O que na liturgia cristã se chama Semana Santa,
entre Domingo de Ramos e Domingo de Páscoa, é a comemoração piedosa dum
acontecimento espiritual-político de há 1985 anos que foi tudo menos piedoso. Tratou-se da ocupação do Templo de Jerusalém por
uma turba que subira da Galileia, seguindo um carismático profeta e taumaturgo,
ocupação essa que calou os dirigentes do Templo devido ao apoio popular que ela
suscitou. Mas de noite, mediante traição, conseguiram prendê-lo e que fosse
crucificado. Quereria ter colocado este texto na semana que passou mas não deu.
Sucedeu que mão amiga me fez chegar o
artigo seguinte, de um filósofo e teólogo americano (Fort Wayne, Indiana) que,
com a preciosa ajuda do tradutor da Google, bastante melhor do que esperaria,
traduzi para português, deixando a referênciao inglesa para quem o leia
correntemente, o que não é o meu caso (virei analfabeto neste novo século).
Depois da versão portuguesa, coloco a minha resposta a Lance Richey.
Lance Byron Richey, University of Saint Francis,
“MarK/X After Marxism. Fernando
Belo and Contemporary Biblical Exegesis”,
The Bible and Critical Theory, vol. 8, nº 2,
2012, pp. 57-66
Resumo
Em
1974, Uma Leitura Materialista do Evangelho de Marcos de Fernando Belo, combinou idéias marxistas e estruturalistas para
descobrir os temas políticos revolucionários que ele reivindicava estarem
codificados na narrativa de Marcos. Embora saudada na época como uma estratégia
exegética visionária, ela foi amplamente esquecida na última geração. Enquanto
que algumas das preocupações teóricas e políticas de Belo são inevitavelmente
datadas, as suas contribuições para entender o ambiente social e político da
Palestina do primeiro século e como textos religiosos como o Evangelho de
Marcos operaram dentro dele merecem a nossa atenção e avaliação crítica, que
este artigo tentará fornecer. Proponho uma dupla discussão sobre a abordagem
materialista de Marcos por Belo à luz dos desenvolvimentos subsequentes tanto
da filosofia quanto da teoria social marxista. Primeiro, vou delinear e avaliar
criticamente a teoria dos textos que se
encontra na sua discussão do “conceito de modo de produção”, que
possibilita a sua exegese de Marcos como um texto político subversivo. Em
segundo lugar, explorarei brevemente o seu quadro do funcionamento específico
do “modo de produção” da Palestina do primeiro século, onde Belo vê o Evangelho
de Marcos como um desafio, dando especial atenção aos seus pressupostos
teóricos. Concluo que, embora o trabalho de Belo seja certamente limitado tanto
pelo estado da teoria quanto pelo conhecimento histórico de sua época, os seus esforços inovadores para ler o
Evangelho de Marcos como um texto subversivo permanecem altamente relevantes
para os esforços contemporâneos da exegese materialista.
Texto
Em
1974, Uma Leitura Materialista do Evangelho de Marcos, de Fernando Belo ([versão americana] 1981), combinou marxismo e
idéias estruturalistas para descobrir os temas políticos revolucionários que
ele alegou estarem codificados na narrativa de Marcos. Embora saudado na época
como uma estratégia exegética visionária, tem sido amplamente esquecido ao
longo da última geração, em grande parte devido ao colapso simultâneo do
estruturalismo como sistema teórico dominante na academia e do marxismo como
ideologia política dominante em grande parte do globo. Dada a renovação do marxismo
e da análise marxista que está a ocorrer actualmente em todo o mundo (e não apenas
na crítica bíblica), essa amnésia deve ser especialmente lamentada. Enquanto
algumas das preocupações teóricas e políticas de Belo são inevitavelmente
datadas, o seu comentário permanece uma tentativa intelectualmente empolgante e
politicamente poderosa para construir conexões entre prática religiosa, teoria
literária e acção política revolucionária. As suas contribuições para
compreender tanto o ambiente social e político da Palestina do primeiro século
como textos religiosos como o Evangelho de Marcos operando dentro dele merecem
a nossa atenção e avaliação crítica, o que este documento tentará fornecer.
Vou
propor aqui uma discussão em duas partes sobre a abordagem materialista de Belo
em relação a Marcos, à luz dos desenvolvimentos subsequentes na filosofia e na
teoria social marxista. O meu foco será fundamentalmente teórico e não
histórico-crítico, com o objetivo de avaliar os pontos fortes e as limitações
da estratégia exegética geral de Belo, em vez de abordar questões específicas
sobre o texto de Marcos. Primeiro, vou delinear e avaliar criticamente a teoria
dos textos que se encontra na sua discussão do “conceito de modo de produção” e
que possibilita a sua exegese de Marcos como um texto político subversivo. Em
segundo lugar, explorarei brevemente o seu apanhado do “modo de produção” específico operativo da Palestina do primeiro século, no qual Belo vê o Evangelho
de Marcos como um desafio, com atenção especial dada aos pressupostos teóricos
da reconstrução histórica de Belo. Concluo que, conquanto o trabalho de Belo
seja certamente limitado tanto pelo estado da teoria como pelo conhecimento
histórico da sua época, os seus esforços inovadores para ler o Evangelho de
Marcos como um texto subversivo permanecem altamente relevantes para esforços
contemporâneos na exegese materialista.
CONSTITUINDO A
SUBVERSÃO: A TEORIA DO TEXTO DE BELO
No
“ensaio de teoria formal [do conceito de modo de produção]” que prefacia o seu
estudo de Marcos, Belo escreve: “o propósito deste livro é analisar uma
narrativa subversiva [no Evangelho de Marcos] e o trabalho ideológico que já se
faz nele” (1981: 33). A abordagem metodológica para essa tarefa, escreve ele,
“é sempre ler MarK com a ajuda de Marx: K / X portanto, se o posso dizer e
prestar homenagem ao esplêndido livro de Roland Barthes, S / Z ”(Belo 1981: 6).
Barthes (1977), é claro, é apenas uma das muitas fontes da moderna teoria francesa
em que Belo joga. Belo depende especialmente do marxismo estruturalista de
Louis Althusser (1969; Althusser e Balibar, 1970), matizado pelas teorias
linguísticas e psicanalíticas de pensadores como Sigmund Freud (1961a: 1961b),
Jacques Lacan (2006), Emile Benveniste (1973) e o primeiro Jacques Derrida
(1998), bem como o não categorizável Georges Bataille (1962; 1991‐1993). De facto, o que
distingue o pioneirismo do trabalho de Belo do de tantos exegetas materialistas
e marxistas é este muito intencional e detalhado emprego de conceitos
estruturalistas, linguísticos e psicanalíticos para ler o texto bíblico.
Dada
a gama de influências no seu pensamento, mesmo um relato moderadamente
detalhado do complexo aparelho teórico é impossível aqui. Em vez disso,
gostaria de me concentrar em algumas das categorias centrais estruturalistas e
marxistas que ele emprega, uma vez que estas são mais centrais para a sua
estratégia como exegeta bíblico. Mais importante ainda, a auto-descrita “teoria
materialista dos textos” de Belo distingue entre três camadas da realidade
social no trabalho em qualquer texto:
(1) o conceito
marxista clássico da superestrutura, isto é, “o nível das formas concretas” de
actividade económica, política e ideológica como um todo que determina as
possibilidades de prática dentro de uma determinada formação social (1981: 9);
(2) a
infra-estrutura, isto é, os códigos e práticas específicas que definem os
práticas económicas, políticas e ideológicas dentro de seus próprios campos
autónomos. A última delas, a região infra-ideológica, é “constituída por uma linguagem oral articulada como um sistema ...
criado como diferente da ‘realidade’ da formação social [que] torna possível
ler essa realidade, isto é, organizá-la de acordo com classificações semânticas
específicas” (1981: 9); e finalmente,
(3) os próprios
textos individuais, especialmente textos narrativos (contendo “o discurso de
uma prática”), que são excepcionalmente bem adequados para comunicar os códigos
infra-ideológicos duma sociedade, “uma vez que a formação social é [ela mesma]
um conjunto complexo de práticas estruturadas” (1981: 30).
Segundo
Belo, esses textos narrativos individuais, operando dentro de um sistema ideológico
simbólico que é determinado pela superestrutura, tipicamente funciona “para
estabelecer e / ou reproduzir os ... códigos da formação social” e assim
perpetuam a ordem social construída sobre eles (1981:31). Esta função
ideológica dos textos, facilitando, legitimando e perpetuando a ordem social em
que eles existem, é familiar aos marxistas de todos os tipos. No entanto, Belo
insiste em que os textos podem, pelo menos em alguns casos, em vez de funcionar
ideologicamente, “subverter esses códigos para os transformar” e, desse modo,
para refletir e permitir “práticas revolucionárias [que] sejam subversivas das
estruturas da formação social” (1981: 31). É precisamente essa subversão do código
ideológico de governo que Belo visa quando fala da “narrativa subversiva e do
trabalho ideológico que já se fez em Marcos”. Mas o que é esse “trabalho
ideológico que já se fez” em Marcos? Para Belo, nenhum texto revolucionário nasce totalmente
formado para revelar de forma ideal a prática revolucionária, escreve ele – o
Evangelho de Marcos não é nenhuma excepção aqui. Pelo contrário, a relação
entre a práxis e a teoria é de carácter dialéctico. O caráter revolucionário de
qualquer texto, a sua capacidade
de desafiar e subverter o código ideológico dominante, "não aparece de
repente, mas por um processo longo e lento, uma génese : uma primeira
saída fora do fechamento ideológico que permite uma leitura daquele fechamento;
depois a escrita programática dum outro ligeiramente
diferente e portanto uma primeira prática um pouco subversiva; etc. Novas leituras,
novos escritos, novos actos subversivos” (Belo 1981: 32)[1].
De facto, Belo insiste em que o acto de escrever, de narrar a prática
subversiva, é em si um elemento constitutivo daquela prática subversiva, pois é
apenas dentro de uma narrativa (o relato de uma prática ou de uma série de
práticas) que a subversividade pode ser pensada. “Como é que o conhecimento
teórico desta prática subversiva é possível? Sendo singular, a prática é
contada em uma narrativa ou série de narrativas. … ‘Narrativa’ significa a
narrativa do acto subersivo, uma narrativa subversiva”.
Belo
pretende, quando fala da “narrativa subversiva e do trabalho ideológico que já
se fez em Marcos” (1981: 33), que o acto de narrar torna possível romper com os
códigos ideológicos dominantes e relacionar imediatamente as práticas para o
real e para a existência incarnada dos agentes, e não para a ordem simbólica
que anteriormente mediatizava e definia essas práticas. Belo escreve: “a
totalidade das forças organizativas determina os limites estritos de qualquer
prática política subversiva; a totalidade das forças inscritivas (ou a
totalidade dos textos orais e escritos) determina os limites estritos de qualquer
prática teórica subversiva. … Subversividade é [apenas] possível, então, se as
práticas em questão são deslocadas para fora do campo dos fechamentos, e se
afastam em direção aos locais materialistas do leitura” (1981: 31). Por outras
palavras, a própria possibilidade de prática política que subverte a ordem
política e económica dominante repousa sobre uma re-narrativa textual desta
prática que a interpreta precisamente como subversiva, em vez de permitir que
ela seja absorvida e definida dentro dos códigos ideológicos dominantes de uma
sociedade. Para ser ainda mais conciso: para Belo, pelo acto de narrar, o texto
subversivo identifica e cria uma prática subversiva! Belo aqui resiste à
tendência encontrada entre muitos marxistas para um rude reducionismo
economicista em todos os assuntos religiosos, exemplificado por pensadores tão
diversos como Karl Kautsky (1953) e Anton Pannekoek (2003), mas na verdade
rastreável ao próprio Marx (Boer 2010a). De facto, a realização teórica central
de Belo como exegeta materialista, sugiro eu, reside no uso que ele faz de
conceitos linguísticos para identificar a tarefa teórica que enfrenta toda a
exegese materialista. O seu “áspero esboço de uma
teoria das relações entre narrativa, prática e ideologia” [subtítulo do meu livro, FB] trata o texto bíblico como pelo menos
quase-autónomo da ordem económica e possuidor de seu próprio simbolismo interno
e necessidade lógica (1981: 5). Isso leva Belo a negar a supremacia absoluta da esfera económica que reduziria todos os textos ao estatuto de meros
efeitos ou espelhos das relações económicas (como com o reducionismo vulgar dos
primeiros teóricos marxistas da religião cristã), ainda que adoptando uma
compreensão reconhecidamente marxista e materialista do texto. Respondendo à
famosa afirmação de Engels de que as relações económicas determinam a sociedade
“em última instância”, Althusser negou até mesmo a possibilidade das forças
económicas existirem totalmente à parte da sociedade, que inclui também forças
políticas e ideológicas: “desde o primeiro momento até ao último, a hora
‘solitária’ da última instância não chega nunca” (Althusser 1969: 113). Seja
como for, a interpretação de Engels do cristianismo foi tão reducionista quanto
é comumente assumida – um recente autor argumentou que não era (Boer 2010b) –,
Belo seguiu a proposta de causalidade estrutural de Althusser ao conceptualizar
a relação da religião com a estrutura mais alargada da sociedade. Ele escreve:
“a tese de Marx de que a formação social é, em última instância, determinada
pelo modo económico da produção é formulada assim: em última análise, a
instância económica determina a formação, seja por ter o papel dominante na
mesma ou por determinar se é a política ou a ideologia que tem o papel dominante”
(1981: 26).
Para
Belo, como para Althusser antes dele, as práticas textual, política e económica
estão sempre já em relações mutuamente
determinantes dentro da totalidade social, de forma que nenhuma esfera de
práticas humanas pode nunca ter prioridade absoluta ou definitiva e
determinação sobre qualquer outra. De facto, económico, político e ideológico
são eles próprios apenas “instâncias relativamente autónomas” de práticas
humanas que são determinados, em última análise, pela superestrutura, “que em
todos os casos já sobredetermina as instâncias infra-estruturais” (Belo 1981:
9). Assim, em boa forma estruturalista marxista, Belo conclui que o Evangelho
de Marcos não é apenas uma realidade exclusivamente textual – é sempre já uma
intersecção do económico e do político, tanto como da prática ideológica na
Palestina do primeiro século. Portanto, o Evangelho de Marcos tanto reflete
como ajuda a constituir (re-narrando-a) a prática subversiva dos primeiros
cristãos. Como Belo explica: “como proclamador dos actos subversivos, a narrativa
torna possível lê-los, ampliá-los e estendê-los. A narrativa tem pois um importante
e desvalorizado papel a desempenhar numa revolução”(1981: 32). Basta a importância
deste discernimento, juntamente com a seriedade intelectual com que Belo o
analisa, para o tornar digno da nossa atenção continuada no século XXI [digamos
que o que Richey chama a minha teoria dos textos articula a análise textual de
Barthes com a histórica de Althusser, a relação do texto com a sociedade que o
porduziu, o que hoje chamo fenomenologia histórico-textual, FB].
Uma
vez que ele tem a nossa atenção, o que deveríamos dizer hoje sobre o quadro
teórico em que Belo constrói a sua “leitura materialista de Marcos”? Como a discussão
já mostrou, ler Belo é entrar inteiramente no reino da grande teoria social que
marcou tanto a cena intelectual do final dos anos 60 e 70 e que separa esse
mundo cultural do nosso. Eu suponho que a mais óbvia (na verdade, a mais banal)
crítica que se possa fazer da teoria de Belo do texto é precisamente a sua
dependência de conceitos estruturalistas e questões políticas que parecem
datadas como calças de sino fora de moda e música disco. Despedir assim o
trabalho de Belo, porém, não teria sentido, seria um exercício de história na
moda ao invés de uma tentativa séria de separar o que está vivo e o que está
morto na exegese marxista estruturalista de Belo. No entanto, o tempo passou e
alguns juizos sobre as suas posições mais importantes, à luz dos
desenvolvimentos subsequentes, podem e devem ser feitos, ainda que brevemente.
Embora esta discussão dificilmente possa pretender ser uma lista exaustiva dos
desafios que confronta a estratégia exegética de Belo no século XXI, tampouco
deverá ser tomada como um post mortem identificando
falhas fatais na sua abordagem. Pelo contrário, o meu objetivo aqui é
simplesmente destacar alguns dos desafios teóricos e metodológicos mais
imediatos que um seguidor contemporâneo de Belo teria que enfrentar.
Primeiro,
devemos levar a sério as críticas anti-essencialistas da sua metodologia
levantadas pelo pós-modernismo. Enquanto Belo se baseia nas obras de Derrida e
Barthes, que são ambos classificados entre os pais do pós-modernismo, o seu
meio intelectual é claramente definido por temas estruturalistas e pós-estruturalistas
que precederam o pós-modernismo na cena intelectual francesa, e o seu trabalho
claramente não é pós-moderno, tanto nas suas suposições como nas conclusões.
Por exemplo, Belo seguindo Althusser e Etienne Balibar (1970: 214), fala da
“invariância absoluta dos elementos que são encontrados em todas as
estruturas sociais (uma base económica, formas legais
e políticas e formas ideológicas)” (Belo 1981: 4). Esta suposição de que todas
as estruturas sociais de todos os tempos e lugares, pelo menos no nível
superestrutural, têm certas características essenciais em comum, é aceite como
auto-evidente por Belo – como de facto deve ser, dado o seu desejo de usar
Marcos como uma base para a moderna prática revolucionária e usar Marx como
chave para resolver todas as questões sociais. No entanto, a tendência de muito
pensamento pós-moderno para negar a comensurabilidade dos diversas sistemas
ideológicos e para enfatizar a singularidade de cada estrutura social particular,
torna esta suposição problemática, para dizer o mínimo.
Não
é necessário ter lido profundamente filosofia pós-moderna para reconhecer os
problemas envolvidos nas propostas de qualquer sistema filosófico totalizador
(incluindo o marxismo) que suprimisse a diferença radical ou a incorporasse dentro
de um sistema mais amplo de identidade (o que é a mesma coisa). Lembre-se, por
exemplo, da insistência de Gilles Deleuze em que “estruturas sociais e
económicas, formas de pensamento, normas de acção, são todas produzidas através
de conjunções particulares e contingentes de desejos, acções e efeitos, e fazem
parte de um conjunto no qual cada elemento é condicionado por todos os outros”
(Baugh 2006: 285). Esta negação da comensurabilidade de fenómenos sociais
historicamente discretos é, ela própria, problemática, é claro, pois põe em
questão a própria possibilidade de conhecimento histórico objectivo. Embora o
próprio pós-modernismo seja talvez o resultado lógico da alegação de Althusser
de que a história é “um processo sem um sujeito”, isto é, um processo
indefinidamente descentrado sem uma lógica única (contra Hegel), conduzindo-o a uma conclusão e, portanto, sem qualquer
garantia de unidade diacrónica ou inteligibilidade, Belo não viu nem aceitou
essa consequência no seu trabalho. Quaisquer que sejam as visões do valor do
pós-modernismo, os leitores contemporâneos não podem aceitar o marxismo
estruturalista de Belo de forma acrítica ou como não problemática. No mínimo,
qualquer tentativa sustentada de prosseguir a metodologia de Belo no século XXI
precisaria de abordar (se não resolver) estes desafios filosóficos fundamentais
que surgiram desde os princípios dos anos 70.
Em
segundo lugar, deve-se abordar o uso de Belo de conceitos freudianos (filtrados
através da psicanálise lacaniana) para conceptualizar o papel das “utopias”
tanto na prática social como na ideológica. A importância de Jacques Lacan na
cultura francesa do pós-guerra dificilmente pode ser subestimada (Turkle,
1992), e a sua influência no marxismo de Belo foi tão profunda como problemática.
Por exemplo, pode o “ideal” que regula e normaliza cada prática social
particular, isto é, a “utopia” duma dada sociedade, ser realmente concebido como um “análogo na formação social
da pulsão freudiana” e a “ordem-utopia” que esse ideal cria na sociedade um
“análogo da pulsão de morte freudiana” (Belo 1981: 20)? Pode o psicanalítico
ser alinhado tão de perto e sem esforço com o económico, as ordens políticas e
simbólicas da sociedade? Duvido. Enquanto que a influência de Lacan e Freud
duramente não desapareceu (Žižek 2007), não se pode negar que o amplo estatuto
cultural de Freud diminuiu desde a década de 1970 (Dufresne 2006), nem se podem
ignorar os debates tanto sobre os fundamentos teóricos como sobre as evidências
empíricas da teoria freudiana que ocorreram desde que Belo escreveu (Grunbaum
1984; Sachs 1991; Robinson 1993). No mínimo, a própria compreensão de Belo da
psicanálise parece agora subdesenvolvida e desactualizada. Além disso, mesmo
que se aceite o princípio geral da solidez da teoria freudiana, o uso de Belo
como um análogo para as formações políticas e sociais requer uma teoria muito
mais grandiosa do que a maioria dos exegetas contemporâneos ou teóricos
políticos estão dispostos a aceitar. Certamente, a tentativa de Belo de usar
conceitos freudianos para estabelecer um isomorfismo entre os significados do
Evangelho de Marcos para a prática revolucionária no Modo de Produção
Sub-asiático na primeira Palestina do século e o Modo de Produção Capitalista
no Ocidente moderno continua problemático, para dizer o mínimo.
Mesmo
deixando de lado estas críticas “externas”, talvez que a questão mais difícil
de todas seja: a lógica interna da teoria de Belo, definida pelo marxismo
estruturalista, pode realmente teorizar a possibilidade de mudança revolucionária
sem mais? Não se trata apenas da questão de saber se a revolução era uma
possibilidade histórica para os camponeses palestinianos do primeiro século.
Belo admite que “o que os camponeses de um [Modo Subasiático de Produção]
poderiam alcançar através da revolução seria um retorno às formas
‘comunitárias’ primitivas. A revolução era impossível para eles” (1981: 28). Em
vez disso, a questão é se um marxismo estruturalista, com a sua ênfase nas
limitações ideológicas, tanto sobre a subjetividade como sobre os agentes, pode
fornecer um qualquer quadro de prática revolucionária e da transição de uma
ordem social para outra – uma possibilidade negada no passado por alguns
marxistas estruturalistas (Hindness e Hirst, 1975). O absoluto [aspecto] não
discreto de cada instância histórica, a incomensurabilidade de todos os sistemas
sociais e a omnipresença da diferença tão celebrada por muitos pós-modernistas
são certamente presságios desta aporia nas
abordagens estruturalistas da história. De facto, a acusação do marxismo
estruturalista como essencialmente incapaz de explicar a mudança foi
notoriamente apresentada pela E.P. Thompson (1978; Bottomore, 1998), vários
anos após aparecer o trabalho de Belo, e continua sendo uma das dificuldades
mais sérias enfrentadas por esse ramo marxista. Evidentemente, várias
estratégias foram sugeridas para lidar com esse problema (Giddens, 1979; Anderson
1980) – pessoalmente não acho que seja intransponível – mas qualquer tentativa
de seguir hoje o método de Belo deve abordar também essas questões.
Apesar
dessas dificuldades teóricas, insistiria em que o arcabouço teórico de Belo
permanece extremamente desafiador e promissor para os exegetas contemporâneos.
De facto, eu iria ao ponto de dizer que continua sendo promissor justamente por
causa dessas dificuldades, uma vez que as mudanças que ocorreram desde o
surgimento de seu trabalho, a ascensão do pluralismo metodológico dentro da
disciplina dos estudos bíblicos e a proliferação aparentemente interminável de
factores sociais, raciais e perspectivas de género na leitura das escrituras,
talvez tenham feito maior, em vez de menor, o desafio de transcrever o texto
bíblico num programa político viável. A incursão de Belo na grande teoria, por
mais estranha que seja à mentalidade académica de hoje, continua a ser uma base
essencial para qualquer leitura materialista politicamente astuta do texto bíblico.
A RECONSTRUÇÃO
HISTÓRICA DE BELO DA PALESTINA DO PRIMEIRO SÉCULO
Passando
da teoria dos textos de Belo para sua reconstrução do contexto histórico
específico da Palestina do século primeiro em que o texto de Marcos apareceu e
operou, encontramos tanto os persistentes pontos fortes do sentido histórico
geralmente sólido de Belo (pelo menos do ponto de vista marxista) como as
limitações impostas pela teoria histórica e social disponível quando ele
escreveu. Em vez de reconstruir o seu quadro da Palestina do primeiro século em
detalhe (tarefa que está além do escopo deste artigo), vou-me concentrar
brevemente aqui em dois pressupostos que regem a maneira como Belo conta o
contexto religioso-político de Marcos e oferecer algumas sugestões sobre como a
evolução posterior da investigação histórica e da análise sociológica poderia
melhorar o trabalho de Belo, deixando intacto o seu modelo básico.
Primeiro,
Belo assume que a Palestina do primeiro século foi organizada como o que a
tradição marxista chama “Modo de Produção Sub-Asiático”, isto é, uma economia
agrária caracterizada por trabalho de escravos e de camponeses ao nível de subsistência,
cuja atividade económica estava centrada em aldeias rurais, mas governado e
explorado através de um aparelho de estado controlado pelos grandes
proprietários de terras, a classe mercantil e uma classe política urbana. Os
deslocamentos económicos e sociais ocasionados por esse sistema, por sua vez,
deram origem a lutas de classes e movimentos de guerrilha generalizada nos
campos e a ascensão nas cidades de um lumpemproletariado economicamente incapaz de ação política concertada (Belo 1981, pp
83-84). Este modo de produção sub-asiático, afirma Belo, produziu
fundamentalmente diferentes situações económicas e políticas na fértil região
norte da Galiléia e na região mais árida da Judéia, conflito entre os quais a
ideologia religiosa do Templo do Judaísmo concentrada em Jerusalém tentava
suprimir (1981, pp. 60-61).
Embora
Belo esteja, sem dúvida, correcto ao apontar as diferenças geográficas e
económicas entre Norte e Sul como [razões] críticas para explicar o sucesso do
ministério de Jesus na Galiléia e o seu fracasso na Judéia, bem como ao ligar a
resistência política ao domínio romano com as realidades económicas em toda a
Palestina, o conceito especificamente marxista de um Modo de Produção Asiático
– do qual o “Modo Subasiatico” de Belo é derivado, através do trabalho teórico
de Guy Dhoquois (1970) – é dificilmente
tão auto-evidente e não problemático como Belo assume. Deixando de lado a questão
de saber se as teorias marxistas do desenvolvimento social são em geral apropriadas
– como poderia a exegese marxista questionar isso? – dentro da sociologia marxista
tem havido muito debate sobre a viabilidade do conceito de um modo de produção
asiático (AMP). Como Bryan Turner observou na sua avaliação do conceito, muitas
vezes “o conceito de AMP tem sido usado de forma promíscua para descrever quase
todas as sociedades baseadas na propriedade comunal e aldeias auto-suficientes,
onde os mercados capitalistas são
ausentes. … A AMP também está repleta de problemas teóricos. É difícil
ver, por exemplo, como aldeias auto-suficientes e autónomas podem ser
compatíveis com um estado centralizado que deve intervir na economia da aldeia”
(Turner 1998). Turner (1978, 1998) não está sozinho na sua crítica deste
conceito (Hindness e Hirst 1975; Krader 1975), embora outros estudiosos tenham
defendido a sua (limitada?) utilidade (Briant 2002: 802). Também abundam outros
problemas no conceito, incluindo o de explicar a origem do estado na ausência
de lutas de classes (Currie, 1984). De forma mais geral ainda, será o conceito
do Modo de Produção Asiático apenas uma expressão marxista do “orientalismo”
geral que tem atormentado os estudos ocidentais modernos das culturas não ocidentais,
de acord com escritores como Edward Said (1979)? Quaisquer que sejam as
respostas dadas a essas perguntas, fica claro que a aceitação de Belo desta
categoria social como um elemento essencial na sua exegese de Marcos levanta
dificuldades que um quadro materialista da história mais teoricamente informado
deve ter em conta hoje.
Em
segundo lugar, de maneira muito estruturalista, Belo argumenta que o espaço
ideológico do primeiro século da Palestina envolveu “dois sistemas distintos
[que] podem ser encontrados nos textos legislativos do Antigo Testamento: um
sistema de mácula ou contágio e um sistema de dívida, sendo o primeiro dominante em textos pertencentes ao documento
sacerdotal (P), o segundo em textos pertencentes aos documentos Eloísta (E) e
Deuteronomista (D)… Começando em certo período na monarquia subasiatica, os
dois sistemas são relacionados por uma dialética que é a duma luta de classes
”(1981: 38). Belo então elabora um quadro estruturalista muito complexo de
sentido em que esses sistemas simbólicos concorrentes (o sistema da mácula
sendo associado com a classe sacerdotal dominante e com o Templo de Jerusalém,
o sistema da dívida com a economia rural agrária e observância religiosa
popular no campo) espelham e mediatizam as tensões de classe geradas pelo Modo
Subasiático de Produção. De acordo com Belo, o sistema da mácula e o seu foco
na pureza e sacrifício do templo tem as suas origens no campo da monarquia
davídica, enquanto que o sistema de dívida, transmitido também através dos
profetas, representa a religião prática de “tribos pré-sub-asiáticas iniciais”
(1981: 56). Os conflitos sociais e económicos que resultam desta imposição do
sistema monárquico posterior na sociedade agrária, afirma Belo, definem a
sociedade na qual Marcos foi escrito e define o espaço dentro do qual sua
narrativa subversiva opera. Como Belo escreve: “Uma exegese dos textos
proféticos confirmaria facilmente, estou convencido, a brutal conclusão que já
é clara e que os exegetas burgueses sistematicamente evitam; o sistema de
classes estabelecido por David e a exploração do irmão pelo irmão são a
maldição que caiu sobre Israel e o levou para a devastação e exílio. Veremos
que o Evangelho de Marcos está localizado no mesmo campo no que diz respeito à
leitura da história de Israel” (1981: 56).
O
que devemos dizer sobre isso? Obviamente, a Hipótese Documentária, da qual Belo
tão claramente depende, sofreu críticas sustentadas desde que ele escreveu, e
seria rejeitada inteiramente por um número considerável (talvez até a maioria)
de estudiosos bíblicos hoje (Blenkinsopp, 2000). Contudo, esses debates parecem
menos centrais para avaliar o projeto de Belo (eu suspeito que Belo poderia
navegar por esses desafios e reter uma base bíblica e histórica para os
sistemas ideológicos que ele identifica a trabalhar na Palestina do primeiro
século) do que os desenvolvimentos metodológicos na pesquisa bíblica desde que
ele escreveu. Mais significativo, creio eu, para quem usa Belo hoje, é o
desenvolvimento de uma crítica social-científica que, ao longo dos últimos
trinta ou mais anos, apresentou uma abordagem muito sofisticada e um retrato empiricamente
bem fundamentado do mundo ideológico do Novo Testamento que não se centram em
torno da dicotomia mácula-dívida que o
estruturalista Belo propõe, mas sim em torno de sistemas mais universais de honra-vergonha como os propostos por Bruce J. Malina (2001). Essas abordagens levam
plenamente em conta as relações de parentesco, estatutos de classe e relações
económicas (assim como Belo), mas mediatizam-nas e interrelacionam-nas através
das investigações antropológicas e sociológicas mais do que através dos lentes
da teoria francesa.
É
claro que essas abordagens social-científicas geralmente minimizam ou até eliminam
a consideração de classe para produzir o que Steven J. Freisen rotulou de
“crítica capitalista” do Novo Testamento, e deve-se resistir a tais tendências
(2004: 336). Um excelente exemplo de tal negligência (o que ajuda a explicar a
amnésia contemporânea em torno do trabalho de Belo) seria a Leitura de
Marcos: Envolvendo o Evangelho de David Rhodes (2004).
Este estudo, que faz uma abordagem explicitamente social-científica do texto,
relega o trabalho de Belo (que o autor admite ser “uma fascinante análise marxista
do Evangelho”) a uma única nota de rodapé (Rhodes 2004: 233), enquanto que o
estudo de Vernon K. Robbins (2009) não o referencia de todo. O próprio Belo
lamentou tais tendências numa geração anterior de estudiosos como Reginald de
Vaux (1961), que frequentemente colocava tanta ênfase na esfera ideológica
religiosa que até mesmo “negam a existência de classes sociais no antigo
Israel” (1981: 310 n. 72). A exegese marxista permanece essencial hoje, quanto
mais não seja pela sua insistência em que os exegetas não permitam que factores
sociais secundários e terciários distraiam os leitores das divisões económicas
e de classe que operam nos níveis mais profundos e determinantes da sociedade.
No entanto, estou relutante em afirmar que essas abordagens não identificam
características reais do espaço ideológico da Palestina do primeiro século, que
pode enriquecer uma exegese marxista, mesmo que não possa derrubá-la.
Certamente, qualquer estudioso em 2011 que deseja continuar o trabalho de Belo
e estendê-lo não pode ignorar o tempo que passou desde que ele apareceu pela
primeira vez.
Os
dois pilares teóricos sobre os quais Belo edificou a sua reconstrução histórica
do primeiro século da Palestina, ou seja, o conceito marxista do Modo Asiático
de Produção e o modelo estruturalista do quadro do sistema de mácula / dívida
que o acompanhava, exige certamente uma explicação mais rica e subtil do que a
que ele lhes deu no seu trabalho. Levando a sério estes subsequentes
desenvolvimentos na compreensão histórica, tanto dentro da teoria marxista como
dentro do grémio alargado dos estudiosos da Bíblia, certamente mudaria muitos
detalhes do magnum opus de Belo, maneiras que ele nunca imaginou e que
provavelmente não o deixariam totalmente confortável. No entanto, até uma
maneira mais frutífera e sugestiva de relacionar os sistemas económicos e
ideológicos do primeiro século da Palestina ser apresentada, que consiga
preservar tanto a sua autonomia
relativa como a sua inter-relação, a obra de Belo permanece um excelente ponto
de partida para os exegetas marxistas contemporâneos. Em vez de descartar a
solução proposta por Belo para esse problema como desactualizada ou
irrelevante, a exegese marxista contemporânea precisa de assumir a tarefa outra
vez.
CONCLUSÃO
À luz da avaliação
e das críticas da “leitura materialista de Marcos” de Belo, o que devemos
concluir sobre sua relevância para as tentativas contemporâneas e futuras da exegese
marxista? Sem dúvida, o estudo de Belo mostra as limitações do estado do conhecimento
histórico e da situação teórica quando o livro foi escrito. Muitos dos seus
métodos e suposições históricas parecem muito mais problemáticas para nós do
que para os leitores parisienses de meados da década de 1970 e abordar esses
problemas exigiria algumas revisões substantivas, tanto em teoria quanto na
prática. No entanto, a abordagem de Belo para a Bíblia merece nossa atenção
contínua porque reconhece e tenta com rigor conceptual lidar com a profunda
complexidade da interação entre economia, política e texto que encontramos em
ação no Evangelho de Marcos. Uma tal sofisticação intelectual quando a leitura
do texto bíblico é essencial se quisermos escapar a leituras “políticas” que
favorecem o sentimentalismo moral e o narcisismo mais do que proporcionam
orientação para uma exegese política sustentada e teologicamente séria. Além
disso, o reconhecimento de Belo (tornado possível precisamente por sua
metodologia estruturalista) de que o caráter revolucionário de Marcos e do
próprio Evangelho foi subsequentemente re-narrado e "re-ideologizado"
na ideologia dominante e, portanto, despojado de seu poder subversivo é em si
uma contribuição crítica e duradoura que ele fez para a compreensão do texto
(Belo 1981: 33). Como tal, sua exegese materialista, por descobrir o poder
subversivo original desses longos códigos re-ideologizados, ainda pode “tornar
possível um confronto entre uma prática política que pretende ser
revolucionária e uma prática cristã que não pretende continuar a ser religiosa
”(Belo 1981: 1). Essa conquista, apesar dos inevitáveis problemas que
acompanham os seus esforços, faz com que o empenhamento teórico do texto de
Belo seja oportuno e, sugeriria em conclusão, de interesse duradouro e
significativo.
Minha resposta a Lance Reich este domingo
Caro amigo
Estou muito feliz por ter lido o seu
artigo de 2012 sobre o meu livro MarC / X, a sua abertura intelectual para
discernir o que é datado e o que permanece válido para si. Estou surpreendido e
satisfeito com o que você diz no início sobre o ressurgimento do marxismo,
inclusive na crítica bíblica. Acontece também que você toma como objeto de
crítica o que ninguém havia feito na época e que, sem dúvida, se tornou mais
avaliável hoje. Por mim, concordo com sua primeira parte, mas não concordo nada
com a segunda (eu leio muito mal inglês).
Regressei a Portugal em 1974,
durante a ‘Revolução dos Cravos’, e depois de alguns anos entendi que não havia
possibilidade de uma ‘revolução’, o que a nossa situação actual reforça:
revolução em Portugal? na Catalunha? na Bélgica? As lutas actuais não são
leninistas (duas vezes tentei ler O que fazer?, sem conseguir ir além das primeiras páginas),
não visam a tomada do poder do Estado, que deixou de ser 'decisivo', dizem
respeito ao local e ao global, como se diz, poluição e clima, racismo e
machismo, trabalhadores tratados como cidadãos e não como mercadorias,
diminuição das horas de trabalho e eliminação do desemprego, e assim por
diante. Ou seja, entendi que o marxismo não era senão uma análise das
sociedades capitalistas; por exemplo, o conceito de modo de produção, unidade
inseparável das ‘forças produtivas’ (relação trabalhadores / máquinas,
matérias-primas, etc.) e ‘relações de produção? (relação de capital e juros /
salárioz), parece permanecer adequado para entender uma fábrica capitalista,
sendo a primeira relação a da tecnologia, cujo líder é o engenheiro, e a
segunda, a das compras e vendas no mercado, de que o líder é o economista. Essa
dupla relação encaixa muito bem numa fenomenologia inspirada no motivo
gramatológico de double bind de Derrida, que desenvolvi jogando com algumas descobertas científicas
decisivas do século passado. Se você quiser espreitar, há uma apresentação no
meu blogue www.philoavecsciences.blogspot.com. Concordo também consigo, foi
ingenuidade minha misturar Marx e Freud, a utopia e a pulsão.
Dito isso, admito que o título “modo
de produção sub/asiático” talvez seja orientalista, como denunciado por E.
Said, embora acredite que a minha descrição da Palestina se mantém bastante bem
sem esse título. Não havia sem dúvida nenhum “Estado centralizado”, ele
preocupava-se obviamente com a ordem por causa do ocupante e recebia os dízimos
devidos ao clero, o que basta para caracterizar o político; que o Templo é o nó
do Tesouro, do Sinédrio e do Culto dos sacrifícios (os três misturados), é
mostrado nos sinópticos como uma espécie de adversário simbólico de Jesus o
Messias (João antecipa a expulsão dos comerciantes do Templo para
‘despolitizar’ o Messias), tudo se desmorona em ruínas em 70, tudo isso
parece-me ‘organizado’ no quadro proposto, marxista ou não.. Em suma, quando houver
uma melhor descrição, sera óptimo, mas vamos mantê-lo enquanto não houver
melhor, acho que também é a sua opinião.
No que diz respeito aos sistemas de
mácula / dívida: actualmente, renuncio à noção de oposição dialética e luta de
classes entre eles – tornei-me “contra” a própria noção de dialética, que
pressupõe a exterioridade dos dois termos – mas creio que a revisão da exegese
do Pentateuco não afecta os dois sistemas, que são da ordem da antropologia hebraica.
Estou muito feliz com a nova exegese: se o Deuteronómio foi o primeiro a ser
escrito, então todos os grandes textos foram escritos por profetas, o que me
permitiu traçar um paralelo com os filósofos gregos. Os profetas hebreus, é a
‘corrente’ dos escritores que escreveram a Bíblia. Mas o sistema dom / dívida
claramente domina
o Deuteronómio (“que não haja pobre entre
vós”), assim como pureza / mácula domina o Levítico do documento sacerdotal,
que continua sendo a última mão da Tora, onde “os sacrifícios de vários tipos,
escreve Schmid, que originalmente tinham funções diferentes, tornam-se todos no
escrito sacerdotal sacrifícios de expiação; todo o culto se torna numa
instituição monumental de origem divina cujo único propósito é assegurar a
expiação "(Schmid, Hans Heinrich,”Para uma teologia do Pentateuco”, em de
Pury, Le Pentateuque en question. Les origines et la composition des
premiers cinq livres de la Bible à la lumière des recherchess récentes, Labor and Fides, 1989, pp.
379-380). Foi a tomada do poder pelos sacerdotes no tempo da dominação persa,
eles tornaram-se os intérpretes das Escrituras, da escrita dos profetas. Não
vejo muito bem que se oponha a estes dois sistemas, um terceiro como honra /
vergonha, assaz mediterrânico, especialmente entre as máfias, uma vez que estes
diferentes sistemas antropológicos podem muito bem jogar uns com os outros, não
se excluem mutuamente. Só que não vejo muito bem como honra / vergonha pode ajudar
a ler Marcos ou os outros evangelhos, enquanto que a questão entre a
observância de rituais de pureza e dívida (pecado), entre os sacrifícios e a
misericórdia, parece muito importante na questão dos alimentos e da admissão
dos pagãos (Mc 7, Ga 2, Act 15), na crítica paulina da Lei, assim como
continuou a ser relevante ao longo da história do cristianismo.
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