sexta-feira, 27 de abril de 2018

Tempo de trabalhar e tempo de viver



1. A questão do chamado Rendimento básico incondicional (RBI) é tratada na nova revista trimestral Electra duma maneira inteligente, pondo em contraste os argumentos do filósofo André Barata que o defende em dez teses e os do “profissional de transformação digital” George Zarkadakis (grego, vive em Londres) que o critica.
2. Resumo da posição de A. Barata, a favor do RBI. “Extinção do trabalho assalariado como um horizonte futuro possível”, “desmercadorizar o trabalho, devolvê-lo ao campo das finalidades”,  “um rendimento universal independente do trabalho interrompe o ciclo forçado de opressão social”, “uma politica de rendimentos mais igualitária”, “todos contribuem de forma proporcionalmente desigual para todos beneficiarem de forma igual”, “não convite ao individualismo, mas um novo contrato social exigente”, “um novo fôlego para o projecto europeu”: estas são as sete primeiras teses, as três últimas debatendo-se com a ambivalência entre uma “social-democracia aprofundando e alargando o Estado social” e um “mero ajustamento do sistema de produção, garantia de distribuição de rendimento suficiente” para que “cada novo não trabalhador não deixe de consumir” e propondo uma “transição de paradigma”, um “compromisso pela emancipação”.
3. Resumo da posição de G. Zarkadakis, critica do RBI, que é estatista, “continua a subjugação do cidadão comum a uma oligarquia económica e intelectual (que geralmente controla o Estado)”. O Estado tem aumentado muito o seu papel na economia (como ilustram dois gráficos a propósito dos EUA), “estamos à beira de uma revolta por parte dos cidadãos do mundo desenvolvido” (como assinalam Brexit, Trump, Syriza, extrema direita alemã e austríaca, etc.). Duas opções extremas : nacionalizar a economia, isto é, comunismo; ou um “capitalismo de Estado e o RBI”, “um caminho para o totalitarismo, seja marxista ou corporativista”. Questão ética também: “a maioria das pessoas precisa de se sentir valorizada e produtiva, viver uma vida com significado”, “uma vida de ócio nos limites da pobreza pode não parecer desejável”. “Se não é o RBI, qual é afinal a solução? Usar a imaginação e pensar para além da dependência de um tal Estado, em sistemas inovadores em que a inteligência artificial , com outras tecnologias, potencie a nossa criatividade e auto-desenvolvimento, não de cima para baixo, mas de baixo para cima. Em suma, num futuro pós-trabalho, é preciso reinventar a democracia e o significado do trabalho”.
4. Da argumentação deste, retenho uma das dificuldades maior da de Barata: dirigindo-se a toda a população, como se chega lá sem ser através do domínio estatal e como consegui-lo sem conflitos imensos? Em vez de se desenhar o que será o novo ‘paradigma’, à maneira das antigas utopias, seria melhor ponderar a situação actual como ameaça de agravamento: robots e computadores criam desemprego e precariedade, sem que se possa garantir que será um processo sempre crescente que acabaria com todos os empregos (que seria o contrário dos economistas que crêem no crescimento económico para ‘depois’ distribuir, aumentando empregos, melhorando salários e subsídios de desemprego).
4. O diagnóstico deverá ter em conta não apenas o desemprego (e os subsídios) e a precariedade dos salários, mas ter em conta também o facto de a maioria dos salários que são propostos à população activa correspondem a trabalhos monótonos detestáveis para gente cada vez mais escolarizada e conhecedora das possibilidades de coisas interessantes para fazer e ter em conta ainda que frequentemente, em férias ou quando chega a reforma, muits gente fica sem saber o que fazer desse tempo todo livre. Ora, a primeira medida que se apresenta – mas tendo em conta que este tipo de questões não se ‘resolvem’ apenas ao nível de uma sociedade, terá que ser um processo civilizacional – parece ser a da diminuição dos horários de trabalho em ordem a absorver-se tanto o desemprego como a precariedade (já em 1980 reclamada por André Gorz em Adieux au prolétariat, que glosei largamente em Linguagem e Filosofia, 1987), a dificuldade sendo a de que não se tratará de medidas gerais, de leis para todas as zonas da economia nem para todas as regiões, mas provavelmente de medidas oscilantes com as conjunturas, pedindo contratos com firmeza adequada a essas oscilações e vigilâncias sindicais e de fiscalização para evitar manobras contra os trabalhadores. Sendo talvez uma etapa, já serviria para muita gente se encontrar na situação de tempo livre a mais e de ir aprendendo a gozá-lo à sua maneira, provavelmente com solidariedades de bairro, fomentando as municipalidades associações ou locais mobilados de maneira a interessar actividades muito variadas, de oficinas de reparação a casas de espectáculos, jogos e encontros. É claro que há muita gente que tem trabalhos criativos, como se diz, onde se fazem coisas apaixonantes que exigem estruturas, privadas ou públicas, que não são improvisáveis em casa ou no bairro.
5. Só a verificação de que o agravamento da situação se torna incomportável com este tipo de medidas, devido ao desenvolvimento tecnológico – que entretanto também será afectado pelas questões ecológicas e de reciclagem de materiais – é que se deverá pôr a possibilidade da criação dum tipo de RBI, mas destinado apenas a quem o preferir, a quem queira desistir de hipotéticas melhorias de salários e dum consumo melhorado para poder dedicar-se às coisas de que gosta: em vez de empregos chatos, tempo para viver. Este tipo de solução teria a vantagem de não implicar nenhum tempo de ruptura mais ou menos revolucionária, que haveria de se sujeitar a referendos de resultado incerto, como se sabe, mas sobretudo de pôr as pessoas a decidirem entre o ‘desgosto de trabalhar’ e o tempo de viver.