada de esquecimentos
devidos à própria temporalidade corporal dos processos, como todos sabemos – e
mal nos iria que nos lembrássemos de tudo o que dizemos e ouvimos, escrevemos
ou lemos – que de nos esquecermos disto ou daquilo quantas vezes nos lamentamos.
Freud também fazia parte da aliança de Derrida.
10. A maneira como Damásio chamou mente à internalidade da rede neuronal a que só o
próprio tem acesso ajuda a perceber que, por um lado, se trata de fenómenos
químico-eléctricos, de sinapses inscritas por aprendizagem (E. Kandel), e que,
por outro, é aquilo que nos é mais pessoal, aquilo que cada um de nós mais
privilegia no que é, no que ama, no que pensa, no que busca, aquilo que sempre
a filosofia e o cristianismo privilegiaram como intelectual, espiritual,
mental: Damásio articula assim como mesmo neuronal o que sempre foi ao longo
dos séculos dito e pensado como duas dimensões opostas e se trata de dois
acessos diferentes[6]. Uma
reflexão equivalente se pode fazer a partir duma caracterização do humano pelo
filósofo José Gil como “uma respiração que fala” (As metamorfoses do corpo). A respiração é um processo de conduzir o
oxigénio a cada uma das células, que será captado como fonte de energia do
metabolismo celular, donde o movimento do vivo. Falar é por seu lado transcender
a situação orgânica da mente e entender-se com a mente de outro. A palavra
grega pneuma, sopro, como ruah em hebreu e spiritus em
latim, que o cristianismo traduziu por ‘espírito’, mantém na sua letra relação
à respiração, sem a qual não
há fala: articula igualmente
opostos tradicionais da filosofia. Poderíamos ousar: respiritual, neuromental. Estes dois termos dizem como se movem os humanos com células a carbono e
como nunca se moverão os robots a sílica dos inteligentes do Vale da Sílica que
nos ameaçam o futuro, dizem o que eles não sabem mas que salta à vista dum
idiota como eu.
[1] Condição, ver-se-á com Derrida.
para se poder falar com a mesma palavra ‘cavalo’ de muitos cavalos empiricamente
não idênticos. Os nomes e palavras afins são o primeiro e fundamental exemplo
de redução, o
que Husserl não viu e não interessou Heidegger, mas culminou em Derrida no “não
há fora de texto”.
[2] É o que ignora quem o
repudia por causa do nazismo, que é uma nódoa intelectual (não um crime !), insuportável justamente por
causa desta descoberta. Enquanto que o antisemitismo que durou até à velhice, Sibony
(Question d’être entre Bible et Heidegger) mostrou que resulta de ele ser um ‘pensador judeu’
que se ignora, excepto numa zona qualquer ‘inconsciente’ onde se gera o
antisemistismo.
[3] Derrida trata dessa
questão no texto “Le supplément de copule. La philosophie devant
la linguistique”, Marges, em que discute a relação entre categorias de
pensamento e categorias de língua tal como o grande linguista Émile Benveniste
(em Problèmes de linguistique générale) os fizera encontrar nas Categorias de Aristóteles e na sintaxe da língua grega.
[6] No debate com Changeux (Ce
qui nous fait penser. La nature et la règle, há tradução port.), Ricœur propõe-lhe esta diferença
de textos, aqueles que eu digo de mim e aqueles que dizem sobre o humano em geral,
mas Changeux nâo entendeu a objecção. Dirá em Portugal em entrevista a Ana Gerchenfeld
(Público) que espera que
um dia os neurologistas possam ler o que os seus pacientes pensam, contra a
futura proposta de Damásio.
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